Resumo A política criminal de um Estado Constitucional de Direito deve respeitar a dignidade humana, liberdade e justiça. Nesse contexto, o crime é compreendido como ofensa a um bem jurídico. Este é o resultado de uma interpretação teleológica da norma. O princípio da ofensividade se desdobra em três diferentes níveis: cuidado-de-perigo; pôr-em-perigo e dano/perigo. Nesses, estão respectivamente os crimes de perigo abstrato, perigo concreto e de dano. Certas condutas, pela ofensividade que possuem no plano cuidado-de-perigo, necessitam de uma resposta penal imediata. Os crimes de perigo abstrato, quando entendidos como delitos de lesão, não contrariam a Constituição Federal. A conduta será ofensiva quando permitir o desdobramento progressivo dos níveis da ofensividade (mesmo que abstratamente). O porte de arma de fogo (abstratamente ofensiva) é suficiente para ofender a segurança pública, no plano cuidado-de-perigo, independentemente da disponibilidade imediata da munição, por isso, deve ser considerado crime.
Palavras-chave: Política criminal, bem jurídico, princípio da ofensividade, perigo abstrato, arma de fogo.
Abstract The criminal policy of a Constitutional Law State should respect human dignity, freedom and justice. In this context, crime is understood as an offense against the legal interests. That is the result of a teleological interpretation of the law. The principle of offensiveness unfolds on three different levels: caution-of-danger; lay-under-danger and harm/danger. In these levels are respectively the crimes of abstract danger, real danger and damage. Certain behaviors, due the offense they have in caution-of-danger layout, require an immediate criminal response. The crimes of abstract danger, when understood as crimes of injury, do not antagonize the Federal Constitution. The practice is potentially harmful when allow the outspread of progressive levels of offensiveness (even abstract). Porting a firearm (abstractly offensive) is enough to offend the public safety, the plan caution-of-danger, regardless of the availability of ammunition, so it should be considered a crime.
Keywords: Criminal policy, legal interests, principle of offensiveness, abstract danger, firearms.
Sumário: 1. Introdução. 2. Tutela do bem jurídico penal. 2.1 Política criminal democrática de direito. 2.2 Compreensão do bem jurídico penal. 2.3 Compreensão do princípio da ofensividade. 3 Crimes de perigo abstrato. 3.1. Crimes de perigo abstrato como delito de lesão. 3.2 Análise das principais críticas aos crimes de perigo abstrato. 3.3 Caso paradigma: porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem munição acessível. 3.3.1 Corrente favorável à criminalização. 3.3.2 Corrente contrária à criminalização. 3.3.3. Nosso posicionamento. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Constata-se que há uma divergência jurisprudencial no sentido de se considerar crime ou não a conduta de se portar arma de fogo de uso permitido, desmuniciada, sem qualquer munição acessível. Para ser mais específico, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal – STF e a quinta turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ vêm decidindo pela criminalização, enquanto a segunda turma do STF e a sexta do STJ pela atipicidade.
Verificar se a referida conduta deve ser considerada crime é o objetivo deste trabalho. Para tanto, será necessária a abordagem de uma das principais questões do Direito Penal moderno – os crimes de perigo abstrato. Em que pese sua enorme importância, não há unanimidade em sua definição, e tampouco, nas premissas de seu conceito, quais sejam, bem jurídico e ofensividade.
Não temos pretensão nenhuma de esgotar o tema, mas cooperar de alguma maneira para aqueles que se interessam em aprender um pouco mais sobre importantes questões do Direito penal moderno, sobretudo, os crimes de perigo abstrato.
2 TUTELA DO BEM JURÍDICO PENAL
2.1 Política criminal democrática de direito
A política criminal pode ser conceituada como “a atividade que tem por fim a pesquisa dos meios mais adequados para o controle da criminalidade, valendo-se dos resultados que proporciona a criminologia, inclusive através da análise e crítica do sistema punitivo vigente”.[1]
É ela quem define o que deve ser considerado crime e quais são as estratégias mais adequadas ao combate à criminalidade,[2] ou seja, “o conjunto de princípios e recomendações que orientam as ações da justiça criminal, seja no momento da elaboração legislativa ou da aplicação e execução da disposição normativa”.[3]
As orientações de política criminal vinculam todas as formas de manifestação do Direito penal. Em última análise, infere-se que a concepção de Estado ditará os limites e a legitimidade da intervenção penal.
