Resumo: A violência contra a mulher, mesmo após mais de 10 anos da promulgação da lei Maria da Penha, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, a qual tem por objeto criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, continua sendo um tema recorrente no cenário brasileiro no que se refere aos avanços à erradicação de toda forma de violência bem como aos desafios a sua efetiva aplicabilidade no campo prático no Poder Judiciário. Verifica-se o Poder Público tem desenvolvido políticas para garantias dias direitos fundamentais das mulheres nas relações domésticas e familiares, especialmente no que tange a campanhas preventivas. Ocorre que, muitas vezes, o crime já ocorreu, e o Judiciário não consegue punir devidamente as pessoas que praticaram o fato típico tendo em vista o decurso do prazo processual, o que ocasiona extinção da punibilidade pela prescrição. Por esse motivo, o presente artigo desenvolve uma temática acerca dos possíveis desafios a serem enfrentados na efetivação da lei Maria da Penha para se garantir que haja devida punição dos agressores no âmbito da violência doméstica. [1]
Palavras-chave: Violência doméstica. Eficácia jurídica.
Sumário: 1. Da violência contra a mulher; 2. Da Lei Maria da Penha; 3. Da ineficácia da lei Maria da Penha: Prescrição como desafio a ser superado; Conclusão.
1. Da violência contra a mulher
A violência de gênero é um dos fenômenos mais complexos da atualidade que repercute na vida acadêmica, social, política e cultural. Não são raras as vezes que são noticiados fatos na mídia envolvendo crimes de ameaça, lesões corporais e homicídios em ambientes familiares contra mulheres, em diferentes realidades socioculturais, o que instiga o Poder Público bem como a sociedade a pensar até que ponto o Poder Judiciário brasileiro têm sido efetivo em cumprir o papel de punir efetivamente aqueles que praticaram crimes previstos expressamente na legislação infraconstitucional.
Historicamente, a sociedade estrutura-se sob um modelo de regime patriarcal em que o homem é visto como como o chefe de família e provedor do lar, de modo que a mulher é vista como subordinada ao seu marido, não tendo capacidade plena para exercer os atos da vida civil, sendo responsáveis pelo cuidado do lar e pela criação dos filhos.
Em uma análise objetiva do Código Civil brasileiro de 1916 (vigente até 2002), pode-se extrair diversos dispositivos que demonstram reflexos de uma sociedade machista e desigual, em que se demarcava a mulher por nítidos traços de inferioridade, reforçando o papel submisso que veio se prolongando ao longo da história. Mencionado Código colocava a figura feminina como relativamente incapaz para exercer certos atos da vida civil, no mesmo patamar que os maiores de dezesseis anos e menores de vinte e um anos, que os pródigos e que os silvícolas[2]. Um dos exemplos mais nítidos que ilustram essa dicotomia de papeis, encontra-se no art. 242[3] do CC/16 o qual dispunha que a mulher apenas poderia exercer atividades laborais se tivesse autorização de seu marido. Outro dispositivo cabível de citação do Código é o art. 233[4], em que se impunha que o marido é o chefe da sociedade conjugal, cabendo a ele a representação legal da família, a administração dos bens comuns e particulares da mulher, o direito de fixar o domicílio da família, bem como prover a manutenção da família.
Esse tratamento dado à mulher na sociedade brasileira criou a ideia de um estereótipo sexista, em que poder e dominação estão em mãos masculinas, e opressão e subordinação cabem às mulheres, o que legitima e justifica socialmente a situação de dependência, subordinação e desigualdade das mulheres. Tendo em vista esse cenário, relatos de violências eram ocultados já que não havia uma ampla proteção contra esse grupo vulnerável no ordenamento jurídico.
Contudo, a partir da década de 80 iniciaram-se movimentos sociais feministas em busca de igualdade entre os gêneros, a fim de que a mulher fosse transformada em verdadeira sujeito de direitos e cidadã, ascendendo na vida política, econômica e social. Tal realidade trouxe visibilidade a questão da violência, em que se passou a exigir de todos os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – medidas efetivas a fim de erradicar todas as formas de violência contra o gênero.
