Breves considerações sobre Direito Penal do inimigo

Será mesmo possível existir um Direito Penal e um Direito Constitucional divorciados e calcados em novos paradigmas e baseados em novos pressupostos de fato?


Essa inquietação, o modesto artigo tenta responder, especulando e explanando sobre o direito penal do inimigo e ainda seus principais efeitos no ordenamento jurídico brasileiro.


A versão contemporânea da doutrina penal prestigia o direito penal do inimigo idealizado por Günther Jakobs[1] que abertamente defendeu a necessidade imperativa de existir o Direito Penal direcionado aos cidadãos e outro Direito Penal que afirma ser voltado ao inimigo.


O normativismo funcional de Jakobs formulou a teoria da imputação objetiva que passou a desenvolver uma tese do crime orientada para os fins do direito penal.


Enquanto que a maioria dos doutrinadores coloca a dignidade da pessoa humana como centro do sistema, Luhmann  e Jakobs fazem justamente o oposto, e posicionam no centro do sistema, a sociedade.


Para Jakobs pessoa é conceito eminentemente jurídico, sujeito de direitos e obrigações em obediência ao contrato social. A sociedade enquanto sistema de comunicação funciona por meio de nexos de expectativas, sendo que a norma nada mais são que expectativas de comportamento estabilizadas.


Quando o indivíduo não realiza seu papel social, há uma quebra de expectativa e o infrator ao delinqüir desestabiliza o sistema, configurando-se a violação da norma, o que implica necessariamente na futura aplicação da pena.


O ponto crucial da tese da imputação objetiva refere-se exatamente a estes papéis que se relaciona com a função do indivíduo desempenha em específico contrato social.


Na teoria de Jakobs a ação uma vez ocorrida, transmuta-se em fato. Repudia então o doutrinador alemão a tese welzeniana[2] de índole finalista e reafirma que a função do direito penal não é a proteção ao bem jurídico. Irá proteger as normas e a culpabilidade é entendida como ruptura do sujeito como direito.


Günther Jakobs foi reconhecido como um dos mais brilhantes discípulos de Wezel e criou o radical funcionalismo sistêmico que aponto o Direito Penal dotado da função primordial de proteger a norma e, apenas indiretamente tutela os bens jurídicos mais fundamentais.


Além da notável inflexibilidade punitiva da tese de Jakobs também propõe a relativização dos direitos fundamentais o que demonstra ser incompatível com o Estado Democrático de Direito e, mesmo assim vem se alastrando no ordenamento jurídico pátrio.


Aliás, deve-se à essa adesão a falta de eficiência das políticas criminais e ainda a falta de seriedade em se atender aos anseios sociais de pacificação eficaz e inclusiva.


Em meados da década de oitenta e, em função da crescente criminalidade[3], o doutrinador alemão Günther Jakobs elaborou a tese de direito penal do inimigo que visa melhor atender à sociedade e garantir a segurança através da atuação estatal mais contundente em combater o transgressor que insiste em ignorar e violar as normas penais.


É verdade que o direito penal do inimigo pugna de severa aplicação das normas punitivas com a conseqüente eliminação dos direitos e garantias fundamentais e até mesmo as processuais, consagrando uma atuação estatal não exatamente contra o mero transgressor, porém, insurgindo-se contra  um inimigo posto que ao consiga manter-se fiel às normas.


Os inimigos são criminosos econômicos, terroristas, genocidas, delinqüentes organizados, criminosos sexuais e toda sorte de infrações perigosas e de alto teor ofensivo.


O inimigo é quem insiste permanentemente em se afastar do direito, e não oferece garantias cognitivas de que vai ser fiel às normas. Exemplifica Jakobs o fatídico dia 11 de setembro de 2001 como um típico ato de inimigo.