A atual Constituição Federal adotou o modelo de Estado Democrático de Direito, conforme se observa expressamente em seu artigo primeiro. Segundo Fernando Galvão, o direito penal “passa a assumir as funções de proteção efetiva dos cidadãos e sua missão de prevenção ocorrerá na medida do necessário para aquela proteção, dentro dos limites fixados pelos princípios democráticos”.[4]
Cabe esclarecer, mesmo parecendo contraditório, que a democracia e o constitucionalismo possuem pontos de tensão. “A democracia pode conduzir ao enfraquecimento do constitucionalismo ou, em sentido contrário, a centralização no constitucionalismo implicar travamentos ao processo democrático”.[5]
É comum se observar a atual sociedade clamando por uma política criminal punitivista, caracterizada por posturas paleo-repressivas, “com endurecimento das penas, enfraquecimento de direitos e garantias fundamentais, novos crimes e agravamento das penas”.[6]
Essa tendência além de não ser compatível com os atuais valores constitucionais, não resolve o problema do aumento da criminalidade. Para Alice Bianchini, o Direito penal deve ser mínimo o bastante para cumprir suas funções e garantista o suficiente para a atuação punitiva respeitar as garantias individuais. O direito penal mínimo reconhece a necessidade do sistema repressivo, e trabalha no sentido de vincular a intervenção punitiva ao estritamente necessário à proteção dos bens jurídicos socialmente mais importantes, respeitadas as garantias individuais do Estado Social e Democrático de Direito.[7]
Em que pese a sociedade que legitimamente detém o poder, cada vez mais clamar por posturas penais mais rígidas, concordamos que a política criminal mínima e garantista é a mais coerente com o Estado Democrático de Direito. Realmente o direito penal deve ser mínimo o bastante para cumprir suas funções e garantista o suficiente para respeitar os direitos e garantias fundamentais.
Finalmente, a política criminal de um Estado Constitucional de Direito fundado nos valores essenciais, tais como, dignidade humana, liberdade e justiça, deve obedecer às seguintes proposições: (a) estar obrigado a assegurar as condições essenciais para o desenvolvimento da personalidade e para vida em sociedade; (b) não promover, defender ou impor qualquer ideologia ou ordem moral ou religiosa; (c) tolerar e incentivar o modelo pluralista e democrático de convivência, devendo intervir o menos possível na liberdade humana e jamais castigar meras imoralidades.[8]
2.2 Compreensão do bem jurídico penal[9]
O estudo teórico para o conceito de bem jurídico surgiu, quando na primeira metade do século XIX, afastou-se a noção de crime como ofensa de um direito subjetivo, para concepção de crime como ofensa a bem jurídico.[10]
Entre os doutrinadores, mesmo sendo praticamente invariável a concordância de que a intervenção penal só se justifica para tutelar bens jurídicos, não há anuência sobre o seu conceito,[11] principalmente quando se busca uma definição que forneça elementos básicos limitativos ao poder punitivo estatal.[12]
Bem jurídico pode ser definido através de duas perspectivas ou acepções, quais sejam, dogmática ou política criminal. Luís Greco aponta que “de uma perspectiva dogmática, toda norma terá seu bem jurídico”,[13] ou seja, pela lei se encontra objeto da proteção. O autor critica o conceito dogmático, porque, nessa concepção, bem jurídico será sempre o que o legislador houver decidido.
