Será mesmo possível existir um Direito Penal e um Direito Constitucional divorciados e calcados em novos paradigmas e baseados em novos pressupostos de fato?
Essa inquietação, o modesto artigo tenta responder, especulando e explanando sobre o direito penal do inimigo e ainda seus principais efeitos no ordenamento jurídico brasileiro.
A versão contemporânea da doutrina penal prestigia o direito penal do inimigo idealizado por Günther Jakobs[1] que abertamente defendeu a necessidade imperativa de existir o Direito Penal direcionado aos cidadãos e outro Direito Penal que afirma ser voltado ao inimigo.
O normativismo funcional de Jakobs formulou a teoria da imputação objetiva que passou a desenvolver uma tese do crime orientada para os fins do direito penal.
Enquanto que a maioria dos doutrinadores coloca a dignidade da pessoa humana como centro do sistema, Luhmann e Jakobs fazem justamente o oposto, e posicionam no centro do sistema, a sociedade.
Para Jakobs pessoa é conceito eminentemente jurídico, sujeito de direitos e obrigações em obediência ao contrato social. A sociedade enquanto sistema de comunicação funciona por meio de nexos de expectativas, sendo que a norma nada mais são que expectativas de comportamento estabilizadas.
Quando o indivíduo não realiza seu papel social, há uma quebra de expectativa e o infrator ao delinqüir desestabiliza o sistema, configurando-se a violação da norma, o que implica necessariamente na futura aplicação da pena.
O ponto crucial da tese da imputação objetiva refere-se exatamente a estes papéis que se relaciona com a função do indivíduo desempenha em específico contrato social.
Na teoria de Jakobs a ação uma vez ocorrida, transmuta-se em fato. Repudia então o doutrinador alemão a tese welzeniana[2] de índole finalista e reafirma que a função do direito penal não é a proteção ao bem jurídico. Irá proteger as normas e a culpabilidade é entendida como ruptura do sujeito como direito.
Günther Jakobs foi reconhecido como um dos mais brilhantes discípulos de Wezel e criou o radical funcionalismo sistêmico que aponto o Direito Penal dotado da função primordial de proteger a norma e, apenas indiretamente tutela os bens jurídicos mais fundamentais.
Além da notável inflexibilidade punitiva da tese de Jakobs também propõe a relativização dos direitos fundamentais o que demonstra ser incompatível com o Estado Democrático de Direito e, mesmo assim vem se alastrando no ordenamento jurídico pátrio.
Aliás, deve-se à essa adesão a falta de eficiência das políticas criminais e ainda a falta de seriedade em se atender aos anseios sociais de pacificação eficaz e inclusiva.
Em meados da década de oitenta e, em função da crescente criminalidade[3], o doutrinador alemão Günther Jakobs elaborou a tese de direito penal do inimigo que visa melhor atender à sociedade e garantir a segurança através da atuação estatal mais contundente em combater o transgressor que insiste em ignorar e violar as normas penais.
É verdade que o direito penal do inimigo pugna de severa aplicação das normas punitivas com a conseqüente eliminação dos direitos e garantias fundamentais e até mesmo as processuais, consagrando uma atuação estatal não exatamente contra o mero transgressor, porém, insurgindo-se contra um inimigo posto que ao consiga manter-se fiel às normas.
Os inimigos são criminosos econômicos, terroristas, genocidas, delinqüentes organizados, criminosos sexuais e toda sorte de infrações perigosas e de alto teor ofensivo.
O inimigo é quem insiste permanentemente em se afastar do direito, e não oferece garantias cognitivas de que vai ser fiel às normas. Exemplifica Jakobs o fatídico dia 11 de setembro de 2001 como um típico ato de inimigo.
Elege-se que o inimigo como aqueles sujeitos subordinados à legislação de exceção definindo-se um evidente direito penal do autor, inerentemente do grau de culpabilidade, reprovabilidade ou o bem jurídico afetado, seria então o agente pelo que é, desconsiderando-se o fato delitivo cometido.
Os adeptos aos minimalistas do direito penal gestaram um legislador que na ânsia de oferecer célere resposta e de forma mais efetiva em face do pânico generalizado e a onde de crescente criminalidade projetou leis esparsas que impõem cerceamento de garantias e punições exacerbadas aos autores, em desatenção a real culpabilidade dos transgressores, mais atinente somente às suas características pessoais como forma de promover a segura repressão.
