Direito penal econômico: a globalização e as questões controvertidas envolvendo os déficits de sistematização eficiente e o caráter transnacional dos delitos econômicos

I – A questão da globalização econômica


Quando tratamos dos princípios como mandados de otimização[1], devemos lembrar que após as duas grandes guerras mundiais, determinados princípios modeladores da atividade produtiva econômica e social do Estado começaram a reestruturar o individualismo capitalista em favor da manutenção da paz social e da harmonia, como expressão da igualdade e da isonomia.


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 Neste sentido a preservação da ordem social e econômica passou a ser considerada como meio de produção de condições dignas de vida e afastamento das desigualdades sociais, integrando ou sustentando direitos fundamentais, nos Estados Democráticos de Direito[2].


 Assim, surgiu a necessidade de repressão a delitos decorrentes ou proporcionados pela própria evolução econômica dos Estados, onde a criminalidade transnacional se instalou, ou seja, reconheceu-se que a globalização proporcionou a necessidade de repressão a delitos diversos dos considerados tradicionais, exatamente por estes delitos disporem de uma regulação legal deficiente e dependente de elaboração de normas de repressão penal[3].


 De outro lado na busca da elaboração de meios e normas eficazes de repressão, a necessidade de evitar a criação de descrições lacunosas acaba por gerar um reforço nas características simbólicas de repressão, criando maior severidade para estas práticas delituosas.


 Ocorre que a globalização econômica, vista como propulsora da internacionalização, através das transações comerciais e da ampliação dos mercados, destaca-se como proposta de integração regional, basicamente guiada pela idéia de conseguir mercados com a eliminação de custos e barreiras, o que pode, de outro lado, levar delitos de ordem econômica, envolvendo a violação de barreiras alfandegárias, por exemplo, a deixarem de ser puníveis.


 Assim, de um lado é certo que existem duas realidades a serem consideradas no estudo deste tema: é possível que um direito penal globalizado, comunitário ou supranacional, acolhendo uma multiplicidade de sistemas (o anglo-saxão/Common Law, o legalista de influência francesa ou o tradicional ítalo-germânico), proporcione um resultado repressivo muito mais severo que qualquer destes sistemas em sua individualidade.


 De outro lado, não se pode desconsiderar que, em matéria econômica a ordem mundial já reconheceu a globalização como aliada e caminho de evolução, acolhendo, inclusive, características de constituição econômica em seus sistemas[4].


 A economia aparece com papel inovador no sistema jurídico constitucional dos Estados Democráticos de Direito, onde bases constitucionais do sistema econômico do Estado[5] conduzem a ordem econômica para um contexto de valores que buscam a valorização do trabalho humano, superando contradições históricas entre trabalho e capital, em busca de uma revalidação dos princípios de dignidade da pessoa humana[6], que orientam esta modalidade de Estado, através de um dever constitucional de providenciar os meios necessários a assegurar a existência digna daqueles submetidos à ordem constitucional, fazendo a economia de mercado seguir uma orientação geral do modelo estatal vigente.


 Daí toda a contextualização desta nova modalidade que exige uma sistematização própria deste novo modelo globalizado, em especial em se tratando de bens jurídicos dignos de proteção penal.


II – O próprio delito econômico


As inúmeras definições conceituais de delito econômico acabam sempre observando um significado quase que infinito que passa por uma abordagem epistemológica jurídica, sociológica ou política criminal, aliada a uma formação sócio-econômica determinada, considerada uma constante vigente em todas as sociedades historicamente conhecidas[7].


 Assim, aquelas ações que lesionam ou colocam em perigo a atividade interventora e reguladora do Estado na economia, e que contam com o envolvimento de um rol de expectativas de pessoas determinadas, com diferentes interesses, tudo isto, por vezes direcionado a uma divisão entre dano individual e dano universal, com apoio na delimitação de bens juridicamente dignos de proteção penal, acaba por constituir ou subsidiar a identificação do delito econômico[8].


 Restringindo-nos a uma consideração de natureza político-criminal, encontramos na teoria do bem jurídico a orientação conceitual.


 Assim, para considerar a ordem econômica como um bem jurídico digno de proteção é indispensável reconhece-la como um envolvimento de regulamentação normativa de produção, distribuição e consumo de bens jurídicos e serviços, reflexo das relações sociais que emergem na sociedade de mercado, e que exigem tutela estatal quando sujeitas há comportamentos que buscam lesionar o sistema jurídico, com potencial de afetar núcleos vitais do mercado, gerando dano social, envolvendo condutas já previstas no ordenamento como também aquelas que, não aprovadas socialmente, poderão vir a exigir uma tutela do Estado, inclusive de caráter penal[9].