“Os movimentos sociais feministas, iniciados a partir da década de 80 no Brasil, surgiram para que fosse evidenciado o problema extremante grave que vinha sendo ocultado pela sociedade, mas que só foi trazido à tona com a luta feminista, através da qual passou-se a reivindicar medidas e soluções urgentes para os crimes de violência contra a mulher, dentre outros direitos aos quais as mulheres eram privadas. Foi devido a essas manifestações que a imagem feminina sofreu mudanças significativas”. (PINTO, 2007, p. 03).
Com efeito, a violência social contra a mulher passou a ser denunciada pela sociedade (GIORDANI, 2006, p. 75), de modo que se incluiu na pauta política e social assuntos ligados políticas de prevenção à violência e de combate aos crimes decorrentes da relação afetiva ou dosmética.
A violência doméstica caracteriza-se como qualquer forma de agressão que se manifesta no âmbito da unidade doméstica ou em qualquer relação íntima de afeto contra a mulher que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Desse modo, qualquer tipo de agressão contra a mulher decorrente de vínculo familiar foi elevado ao patamar de violência doméstica, não sendo o agressor punido mais pela Lei 9.099/90, a qual trata de crimes de menor potencial ofensivo, como lesão corporal, e nem sujeita mais ao Código Penal brasileiro, pelo Decreto-Lei n. 2.848/1940.
Desse modo, a violência contra a mulher passou a ser reconhecida como uma questão de Estado, envolvendo a própria discriminação de gênero e crise da autoidentidade (GIORDANI, 2006, p. 107), o que trouxe à academia discussões acerca da própria eficácia dos meios repressivos de violência. Contudo, antes de se adentrar na eficácia da lei de violência doméstica no Brasil, faz-se necessário uma breve retrospectiva histórica no contexto de promulgação da lei protetiva, como forma de se demonstrar a importância de uma norma jurídica destinada especialmente à proteção da mulher.
2. Da Lei Maria da Penha
A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 surgiu de uma punição dada ao Estado Brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2001, tendo em vista a omissão do país em resolveu conflitos relacionados à violência contra a mulher. Trata-se, especificamente, do caso nº 12.051/OEA, movido por Maria da Penha Maia Fernandes, que, desde o ano de 1983, vinha sofrendo agressões por parte de seu ex-marido, sendo, inclusive, vítima de homicídio. Embora a vítima tenha recorrido ao Poder Judiciário buscando uma tutela e uma condenação do agressor, este continuou em liberdade por muitos anos, mesmo após sua condenação em primeira instância pela justiça.
A ausência de uma resposta definitiva por parte do Judiciário brasileiro, levou Maria da Penha a recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sob o argumento de violação dos direitos humanos, levando o caso a ter notoriedade internacional. Em resposta, menciona comissão emitiu o Relatório nº 54/2001 a qual reconheceu a omissão e negligência do Estado Brasileiro perante o caso, determinando que o país intensificasse os procedimentos de combate à discriminação e violência contra a mulher.
“Que, com fundamento nos fatos não controvertidos e na análise acima exposta, a República Federativa do Brasil é responsável da violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1(1) do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação negligente deste caso de violência doméstica no Brasil.
[…] Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil” (CIDH, 2001).
O caso específico representou um dos inúmeros casos de impunidade na justiça brasileira em que ocorre crime contra a mulher, ressaltando a negligência do Poder Público, bem como o descaso em promover políticas preventivas de combate à violência. Com efeito, a proteção à mulher passou a decorrer da própria necessidade de se tutelar o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que a desigualdade entre homens e mulheres coloca estas em uma posição de vulnerabilidade.
Em decorrência das recomendações da CIDH, no ano de 2006, o presidente da República naquela época, Luís Inácio Lula da Silva, sancionou projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, o qual resultou na Lei nº 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, em homenagem à mulher que lutou por um reconhecimento da situação de vulnerabilidade do sexo feminino perante o homem e o Estado.
Mencionada reflete o próprio dispositivo da Constituição Federal do Brasil, que, desde sua promulgação em 1988, já preza que o Estado deve assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, instaurando políticas públicas para garantir à mulher proteção contra qualquer forma de discriminação ou opressão no âmbito das relações domésticas e familiares[5]. Para tanto, a lei Maria da Penha define a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, devendo esta proteção ser acirrada por todos os entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
O embasamento legal é que a toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, deve ser assegurado a garantia de viver de forma digna, longe de qualquer violência, opressão ou crueldade. A proteção deve-se dar de forma ampla, tanto no âmbito da unidade doméstica, o qual inclui pessoas com ou sem vínculo familiar; no âmbito da família, o qual engloba uma comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; ou por qualquer relação íntima de afeto, independentemente de coabitação[6].