No Brasil, o direito penal do inimigo tem ganhado francas adesões e guaridas até mesmo dentro do poder judiciário brasileiro.
E, apesar de não significar a solução para criminalidade contemporânea traz a baila um ascendente punitivismo que vem sendo praticado nas mais diversas esferas do governo, colocando sob séria suspeita a legitimidade do Estado Democrático de Direito.
Para Jakobs a primordial função do direito penal seria a proteção da norma, e, portanto, da sociedade, e só indiretamente a proteção de bens jurídicos.
Explica o doutrinador alemão que não é possível obter a pacificação social através do direito penal tradicional, sendo indispensável o direito penal de exceção que se obstina em restabelecer e proteger a norma jurídica.
Ainda continua explanando que não denomina o criminoso como pessoa, posto que os transgressores justifiquem sofrer maior rigor na punição e execução da pena como forma de mantê-los fora da sociedade sem ter vistas à ressocialização ou reinserção social.
Há três pilares que sustentam o chamado direito penal do inimigo, a saber:
a) a necessidade de antecipação da punição do inimigo e, não importa o cometimento fático de qualquer crime, sendo puníveis inclusive os atos preparatórios mesmo que não signifiquem crimes autônomos, em modelo oposto ao que vige atualmente no Brasil;
b) desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas garantias processuais. Para Jakobs, as penas são eficazes quando puderem extirpar da sociedade o indivíduo perigoso, ou seja, o inimigo;
c) a criação de leis mais severas direcionadas diretamente aos inimigos. Portanto, ter-se-ia dois direitos penais materiais e diametralmente opostos, um referente ao cidadão comum (burgerstarecht) onde prevaleciam todos os direitos processuais e a integralidade do princípio do devido processo legal e um direito penal aplicável ao inimigo (feindstrafrecht) com pesadas penas dirigidas aos que atentam contra o Estado indo desde a coação física até o estado de guerra, objetivando o restabelecimento da norma, apartando o inimigo do seio da sociedade, bem como servindo de intimação para outras pessoas;
Busca punir não apenas os fatos pretéritos mas igualmente os fatos futuros, daí dizer que é um direito penal prospectivo. Em oposição a um direito penal preventivo.
Portanto, segundo a tese Jakobs não há distinção entre o conceito de cidadão e pessoa, de forma que igualmente não separa os direitos inatos da pessoa humana, dos direitos do cidadão.
Todavia, é forçoso reconhecer que ser humano não se refere a uma qualidade que possa ser retirada do agente, sendo pois inata característica bem como os direitos à esta inerente.
Acredito que a base filosófica de Jakobs está nas obras de Rousseau e Fichte principalmente quando define como inimigo aquele que rompe com o contrato social e o criminoso por não se adaptar à sociedade podem ter sua qualidade e direitos de cidadão suprimidos.
No direito penal do inimigo o ordenamento jurídico está preocupado com a completa eliminação daqueles eleitos como inimigos, em oposição ao cidadão comum, esquadrinhando uma autêntica guerra onde os direitos e garantias são relativizados, flexibilizadas e até mesmo por vezes suprimidos.
Preocupa-se com a aplicação da punição do autor que é o inimigo e não apenas do fato infrator da norma. Há doutrinadores que acreditam tratar-se de um novo movimento lombrosiano embora apontados por Lombroso buscando a punição antecipada e preventiva o que é justificável por ser perpetrado por não pessoas (feind sund aktuell unpersonem).
O direito penal do inimigo é igualmente criticado por Claus Roxin (que defende um funcionalismo moderado) e ainda pecha a tese de Jakobs de “direito penal simbólico”.
Veemente, Roxin[4] aponta que a tese tende a beneficiar certos grupos políticos ou ideológicos e a apaziguar o cidadão, fazendo-o crer que as medias positivas estão sendo efetivadas, quando em verdade trata-se de uma saída nefanda e seletiva para o direito penal implicando na invasão no cumprimento de tarefas político-sociais.
É deveras questionável a referida função simbólica do direito penal do inimigo e tende a prevalecer sobre a função instrumental e não significando efetiva proteção dos bens jurídicos.
De fato, cria-se então a ilusão de segurança e uma falsa confiança na lei e nas instituições, e incorrendo no maniqueísmo do estado de polícia.