 Aliado a esta conceituação destacamos o posicionamento de Klaus Tiedemann, quando identifica aqueles bens jurídicos supraindividuais, de caráter intermediário, que são aceitos na vida econômica e de mercado, sujeitos à lesão com a simples ação defraudadora, e que não podem ser considerados como interesses jurídicos associados ao Estado e muito menos ao sujeito individual, considerados economicamente, produzem efeitos na ordem econômica, como, por exemplo, o processamento de dados eletrônicos, a certificação eletrônica, o andamento das finanças estatais, a perturbação do mercado de capitais[10].


Tais bens também acabam abarcados pelo conceito amplo que os delitos econômicos pretendem estabelecer, em uma consideração globalizada transnacional de proteção penal.


II – A constatação dos problemas envolvendo o déficit de sistematização no direito penal econômico


A atual necessidade de sistematização de um direito penal econômico, com características próprias, acabou por ser negligenciada pelos legisladores em geral, sendo substituída por um incremento de novos tipos penais, buscando suprir lacunas de punição existentes na legislação penal, sem que realmente se estruture um sistema próprio incluindo estes novos tipos penais e o bem jurídico protegido.


 As questões técnicas características do mercado, base da economia e de conhecimento restrito ou extremamente qualificado, seja pelo estudo seja, e principalmente, pela prática, envolvendo, por exemplo, inversões de capitais e concessões de crédito, constituem negócios reconhecidamente de risco, onde qualquer participante responsável pela transação econômica somente a realiza se tiver disponível informações seguras e precisas do mercado, ciente dos riscos envolvidos.


 Nestes casos, por exemplo, a correta proteção penal deveria incidir em reforço a bens jurídicos individuais e não coletivos, pois a ordem econômica não resta alterada no âmbito social, mas tão somente com efeitos, em caso de fraude, no âmbito individual.


 O interesse coletivo, neste campo, uma economia de livre mercado, é apenas uma parte de todos os interesses individuais de todos os intervenientes no mercado, devendo uma sistematização de direito penal econômico caminhar para a proteção do cidadão na sua atividade como operador na área econômica e, de outro lado, através de uma globalidade de proteções individuais, por si próprias, as manifestações de preservação e proteção da economia de mercado surgem[11].


Evidentemente que não se distanciam ou não se excluem do âmbito de proteção de um direito penal econômico sistematizado, bens jurídicos supra-individuais, que exigem construções próprias da tipicidade de perigo, todavia, não se deve tê-los como regra ou orientação, mas como parte deste mesmo contexto, pois também constituem proteção mediata dos seres humanos, de forma individuada, na medida em que a proteção resta ligada à manutenção de condições sociais de estabilidade e preservação das próprias instituições.


Ocorre que, não se pode deixar de entender que considerações distintas devem ser feitas em relação a outro grupo de bens jurídicos econômicos, que demonstram um grau de generalidade inferior à ordem jurídica social ou global, pois restam dirigidos à proteção de interesses individuais, todavia passíveis de produzirem conseqüências danosas sociais.


Quando a inobservância de determinadas regras de funcionamento particulares da economia acabam por constituir um “mal exemplo”, que pode criar um dano social, independente do perigo de dano individual, em uma acumulação de efeitos nocivos, com produção, por exemplo, de documentos defraudatórios, como balancetes, fraudes a licitações, alterações de livros fiscais, a ponderações de valores entre o que se considera como infrações administrativas e o que se coloca como infrações penais, acabam por suscitar um direito penal econômico de classes.


Tais situações acabam por proporcionar um prejuízo para a estabilidade e a consideração de um direito penal econômico eficaz.


De outro lado, a criminalidade econômica, invariavelmente acaba por decorrer de uma criminalidade empresarial, em uma estrutura hierarquicamente organizada de postos de trabalho e funções.


Todavia a constatação desta realidade acaba por conduzir a uma contraposição às estruturas tradicionais de imputação jurídico-penal, que partem da individualização de condutas e punições.


