A globalização traz como imperativo a realização de reformas; assim, analisa-se, sob uma perspectiva estruturalista, a noção de Constituição Compromissória de modo a traçar um tipo ideal de democracia pluralista conflitante com a reforma do Código Penal, tanto pela incompatibilidade estrutural entre os tipos penais e a formulação de leis, quanto pelo ineditismo histórico deste tipo de reforma no Brasil.
Introdução
O objetivo deste artigo é analisar, sob uma perspectiva estruturalista, a questão do pluralismo na democracia contemporânea, acusando a impossibilidade de se realizar uma reforma do Código Penal diante da sistemática intrínseca que tal democracia apresenta através da produção de suas leis.
Entende-se por perspectiva estruturalista a visão de Eva Maria Lakatos[1], que diz que o “método estruturalista caminha do concreto para o abstrato e vice-versa, dispondo, na segunda etapa, de um modelo para analisar a realidade concreta dos diversos fenômenos […] Para penetrar na realidade concreta, a mente constrói modelos, que não são diretamente observáveis na própria realidade, mas a retratam fidedignamente”.
De início, serão delineados os elementos característicos da globalização. Tomando como paradigma a autora Kanishka Jayasuriya, procura-se demonstrar os efeitos que a globalização produz no Estado Nacional através da relativização do conceito de soberania absoluta – elucidada por Jean Bodin – para o conceito de soberania complexa, que traz a noção de pluralidade e emergência de atores não-estatais nacionais e internacionais.
Em seguida, como elemento teórico de reflexão, tomarei a noção de “Constituição Compromissória” de Carl Schmitt. A conjugação desta noção com a de outros autores, como a do Presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, o Ministro Nelson Jobim, compõe uma verdadeira teoria de formulação das leis da democracia pluralista.
Após, através da análise do processo de formulação dos códigos penais no Brasil, serão evidenciadas características comuns ao contexto no qual estes códigos se inserem: o caráter não-pluralista das deliberações. Ressalta-se, assim, o ineditismo, no contexto social brasileiro, da realização de uma reforma penal no seio de uma democracia pluralista, o que fortalece a suspeita sobre sua possível concretização.
Por fim, chega-se à conclusão de que democracia pluralista e a reforma do Código Penal formam, ceteris paribus, um casamento fadado ao fracasso, haja vista que a qualidade principal de um tipo penal – a precisão – encontrar-se-ia profundamente desfigurada no processo democrático, que é, por excelência, um “alargador” semântico das leis.
Globalização e reordenação dos padrões jurídicos
Stuart Hall[2] conceitua o que é globalização a partir da concepção de Anthony McGrew[3]. Segundo este, a globalização “se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado”.
Kanishka Jayasuriya[4], por sua vez, ressalta que a globalização é um processo que deve necessariamente ser conduzido interna e externamente. Portanto, não faz sentido haver uma reordenação internacional sem que as esferas nacionais de poder não se reorganizem, para que formem a “complex severeignty”[5], pautada na emergência de diversos atores – nacionais e internacionais – cuja interação relativiza a tríade clássica de Território-Lei-Estado.
A lei, no Estado Nacional Clássico, incidia em um território estritamente delimitado, e era emanada de um ente central e autônomo cujas bases se encontrava no conceito de soberania: o Estado. Portanto, lei, território e Estado estavam intimamente ligados, na medida em que um pressupunha o outro.
A concepção de Max Weber[6] sobre poder político é elucidativa desta noção clássica do Estado. Segundo Weber, o poder é inerente às relações sociais, encontrando-se em todos os níveis relacionais, sendo a “probabilidade de impor a vontade sobre o comportamento dos outros”. No caso do poder político, este se caracteriza por incidir em uma determinada área, sendo “a possibilidade de impor sua vontade, mesmo contra resistências, em um determinado território”. Vemos, assim, a noção de poder político aliada ao elemento territorial e, no caso do Estado, dotado de normatividade, que caracteriza a dominação racional-legal.
Deste modo, a globalização provoca a relativização desta tríade, de forma que o poder não é mais somente situado em um território e tampouco é emanado de um ente central e absolutamente autônomo. Em decorrência disto, a soberania cede lugar a diferentes atores, esferas de poder, culturas, visões de mundo, de modo a adquirir um caráter complexo.