Em busca de se restringir o poder de incriminar do Estado, alguns autores preferem a definição de uma perspectiva político-criminal, ou seja, ensinam que se deve questionar qual bem jurídico tem legitimidade para ser objeto da tutela penal, levando em consideração exigências ético-políticas. A acepção político-criminal indica que “o bem jurídico é um produto da sociedade, e sua seleção depende de políticas criminais que determinarão quais bens serão protegidos penalmente.[14]
Para Bianchini, Molina e Gomes, bem jurídico “compreende os bens existenciais (pessoais) valorados positivamente pelo Direito e protegidos dentro e nos limites de uma determinada relação social conflitiva por uma norma penal (bem jurídico-penal = bem existencial + valoração positiva + tutela por uma norma penal)”.[15]
Bottini conceitua bem jurídico como sendo “todo elemento indispensável ao livre desenvolvimento do indivíduo dentro de um sistema social orientado para a autodeterminação, para a garantia da pluralidade e da liberdade democrática”.[16] Francisco Toledo, “bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.[17]
Como visto, na definição de bem jurídico, comumente se utilizam as seguintes expressões:
“interesse juridicamente protegido” a “valor objetivo que a lei reconhece como necessitado de proteção”, “valor elementar da vida em comunidade”, “unidade funcional social”, “pretensão de respeito”, “relação real da pessoa com um valor concreto reconhecido pela comunidade”.[18]
Luís Greco afirma que é um debate, em grande parte, terminológico, que todas as expressões parecem dizer a mesma coisa, mas com palavras distintas. O que é consenso é que este “interesse, valor, unidade funcional, pretensão de respeito, etc. seja de importância fundamental para alguém”.[19] Para o autor, o conceito mais apropriada de bem jurídico é “dados fundamentais para a realização pessoal dos indivíduos ou para subsistência social, nos limites de uma ordem constitucional”.[20]
A variação da compreensão de bem jurídico traz inúmeras conseqüências práticas. Por exemplo, Bottini entende que qualquer tipo penal deve estar fundamentado na dignidade humana, dessa maneira, para o autor, são ilegítimos os crimes de maus-tratos a animais silvestres, domésticos ou domesticados (art. 32 da Lei 9.695/1998).[21] Contrariando o entendimento de Bottini, Silvio Maciel afirma que o bem jurídico tutelado é a integridade física dos animais (silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos).[22]
Para Luís Greco, o art. 32 da Lei 9.695/1998 é um exemplo de crime sem bem jurídico. O autor argumenta que a crescente preocupação ambiental não permite o Direito penal ficar alheio a esse tema. Segundo o autor, o reconhecimento excepcional da existência de crime sem bem jurídico não enfraquece o seu conceito, mas sim, o fortalece no sentido de recusar diluí-lo, impondo um forte ônus de fundamentação aquele que incriminar interesses que não são referíveis ao homem e ao sistema social.[23]
Outra divergência que a variação do conceito de bem jurídico produz é que para o mesmo tipo penal, há classificação de perigo abstrato ou perigo concreto. Como exemplo, temos o art. 33, da Lei n. 11.343/2006. Nucci entende que se trata de um crime de perigo abstrato,[24] porém, Bianchini, Gomes, Cunha e Oliveira afirmam ser um crime de perigo concreto indeterminado.[25]
Segundo Luís Greco, tal fato ocorre porque parte da doutrina cria falsos bens jurídicos coletivos, justamente como alternativa à construção de crimes de perigo abstrato, porque entendem que os crimes de perigo abstrato constituem ilegítima antecipação da tutela penal.[26]
Para o autor, no final das contas acaba-se por legitimar a antecipação penal,[27] “só que no caso dos crimes de perigo abstrato, antecipa-se a proibição; no bem jurídico coletivo, antecipa-se a própria lesão”.[28]
Como demonstrado, o instituto bem jurídico é indispensável para atual concepção de Direito Penal. Porém, há grande dificuldade no conceito político criminal, capaz de limitar a atuação do legislador. Essa incerteza conceitual ocasiona soluções jurídicas diferentes, para a mesma situação concreta, acarretando em injustiças. Por isso, preferimos entender bem jurídico, de um perspectiva dogmática, como um resultado de uma interpretação teleológica da norma.
Discordamos de Luís Greco quando afirma que nessa perspectiva, o Direito penal não teria limite. Em verdade, entendemos que a questão de legitimação do jus puniendi deve ser realizada sobre a lei penal (e não sobre o bem jurídico), através do controle de constitucionalidade.[29] Uma lei penal legítima deverá observar os fundamentos do Estado Constitucional de Direito, tais como, a dignidade humana, liberdade e justiça.
2.3 Compreensão do princípio da ofensividade
O princípio da ofensividade nasceu com o movimento de secularização do direito.[30] Por força desse princípio não poderia existir qualquer crime sem ofensa ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria). Ou seja, houve uma mudança de paradigma: crime e moral (ou pecado), para crime e ofensa de bem jurídico.
O princípio da ofensividade é também conhecido como princípio da lesividade, porém, a exemplo de alguns autores,[31] entendemos ser mais adequada a terminologia ofensividade, pois esta é gênero, sendo a lesão, apenas uma espécie. Utilizando-se a expressão princípio da lesividade poderia levar a falsa idéia que este apenas se relaciona com a lesão de um bem jurídico.