Elege-se que o inimigo como aqueles sujeitos subordinados à legislação de exceção definindo-se um evidente direito penal do autor, inerentemente do grau de culpabilidade, reprovabilidade ou o bem jurídico afetado, seria então o agente pelo que é, desconsiderando-se o fato delitivo cometido.


Os adeptos aos minimalistas do direito penal gestaram um legislador que na ânsia de oferecer célere resposta e de forma mais efetiva em face do pânico generalizado e a onde de crescente criminalidade projetou leis esparsas que impõem cerceamento de garantias e punições exacerbadas aos autores, em desatenção a real culpabilidade dos transgressores, mais atinente somente às suas características pessoais como forma de promover a segura repressão.


No Brasil, o direito penal do inimigo tem ganhado francas adesões e guaridas até mesmo dentro do poder judiciário brasileiro.


E, apesar de não significar a solução para criminalidade contemporânea traz a baila um ascendente punitivismo que vem sendo praticado nas mais diversas esferas do governo, colocando sob séria suspeita a legitimidade do Estado Democrático de Direito.


Para Jakobs a primordial função do direito penal seria a proteção da norma, e, portanto, da sociedade, e só indiretamente a proteção de bens jurídicos.


Explica o doutrinador alemão que não é possível obter a pacificação social através do direito penal tradicional, sendo indispensável o direito penal de exceção que se obstina em restabelecer e proteger a norma jurídica.


Ainda continua explanando que não denomina o criminoso como pessoa, posto que os transgressores justifiquem sofrer maior rigor na punição e execução da pena como forma de mantê-los fora da sociedade sem ter vistas à ressocialização ou reinserção social.


Há três pilares que sustentam o chamado direito penal do inimigo, a saber:


a) a necessidade de antecipação da punição do inimigo e, não importa o cometimento fático de qualquer crime, sendo puníveis inclusive os atos preparatórios mesmo que não signifiquem crimes autônomos, em modelo oposto ao que vige atualmente no Brasil;


b) desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas garantias processuais. Para Jakobs, as penas são eficazes quando puderem extirpar da sociedade o indivíduo perigoso, ou seja, o inimigo;


c) a criação de leis mais severas direcionadas diretamente aos inimigos. Portanto, ter-se-ia dois direitos penais materiais e diametralmente opostos, um referente ao cidadão comum (burgerstarecht) onde prevaleciam todos os direitos processuais e a integralidade do princípio do devido processo legal e um direito penal aplicável ao inimigo (feindstrafrecht) com pesadas penas dirigidas aos que atentam contra o Estado indo desde a coação física até o estado de guerra, objetivando o restabelecimento da norma, apartando o inimigo do seio da sociedade, bem como servindo de intimação para outras pessoas;


Busca punir não apenas os fatos pretéritos mas igualmente os fatos futuros, daí dizer que é um direito penal prospectivo. Em oposição a um direito penal preventivo.


Portanto, segundo a tese Jakobs não há distinção entre o conceito de cidadão e pessoa, de forma que igualmente não separa os direitos inatos da pessoa humana, dos direitos do cidadão.


Todavia, é forçoso reconhecer que ser humano não se refere a uma qualidade que possa ser retirada do agente, sendo pois inata característica bem como os direitos à esta inerente.


Acredito que a base filosófica de Jakobs está nas obras de Rousseau e Fichte principalmente quando define como inimigo aquele que rompe com o contrato social e o criminoso por não se adaptar à sociedade podem ter sua qualidade e direitos de cidadão suprimidos.


No direito penal do inimigo o ordenamento jurídico está preocupado com a completa eliminação daqueles eleitos como inimigos, em oposição ao cidadão comum, esquadrinhando uma autêntica guerra onde os direitos e garantias são relativizados, flexibilizadas e até mesmo por vezes suprimidos.


Preocupa-se com a aplicação da punição do autor que é o inimigo e não apenas do fato infrator da norma. Há doutrinadores que acreditam tratar-se de um novo movimento lombrosiano embora apontados por Lombroso buscando a punição antecipada e preventiva o que é justificável por ser perpetrado por não pessoas (feind sund aktuell unpersonem).