Estabeleceu-se nessa lei que a agressão contra a mulher não se limita à agressão física, mas inclui diversos tipos de comportamentos nocivos que vitimam mulheres, como a agressão sexual, psicológica, patrimonial e moral.
“Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”. (BRASIL, 2006).
Segundo Giordani (2006, p. 152-153), a violência física é aquela que causa dano à integridade física, como empurrões, tapas, mordidas, queimaduras, cortes, entre outros, e, na maioria das vezes, acontecem na própria residência na vítima em que o agressor é pessoa com quem se mantinha um vínculo social e afetivo. Já a violência psicológica é aquela que exige que a mulher se mantenha em um papel submisso ao homem, em que este usa palavras de baixo calão, recusa carinho, afeta emocionalmente, dentre outros.
A violência sexual, por sua vez, é explicitada por atos como forçar a mulher a manter relações sexuais com pessoas de seu convívio ou não, a presenciar a relação sexual de outrem ou mesmo situações de chantagem ou suborno em relação à vítima. Como violência patrimonial, podem-se citar atos de destruição do patrimônio da mulher, ou mesmo esconder seus bens materiais ou causar desordem do ambiente (GIORDANI, 2006, p. 154-155). Por fim, violência moral é aquela que implica ofensa à honra da mulher, imputando-lhe falsamente um fato definido como crime, um fato ofensivo à sua reputação ou à sua dignidade ou decoro.
Dada a relevância da questão, definiu-se como obrigatória a atuação do Ministério Público, assistência judiciária à mulher, bem como atendimento de uma equipe multidisciplinar especializada para tratar especificamente do atendimento da família envolvida.
Como formas de se coibir ou reprimir qualquer forma de ofensa à mulher, foram estabelecidas medidas integradas de prevenção, como forma de se articular políticas públicas em todas as esferas estatais que possam desenvolver ações comunitárias preventivas e educativas. Além disso, destacou-se maior importância aos centros de atendimento à mulher em situação de vulnerabilidade, com o fim de resguardar sua integridade psicológica e física.
Outrossim, a legislação estabeleceu uma série de medidas repressivas, ou seja, que se aplicam após a ocorrência de um crime contra a mulher. Uma das inovações e grande avanço que a legislação trouxe foi o desenvolvimento de medidas protetivas de urgência, caracterizadas como medidas cautelares que devem ser decididas pelo Poder Judiciário no prazo de 48 horas quando se tratar de uma situação que possa por em risco à dignidade da vítima de violência. Nesses casos, uma vez verificada a ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar ao agressor, medidas protetivas de urgência, dentre elas:
“Art. 22. […]
I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios”. (BRASIL, 2006).
Se não bastasse, a legislação também assegurou à mulher várias medidas para lhe proteger, que podem ser, inclusive, aplicadas concomitantemente às medidas destinadas ao agressor. Dentre elas, pode-se citar o seu encaminhamento à programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; sua recondução ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; seu afastamento do lar, bem como separação de corpos. (BRASIL, 2006).
Após a definição das medidas cautelares, se necessário, o procedimento segue o ritmo do Código de Processo Penal (CPP), em geral. Ou seja, há o recebimento da denúncia, oitiva da vítima, das testemunhas e do agressor, e, por fim, o julgamento do caso, sujeitando o homem às penalidades previstas pelo Código Penal (CP).
Apesar de a lei Maria da Penha constituir-se como um importante marco significativo na tutela da dignidade da mulher, traduzindo-se como um avanço para erradicação da violência e discriminação de gêneros, ainda persistem muitas situações de violência que, apesar de serem levadas ao Poder Judiciário, não resultam na condenação do agressor, seja por inércia do Judiciário, seja por uma própria falha no texto normativo, questão esta que ser deliberada a seguir.