Analisar o direito penal em tempo de crise nos leva fatalmente ao busilis que existe em não se poder no Estado Democrático de Direito enfrentar o inimigo de forma adequada, daí a necessidade de direito penal diferenciado composto de tipos abertos e imprecisos e, prevendo a antecedência da tutela punitiva principalmente em razão da importância do bem jurídico tutelado, provendo severas penas com desrespeito ao princípio da legalidade e ao respeito à dignidade humana, além do devido processo legal.
A professora Alice Bianchini em sua obra “Direito Penal na era da globalização” aponta que o conceito de delito ao lado do poder punitivo estatal representam duas formas de violência. Também referente ao mesmo fenômeno elaborei um artigo intitulado “Sociedade injusta – A violência é consequência da exclusão social”, disponível em http://jusvi.com/artigos/1466
E o Direito Penal deve ser instrumento para mitigar essas duas violências, tanto coibindo o abuso cometido por particulares como evitando arbitrariedades do poder estatal.
Nas sábias palavras do professor Dr. Luiz Flávio Gomes ao penalista do terceiro milênio cabe desfazer os equívocos e deformidades do passado, situando o direito penal de maneira adequada e não o fazendo retroagir às desrespeitosas fórmulas que tanto ferem a dignidade humana.
Apesar de reconhecer o Direito Penal como controle social, não se pode diminuir o respeito à pessoa humana para se atingir o bem comum, pois esse tem seu núcleo basilar na própria dignidade humana (que é impenhorável, indivisível, irrenunciável e indisponível).
O maior perigo ao Estado Democrático de Direito é o fracasso da paz social e a falência do bem-estar comum, posto que os valores como a ordem, paz e justiça são os que traduzem em suma, o respeito à individualidade do cidadão.
O legítimo escopo do Direito Penal para garantir a segurança do bem comum só pode ser atingido dentro do sistema de legalidade, pois o exercício da função pública tem limites que derivam dos direitos humanos que são atributos inerentes à dignidade humana e, ipso facto, superiores ao poder do Estado.
Portanto, é crucial para plena eficácia do princípio da dignidade humana que haja total acolhida pela ordem jurídica e política do Estado.
A tese do direito penal do inimigo revela-se relevante na estrutura do sistema político totalitário e que exerce o mesmo papel que tece o direito nazista principalmente com sua prática anti-semita.
Convém observar ainda que a tese de Jakobs transforma as normas penais em instrumentos de banalização de seres humanos que passam ser considerados como inimigos despojados de toda humanidade.
E, nesse particular, conveniente citar a lição de Hannah Arendt que retrata Eichmann que é um homem de rasa inteligência, dotado de personalidade incapaz de pensar e pré-disposto à cega obediência mediante qualquer voz imperativa.
A obra de Arendt aponta que sobre o mal infinito que pode ser praticado por aqueles incapazes de julgar e que não possuem um objetivo definido e realizável, e, ainda, que recusa-se a qualquer prerrogativa de julgar e de racionalidade.
O mal explica Hannah Arendt significa a dimensão demoníaca, é superficial e vazio, e desafia o pensamento que tenta tocar as raízes. Sintetiza que o pensamento que se ocupa do mal é aquele que nada encontra.
Portanto, o abandono, a necessidade e o afastamento da realidade reforçam a banalidade do mal, pois além da ausência do pensamento dos indivíduos este facilite em muito a efetivação do totalitarismo.
As bases filosóficas utilizadas por Jakobs para justificar sua teoria são clássicas nas Ciências Humanas, principalmente ao mencionar que quando o inimigo infringiu o contrato social, deixou de ser membro do Estado, abdicou de sua cidadania (nesse argumento, utiliza claramente Rousseau).
Mais adiante, aponta que para quem abandona o contrato de cidadão, perde ipso facto todos seus direitos (quando utiliza a doutrina de Fichte).
Já quem comete alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como mero súdito, e sim, como inimigo (nessa visão, inspira-se em Hobbes). E, por fim, quando aponta que quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, para quem recusa aceitar o “estado comunitário legal”, merece ser tratado como inimigo (quando se inspirou em Kant[5]).
Concluímos, portanto que a teoria do direito penal do inimigo apresenta-se com considerável lastro filosófico embora sua aplicação redunde em flagrante retrocesso para humanidade e para evolução do direito penal.
A lógica cartesiana que sintetiza que quem infringe o contrato social é mais que mero delinqüente, é o inimigo não fazendo jus ao status de cidadão. Representa o mal e exprime aberrante e freqüente inadequação à norma imposta, simboliza finalmente um perigo de alto risco o que por si só, justifica e legitima plenamente a antecipação da punição.