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Ocorre que vários delitos econômicos têm caracterização especial, exigindo determinada qualificação do seu autor como, por exemplo, empresário, importador ou exportador, proprietário, restando que o poder de decisões na atividade econômica geralmente é disperso entre diferentes pessoas, o que leva a considerar que o autor de determinado delito, que exige estas características especiais, em regra geral, não possui a qualificação exigida pelo tipo, apesar de faticamente qualificado para a execução do ato.


 Isto quer dizer que, nas estruturas organizadas, o órgão executivo, atuando em posição de subordinação, normalmente somente mantém conexões fáticas e jurídicas de relevo, apenas de forma fragmentária ou parcial, atuando de forma inculpável, apesar do órgão diretivo da empresa, com atitudes coletivas criminais, não necessitar desempenhar nenhuma atividade própria, para dirigir o comportamento dos subordinados, podendo reverter-se em uma falta de responsabilidade organizada[12].


A adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica, através da responsabilidade de seus representantes, que vem sendo utilizada para estas hipóteses, todavia esvaziada de fundamentação, diante do já destacado desrespeito ao princípio da individualização da pena, que acaba por proporcionar a imposição de pena em razão de uma culpa alheia, restaria reforçada ou justificada, com propostas de atribuição da posição de garantidor aos órgãos diretivos da empresa, com conseqüente responsabilização em tipo especialmente desenvolvido para isto, em uma modalidade de delito de omissão própria, desde que constatado que se houvessem controles adequados por parte destes órgãos diretivos, restaria extremamente dificultada a atividade ilícita de seus subordinados.


Ora, ainda resta o problema da aplicação da pena, nestas hipóteses de responsabilização da pessoa jurídica, de forma difusa ou coletiva, quando, em geral, restam aplicadas penas de multa que, nos casos de sociedades anônimas, por exemplo, poderiam alcançar uma diminuição das expectativas de benefícios aos acionistas, com afetação material em suas vidas, ainda que estes, nem jurídico nem faticamente, tenham qualquer responsabilidade ou influência na direção das questões econômicas da sociedade[13].


 Assim, a orientação que a matéria merece receber, no sentido de atender a uma sistemática de direito penal econômico eficaz, nestas hipóteses, passa pela exploração criativa de sanções aos entes coletivos, bem como aos entes individuais, seguindo-se de cálculos de utilidade e custo para a sociedade, absorvendo opções como intervenção nos órgãos diretivos da empresa, em uma forma alterada de “síndico”, indicado pelo poder público, restrições a participações em lucros, regulação de atividades, limitação de atuação no mercado, dentre outras que, ainda que constituídas de um caráter fragmentário e até acessório, preencheriam um campo de “medidas de segurança”, capazes de subsidiar eficácia na punição e garantir uma prevenção especial reintegradora para a empresa e geral para a sociedade.


 Tudo isto, evidentemente, sem discutir a questão, mas partindo da posição Americana e Inglesa e, agora, também, da tendência Européia, do reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica.


 Em fim, esta sistematização exigida para a concretização de uma eficácia pretendida, neste novo modelo globalizado, exige respostas uniformes e harmônicas, com a finalidade de afastar o contexto de “paraísos jurídico-penais”[14].


 Entretanto, apesar da sistematização defendida, bem como das soluções apresentadas ou, ao menos, discutidas, mesmo um processo conjunto de harmonização legislativa, sozinho, não garante a homogeneidade de respostas penais, enfrentando, ainda, a problemática das restrições constitucionais.


 Tratados de unificação setorial do Direito Penal, esbarram na soberania e na impossibilidade de abordarem sua aplicação uniforme nos Estados, visto que no campo do ius puniendi, as propostas supranacionais esbarram nos “déficits democráticos” das instituições que nascem com o processo de integração regional[15].


 O que resta evidente é que qualquer modelo de sistematização a ser construído enfrenta obstáculos concretos, em especial quando orientado por pressupostos valorativos de referência, diga-se, buscando uma homogeneização de “parte geral”, centrados especialmente na insegurança de bases fundadas em considerações valorativas genéricas e de menor cientificidade, além da constatação de que um sistema orientado pelo caráter teleológico estaria construído sobre orientações constitucionais de determinada nação, opondo-se frontalmente a uma dogmática voltada para o caráter supranacional, que busca acolher culturas diferenciadas[16].


III – A criminalidade organizada, o caráter transnacional dos delitos econômicos e a integração regional.