O direito penal do inimigo é igualmente criticado por Claus Roxin (que defende um funcionalismo moderado) e ainda pecha a tese de Jakobs de “direito penal simbólico”.


Veemente, Roxin[4] aponta que a tese tende a beneficiar certos grupos políticos ou ideológicos e a apaziguar o cidadão, fazendo-o crer que as medias positivas estão sendo efetivadas, quando em verdade trata-se de uma saída nefanda e seletiva para o direito penal implicando na invasão no cumprimento de tarefas político-sociais.


É deveras questionável a referida função simbólica do direito penal do inimigo e tende a prevalecer sobre a função instrumental e não significando efetiva proteção dos bens jurídicos.


De fato, cria-se então a ilusão de segurança e uma falsa confiança na lei e nas instituições, e incorrendo no maniqueísmo do estado de polícia.


Analisar o direito penal em tempo de crise nos leva fatalmente ao busilis que existe em não se poder no Estado Democrático de Direito enfrentar o inimigo de forma adequada, daí a necessidade de direito penal diferenciado composto de tipos abertos e imprecisos e, prevendo a antecedência da tutela punitiva principalmente em razão da importância do bem jurídico tutelado, provendo severas penas com desrespeito ao princípio da legalidade e ao respeito à dignidade humana, além do devido processo legal.


A professora Alice Bianchini em sua obra “Direito Penal na era da globalização” aponta que o conceito de delito ao lado do poder punitivo estatal representam duas formas de violência. Também referente ao mesmo fenômeno elaborei um artigo intitulado “Sociedade injusta – A violência é consequência da exclusão social”, disponível em http://jusvi.com/artigos/1466


E o Direito Penal deve ser instrumento para mitigar essas duas violências, tanto coibindo o abuso cometido por particulares como evitando arbitrariedades do poder estatal.


Nas sábias palavras do professor Dr. Luiz Flávio Gomes ao penalista do terceiro milênio cabe desfazer os equívocos e deformidades do passado, situando o direito penal de maneira adequada e não o fazendo retroagir às desrespeitosas fórmulas que tanto ferem a dignidade humana.


Apesar de reconhecer o Direito Penal como controle social, não se pode diminuir o respeito à pessoa humana para se atingir o bem comum, pois esse tem seu núcleo basilar na própria dignidade humana (que é impenhorável, indivisível, irrenunciável e indisponível).


O maior perigo ao Estado Democrático de Direito é o fracasso da paz social e a falência do bem-estar comum, posto que os valores como a ordem, paz e justiça são os que traduzem em suma, o respeito à individualidade do cidadão.


O legítimo escopo do Direito Penal para garantir a segurança do bem comum só pode ser atingido dentro do sistema de legalidade, pois o exercício da função pública tem limites que derivam dos direitos humanos que são atributos inerentes à dignidade humana e, ipso facto, superiores ao poder do Estado.


Portanto, é crucial para plena eficácia do princípio da dignidade humana que haja total acolhida pela ordem jurídica e política do Estado.


A tese do direito penal do inimigo revela-se relevante na estrutura do sistema político totalitário e que exerce o mesmo papel que tece o direito nazista principalmente com sua prática anti-semita.


Convém observar ainda que a tese de Jakobs transforma as normas penais em instrumentos de banalização de seres humanos que passam ser considerados como inimigos despojados de toda humanidade.


E, nesse particular, conveniente citar a lição de Hannah Arendt que retrata Eichmann que é um homem de rasa inteligência, dotado de personalidade incapaz de pensar e pré-disposto à cega obediência mediante qualquer voz imperativa.


A obra de Arendt aponta que sobre o mal infinito que pode ser praticado por aqueles incapazes de julgar e que não possuem um objetivo definido e realizável, e, ainda, que recusa-se a qualquer prerrogativa de julgar e de racionalidade.