Bianchini, Molina e Gomes entendem que o princípio da ofensividade constitui “a base de sustentação de um novo sistema penal” [32] ou “princípio nuclear ou cardeal do Direito penal”.[33] Para eles, o direito penal da ofensividade tutela efetivamente os bens que representam os valores mais essenciais para o desenvolvimento da personalidade do indivíduo, expressando inequivocamente a modalidade do ataque penalmente relevante.[34]
A ofensividade é, por inúmeras razões, uma exigência constitucional. Em um Estado Democrático de Direito, respeitador dos direitos e garantias fundamentais, podemos destacar como princípio geral fundamental o da tutela de bens jurídicos.[35]
Ademais, as normas constitucionais que dispõem sobre a dignidade da pessoa humana (art. 1, CF) e direito a liberdade (art. 5, CF) possuem caráter duplo, pois são, ao mesmo tempo, norma e princípio. Todo tipo incriminador é uma restrição ao direito fundamental liberdade, resultado de uma ponderação de valores. Nesse ínterim, é absolutamente inaceitável cogitar-ser em restrição de direito fundamental, sem a ofensa a um bem jurídico.[36]
No âmbito da política criminal o princípio da ofensividade orienta o legislador a não criminalizar condutas que não acarretem uma ofensa significativa ao bem jurídico tutelado. Nesse aspecto, Bianchini, Molina e Gomes sublinharam as seguintes dimensões: impedir o arbítrio e a degeneração do poder punitivo; servir de barreira contra a abusiva expansão do Direito penal; e permitir o controle do conteúdo da lei penal, quanto à presença e grau da ofensividade penalmente relevante.[37]
De outro modo, pela perspectiva interpretativa ou dogmática, busca-se a aplicação do princípio ao caso concreto.[38] Nesse plano, Bianchini, Molina e Gomes defendem que “quando o legislador não cumpre seu papel de criminalizar a conduta em termos ofensivos a um bem jurídico, essa tarefa se transfere (improrrogavelmente) ao intérprete e ao juiz”.[39] É uma mudança de método, não se fala agora somente em uma adequação gramatical, ou simples subsunção da conduta à letra da lei (método formal), é necessário que o bem jurídico tutelado pela norma venha a ser ofendido (método ponderativo).[40]
Nessa esteira, o delito é concebido como “fato ofensivo típico”. “O fato típico passa a ser composto de uma dimensão formal (conduta, resultado, nexo de causalidade e adequação típica) e outra material (juízo de desvaloração da conduta, desvaloração do resultado e imputação objetiva)”.[41] O resultado será desvalioso quando for “(a) real (ou concreto), (b) transcendental, (c) grave (não insignificante), (d) intolerável, (f) objetivamente imputável ao risco criado e (g) pertencente ao âmbito de proteção da norma”.[42]
Como visto, esses autores defendem a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Nesses delitos, segundo eles, há somente o desvalor da ação, e como não existe um resultado, o princípio da ofensividade, que possui status constitucional, não foi respeitado.[43]
Bianchini, Molina e Gomes ensinam que pelo fato de os princípios serem normas suscetíveis de um indefinido processo de otimização e aperfeiçoamento, não se regendo pela lógica do “tudo ou nada”, a possibilidade de haver crimes de perigo abstrato não anula o princípio da ofensividade.[44] No entanto, Bianchini, Molina e Gomes afirmam, que o princípio da ofensividade, em sua máxima expressão garantista, determina que unicamente o fato ofensivo (lesivo ou concretamente perigoso) a um bem juridicamente importante pode ser objeto de criminalização.[45]
Guilherme de Sousa Nucci não reconhece o princípio da ofensividade “como algo autônomo, com vida própria, distinto, pois, do princípio da intervenção mínima […]”.[46] Sintetizando seu raciocínio, o princípio da ofensividade não é forte o suficiente para afastar a utilização da norma penal incriminadora, se ela conseguir transpor o princípio da intervenção mínima – a ultima ratio do Direito Penal.