O problema envolvendo os delitos de ordem econômica indiscutivelmente está ligado à criminalidade organizada, que supera fronteiras e que exige medidas transnacionais para sua repressão, como já destacado.


 Sabemos que o crime organizado é um fenômeno mundial, que possui raízes, inclusive, em instituições públicas e privadas, despontando como um dos maiores problemas da sociedade globalizada contemporânea e um dos elementos desencadeadores da crise do Direito Penal[17].


Apesar desta realidade mundial, a atuação no combate às organizações criminosas acaba por ser diferenciada em cada país, adotando sistemas e modelos legais muitas vezes adaptados de outras nações, mas contendo características próprias únicas.


No Brasil, por exemplo, a Lei 9.034, de 03 de maio de 1.995, que cuida de mecanismos de repressão e combate ao Crime Organizado, introduziu inovações criticadas no meio jurídico.


 Apesar de sua característica inovadora, esta lei de influência italiana, foi objeto de reparos já em 2001, pela Lei n° 10.217, de 12 de abril, estando, inclusive, sujeita a eventual substituição, visto que, dentre outros projetos, estaria no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 3.713/97, que busca uma melhor definição das Organizações Criminosas que se pretende combater, bem como dos meios adequados para tanto.


O crime organizado tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base em estratégia global e possui estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social; tem grande força de expansão compreendendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia.


 Onde apresenta um intrincado esquema de conexões com outros grupos delinqüenciais e uma rede subterrânea de ligações com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; usando de disfarces e simulações, é, em resumo, capaz de fragilizar os Poderes do próprio Estado.


  Um dos pontos que mais caracteriza o fenômeno da criminalidade organizada é a acumulação de poder econômico de seus integrantes, pois, referido, geralmente as organizações atuam no vácuo de alguma proibição estatal, o que lhes possibilita auferir extraordinários lucros5 .


 Outra conseqüência que decorre da acumulação do poder econômico é a necessidade de “legalizar” o lucro obtido ilicitamente, o que dá margem às mais variadas e criativas formas de “lavagem” de dinheiro, para que possa retornar licitamente ao mercado financeiro.


O fenômeno da criminalidade organizada também se caracteriza pelas conexões locais e internacionais, assim como pela divisão de territórios para a atuação. No cenário internacional, por não estarem submetidas às rígidas regras de soberania, as organizações criminosas não encontraram grandes obstáculos para se integrarem, notadamente após o desenvolvimento do processo de globalização da economia6.


 O crime organizado representa nos dias atuais, o enriquecimento ilícito, onde surge a lavagem de dinheiro, uma maneira ilícita de legalizar o produto final do crime, o Brasil recentemente vem adotando uma postura mais agressiva contra a “lavagem” de capitais. O Governo Federal pensa na reestruturação de alguns de seus órgãos e toma medidas que atingirão a população, como a obrigação imposta aos bancos de identificar depositantes que realizem operações com valores altos, a regulamentação de saques na boca dos caixas e até mesmo a decretação de bloqueio administrativo de ativos financeiros de pessoas sob investigação.


 No Brasil alguns diplomas legais foram criados para combater as práticas das organizações criminosas. A Lei nº 7.492/86, chamada de Lei dos Crimes de Colarinho Branco; a Lei 9.034/95, de combate ao crime organizado; a Lei 9.613/98, a qual tipifica a lavagem de dinheiro e outros mais diplomas legais não visam à garantia de uma ação preventiva como resposta ao apelo da sociedade. Depreende-se que a resposta dada, em relação à criminalidade no Brasil, é eminentemente repressiva. Muitas vezes confundindo esse apelo, o governo crê no estabelecimento tão só de medidas retributivas como remédio à situação calamitosa provocada pelas organizações criminosas.


 Enfim, o controle do crime organizado não pode deixar de levar em conta tanto a prevenção como a repressão, onde a repressão deve ser perene, com os mecanismos de atuação sociais interligados a fim de que a resposta seja integral e eficiente. Deve haver o surgimento de políticas sociais preocupadas com a prevenção primária da criminalidade – através do oferecimento amplo de educação, saúde, moradia, sociabilização etc. – e a repressão ao crime deve se fazer presente não apenas para refrear os anseios sociais e sim para garantir de forma concreta a segurança da sociedade.


 Especificamente quanto à criminalidade econômica, uma das propostas que passa por um pensamento garantista, exige o reconhecimento de um modelo, ainda que pragmático, mas adequado de política criminal dirigida à proteção de bens comuns, em um processo associativo de integração regional.