O mal explica Hannah Arendt significa a dimensão demoníaca, é superficial e vazio, e desafia o pensamento que tenta tocar as raízes. Sintetiza que o pensamento que se ocupa do mal é aquele que nada encontra.


Portanto, o abandono, a necessidade e o afastamento da realidade reforçam a banalidade do mal, pois além da ausência do pensamento dos indivíduos este facilite em muito a efetivação do totalitarismo.


As bases filosóficas utilizadas por Jakobs para justificar sua teoria são clássicas nas Ciências Humanas, principalmente ao mencionar que quando o inimigo infringiu o contrato social, deixou de ser membro do Estado, abdicou de sua cidadania (nesse argumento, utiliza claramente Rousseau).


Mais adiante, aponta que para quem abandona o contrato de cidadão, perde ipso facto todos seus direitos (quando utiliza a doutrina de Fichte).


Já quem comete alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como mero súdito, e sim, como inimigo (nessa visão, inspira-se em Hobbes). E, por fim, quando aponta que quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, para quem recusa aceitar o “estado comunitário legal”, merece ser tratado como inimigo (quando se inspirou em Kant[5]).


Concluímos, portanto que a teoria do direito penal do inimigo apresenta-se com considerável lastro filosófico embora sua aplicação redunde em flagrante retrocesso para humanidade e para  evolução do direito penal.


A lógica cartesiana que sintetiza que quem infringe o contrato social é mais que mero delinqüente, é o inimigo não fazendo jus ao status de cidadão. Representa o mal e exprime aberrante e freqüente inadequação à norma imposta, simboliza finalmente um perigo de alto risco o que por si só, justifica e legitima plenamente a antecipação da punição.


Os defensores da tese jakobiana alegam que a aplicação do direito penal do inimigo causa menor dano à sociedade e a pessoa humana em comparação com a aplicação do direito penal clássico.


Assim a pena de prisão revela seu duplo significado: um simbólico e outro físico: o fato criminoso de um ser racional significa a desautorização da norma, revelando frontal ataque à sua vigência, então a pena acena simbolicamente que o delito não tem o efeito de destruir o ordenamento jurídico, portanto, a norma segue vigente e válida, para a configuração da sociedade, mesmo depois de violada.


Defende ainda Jakobs que a pena não se dirige ao criminoso, e, sim apenas ao cidadão que atua com fidelidade ao Direito, tendo função preventiva de integração e de reafirmação da ordem e da norma.


Curial notar que a função da pena no Direito Penal do cidadão é contrafática (contrariedade à sua violação) enquanto que no Direito Penal do inimigo a pena visa predominantemente à eliminação do perigo e que tal supressão ocorra pelo maior tempo possível, desta forma, a pena impede que o sujeito pratique crimes fora do cárcere, portanto enquanto continuar preso ocorre a prevenção do delito.


O Direito Penal do inimigo necessita da caracterização do inimigo e da oposição que se faz ao direito penal do cidadão (onde estão vigentes todos os princípios limitadores do poder punitivo estatal).


Em síntese, podemos identificar suas principais bandeiras que são:


a) flexibilização dos princípios da legalidade e da tipicidade (prescrição de vaga descrição dos crimes e das penas);


b) inobservância de princípios basilares tais como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva, aumento desproporcional das penas, criação artificial de delitos  (crimes sem bens jurídicos definidos), endurecimento da execução penal; exagerada antecipação da tutela penal; supressão de direitos e garantias processuais fundamentais; concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito( como a delação premiada, colaboração premiada); flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); infiltração de agentes policiais; uso freqüente de medidas preventivas ou cautelares (tais como interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei e medidas penais dirigidas contra quem exerce atividades lícitas tais como bancos, advogados, psicólogos, leiloeiros, joalheiros, casas de câmbio e, etc.