Os defensores da tese jakobiana alegam que a aplicação do direito penal do inimigo causa menor dano à sociedade e a pessoa humana em comparação com a aplicação do direito penal clássico.
Assim a pena de prisão revela seu duplo significado: um simbólico e outro físico: o fato criminoso de um ser racional significa a desautorização da norma, revelando frontal ataque à sua vigência, então a pena acena simbolicamente que o delito não tem o efeito de destruir o ordenamento jurídico, portanto, a norma segue vigente e válida, para a configuração da sociedade, mesmo depois de violada.
Defende ainda Jakobs que a pena não se dirige ao criminoso, e, sim apenas ao cidadão que atua com fidelidade ao Direito, tendo função preventiva de integração e de reafirmação da ordem e da norma.
Curial notar que a função da pena no Direito Penal do cidadão é contrafática (contrariedade à sua violação) enquanto que no Direito Penal do inimigo a pena visa predominantemente à eliminação do perigo e que tal supressão ocorra pelo maior tempo possível, desta forma, a pena impede que o sujeito pratique crimes fora do cárcere, portanto enquanto continuar preso ocorre a prevenção do delito.
O Direito Penal do inimigo necessita da caracterização do inimigo e da oposição que se faz ao direito penal do cidadão (onde estão vigentes todos os princípios limitadores do poder punitivo estatal).
Em síntese, podemos identificar suas principais bandeiras que são:
a) flexibilização dos princípios da legalidade e da tipicidade (prescrição de vaga descrição dos crimes e das penas);
b) inobservância de princípios basilares tais como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva, aumento desproporcional das penas, criação artificial de delitos (crimes sem bens jurídicos definidos), endurecimento da execução penal; exagerada antecipação da tutela penal; supressão de direitos e garantias processuais fundamentais; concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito( como a delação premiada, colaboração premiada); flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); infiltração de agentes policiais; uso freqüente de medidas preventivas ou cautelares (tais como interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei e medidas penais dirigidas contra quem exerce atividades lícitas tais como bancos, advogados, psicólogos, leiloeiros, joalheiros, casas de câmbio e, etc.
As críticas feitas à tese jakobiana conforme bem elucidou Cancio Meliá é que este se reduz a ser mais um exemplo de Direito Penal do autor onde se pune o agente pelo que é, em oposição flagrante ao Direito Penal do fato que pune o agente pelo que ele fez.
Transforma a maioria das penas em medias de segurança tendo uma durabilidade estendida e imprecisa. Só a guisa de registro histórico, o auge do Direito Penal do autor deu-se exatamente durante o nazismo, o que levou a demonialização de alguns tipos de delinqüentes.
O autêntico Direito Penal deve forçosamente estar vinculado a Constituição Democrática e, frise-se como já aduziu Dr. Luiz Flávio Gomes enquanto que a expressão “Direito Penal do cidadão” significa tosco pleonasmo o Direito Penal do inimigo revela-se como paradoxo sendo um não-direito ou um anti-direito.
Observe que no direito penal de Jakobs não se reprovaria a culpabilidade do agente, e sim sua periculosidade e, com isso, a pena e a medida de segurança deixariam de ser realidades distintas e passariam a ter caráter permanente e curativo.
Reforçando o positivismo criminológico de Lombroso, Ferri e Garófalo que propunham até o bizarro fim das penas através da massiva imposição de medidas de segurança.
Não se repele a desproporcionalidade das penas, ao revés, procura-se enfaticamente se punir a periculosidade deixando de ter relação com os danos causados de cada caso concreto.
Instaura-se o procedimento de guerra e de exceção que não se coaduna com o Estado de Direito. Em verdade se constitui um direito de terceira velocidade caracteriza pela pena de prisão sem as garantias penais e processuais e sem respeito ao devido processo legal.
A expansão do direito penal do inimigo solidifica o âmbito punitivo revelando-se ser um Direito Penal do legislador contendo exagerada antecipação da tutela penal, com bens jurídicos predeterminados e severa execução penal.
Resulta em ser a soma da direita e da esquerda punitivas sendo inconstitucional no contexto brasileiro principalmente por conceber medidas excepcionais típicas de tempos anormais tais como estado de defesa e o estado de sítio.