Ferrando Mantovoni argumenta que o princípio da ofensividade não é absoluto, existindo certos crimes sem ofensividade, senão veja-se:
“Em que pese reconheça a recepção constitucional do princípio da ofensividade, faz isso como princípio regular, mas não absoluto. Segundo Mantovani, é importante admitir a possibilidade de derroga do princípio da ofensividade quando estivermos diante de categorias totalmente desprovidas de tal atributo, isto é, diante dos denominados crimes sem ofensividade (reati senza offesa ai beni giuridici), os quais encontrariam a sua razão de ser na necessidade político-criminal de prevenir ofensas a bens primários, coletivos, institucionais, devendo aqui “a racionalidade do princípio moderar-se com a necessidade de prevenção geral”.[47] (grifou-se)
Para Bettiol, não há crime sem lesão, e os crimes de perigo abstrato não contrariam esse brocardo. Essa conclusão foi possível porque ele defende a idéia de lesão ampla, como se observar a seguir:
“O conceito de dano é portanto um conceito normativo, por representar o fruto de uma valoração de um evento imputável a uma pessoa em relação às exigências de uma norma. E para configurar-se o dano juridicamente relevante, é preciso que o interesse alterado pela conduta humana seja tutelado por uma norma jurídica. O dano torna-se portanto sinônimo de lesão, pelo quê todo crime, enquanto constitua lesão de um interesse produz também um dano. Todo crime encerra um dano jurídico”.[48] (grifou-se)
Logo, o autor entende que os crimes de perigo abstrato não contrariam o princípio da ofensividade. Para Fernando Capez, os crimes de perigo abstrato são constitucionais, pois certos bens jurídicos merecem uma atenção especial do legislador, para reprimir a conduta violadora desde a sua origem, não lhe possibilitando qualquer desdobramento progressivo.[49]
José Francisco de Faria Costa entende o princípio da ofensividade de maneira mais profunda. Para o autor, o referido princípio pode ser visto em três níveis: dano/perigo; pôr-em-perigo e cuidado-de-perigo. Estariam enquadrados respectivamente nesses planos: crime de dano; crime de perigo concreto e crime de perigo abstrato.[50]
Para nós, certas condutas, pela ofensividade que possuem no plano cuidado-de-perigo, necessitam de uma resposta penal imediata. A tipificação da conduta que esteja nesse plano não contraria os princípios do Estado Democrático de Direito. Desse modo, nos posicionamos pela constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato.
Para tanto, é necessária a verificação da ofensividade da conduta. A conduta será ofensiva, quando ela permitir o desdobramento progressivo da ofensividade, mesmo que abstratamente, nos seguintes planos: cuidado-de-perigo; pôr-em-perigo e dano/perigo.[51]
Com a devida vênia, propomos uma releitura da noção de delito de Bianchini, Molina e Gomes. Para nós, o resultado desvalioso passa a ser entendido como (a) real ou de perigo, (b) transcendental, (c) grave (não insignificante), (d) intolerável, (f) objetivamente imputável ao risco criado e (g) pertencente ao âmbito de proteção da norma.
3 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO
3.1 Crimes de perigo abstrato como delito de lesão
Segundo Bottini, o tipo de perigo abstrato é:
“a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado externo. Trata-se de prescrição normativa cuja completude se restringe à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem nenhuma referência aos efeitos exteriores do ato, ao contrário do que ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto”.[52]
A depender do entendimento de bem jurídico e princípio da ofensividade, os crimes de perigo abstrato podem ser compreendidos como delitos inconstitucionais; formais; de periculosidade; ou de lesão. Em suma, os adeptos da inconstitucionalidade dizem que os crimes de perigo abstrato contrariam os princípios da ofensividade, intervenção minima, presunção de inocência e culpabilidade, além de ser uma ilegítima antecipação da tutela penal.[53]
A vertente que entende ser um delito formal defende que a mera prática da ação descrita no tipo legal é crime. Ou seja, há apenas um juízo de tipicidade formal. É o método da simples subsunção legal, que, como visto, não é compatível com o Estado Democrático de Direito. Ademais, o Direito Penal não deve “expandir sua incidência sobre toda e qualquer conduta que viole patamares abstratos de expectativas, apresentadas genericamente pelo legislador”.[54]