As críticas feitas à tese jakobiana conforme bem elucidou Cancio Meliá é que este se reduz a ser mais um exemplo de Direito Penal do autor onde se pune o agente pelo que é, em oposição flagrante ao Direito Penal do fato que pune o agente pelo que ele fez.


Transforma a maioria das penas em medias de segurança tendo uma durabilidade estendida e imprecisa. Só a guisa de registro histórico, o auge do Direito Penal do autor deu-se exatamente durante o nazismo, o que levou a demonialização de alguns tipos de delinqüentes.


O autêntico Direito Penal deve forçosamente estar vinculado a Constituição Democrática e, frise-se como já aduziu Dr. Luiz Flávio Gomes enquanto que a expressão “Direito Penal do cidadão” significa tosco pleonasmo o Direito Penal do inimigo revela-se como paradoxo sendo um não-direito ou um anti-direito.


Observe que no direito penal de Jakobs não se reprovaria a culpabilidade do agente, e sim sua periculosidade e, com isso, a pena e a medida de segurança deixariam de ser realidades distintas e passariam a ter caráter permanente e curativo.


Reforçando o positivismo criminológico de Lombroso, Ferri e Garófalo que propunham até o bizarro fim das penas através da massiva imposição de medidas de segurança.


Não se repele a desproporcionalidade das penas, ao revés, procura-se enfaticamente se punir a periculosidade deixando de ter relação com os danos causados de cada caso concreto.


Instaura-se o procedimento de guerra e de exceção que não se coaduna com o Estado de Direito. Em verdade se constitui um direito de terceira velocidade caracteriza pela pena de prisão sem as garantias penais e processuais e sem respeito ao devido processo legal.


A expansão do direito penal do inimigo solidifica o âmbito punitivo revelando-se ser um Direito Penal do legislador contendo exagerada antecipação da tutela penal, com bens jurídicos predeterminados e severa execução penal.


Resulta em ser a soma da direita e da esquerda punitivas sendo inconstitucional no contexto brasileiro principalmente por conceber medidas excepcionais típicas de tempos anormais tais como estado de defesa e o estado de sítio.


Cumpre salientar que apesar de atingir bens jurídicos relevantes a chamada criminalidade contemporânea inimiga não põe o risco o Estado vigente e nem mesmo suas principais instituições.


Ademais, tratar criminosos comuns como fosse “criminosos de guerra” adiciona argumento apenas para o questionamento da legitimidade do sistema penal além de afirmar o crime como ato de contestação ao sistema.


A dinâmica e a lógica de guerra sempre gera intolerância exagerada e inaugura um tendencioso “vale-tudo” que conduz aos excessos e a falta de razoabilidade que põe em risco o Estado Democrático.


Contra o Direito Penal do inimigo reagiu Eugenio Raúl Zaffaroni apontando os seguintes pontos:


a) para exercer o poder dominante há de se ter estrutura e ser detentor do poder punitivo;


b) quando este poder não encontra limites transforma-se em estado de polícia que se opõe ao estado de direito;


c) o sistema penal para ser exercido permanentemente sempre está à procura do inimigo; o poder político se constitui como poder de defesa contra os inimigos;


d) ao mencionar que o Estado é vítima dos infratores eleitos como inimigos com isso neutralizou-se a verdadeira vítima do direito;


Lembremos que os primeiros inimigos do Estado foram os hereges, feiticeiros, curandeiros, subversivos, cientistas e todos aqueles que desafiavam dogmas e aduziam novos conhecimentos e filosofias.


Em nome de Cristo se entabulou a Santa Inquisição onde se queimavam e torturavam os inimigos da fé cristã; a referida tese de Jakobs reinventa uma cruzada ou uma guerra santa contra esse inimigo do Estado e da ordem.