 Tal processo associativo, derivado das pretensões da Comunidade Européia, passando pelos ideais do Mercosul, especificamente quanto a uma estrutura transnacional de proteção penal, poderia ser considerado segundo quatro aspectos básicos[18].


 Primeiramente, no âmbito da política criminal, a criação de um sistema integrado não só no âmbito penal, mas também e necessariamente no âmbito processual penal, com uma unificação do modelo de execução de penas, criação de forças policiais e tribunais próprios, legalmente previstos, legitimamente instituídos, sem uma constituição de exceção[19].


 Em segundo lugar, destaca-se com a eleição dos bens jurídicos de caráter comum/comunitários, dignos de proteção penal, como, por exemplo, o ambiente, a ordem econômica e as instituições públicas. Com a eleição destes bens jurídicos de caráter comum, parte-se para a criação de um Estatuto Penal comunitário[20], que tutele e tipifique condutas que devam, de maneira uniforme, ser consideradas como dirigidas à lesão destes bens jurídicos, bem como os princípios orientadores da atividade penal.


 Por terceiro impõe-se o necessário reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, ainda que considerada a ação institucional como um conceito qualitativamente diferenciado do utilizado no sistema penal tradicional[21], como instrumento eficaz de controle de delitos econômicos, verdadeiro remédio do direito comunitário, decorrente de um esquema reestruturado de teoria do delito.


 Em fim, para a efetividade do sistema comum e integrado de proteção jurídico penal, necessária uma adequação das legislações regionais, no tocante àqueles bens jurídicos comuns, ora eleitos como dignos desta proteção penal diferenciada, em uma verdadeira sistematização da proteção jurídica penal, como, por exemplo, as propostas de federalização da legislação penal, que encontram inúmeros defensores no sistema federativo estrito dos Estados Unidos da América.


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IV – Questões dogmáticas, princípios e a matéria probatória.


Certo, também, é que os fenômenos da globalização econômica e da integração supranacional acabam por exercer uma dupla influência sobre a delinqüência.


 De um lado, acabam, como já destacado, por conduzir determinadas condutas, tradicionalmente delitivas, a deixarem de sê-las, sob pena de constituírem obstáculos à integração econômica regional.


 De outro lado delitos clássicos assumem novas modalidades, onde as fraudes comuns acabam por atingir não mais os interesses financeiros e a ordem econômica de determinado Estado, mas acabam por alcançar o interesse da nova comunidade.


 Toda esta sistemática passa, indubitavelmente, pela problemática probatória.


 As relações de probabilidade e de coerência, meramente normativas, acabam por prevalecer neste campo, em detrimento da própria imputação objetiva e suas relações de necessidade segundo as leis físico-naturais, ganhando espaço a inversão do ônus da prova em matéria penal, como expressão do abandono de uma orientação garantista[22].


 No campo da responsabilidade empresarial, já ora discutida, o déficit de sistematização conduz à adoção da responsabilidade em comissão por omissão, não mais como uma alternativa restrita a hipóteses específicas, em relação à regra da comissão ativa, mas a uma regra fundada no dever de vigilância, em uma adoção de figuras mais flexíveis, com a adoção da responsabilidade criminal por ato de terceiro, decorrente da mera demonstração teórica do dever de vigilância[23].


 Trilha-se um caminho que pode alcançar a desconsideração da já difícil distinção entre dolo eventual e culpa consciente, para a adoção de um contexto de conduta descuidada, mesmo que não destinada a um resultado danoso, mas que seria indiferente a ele, em uma atitude de indiferença mais intensa que a negligência, sem que se exija a intenção de causar o dano a outrem. A aceitação uniforme de um modelo mais amplo, para uma criminalização mais flexível[24].


  O abandono da distinção entre autoria e participação, como nas hipóteses de lavagem de capitais, onde a responsabilidade pelo produto acaba por contemplar excessos para a responsabilidade criminal mais ampla[25].


 No campo processual penal, passa-se para a idéia de que a acusação somente deve provar a tipicidade, desconsiderando-se a antijuridicidade ou a culpabilidade, pois as causas de exclusão de culpabilidade e antijuridicidade já estão a cargo de quem as alega, restando assim sua existência como uma presunção iuris tantum.