Cumpre salientar que apesar de atingir bens jurídicos relevantes a chamada criminalidade contemporânea inimiga não põe o risco o Estado vigente e nem mesmo suas principais instituições.
Ademais, tratar criminosos comuns como fosse “criminosos de guerra” adiciona argumento apenas para o questionamento da legitimidade do sistema penal além de afirmar o crime como ato de contestação ao sistema.
A dinâmica e a lógica de guerra sempre gera intolerância exagerada e inaugura um tendencioso “vale-tudo” que conduz aos excessos e a falta de razoabilidade que põe em risco o Estado Democrático.
Contra o Direito Penal do inimigo reagiu Eugenio Raúl Zaffaroni apontando os seguintes pontos:
a) para exercer o poder dominante há de se ter estrutura e ser detentor do poder punitivo;
b) quando este poder não encontra limites transforma-se em estado de polícia que se opõe ao estado de direito;
c) o sistema penal para ser exercido permanentemente sempre está à procura do inimigo; o poder político se constitui como poder de defesa contra os inimigos;
d) ao mencionar que o Estado é vítima dos infratores eleitos como inimigos com isso neutralizou-se a verdadeira vítima do direito;
Lembremos que os primeiros inimigos do Estado foram os hereges, feiticeiros, curandeiros, subversivos, cientistas e todos aqueles que desafiavam dogmas e aduziam novos conhecimentos e filosofias.
Em nome de Cristo se entabulou a Santa Inquisição onde se queimavam e torturavam os inimigos da fé cristã; a referida tese de Jakobs reinventa uma cruzada ou uma guerra santa contra esse inimigo do Estado e da ordem.
Com a chegada da burguesia ao poder e com apoio das ciências naturais e médica (Lombroso) e, recentemente com as neurociências, genética comportamental e a psiquiatria forense o criminoso é considerado como ser inferior, selvagem e pouco evoluído o que justifica para a manutenção da lei e da ordem a aplicação de rígidas medidas punitivas para restabelecer o valor e eficácia da norma penal.
Com a Revolução Industrial incrementa-se a divisão de classes sociais, com isso a riqueza e a miséria vivem lado a lado e para controlar os pobres e os miseráveis e seus delitos, o inimigo deve ser marginalizado.
Observamos que na trajetória histórica evolutiva do Direito Penal na Idade Média o processo era secreto e o suplício ou apena (ou punição) era pública (para servir de exemplo e para amedrontar os possíveis futuros infratores).
A partir da Revolução Francesa e depois com o Estado Moderno o processo torna-se público, porém o castigo (pena ou sanção) era secreto.
No início do século XX a origem do inimigo era a degeneração racial e aparecem movimentos ideológicos preocupados com a eugenia, a seleção étnica com viés nitidamente autoritário tais como o nazismo[6], fascismo e bolchevismo.
Já no fim do século XX com a hegemonia mundial consolidada nas mãos dos EUA e, particularmente após a Queda do Muro de Berlim (09/11/1989) quando os inimigos eleitos foram os comunistas e o comunismo e, com isso, restou evidenciado nas variadas doutrinas a defesa da proteção da chamada “segurança nacional”.
Até 1980, os EUA contabilizaram estatísticas penais e penitenciárias iguais às de outros países, e, com o governo de Ronald Reagan começou a indústria de prisionização (e atualmente totalizam cerca de cinco milhões e trezentos mil presos, e cerca de seis milhões estão trabalhando no sistema penitenciário norte-americano) e pelo menos dezoito milhões de pessoas vivem à custa desse sistema penitenciário e, desta forma, conseguiu-se a milagrosa redução do desemprego.
O tremendo aparato prisional é mantido e constituem as chamadas “máquinas de fazer dinheiro” onde o crescente aprisionamento se reveste em lucrativo negócio gerando mão-de-obra de baixo custo e expressivos lucros.
É falacioso o Direito Penal do inimigo pois tem um discurso promocional, apelativo e emocional onde ao projetar a dor da vítima principalmente através da mídia, elege-se um inimigo e desponta a ciência criminal com a salomônica solução de aniquilar o inimigo seja pela pena de morte, pena perpétua ou pelo injustificado endurecimento da execução penal ( como por exemplo, a RDD ) seja reduzindo as garantias constitucionais e processuais dos acusados.
Tal Direito Penal tornou-se um produto de mercado com discurso meramente publicitário onde a mídia domina o Estado e o juiz garantista tem que enfrentar ferrenha opinião pública para aplicar o Direito.