Com a chegada da burguesia ao poder e com apoio das ciências naturais e médica (Lombroso) e, recentemente com as neurociências, genética comportamental e a psiquiatria forense o criminoso é considerado como ser inferior, selvagem e pouco evoluído o que justifica para a manutenção da lei e da ordem a aplicação de rígidas medidas punitivas para restabelecer o valor e eficácia da norma penal.


Com a Revolução Industrial incrementa-se a divisão de classes sociais, com isso a riqueza e a miséria vivem lado a lado e para controlar os pobres e os miseráveis e seus delitos, o inimigo deve ser marginalizado.


Observamos que na trajetória histórica evolutiva do Direito Penal na Idade Média o processo era secreto e o suplício ou apena (ou punição) era pública (para servir de exemplo e para amedrontar os possíveis futuros infratores).


A partir da Revolução Francesa e depois com o Estado Moderno o processo torna-se público, porém o castigo (pena ou sanção) era secreto.


No início do século XX a origem do inimigo era a degeneração racial e aparecem movimentos ideológicos preocupados com a eugenia, a seleção étnica com viés nitidamente autoritário tais como o nazismo[6], fascismo e bolchevismo.


Já no fim do século XX com a hegemonia mundial consolidada nas mãos dos EUA e, particularmente após a Queda do Muro de Berlim (09/11/1989) quando os inimigos eleitos foram os comunistas e o comunismo e, com isso, restou evidenciado nas variadas doutrinas a defesa da proteção da chamada “segurança nacional”.


Até 1980, os EUA contabilizaram estatísticas penais e penitenciárias iguais às de outros países, e, com o governo de Ronald Reagan começou a indústria de prisionização (e atualmente totalizam cerca de cinco milhões e trezentos mil presos, e cerca de seis milhões estão trabalhando no sistema penitenciário norte-americano) e pelo menos dezoito milhões de pessoas vivem à custa desse sistema penitenciário e, desta forma, conseguiu-se a milagrosa redução do desemprego.


O tremendo aparato prisional é mantido e constituem as chamadas “máquinas de fazer dinheiro” onde o crescente aprisionamento se reveste em lucrativo negócio gerando mão-de-obra de baixo custo e  expressivos lucros.


É falacioso o Direito Penal do inimigo pois tem um discurso promocional, apelativo e emocional onde ao projetar a dor da vítima principalmente através da mídia, elege-se um inimigo e desponta a ciência criminal com a salomônica solução de aniquilar o inimigo seja pela pena de morte, pena perpétua ou pelo injustificado endurecimento da execução penal ( como por exemplo, a RDD ) seja reduzindo as garantias constitucionais e processuais dos acusados.


Tal Direito Penal tornou-se um produto de mercado com discurso meramente publicitário onde a mídia domina o Estado e o juiz garantista tem que enfrentar ferrenha opinião pública para aplicar o Direito.


Tal prática penal tornou-se enfática nos EUA causando aprisionamento em massa bem peculiar da política neoliberal que acena com a privatização dos presídios e com a maior incidência do sistema penal sobre os excluídos.


Infelizmente o Direito Penal da era da globalização sobretudo caracteriza-se pela crescente prisionização e os velhos inimigos do Estado e do Estado de polícia ( os pobres e marginalizados e excluídos) constituem habitualmente o exército reserva, lembrando que os encarcerados de outrora não exerciam nenhuma função econômica ( posto que não eram consumidores, contribuintes, empregados e nem empregadores e não sendo geradores de impostos).


Com a privatização dos presídios tais encarcerados se inserem finalmente na economia, há a geração de empregos, o que estabiliza o índice de desemprego.


Assim os pobres, miseráveis e marginalizados passaram finalmente cumprir uma função econômica pois seu aprisionamento gera dinheiro, empregos e, enfim poder econômico. Eis aí, o esquema da “máquina de fazer dinheiro”[7].