Gallas, um dos adeptos do crime de perigo abstrato como delito de periculosidade, compreende que a ação típica “compõe-se de um desvalor de ação inicial que, diante da produção do resultado, agrega um desvalor adicional (que não substitui o desvalor de ação inicia)”.[55] O juízo material que se faz sobre a ação consubstancia-se no resultado que se pretende evitar, ou seja, segundo o autor, “o fundamento último dos delitos de perigo abstrato será o desvalor da ação, mas não no sentido formal de adequação típica, e sim sob a perspectiva do desvalor do resultado”.[56] Nessa concepção, percebe-se que a conduta possui a periculosidade como elemento típico. Segundo Bottini, “a periculosidade passa a ser o elemento qualitativo que legitimará a atuação do ius puniendi nas hipóteses de perigo abstrato”.[57]
Não concordamos com a corrente da periculosidade, pois seu fundamento metodológico encontra-se na ação, e não no resultado. Nesse sentido, Kindhauser:
“critica as propostas de buscar na periculosidade da ação a materialidade de tais tipos penais, porque esta construção fundamenta o injusto sob uma perspectiva do autor da ação, e o elemento de preocupação da norma penal é justamente o outro pólo da relação comunicativa, é a vítima que tem afetada a potencialidade de disposição segura de seus bens, e sobre seus instrumentos de participação social”.[58]
Na linha de pensamento dos crimes de perigo abstrato como delito de lesão, podemos citar Stubel que ensina que os crimes de perigo abstrato não visam proteger antecipadamente um bem jurídico, mas tutelam à própria integridade dos mesmos diante de uma perturbação específica.[59]
E também, Pinho ao dizer “que o perigo não pode ser caracterizado como um estado antecedente, prévio à verificação do dano, mas deve ser identificado como realidade em si, carregada pela repercussão que o estado de perigo determina à coletividade”.[60] O autor desenvolveu uma interessante argumentação ao fazer um paralelo entre a tentativa e os crimes de perigo abstrato. O substrato material na tentativa se encontra no risco ou na ameaça iminente de dano. No perigo abstrato, o desvalor se direciona ao estado de risco que foi submetido o bem jurídico.[61]
Em decorrência das conclusões obtidas quando do estudo do princípio da ofensividade, e por entender que a lógica do Direito penal do Estado Democrático de Direito é focada, cumulativamente, no desvalor da ação e no desvalor do resultado, preferimos compreender os delitos de perigo abstrato como de lesão. Portanto, os crimes de perigo abstrato não se tratam de antecipação da tutela penal, mas a reação estatal em razão da própria ofensa ao bem jurídico, no plano cuidado-de-perigo.[62]
3.2 Análise das principais críticas aos crimes de perigo abstrato
Como visto, é forte o posicionamento que os crimes de perigo abstrato afronta o enunciado clássico nullum crimen sine injuria, e, por conseguinte, o princípio constitucional da ofensividade.
Diego Romero, ainda, argumenta que os crimes de perigo abstrato operam uma inversão no ônus da prova no processo penal, pois ao órgão acusador não é necessário provar qualquer situação concreta, mas somente, a violação da norma jurídica. Com isso, o acusado tem poucas possibilidades de defesa.[63]
Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira defende que adoção dos crimes de perigo abstrato representam uma tendência expansionista do Direito penal, que contraria o princípio da intervenção mínima ou ultima ratio.[64]
Alexandre Wunderlich ensina que há “violação ao princípio da culpabilidade, uma vez que nos delitos de perigo abstrato, como se sabe, basta a realização da conduta pelo agente, não sendo necessária a demonstração do dano efetivo”.[65]
Resumindo, os principais argumentos contrários aos crimes de perigo abstrato são que eles vão de encontro aos princípios da ofensividade, intervenção minima, presunção de inocência e culpabilidade. No entanto, ao compreender os crimes de perigo abstrato como delitos de lesão, não há falar em desobediência ao princípio da ofensividade, e, tampouco, aos demais. Isso equivale a dizer, que a simples adoção da técnica de perigo abstrato não acarreta, automaticamente, na violação de vários princípios do Direito penal.
3.3 Caso paradigma: porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem munição acessível
Como demonstrado, os crimes de perigo abstrato suscitam inúmeras discussões e posicionamentos, acarretando em soluções jurídicas diferentes e, até mesmo, opostas, para casos concretos idênticos. Para exemplificar, analisaremos o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, previsto no art. 14 da Lei 10.826/2003.
Da leitura do tipo legal, infere-se que a conduta de portar arma de fogo, mesmo desmuniciada, é formalmente típica. A dúvida surge se ela deve, também, ser considerada materialmente típica; se sim, estamos diante de um crime; se não, o fato é atípico. Sobre o tema, a quinta turma do Superior Tribunal de Justiça e a primeira do Supremo Tribunal Federal vêm decidindo pela criminalização, já a sexta turma do STJ e segunda do STF pela atipicidade. A seguir, analisaremos essa controvérsia.