Segundo Jayasuriya, “globalization changes the internal architeture of the State”[7]. A emergência de formas complexas de soberania abalam a coerência estrutural interna do Estado, “while at the same time braking down the boundaries between domestic and international politics and law”[8]
No campo do Direito Penal, especificamente, algumas dificuldades surgem na era da globalização como, por exemplo: a definição do lugar do crime; a delimitação dos limites entre o lícito e ilícito; o choque entre a legislação nacional e a internacional; a co-autoria material ou intelectual; e a competência para o julgamento.
Portanto, como efeito da globalização se tem o imperativo de reordenar os padrões culturais, políticos e, inevitavelmente, jurídicos. Em outras palavras, estes padrões devem se adaptar a uma realidade não somente infranacional, mas também supranacional, procurando conjugar e harmonizar estas novas esferas de maneira eficiente. Mais ainda, Jayasuriya alerta para a impossibilidade de seu retrocesso, ou seja, “it is not possible to put the sovereignty genie back in the conventional state bottle”[9]
Ora, diante desta impossibilidade de retroceder, mudar os padrões jurídicos significa realizar reformas, e realizar reformas é parte deste processo mais amplo. Inserem-se neste processo as reformas previdenciária e tributária, que foram realizadas recentemente pelo governo Lula, no Brasil. Não obstante, já está em voga o discurso que defende a reforma penal neste país.
Meu objetivo é justamente demonstrar que, a partir do critério da tipicidade das leis penais, torna-se impossível, ceteris paribus, realizar uma reforma do Código Penal em uma democracia pluralista, justamente porque esta democracia alarga a abrangência semântica dos seus dispositivos legais, principalmente nas questões consideradas cruciais.
Mais especificamente, para além da reordenação institucional provocada pela globalização, surge um freio a este processo representado pela impossibilidade de se conjugar pluralismo e reforma penal.
Teoria de formulação das leis
Gizleine Neder[10] afirma que o “Direito não deve ser simplesmente confundido com o Estado e/ou a ideologia dominante. Situado no interior das contradições sociais, espelha a estrutura social existente. Nem todo Direito é, portanto, Direito Estatal”. E completa: “O campo da ideologia é um terreno de luta de conflito, de combate, ou pelo menos de afrontamentos e confrontações. É assim que também entendemos o debate em torno da criminalização!”
Corroborando com esta tese, C.B. Macpherson[11] explicita que “não é exagero dizer que a principal função do sistema partidário concretamente desempenhada nas democracias ocidentais desde o advento da franquia democrática tem sido a de amenizar o conflito de classes ou, se preferirmos, moderar e conciliar um conflito de interesses de classe”
Todas essas noções convergem para a idéia de pluralismo democrático. No sentido de conceituar o que é pluralismo, recorro ao jurista Noberto Bobbio[12], que o define como “a concepção que propõe como modelo a sociedade composta de vários grupos ou centros de poder, mesmo em conflito entre si, aos quais é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o ponto de eliminar, o centro do poder dominante”
Diante disso, temos elementos suficientes para delinear uma teoria de formulação das leis. Estruturalmente, notamos que, no seio democrático, que traz consigo o princípio da pluralidade partidária, o processo de formulação das leis as torna cada vez mais abrangentes e imprecisas.
Vejamos um exemplo paradigmático: no processo de formulação da Constituição de 1988, havia um debate sobre quando seria o descanso semanal remunerado, sobre qual seria o seu texto. O grupo da esquerda defendia que este deveria ser obrigatoriamente aos domingos, ao passo que o grupo da direita – chamado “centrão” – defendia que este deveria ser convencionado entre trabalhador e empregador, ou seja, deveria ser flexível. Ao final dos debates, observa-se que a lei, para ser aprovada, deveria conter elementos que “agradassem” ambas as forças. Neste sentido, a redação final do artigo enfatizou que o descanso semanal remunerado seria “preferencialmente aos domingos” (art. 7º, XV, da CRFB)[13], aliviando a obrigatoriedade defendida pelos esquerdistas e enrijecendo a flexibilidade defendida pelos direitistas.