 Como o paradigma do direito penal no âmbito da globalização é o delito econômico organizado, convencional ou empresarial, a tendência a assinalarem-se menos garantias, ainda que nas infrações de menor gravidade, ou ainda com um maior potencial de perigo, acabam por conduzir, também a um conflito no campo instrumental ou processual penal.


 Os sistemas orientados pela legalidade/obrigatoriedade, orientados pelo princípio da busca da “verdade real”, acabam colidindo com os sistemas orientados pelos critérios de oportunidade e consenso, tendo para estes últimos no caso de adoção de uma sistemática mais eficaz no combate a criminalidade econômica organizada.


 Quanto à culpabilidade, reiteramos o já sedimentado posicionamento no sentido da adoção da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, por fatos cometidos por indivíduos integrados às suas estruturas, e a responsabilidade por fato realizado por terceiro, esta última, indiscutivelmente violadora da doutrina atual da culpabilidade[26].


 Temos ainda o comprometimento do princípio da proporcionalidade, com as severas sanções de condutas imprudentes em face de bens jurídicos supra-individuais, com uma adoção sistêmica de delitos de perigo, em especial perigo abstrato, como forma de imputação em ações de comissão ativa e de comissão por omissão[27].


V – Conclusões


Os critérios de modificação da aplicação da lei no espaço, decorrentes da realidade da globalização econômica, suscitaram importante crise ao princípio da territorialidade, em busca de uma flexibilização favorável à expansão de princípios de proteção e segurança jurídica, em especial justificada pelos mandatos de soberania que os Estados exercem, em especial quando acolhem a possibilidade de processar e julgar condutas lesivas a interesses nacionais, ainda que praticadas fora de seu território e por agentes estrangeiros[28], bem como a questão da jurisdição universal, orientada pela proteção a bens e direitos universais, ainda que estejam afetando à comunidade internacional mais diretamente que à própria nação, independentemente do local de cometimento do delito e da nacionalidade de seus supostos autores[29], com a adoção da extraterritorialidade como princípio penal que alcança efeitos processuais penais, ainda que executados dentro do âmbito do território nacional, côo é o caso do sistema brasileiro.


 De outro lado, a sociedade de consumo, adaptando-se ao desenvolvimento técnico-científico, atribuiu valor significativo aos bens jurídicos de caráter econômico, em uma recomposição social dirigida, no campo da criminalidade, às organizações criminosas transnacionais, estruturadas segundo uma hierarquia funcional, quase, quando não em sua totalidade, empresarial, diretamente dirigida à previsões orçamentárias, planejamento estratégico e regulamentação de limites territoriais de atuação, rivalizando-se com o próprio Estado[30].


 Assim, as conseqüências desta reflexão teórica a respeito da globalização econômica e da expansão dos delitos de natureza econômica, de forma organizada e exponencial, deve ser considerada segundo um contexto de “ponto de partida” para a conscientização da necessidade sistêmica de uma regulação, segundo critérios e valorações orientadas pelas conseqüências obtidas e não pela simples objetivo de repressão.


 Soluções demasiadamente genéricas, não sistêmicas conduzem a uma omissão estrutural ou à obscuridade de interpretações, sem uma orientação otimizadora básica de princípios.


 Soluções demasiadamente específicas, não sistêmicas, conduzem a uma ineficácia na proteção jurídica penal.


 É na sistematização e no equilíbrio consensual que encontraremos um modelo satisfatório, que respeite o caráter geral e fundamental da problemática envolvendo delitos econômicos supranacionais, perpetrados por organizações criminosas.


 Atentarmos para o fato de que uma tecnocracia legislativa, decorrente de um caráter de “direito emergencial”, buscando a satisfação de necessidades da política diária, muito facilmente pode acabar por atender a uma tentação material, em busca de uma ilusória eficiência decorrente de um Direito Penal meramente simbólico.


 


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Notas:

[1] ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, princípios jurídicos y razón práctica, Buenos Aires: Doxa, 1988, p. 143 e ss.

[2] SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à Justiça Penal e  Estado Democrático de Direito, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 5 e ss.

[3] SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal – aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 77.

[4] PETERMANN, Rolf. Conceito jurídico de constituição econômica. Dissertação de mestrado, Biblioteca de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: Editoração do autor, 1990.

[5] Artigos 170 a 192, da Constituição da República Federativa do Brasil.

[6] Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.