3.3.1Corrente favorável à criminalização
Segundo essa corrente, a Lei 10.826/2003 não faz distinção entre arma municiada e desmuniciada, exigindo-se apenas uma probabilidade dano e não a sua ocorrência efetiva.[66] A objetividade jurídica dos crimes de porte e posse de arma de fogo não se restringe à incolumidade pessoal, alcançando, também, a liberdade pessoal, protegidas mediatamente pela tutela primária dos níveis da segurança coletiva.[67] O art.. 14 da Lei 10.826/2003 não teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, dessa maneira, não há espaço para se decidir pela atipicidade da conduta.[68]
E ainda, o rigor normativo é compreensível na valoração depreciativa das armas de fogo, em virtude de seu poder de lesividade muito maior que outros objetos de ataque, ou de defesa.[69] O delito, ao menos por uma de suas vertentes (o lesionar interesse de um número indeterminado de pessoas) não depende de outra ação externa do agente para se consumar.[70] A circunstância de a arma encontrar-se desmuniciada, não afasta a sua condição de arma capaz de intimidar vítimas.[71]
3.3.2 Corrente contrária à criminalização
Essa corrente defende que conduta de porte ilegal de arma, quando desprovida de munição, sem disponibilidade imediata, é atípica, por lhe faltar potencialidade lesiva.[72] Segundo esse entendimento, a arma desmuniciada não apresenta sequer perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, no caso, a segurança pública, devendo ser reconhecida a atipicidade material da conduta.[73] A arma desmuniciada não oferece qualquer perigo, mesmo abstrato, por isso, não pode considerada para condenar, pois, na verdade, tem apenas a aparência de arma de fogo.[74]
Concluem que a moderna concepção do Direito Penal exige que fato típico implique lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado, ainda que se trate de crime de mera conduta. Por essa razão, o princípio da ofensividade cobra a idoneidade ofensiva da arma e a disponibilidade de uso.[75]
3.3.3. Nosso posicionamento
No capítulo anterior, concluímos que os crimes de perigo abstrato devem ser entendidos como delito de lesão. Dessa maneira, refutamos a corrente contrária a criminalização do porte arma desmuniciada, pois, o núcleo de sua argumentação consiste que nessa conduta não há ofensa a qualquer bem jurídico.
Portanto, nos posicionamos pela corrente favorável a criminalização. Porém, não concordamos com alguns fundamentos utilizados pelos ministros do STF e STJ, tais como, (a) a lei não faz distinção entre a arma municiada, ou não, e requer apenas uma probabilidade dano e não a sua ocorrência efetiva[76] e (b) o art. 14 da Lei 10.826/2003 não teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, dessa maneira, não há espaço para se decidir pela atipicidade da conduta.[77]
Nessas duas decisões, percebemos a utilização da concepção formal do delito de perigo abstrato. Como visto, esse entendimento não é compatível com Estado Democrático de Direito, haja vista que limita o juiz a ser um simples aplicador da lei de maneira acrítica, ou seja, é feito um mero juízo de tipicidade formal.
O fundamento que a conduta em questão deve ser considerada crime, pois a arma, mesmo desmuniciada, não afasta a sua condição de intimidar vítimas,[78] a nosso ver, é equivocado, pois não devemos confundir poder de intimidação, que até uma arma de brinquedo possui,[79] com ofensividade.
Para nós, primeiramente, é necessário um juízo de constitucionalidade do art. 14 da Lei 10.826/2003, verificando se a lei assegura as condições essenciais para o desenvolvimento da personalidade e para vida em sociedade; não promove, defende ou impõe qualquer ideologia ou ordem moral ou religiosa; tolera e incentiva o modelo pluralista e democrático de convivência, e intervém o menos possível na liberdade humana, não castigando meras imoralidades.[80]
Em seguida, através do resultado de uma interpretação teleológica da norma, identificamos que o bem jurídico é a segurança pública. Pelas regras de experiência sólidas e estruturadas,[81] o simples porte de arma de fogo é suficiente para ofender a segurança pública, no plano cuidado-de-perigo, independentemente da disponibilidade imediata da munição, desde que a arma seja relativamente eficaz.
Para se determinar a eficácia de uma arma, é necessária a realização de perícia. Podemos visualizar três resultados: a arma é absolutamente eficaz; relativamente eficaz e absolutamente ineficaz. Para nós, a última hipótese, ao contrário das duas primeiras, não configura crime, por ausência de ofensividade.
Entende-se por arma absolutamente eficaz aquela que se encontra em perfeito estado de funcionamento, inclusive municiada, ofendendo a segurança pública concretamente no plano cuidado-de-perigo.