Este exemplo nos fornece elementos relevantes do contexto democrático-pluralista contemporâneo. Segundo o Ministro Nelson Jobim, a democracia, por excelência, admite a pluralidade de partidos, e ainda sofre influências de grupos de pressão diversos. Ana Lúcia de Lyra Tavares[14], por sua vez, acusa a influência dos grupos de pressão ao evidenciar a “atuação constante e eficiente de numerosos grupos profissionais, culturais, religiosos, étnicos, econômicos e sindicais que, em grandes vagas, se deslocaram dos mais longíquos rincões para pressionar os parlamentares e a ampla divulgação cotidiana da Assembléia [Constituinte de 1988]”
Em decorrência disto, nota-se que as condições de aprovabilidade de uma lei estão diretamente ligadas à capacidade desta lei de dar conta dos diversos interesses, principalmente dos parlamentares e dos grupos de pressão. Ou seja, para esta lei passar por todos os processos de sua formulação e ser aprovada de maneira satisfatória, ela tem que necessariamente conter elementos que tragam para si a aprovação dos que a fazem.
Desta forma, o alargamento da abrangência da lei é um elemento estruturante da democracia pluralista, justamente porque esta lei só poderá dar conta dos interesses se for através da abrangência semântica. A pluralidade traz consigo a incapacidade de formar homogenias legais, propiciando leis e artigos com redação cada vez mais imprecisa e heterogênea
Estes argumentos encontram-se refletidos no pensamento de Carl Schmitt, que é o referencial teórico deste artigo. Gwénaël le Brazidek[15] mostra que Schmitt[16] afirmou que “lo essencial del parlamento es el intercambio público de argumentos y de contra argumentos, los debates públicos y la discusión pública”[17]
Ou seja, o parlamento é o reino do discurso e do embate de argumentos, de maneira que o processo de formulação de leis adquire um caráter extremamente complexo. Schmitt, inclusive, radicaliza essa complexidade ao afirmar que “el parlamentarismo abdica aí de su base intelectual y todo o sistema pierde su razón”[18]. Mais ainda, segundo Brazidek, “de lo que se trata, según Schmitt, es de crear, en el seno del Parlamento, una pluralidad que permita instalar, mediante el referido sistema de mediación, un equilibrio”[19]
Para Bernardo Ferreira[20], “de lugar de formação de uma vontade Estatal unitária a partir dos interesses e tendências particularistas dos partidos, o parlamento se converteria no espaço dos seus acordos e compromissos provisórios”. Assim, “o conflito, nesse contexto, se torna a condição de instauração da própria ordem e, ao mesmo tempo, um fato de incerteza e indeterminação”
Schmitt[21] sintetiza essa questão através da noção de “Constituição Compromissória”, como uma forma de manifestação do equilíbrio através de compromissos. Cumpre dizer que a maioria das Constituições elaboradas modernamente, que não decorreram de um processo revolucionário dramático, são Constituições Compromissórias. Elas não cristalizam uma única diretriz, um único projeto ou uma única idéia. Elas são o fruto do consenso possível entre forças políticas díspares – quando não antagônicas – presentes em uma determinada sociedade.
Segundo Schmitt, “le compromis consiste en effet ici à trouver une formule qui satisfasse toutes les exigences contradictoires et laisse irrésolus les vrais points d’achoppement grace à une expression ambigüe”[22]. E completa: “Le compromis ne porte donc pas sur la résolution du fonde d’un próblème grâce à des concessions mutuelles, l’accord consiste (…) d’une formule dilatoire qui satisfait toutes les revendications”[23]
A noção de “Constituição Compromissória”, deste modo, é uma peça-chave para o entendimento da impossibilidade de uma reforma penal, haja vista o exemplo relativo ao art. 7º, XV, da CRFB.
Ana Lúcia de Lyra Tavares, por sua vez, procura traçar uma verdadeira “história da formulação das leis brasileiras”. Para tal, ela demonstra que, tradicionalmente, houve um “apego ao formalismo constitucional, com a edição imediata de textos básicos que visam a consagrar, no plano jurídico, a ordem política vitoriosa”. Podemos, então, dizer que a história das leis no Brasil é profundamente marcada pelo formalismo e pela hegemonia ideológica.
Com o advento da democracia pluralista, na década de 80, a realidade nacional transfigura-se para algo inédito. O formalismo e a hegemonia ideológica dão lugar ao diálogo e ao consenso. A noção de “Constituição Compromissória” remete ao fato de que esta não é produto de uma vontade vitoriosa, mas sim da confluência de poderes no sentido de verem representados no texto legal os seus interesses, principalmente através da abrangência semântica dos artigos, de modo a garantir o equilíbrio schmittiano.