3. Da (in)eficácia da lei Maria da Penha: Prescrição como desafio a ser superado
Se, por um lado, a lei 11.340/2006 constituiu-se como marco no reconhecimento da situação de vulnerabilidade da mulher, frisando a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos humanos; por outro, nota-se que a legislação, em si, parece apresentar equívocos com relação ao procedimento judicial, o que pode constituir um desafio para aplicação de medidas punitivas a um agressor definitivamente condenado pelo crime.
Conforme já relatado, a lei estabeleceu, de forma inovadora, medidas cautelares protetivas em relação à mulher as quais devem ser apreciadas em um prazo mínimo para se garantir que o agressor não venha, novamente, a ter contato com a vítima. Ocorre que o crime que já fora praticado deve seguir os trâmites padrões previstos no Código de Processo Penal, ou seja, todo o procedimento burocrático e moroso para, finalmente, chegar-se a uma sentença final definitiva seja ela absolutória ou condenatória.
O rito estabelecido é o do CPP uma vez que a própria lei 11.340/2006 vetou de maneira expressa a aplicação da lei 9.099 de 1995 que dispõe acerca dos Juizados Especiais Criminais que são responsáveis pelo julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo. Segundo art. 41, “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”. (BRASIL, 2006).
Todavia, sabe-se que a lei 9.099/1995 veio a estabelecer procedimentos mais céleres e menos burocráticos para se apreciar contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos. Segundo essa lei, assim que a autoridade policial tem conhecimento do ocorrido, lavra-se termo circunstanciado e já o encaminha imediatamente ao Juizado, que ouvirá o autor e a vítima prontamente ou em data mais próxima para audiência. Nesse ato de audiência perante o juízo, tenta-se, inicialmente, uma composição civil por danos. No caso de não haver composição, o Ministério Público oferece, de imediato, aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, conhecida como transação penal. E, caso esta não seja aceita, é oferecida a denúncia ou queixa contra o agressor, prosseguindo o processo com audiência de instrução e julgamento para oitiva dos envolvidos, provas documentais e periciais, para, por fim, chegar-se a prolatação da sentença. (BRASIL, 1995).
Como se nota, ao se afastar a incidência do CPP nos crimes de menor potencial ofensivo da Lei 9.00/95, garante maior celeridade no julgamento do caso, podendo, inclusive, se aplicar medidas de conciliação e transação. Ao excluir a possibilidade de os crimes de violência contra a mulher se submeterem ao rito do Juizado Especial, automaticamente aplica-se o procedimento comum previsto no CPP, o que é muito mais moroso e não permite, por exemplo, que haja uma conciliação entre as partes, pois, assim como acontece nos juizados, a vítima pode se sentir reparada com a prestação de uma pena pecuniária ou prestação de serviços à comunidade por parte do ofensor.
Se não bastasse, um rito mais burocrático, como o processual penal, pode facilitar a prescrição do crime, acarretando a extinção de punibilidade, de modo que o agressor não responderá por um crime que cometeu, nem com prestação de serviços à comunidade e, muito menos, com pena privativa de liberdade.
A título de exemplo, pode-se citar o crime de lesão corporal. No caso de lesão corporal leve comum, envolvendo homens ou uma relação fora do ambiente doméstico e familiar, incide-se o previsto no art. 129, CP, tendo como penalidade detenção, de três meses a um ano (BRASIL, 1940). Por se tratar de um crime de menor potencial ofensivo, dirige-se ao Juizado Especial Criminal, rito da Lei 9.099/95, o qual propiciará aos envolvidos a possibilidade de composição por danos civis ou transação penal. Somente se estas não forem aceitas, sucede-se o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, e, após o regular trâmite processual previsto na própria lei, o juiz profere a sentença, que, se for condenatória, implica detenção de até um ano. Em contrapartida, o crime de lesão corporal contra a mulher em ambiente doméstico e familiar é dirigido aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que seguem o procedimento do Código de Processo Penal. Ou seja, apenas após o longo trâmite legal é que se chega a uma sentença absolutória ou condenatória, possibilitando a aplicação da detenção ao ofendido, sem nenhuma possibilidade de um acordo efetivo antes da sentença.