O sistema penal funciona assim de forma seletiva conforme a tese do labelling approach e, assim é fácil alimentar os cárceres com o exército dos excluídos que ao invés de sujarem as ruas e sarjetas da cidade, passam ser úteis, adquirem função econômica em razão do aprisionamento, e ameniza-se a feiúra explícita das paisagens urbanas.


Opera-se a limpeza social e arquitetônica além de fortalecer a sensação de segurança. Os movimentos de tolerância zero dirigem-se aos marginalizados e pobres e se revela em ser sistema penal seletivo onde sua aplicação penal visa dar cumprimento a alguma função econômica ao exército dos excluídos.


O movimento Lei e Ordem (Law and Order) é política criminal que tem como fim transformar conhecimentos empíricos sobre o crime em alternativas e programas a partir dessa perspectiva. Ralf Dahrendorf é um de seus criadores.


Na década de setenta nos EUA o movimento Law and Order ganhou vasta amplitude e continua até o momento expressando a repressão máxima e alargamento de leis penais.


Tal doutrina sofreu em 1991 uma ramificação passando também a ser conhecida como “tolerância zero” onde vige a banalização da “teoria da vidraça quebrada” que divulga a necessidade da máxima punição mesmo diante de delitos leves.


No Brasil é verificável a adesão à tese de Jakobs principalmente com a edição da Lei de Crimes Hediondos[8] (Lei 8.072/90) ratificando a atuação do Direito Penal simbólico e movido pela comoção social.


Também a RDD – Regime Disciplinar Diferenciado instituído pela Lei 10.792 que passou a vigorar a partir de 2 de janeiro de 2003 e que alterou o art. 52 da Lei de Execuções Penais.


Contemporaneamente o direito penal Vicência um grande ecletismo metodológico expondo diversas tendências que vão desde os positivistas até aos axiológicos e ontologistas.


O funcionalismo sistêmico propõe reconstruir a teoria do crime com base em critérios político-criminais e tem sua versão mais radical defendida por Jakobs (que também criou a imputação objetiva que discute a função da pena).


Conclui-se que esse falso novo pensamento jurídico penal de tom radical-finalista nos mostra o Direito Penal que busca identidade normativa no grupo social.


Para Günther Jakobs o crime é conduta defeituosa do autor que não observa a norma, com isso violando seu papel social e aquilo que se espera dele.


Com isso, a sociedade peremptoriamente se nega a admitir que tal crime decorra da vida ou contexto social daí entender que a pena represente a realidade do sistema jurídico capaz de com base na comunicação estabeleça o comportamento de acordo com a identidade normativa.


De qualquer forma o crescimento da criminalidade contemporânea merece solução que deve ser buscada com amplo debate sem abrir mão da exigência do princípio da dignidade humana.


Não é possível ser complacente com postura antiliberal depois de tantas conquistas advindas do iluminismo, não podemos nos contentar em retornar às trevas e às práticas que contradizem e renegam o Estado de Direito.


A finalidade do sistema de justiça criminal não se esgota nos seus objetivos internos. A repressão há de ser o meio para atender os anseios sociais de segurança, para atingir os fins almejados pela política criminal de responsabilidade não só o Executivo, mas também o Legislativo e Judiciário que precisam se engajar sem se esquecer jamais que é a dignidade humana que precisamos preservar.


 


Referências

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Notas

[1] Jakobs estudou Direito nas universidades de Colônia, Kiel e Bonn, tendo se graduado nesta última em 1967. Galgando em 1971 o título de advogado em Bonn pelo trabalho sobre a negligência no delito de resultado. Em 1972 veio a ter sua primeira cátedra na universidade de Kiel. Realizou valorosa carreira acadêmica nas áreas de direito penal, direito processual penal e filosofia do Direito. Foi inicialmente continuador da escola finalista de Hans Wezel (de quem foi discípulo) vindo mais tarde a superá-la. Atualmente é professor aposentado da universidade de Bonn. Com as idéias de Niklas Luhmann sobre a teoria dos sistemas divorciou-se de vez da doutrina finalista e criou o funcionalismo sistêmico baseado na racionalidade comunicativa. Após ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 os EUA contra as Torres gêmeas em Nova York obteve relevante papel ao lançar os fundamentos legitimadores da guerra contra o terror.