Em Luiz Werneck Vianna[24], encontramos uma questão que sofistica o processo de formulação de leis. O parlamentar, no exercício de suas atividades ou no processo de votação das leis, encontra-se pautado por um tripé: o ideológico, o corporativista e o regional.
Ou seja, a atitude do parlamentar, enquanto participante ativo na formulação da lei, é multifacetada. Não obstante, em cada caso haverá a preponderância de um destes elementos em detrimento dos outros, de modo que a abrangência da lei deve contemplar, em níveis diferenciados no caso concreto, estes três prismas.
Em suma, a complexidade da formulação das leis e do resultado desta formulação decorre: em primeiro lugar, da necessidade de propiciar condições de aprovabilidade através da imprecisão; em segundo lugar, da confluência de interesses antagônicos e multifacetados; e, em terceiro lugar, do fato do legislador se pautar pelo tripé supracitado.
Teoria dos tipos penais
Parafraseando o antropólogo francês Claude Levi-Strauss, podemos dizer que o processo de formulação das Constituições “é bom pra pensar” a maneira pela qual os códigos penais foram feitos. Vejamos, pois, as características essenciais do tipo penal e como se deu o processo de sua formulação ao longo da história brasileira.
Os Manuais de Direito Penal ensinam uma lição essencial a respeito de todo tipo penal: a precisão. Assim sendo, um tipo penal deve ter a maior objetividade possível, sendo conciso, coerente e bastando em si mesmo. O tipo penal deve ser muito bem delineado e certo, de modo a evitar analogias e garantir a segurança jurídica. Funda-se, aqui, o princípio da legalidade.
Uma das facetas deste princípio, segundo Francisco de Assis Toledo[25], é o brocardo feuerbachiano nullun crimen, nulla poena sine lege certa, cujo objeto é a proibição de leis penais indeterminadas em prol da precisão do tipo penal.
Segundo Julio Frabbrini Mirabete[26], o tipo penal tem duas funções básicas: “a primeira é a de garantia, já que se aperfeiçoa e sustenta o princípio da legalidade do crime. A segunda é a de indicar a antijuridicidade do fato à sua contrariedade ao ordenamento jurídico”. Na medida em que surge a imprecisão, o tipo penal peca na sua função garantista, bem como indica mais fatos contrários ao ordenamento – cada vez mais imprecisos -, promovendo duplamente a insegurança jurídica.
O Código Penal e sua história
Analisemos, brevemente, a história dos códigos penais no Brasil. Como vimos, Ana Lúcia de Lyra Tavares aponta a tradição legalista e ideologicamente hegemônica das leis nacionais.
Neste sentido, revela-se “não somente a instabilidade das instituições políticas, resultante das repetidas crises de poder, mas também o apego ao formalismo constitucional, com a edição imediata de textos básicos que visam a consagrar, no plano jurídico, a ordem política vitoriosa”. O que justifica o legalismo é a “formação bacharelística de suas elites, legadas, no caso brasileiro, pela educação jesuítica, que conferia primazia ao ensino das letras e das leis, em detrimento dos estudos técnicos e científicos”
Primeiramente, para fins de análise, deve-se dizer que as leis penais anteriores ao Código Criminal de 1830 são desconsideradas neste estudo pois, segundo E. Raúl Zaffaroni et al.[27], “é ilusório atribuir à programação criminalizante, na conjuntura colonial brasileira seiscentista, funções similares às que desempenhará em momentos posteriores”
Feita a ressalva, podemos dizer que, observando a história dos códigos penais brasileiros, é possível traçar uma característica comum à confecção destes códigos: foram feitos em momentos de ruptura e de mudança de paradigmas político-institucionais.
O Código Criminal de 1830 foi feito oito anos após da independência do Brasil, substituindo as arcaicas legislações do reino. O art. 179 nº 18, da Constituição de 1824, determina a feitura deste Código caracterizando o momento de mudança institucional que estava ocorrendo.