Outro exemplo constitui-se no caso de agressão que não configure lesão corporal, como empurrões ou tapas. No caso de agressão envolvendo relações fora do âmbito da violência doméstica, aplica-se novamente a Lei 9.099/95. Já no âmbito da Maria da Penha, deve-se submeter a todo procedimento do CPP. Ressalta-se que, no caso de agressão, por se constituir contravenção penal na modalidade vias de fato, a pena é de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa (BRASIL, 1941-a). O relevante é destacar que, por ter pena máxima inferior a um ano, o prazo prescricional é de 3 anos, de modo que, após esse lapso temporal, há extinção da punibilidade, não estando o agressor sujeito a nenhuma sanção de natureza penal (BRASIL, 1940).
O que deve se ressaltar é que o afastamento da lei dos juizados especiais nos crimes envolvendo violência doméstica apenas facilita a impunidade, uma vez que não permite composição amigável, transação penal e, o longo curso do processo apenas serve como facilitador da prescrição penal antes de um efetivo julgamento.
“Não olvidemos, outrossim, que a exclusão do Juizado Especial Criminal para o processo e julgamento de tais crimes só facilitará o transcurso do prazo prescricional (e a extinção da punibilidade), pois, optando por outros procedimentos (especiais ou sumário) certamente a demora na aplicação da pena será bem maior do que, por exemplo, se houvesse a possibilidade (bem ou mal) da transação penal (com a proposta imediata de uma pena alternativa)” (MOREIRA, 2007).
Desse modo, percebe-se que, não obstante a lei Maria da Penha tenha surgido como uma forma de se garantir de forma efetiva a tutela da dignidade da mulher, coibindo qualquer forma de violência de gênero, abriu-se um leque para a impunidade desses casos, pois, apenar de as medidas cautelares serem céleres e proporcionais, uma vez que são apreciadas em um prazo de 48 horas, a efetiva sentença de julgamento do crime é tão morosa que o processo já perdeu sua eficácia.
Nesse sentido, em pesquisa aos endereços eletrônicos dos Tribunais de Justiça do país, encontraram-se inúmeros casos em que se reconheceu a prescrição do crime em razão do grande lapso temporal decorrido para promulgação da sentença. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul apreciou um caso de ameaça e descumprimento da medida protetiva no qual o acusado fora condenado a seis meses de detenção. Acontece que os fatos ocorreram em abril de 2010, e a sentença penal condenatória apenas fora publicada em abril de 2014. Tendo em vista o transcurso de 03 anos entre o recebimento da denúncia e a data do julgamento, fora declarada extinta a punibilidade do acusado.
“APELAÇÃO-CRIME. AMEAÇA E DESOBEDIÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. TIPICIDADE. NECESSIDADE DE ATENDIMENTO À TUTELA JURISDICIONAL. PRECEDENTES DA CÂMARA. APELAÇÃO MINISTERIAL PROVIDA EM PARTE. PRESCRIÇÃO RETROATIVA VERIFICADA. EXTINTA A PUNIBILIDADE”. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GANDE DO SUL, 2014).
Nesse mesmo sentido, destacam-se os seguintes julgados:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – CRIME DE AMEAÇA – LEI MARIA DA PENHA – DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA ANULADA PELO PRÓPRIO JUÍZO – NULIDADE – PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA PENA EM ABSTRATO. – Tendo ocorrido o recebimento da denúncia, não se revela possível sua posterior anulação, pelo próprio Juízo, sob pena de nulidade. – Tendo transcorrido o prazo prescricional, com base na pena em abstrato cominada ao delito, desde a data do recebimento da denúncia, é de se reconhecer a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva” (MINAS GERAIS, 2013).
“EMENTA APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI MARIA DA PENHA . CRIME DE AMEAÇA. PRELIMINAR: NULIDADE DA SENTENÇA – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUÍZO NATURAL. INOCORRÊNCIA. PREJUDICIAL DE MÉRITO DO CRIME DE AMEAÇA. PRESCRIÇÃO. […] 2. Considerando que o máximo da pena do crime de ameaça é de 06 (seis) meses, cuja lapso prescricional, conforme prescreve o art. 109 , VI , do CP é de 03 (três) anos, decorrido este lapso temporal entre o recebimento da denúncia e a publicação da sentença é de se reconhecer a prescrição da pretensão punitiva do Estado”. (PIAUÍ, 2014).
Desse modo, nota-se que o prejuízo quanto a impossibilidade de aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais já vem se manifestando na jurisprudência dos Tribunais do Brasil. A lei Maria da Penha não permite acordo, transação penal e também dificulta que o Poder Judiciário aprecie tantos casos em um lapso temporal pequeno a ponto de impedir a prescrição dos crimes.