A arma relativamente eficaz é aquela que se encontra, por exemplo, desmontada, desmuniciada ou quebrada com o conserto possível. Nesse casso, abstratamente podemos pensar que a arma desmontada pode ser montada; a arma desmuniciada, mesmo sem disponibilidade imediata de munição, pode vir a ser municiada em outro momento; e por fim, a arma com o concerto possível, pode ter o seu problema sanado. Essas três categorias, abstratamente, ofendem a segurança pública, no plano cuidado-de-perigo.
Como exemplo de arma absolutamente ineficaz, podemos destacar duas situações: arma sem conserto possível ou arma que não exista mais munição (um caso de arma antiga ou caseira que mesmo em perfeito funcionamento não há munição específica). Abstratamente, nesses dois casos, não será ofendida a segurança pública, porque o desdobramento progressivo da ofensividade é impossível, ou seja, não conseguimos pensar em uma situação que percorra os níveis cuidado-de-perigo, pôr-em-perigo e dano/perigo.
4. CONCLUSÃO
O crime deve ser compreendido como ofensa a um bem jurídico. Devido à grande dificuldade no conceito político-criminal de bem jurídico, capaz de limitar a atuação do jus puniendi, preferimos a definição de bem jurídico de uma perspectiva dogmática, como um resultado de uma interpretação teleológica da norma.
Logo, a legitimação do Direito penal não se dará pelos critérios presentes na definição de bem jurídico, mas sim, através do controle de constitucionalidade realizado na lei penal. Esta sendo legítima, o bem jurídico também será.
Entendemos o princípio da ofensividade de maneira ampla. A ofensa a um bem jurídico pode ser analisada em três diferentes níveis: cuidado-de-perigo; pôr-em-perigo e dano/perigo. Nesses níveis estariam respectivamente os crimes de perigo abstrato, perigo concreto e de dano.
Para nós, certas condutas, pela ofensividade que possuem no plano cuidado-de-perigo, necessitam de uma resposta penal imediata. A tipificação da conduta que esteja nesse plano, não contraria os princípios do Estado Constitucional de Direito. Portanto, nos posicionamos pela constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato quando entendidos como delitos de lesão.
Para tanto, é necessária a verificação da ofensividade da conduta. A conduta será ofensiva quando permitir o desdobramento progressivo da ofensividade, mesmo que abstratamente, nos seguintes planos: cuidado-de-perigo; pôr-em-perigo e dano/perigo.
Com a devida vênia, propomos uma releitura da noção de delito de Bianchini, Molina e Gomes. Para nós, o resultado desvalioso passa a ser entendido como (a) real ou de perigo, (b) transcendental, (c) grave (não insignificante), (d) intolerável, (f) objetivamente imputável ao risco criado e (g) pertencente ao âmbito de proteção da norma.
Ao compreender os crimes de perigo abstrato como delitos de lesão, não há falar em desobediência ao princípio da ofensividade, e, tampouco, aos demais princípios do direito penal, tais como, intervenção mínima, presunção de inocência e culpabilidade. Ressalta-se que não se trata de antecipação da tutela penal, mas a reação estatal em razão da própria ofensa ao bem jurídico.
O art. 14 da Lei 10.826/2003 é constitucional, porque é compatível com as diretrizes de uma Política Criminal Constitucional de Direito, pois assegura as condições essenciais para o desenvolvimento da personalidade e para vida em sociedade; não promove, defende ou impõe qualquer ideologia ou ordem moral ou religiosa; tolera e incentiva o modelo pluralista e democrático de convivência, e intervém o menos possível na liberdade humana, não castigando meras imoralidades.
Compreendendo os crimes de perigo abstrato como delito de lesão, o simples porte de arma de fogo é suficiente para ofender a segurança pública, no plano cuidado-de-perigo, independentemente da disponibilidade imediata da munição, desde que a arma seja, ao menos, relativamente eficaz.
Para se determinar a eficácia de uma arma, é necessária a realização de perícia. Podemos visualizar três resultados: a arma é absolutamente eficaz; relativamente eficaz e absolutamente ineficaz. Para nós, a última hipótese, ao contrário das duas primeiras, não configura crime, por ausência de ofensividade.
Por fim, entendemos que o objetivo proposto do presente trabalho foi alcançado. No entanto, não nos julgamos detentores da verdade e estamos receptivos às críticas, pois através da dialética, conseguimos construir o conhecimento, para tornar o Direito mais justo à sociedade.
Informações Sobre o Autor
Odon Dantas Pinto
Policial Rodoviário Federal, Bacharel em Direito e pós graduando em Ciências Criminais