Com a abolição da escravatura em 1888 e, conseqüentemente, com a revogação de alguns artigos referentes a este tema no Código, surgiu a necessidade da feitura de um novo Código Penal, em 1890, que foi elaborado às pressas no contexto de Proclamação da República. Segundo Zaffaroni et al., “na verdade, o desprestígio do código penal de 1890 proveio de seu fracasso na programação criminalizante dos alvos sociais do sistema penal da Primeira República, fracasso diretamente ligado à circunstancia de não passar ele de um decalque alterado do diploma anterior”
A pressa para a feitura deste Código deve-se ao fato de ter que atender a determinados padrões republicanos importados, principalmente, dos Estados Unidos. Logicamente, este Código foi progressivamente alterado ao longo do século XX. Costuma-se dizer, inclusive, que este diploma legal já nasceu com a necessidade de modificá-lo. Em decorrência disto, várias leis extravagantes foram criadas e, dentre elas, a Consolidação das Leis Penais de 1932.
Em 1940, o Código Penal atual foi feito, sob a égide da ditadura de Getúlio Vargas, o chamado Estado-Novo. Para Zaffaroni et al., inaugurava-se uma nova fase na história penal brasileira, pois “Economicamente, 1930 marca a ruptura com a teoria liberal do estado gendarme […] e a conseqüente implantação de um estado intervencionista. […] Socialmente, 1930 é sobretudo o ponto de partida para a incorporação da classe trabalhadora ao cenário político da sociedade brasileira”. Em virtude das peculiaridades conjunturais em que foi feito, este Código apresentou uma estrutura harmônica, simbolizada pela boa técnica de redação, de forma clara e concisa.
Em 1984, houve uma reforma na parte geral deste Código, que recebeu influência direta do período de redemocratização, apesar de não ter sido feito sob regime democrático consolidado.
Ora, o que podemos averiguar nesta breve análise histórica é que os códigos penais brasileiros, desde sua origem, foram feitos em momentos de ruptura específicos e situados no tempo e no espaço: o de 1830 devido à independência; o de 1890 devido à proclamação da república; o de 1940 devido ao período ditatorial; e a reforma de 1984 devido à redemocratização.
Mais especificamente, o Código de 1830 foi feito no período em que os senhores e o Império se juntaram rompendo com a Metrópole; o de 1890 foi feito no período em que o Império não tinha mais bases sustentáveis, surgindo a República; o de 1940, que é feliz pela concisão – razão pela qual sobreviveu a cinco Constituições –, foi feito no período autoritário de Vargas, que rompeu com o tradicionalismo “coronelista” republicano; o de 1984 foi feito no último ano de ditadura militar e, mesmo tendo sido num contexto de redemocratização, foi feito por acordo de lideranças no Congresso, portanto não foi propriamente democrático. Torna-se, assim, evidente um aspecto comum à feitura de todos esses códigos: o não pluralismo democrático.
Deste modo, não se observam momentos da chamada “normalidade social” durante a sua produção, evidenciando que a formulação de um código penal que esteja submetido à estrutura democrático-pluralista é algo inédito na história de nosso ordenamento jurídico.
O casamento fadado ao fracasso: reforma penal e democracia pluralista
Façamos uma breve revisão dos principais pontos abordados. Como vimos, a condição de aprovabilidade de uma lei, no seio da democracia pluralista, está ligada diretamente à capacidade desta lei de atender aos interesses dos parlamentares e dos grupos de pressão. Vimos que a lei penal se caracteriza pela precisão e pela objetividade, e que a história de sua feitura é marcada por momentos de ruptura político-institucional. Ademais, em nenhum dos contextos históricos em que foram feitos os códigos penais brasileiros houve um meio fundamentalmente democrático e pluralista de participação.
A globalização é um processo dinâmico que se caracteriza pela progressiva aproximação de laços econômicos, culturais e políticos entre os Estados-Nação. Em tempos de outrora, a soberania dos países se traduzia na capacidade de impor sua vontade em um determinado território através de sua normatividade. Esta teoria, inaugurada por Jean Bodin, trazia o corolário de que não era necessário que os Estados conjugassem suas ordenações com os padrões advindos de esferas internacionais.
Com a globalização, principalmente a partir da década de 90, notamos que os países têm de se adequar a esta nova realidade, pois a tríade Território-Lei-Estado encontra-se relativizada. Tal realidade é marcada pela intensa interação de bens, serviços, costumes e culturas, de modo que um país não pode mais deixar fechado seu ordenamento jurídico. A participação na esfera internacional passa, necessariamente, pela reestruturação nacional.