[2] Hans Wezel (1904-1977) foi jurista e filósofo do direito alemão e mostrou um sistema baseado na teoria finalista da ação e estuda o crime como atividade humana e fora formulada em 1930. Para tal teoria, a conduta é composta de ação ou omissão somada ao dolo perseguido pelo autor, ou à culpa em que incorreu por não observar o dever objetivo de cuidado. É bom recordar que antes da proposição finalista vigorava no Código Penal Brasileiro a teoria clássica ou causalista até a reforma de 1984.

[3] A criminologia contemporânea desde a década de trinta vem procurando a superar as teorias patológicas de criminalidade apenas com bases em características biológicas, psicológicas e que diferenciam criminosos e cidadãos e, acreditam na plena negação do livre-arbítrio mediante rígido determinismo.

[4] Claus Roxin nasceu em Hamburgo em 15 de maio de 1931,é um jurista alemão.Uum dos mais influentes dogmáticos do direito penal alemão, tendo conquistado reputação nacional e internacional neste ramo. É detentor de doutorados honorários conferidos por dezessete universidades no mundo. Foi o introdutor do princípio da bagatela em 1964 e desenvolveu também o princípio da alteridade ou transcendentalidade no Direito Penal (onde se proíbe a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente, e que, por tal razão, revela-se incapaz de lesionar o bem jurídico. Ninguém pode ser punido por ter feito a si mesmo. Em 1971, tornou-se professor da Universidade de Munique onde lecionou até 1999 ocupando a cadeira de direito penal e processo penal. Trabalhou, também, em um workshop de juristas alemães e suíços que publicou uma proposta alternativa do sistema penal alemão em 1973 e uma proposta alternativa ao Código de Processo Penal alemão em 1980. 

[5] O neokantismo é corrente filosófica iniciada na Alemanha e a partir de 1860 surge como superação do positivismo e não necessariamente como sua negação. Desde a última década do século XIX houve forte reação contra a mentalidade puramente positivista, tendo como lema o retorno à metafísica. Foram dois os principais movimentos filosóficos dessa época: o historicismo e o neokantismo. E daí, advieram mais duas tendências: a Escola de Marburgo( Cohern, Notarp e Stammler) e a Escola de Baden ou subocidental alemã ( Winderlband, Rickert, Lask, Mayer, Radbruch e Sauer) e de grande repercussão no campo jusfilosófico e penal.

[6] O nazismo exerceu seu poder e império desprovido de leis justas e arquitetando um sistema penal paralelo. Onde a autonomia e isenção dos juízes eram francamente admoestados pelo III Reich.

[7] O Direito Penal do Estado de polícia ou o direito penal do inimigo e seus adeptos não devem ter gostado da decisão do Presidente do STJ em HC 111 111 que lhe garantiu não só o direito de comunicação reservada com seu advogado como também a possibilidade de não ser submetido ao uso de algemas quando de sua chegada ao Brasil. Aliás, o uso das algemas na seara jurídica brasileira continua polêmico, conforme prevê o art. 199 da Lei de Execuções Penais sinaliza in litteris: “O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal.” Todavia até hoje ainda não ocorreu a devida regulamentação federal. 

[8] Crime hediondo em sua definição são os que merecem maior reprovação do Estado e são elencados pela lei 8.072/90 tais como: homicídio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, estupro de vulnerável, epidemia com resultado morte, falsificação, corrupção, adulteração de produto destinado aos fins terapêuticos e medicinais e genocídio. E também o crime de tráfico de entorpecentes, a tortura e terrorismo. Em 2006 o STF reconheceu a lei como inconstitucional.


Informações Sobre o Autor

Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.


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