A questão mostra-se tão relevante que já foi, inclusive, pauta de discussões na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Conforme a desembargadora do TJMG, Kárin Emmerich, mais de 50% dos processos de violência doméstica prescrevem em decorrência da demora do Judiciário para julgar em definitivo os casos dessa natureza (ALMG, 2016).
Tendo em vista que para se aumentar efetividade da lei seria preciso uma alteração legislativa, o que se tem como alternativa é a promoção de maior capacitação dos magistrados e dos operadores do Direito na busca da efetivade das decisões judiciais, de modo que se busque alcançar com maior celeridade a sentença judicial seja esta absolutória ou condenatória.
Conclusão
A violência contra a mulher no âmbito das relações domésticas e familiares decorre de uma desigualdade histórica originária da própria cultura e relações sociais nas comunidades tradicionais. No Brasil, apenas com a Constituição Federal de 1988 e com o posterior Código Civil de 2022, a mulher teve seu papel conquistado no ambiente social, passando a gozar das mesmas prerrogativas que os homens.
Acontece que, apenar de ser dever do Estado e da sociedade combater todas as formas de violência, até o ano de 2006 não existia nenhuma norma específica capaz de tutelar e proteger a mulher de situações de violência. A Lei 11.340/2006 significou um marco no direito brasileiro ao se consagrar proteção integral à mulher em todas as suas formas, seja no aspecto físico, seja no aspecto moral, psicológico, sexual ou patrimonial.
A Lei Maria da Penha representou um marco no ordenamento jurídico ao reconhecer que a mulher precisa de uma ampla proteção estatal tendo em vista sua discriminação histórica. Para tanto, trouxe inovações como medidas preventivas ao combate de violência, medidas protetivas cautelares no caso de a violência já ter ocorrido, bem como criação de centros de atendimento integrado à mulher, além de enfatizar a necessidade de criação de conselhos de equipes multidisciplinares para atendimento às famílias envolvidas.
Apesar de se reconhecer os avanços da legislação, muitos são os desafios para se alcançar efetivamente a igualdade entre homens e mulheres, pois, em situações em que o crime já ocorreu, encaixar a situação na lei Maria da Penha pode ocasionar prejuízos à vítima, como ausência de possibilidade de conciliação ou transação penal e até mesmo extinção da punibilidade em decorrência da prescrição. Tal situação decorre do fato de os crimes previstos nessa lei sujeitarem-se ao procedimento penal previsto no Código Processual, havendo vedação expressa para se aplicar a Lei 9.099/95 que julga crimes de menor potencial ofensivo.
A extinção do processo como efeito da prescrição oferece uma sensação de impunidade. Apesar de as medidas urgentes protetivas serem efetivas, não se nota uma punição com respectiva pena privativa de liberdade, restritiva de direito, ou multa, que são as penas finais decorrentes de uma sentença penal condenatória. E tal fato demonstra que uma lei que aparentemente veio a proteger as mulheres acaba não sendo eficiente para punir os agressores, seja por ineficácia do legislativo, ao proibir a aplicação da Lei 9.099/95, seja por inércia do Poder Judiciário que não aprecia tantos casos num prazo célere, dando ensejo à prescrição.
Dentro desses parâmetros, espera-se que o Poder Público promova políticas públicas capazes de eliminar todas as formas de violência. E, no caso de um crime já ter ocorrido, que o Judiciário capacite magistrados e servidores que possam garantir celeridade no julgamento dos crimes em trâmite nos Juizados de Violência Doméstica, a fim de se evitar que a lei protetiva se torne uma lei morta, ineficaz ou até prejudicial às mulheres vítimas de violência doméstica e à sociedade em geral.
GIORDANI, Annecy Tojeiro. Contexto socioeducacional, caracterização e consequência da violência na vida da mulher. In: ______. Violências contra a mulher. São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2006.
Informações Sobre o Autor
Carolline Leal Ribas
Advogada e Assessora Jurídica na Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais. Doutoranda em Humanidades pela UNIGRANRIO. Mestre em Estudos Culturais pela FUMEC e especialista em Direito Público e em Gestão Pública