Surge, assim, a necessidade de realização de reformas. Estas reformas têm o escopo de adequar os padrões jurídicos, de modo a conjugar as esferas nacional e internacional. Traduz-se, portanto, em um verdadeiro movimento de adequação, reordenação e harmonização destas esferas. Nos debates congressistas, já está em voga a possibilidade de realização de uma reforma penal. Vejamos, pois, se esta reforma é possível, ceteris paribus, sob uma perspectiva estruturalista.
Ao retomarmos as características estruturais de precisão e concisão do tipo penal, podemos perceber uma incongruência marcante, que impossibilita a sua realização. A teoria da formulação explicitada nos mostra que as leis só são aprovadas, ou seja, elas só têm condição de aprovabilidade, se atenderem a diversos interesses, adquirindo um caráter abrangente e impreciso.
Ora, a reforma penal não poderia ser realizada de maneira concreta e eficaz em um contexto em que a lei penal seria desfigurada em nome da abrangência e da imprecisão. Em outras palavras, seria inviável formular um tipo penal num contexto cujo imperativo é oposto a este tipo: a abrangência.
Analisando a problemática estruturalmente, notamos que uma reforma penal nos moldes pluralistas seria um verdadeiro processo de abertura a interpretações e a lacunas na lei penal, e esta lei, como vimos, têm de atender aos critérios de objetividade e de clareza para garantir a segurança jurídica. As bases do princípio da legalidade estariam abaladas.
Não obstante, segundo Zaffaroni et al., “não é de estranhar que […] leis penais inexplicáveis sejam criadas, motivadas em meio a todos esses impulsos, os quais, por serem contraditórios, tornam-se irredutíveis a qualquer racionalidade, inclusive a meramente funcional”.
Estas são as razões pelas quais o casamento entre a reforma do código penal e a democracia pluralista é fadado ao fracasso.
Conclusões
Chegamos, assim, a três conclusões: primeiramente, constatamos um freio ao processo de globalização; em segundo lugar, constatamos a impossibilidade histórica da produção de uma lei penal estruturalmente perfeita; e, por último, observamos o surgimento do poder judiciário como um poder legislativo supletivo, caso seja realizada a reforma.
A globalização, muito embora seja um processo imperativo de mudanças e de reformas no intuito de adequar os padrões sociais a uma nova realidade, tem um freio. Ou seja, diante da impossibilidade constatada da reformulação das leis penais no seio de uma democracia pluralista, o processo de reformas na globalização não é aleatório, inconseqüente ou arbitrário. Para ser mais claro, os países democráticos são os que mais recebem influência deste processo, mas também são os mais impossibilitados, estruturalmente, de realizar uma reforma penal com base no critério da objetividade.
Não obstante, a história dos códigos penais no Brasil já nos indica que, em um contexto socialmente estável, não se realizou qualquer reforma deste tipo. Foram em momentos de ruptura político-institucional que estas reformas ocorreram, o que não existe atualmente. Vivemos em uma democracia consolidada há mais de 15 anos, sem qualquer ameaça de mudança radical, impossibilitando qualquer atitude desta grandeza.
Por fim, a partir do momento em que se realiza uma reforma penal nos moldes da democracia pluralista, a lei penal adquire uma abrangência que a descaracteriza com relação aos seus objetivos precisos. Deste modo, nas palavras do Ministro Nelson Jobim, o poder judiciário, ao aplicar esta lei abrangente no caso concreto, torna-se um verdadeiro “poder legislativo supletivo”. Ou seja, diante da abrangência da lei e da necessidade de dotá-la de objetividade, o judiciário a aplica de maneira casuística, já que ela é passível de diversas interpretações, propiciando a insegurança jurídica.
Cresce, portanto, a prática do controle de constitucionalidade difuso com uma margem de insegurança jurídica. O Princípio nullum crimen nulla poena sine legem certa encontrar-se-á prejudicado, na medida em que, no mesmo caso, um juiz poderia condenar ao passo que o outro não. A condenação passará pelo crivo da casualidade, e esta não cabe ao direito.
Notas
Informações Sobre o Autor
Felipe Dutra Asensi
Pesquisador em direito constitucional, instituições democráticas e processos decisórios. Também analisa os efeitos da Globalização nos diversos institutos jurídicos brasileiros.