Tal prática penal tornou-se enfática nos EUA causando aprisionamento em massa bem peculiar da política neoliberal que acena com a privatização dos presídios e com a maior incidência do sistema penal sobre os excluídos.
Infelizmente o Direito Penal da era da globalização sobretudo caracteriza-se pela crescente prisionização e os velhos inimigos do Estado e do Estado de polícia ( os pobres e marginalizados e excluídos) constituem habitualmente o exército reserva, lembrando que os encarcerados de outrora não exerciam nenhuma função econômica ( posto que não eram consumidores, contribuintes, empregados e nem empregadores e não sendo geradores de impostos).
Com a privatização dos presídios tais encarcerados se inserem finalmente na economia, há a geração de empregos, o que estabiliza o índice de desemprego.
Assim os pobres, miseráveis e marginalizados passaram finalmente cumprir uma função econômica pois seu aprisionamento gera dinheiro, empregos e, enfim poder econômico. Eis aí, o esquema da “máquina de fazer dinheiro”[7].
O sistema penal funciona assim de forma seletiva conforme a tese do labelling approach e, assim é fácil alimentar os cárceres com o exército dos excluídos que ao invés de sujarem as ruas e sarjetas da cidade, passam ser úteis, adquirem função econômica em razão do aprisionamento, e ameniza-se a feiúra explícita das paisagens urbanas.
Opera-se a limpeza social e arquitetônica além de fortalecer a sensação de segurança. Os movimentos de tolerância zero dirigem-se aos marginalizados e pobres e se revela em ser sistema penal seletivo onde sua aplicação penal visa dar cumprimento a alguma função econômica ao exército dos excluídos.
O movimento Lei e Ordem (Law and Order) é política criminal que tem como fim transformar conhecimentos empíricos sobre o crime em alternativas e programas a partir dessa perspectiva. Ralf Dahrendorf é um de seus criadores.
Na década de setenta nos EUA o movimento Law and Order ganhou vasta amplitude e continua até o momento expressando a repressão máxima e alargamento de leis penais.
Tal doutrina sofreu em 1991 uma ramificação passando também a ser conhecida como “tolerância zero” onde vige a banalização da “teoria da vidraça quebrada” que divulga a necessidade da máxima punição mesmo diante de delitos leves.
No Brasil é verificável a adesão à tese de Jakobs principalmente com a edição da Lei de Crimes Hediondos[8] (Lei 8.072/90) ratificando a atuação do Direito Penal simbólico e movido pela comoção social.
Também a RDD – Regime Disciplinar Diferenciado instituído pela Lei 10.792 que passou a vigorar a partir de 2 de janeiro de 2003 e que alterou o art. 52 da Lei de Execuções Penais.
Contemporaneamente o direito penal Vicência um grande ecletismo metodológico expondo diversas tendências que vão desde os positivistas até aos axiológicos e ontologistas.
O funcionalismo sistêmico propõe reconstruir a teoria do crime com base em critérios político-criminais e tem sua versão mais radical defendida por Jakobs (que também criou a imputação objetiva que discute a função da pena).
Conclui-se que esse falso novo pensamento jurídico penal de tom radical-finalista nos mostra o Direito Penal que busca identidade normativa no grupo social.
Para Günther Jakobs o crime é conduta defeituosa do autor que não observa a norma, com isso violando seu papel social e aquilo que se espera dele.
Com isso, a sociedade peremptoriamente se nega a admitir que tal crime decorra da vida ou contexto social daí entender que a pena represente a realidade do sistema jurídico capaz de com base na comunicação estabeleça o comportamento de acordo com a identidade normativa.
De qualquer forma o crescimento da criminalidade contemporânea merece solução que deve ser buscada com amplo debate sem abrir mão da exigência do princípio da dignidade humana.
Não é possível ser complacente com postura antiliberal depois de tantas conquistas advindas do iluminismo, não podemos nos contentar em retornar às trevas e às práticas que contradizem e renegam o Estado de Direito.
A finalidade do sistema de justiça criminal não se esgota nos seus objetivos internos. A repressão há de ser o meio para atender os anseios sociais de segurança, para atingir os fins almejados pela política criminal de responsabilidade não só o Executivo, mas também o Legislativo e Judiciário que precisam se engajar sem se esquecer jamais que é a dignidade humana que precisamos preservar.
Notas
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.