[7] MARTOS NUNES, Juan Antonio. Derecho penal econômico, Madrid: Montecorvo, 1987, pp. 133 e ss.

[8] HERRERO, César. Los delitos econômicos. Perspectiva jurídica y criminológica, Ministerio del Interior, Secretaria General Técnica, Madrid, 1991, pp. 272 e ss., e 317 e ss.

[9] BAIGÚN, David. “Integración regional y delitos econômicos”. Teorías Actuales em el Derecho Penal – 75º Aniversario del Código Penal. Buenos Ayres: Ad-Hoc S.R.L., 1998, pp. 483 e ss.

[10] TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho penal econômico (Comunitário, español, alemán). Barcelona: PPU, 1993, pp. 34 e ss.

[11] SCHÜNEMANN, Bernd. “Ofrece la reforma del Derecho penal económico alemán um modelo o um escarmiento?”, Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milênio. Madrid: Editorial Tecnos, 2002, pp. 185 e ss.

[12] SCHÜNEMANN, Bernd. “Ofrece la reforma del Derecho penal económico alemán um modelo o um escarmiento?”, Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milênio. Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 194.

[13] SCHÜNEMANN, Bernd. “Ofrece la reforma del Derecho penal económico alemán um modelo o um escarmiento?”, Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milênio. Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 198.

[14] SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal – aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 81.

[15] Idem, p. 83 e nota do tradutor (nt2), quando aborda a questão do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional e das dificuldades em sua implantação, ligadas à competência material da Corte, que levou a afastar-se da competência por crimes transnacionais ou fronteiriços.

[16] Idem, p. 89.

[17] SILVA, Marco Antonio Marques. Acesso à Justiça Penal e  Estado Democrático de Direito, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 135 e ss.

5 Na criminalidade organizada a relação capital/lucro, como afirma José Faria Costa, é quase infinitamente favorável no sentido do lucro, pois de um capital relativamente pequeno há a forte expectativa de um lucro fabulosamente alto. O investimento concentrado no crime organizado, como em tantos outros campos, faz nascer o ciclo vicioso de produção de capital, pois o capital que gera o lucro incomensurável, por seu turno, afirma-se como capital incomensurável que vai determinar um lucro ainda maior. E assim sucessivamente (O fenômeno da globalização e o Direito Penal Econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 34, p. 11, 2001). 

6 Numa primeira aproximação, José Faria Costa define globalização como “mecanismo social hiperdinâmico que torna globais os espaços econômicos, culturais e informativos que antes se estruturavam, primacialmente, a um nível nacional” (O fenômeno da globalização e o Direito Penal Econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Op. Cit. p. 18).

[18] BAIGÚN, David. “Integración regonal e delitos econômicos”, Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milênio. Madrid: Editorial Tecnos, 2002, pp. 514 e ss.

[19] A respeito do tema: BINDER, Alberto. Política criminal: de la formulación a la práxis, Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997.

[20] BAIGÚN, David. “Integración regonal e delitos econômicos”, Temas actuales y permanentes del Derecho penal después del milênio. Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 515.

[21] Idem. “Naturaleza de la acción institucional em el sistema de la doble imputación. Responsabvilidad penal de lãs personas jurídicas”, De las penas, homenagem ao professor Isidora Benedetti, Buenos Aires, Depalma, 1997.

[22] SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal – aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 90.

[23] Idem, p. 91 e nota 59.

[24] Considerações sobre esta questão e o instituto da recklessness, em especial no Common Law: HENDLER, Edmundo S. Derecho penal e procesal penal de los Estados Unidos, Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996, p. 56 e ss.

[25] HASSEMER, Winfried, MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad  por el producto em derecho penal, Valencia: Tirant lo blanch, 1995, pp. 202/203.

[26] SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do Direito Penal – aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 95 e notas 66 e 67.

[27] Idem, p. 96; SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

[28] Artigo 7º, do Código Penal brasileiro.

[29] Idem.

[30] SCARTEZZINI, Cid Flaquer. “A situação do Brasil quanto à lavagem de dinheiro sujo”, Direito criminal contemporâneo – Estudos em homenagem ao Ministro Francisco de Assis Toledo, coord. Luiz Flávio Borges D´Urso, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 81/104.


Informações Sobre o Autor

Claudio José Langroiva Pereira

Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Processual Penal, Doutor em Direito Penal. Autor do Livro “Princípio da Oportunidade e Justiça Penal Negociada”


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