Do crime de redução à condição análoga à de escravo na legislação, doutrina e jurisprudência

Resumo: O presente artigo analisa o crime de redução à condição análoga à de escravo à luz da legislação, doutrina e jurisprudência.


Palavras-chave: crime – escravo – legislação – doutrina – jurisprudência


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Abstract: The present article analyses the crime of slavery in respect to law, doctrine and jurisprudence.


Keyword: slavery – crime – law – doctrine – jurisprudence


Sumário: 1. Introdução; 2. Dos antecedentes históricos; 3. Da evolução histórico-normativa no direito brasileiro; 4. Do conceito jurídico; 5. Da objetividade jurídica; 6. Do bem jurídico tutelado; 7. Do sujeito ativo; 8. Do sujeito passivo; 9. Do tipo objetivo; 10. Do tipo subjetivo; 11. Da consumação; 12. Das causas de aumento de pena; Bibliografia


“Enquanto existe, a escravidão tem em si todas as barbaridades possíveis. Ela só pode ser administrada com brandura relativa quando os escravos obedecem cegamente e sujeitam-se a tudo; a menor reflexão destes, porém, desperta em toda a sua ferocidade o monstro adormecido. É que a escravidão só pode existir pelo terror absoluto infundido na alma do homem..”[i] Trecho de O Abolicionista, de Joaquim Nabuco.


1. INTRODUÇÃO


Segundo a Organização Internacional do Trabalho, mais de 12 milhões de pessoas no redor do mundo estão submetidas a trabalho forçado. No Brasil, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, 25 mil trabalhadores laboram em regime de trabalho escravo[ii].


O presente artigo analisa o crime de redução à condição análoga à de escravo à luz da legislação, doutrina e jurisprudência.


2. DOS ANTECEDENTES HISTÓRICOS


Na idade antiga, a Lex Fabia de plagiariis romana punia as condutas de submeter à escravidão o homem livre e de comprar, vender ou assenhorear-se do escravo alheio, designando tal comportamento como plagium[iii],[iv].


O comportamento sancionado era a conduta daquele que, ilegitimamente, fazia o homem livre perder o seu status libertatis ou submetia o escravo alheio a seu senhorio[v].


Não obstante o atual crime de redução à condição análoga à de escravo seja denominado de plagium, no Direito Romano a escravidão era uma instituição legalmente admitida, tutelada pelo direito de domínio, e o que se punia era a conduta irregular[vi].


Na Idade Média, o conceito de plágio abrangia não somente o furto de escravos[vii] (servos[viii]) como também o rapto de homens ou crianças non libinis causa[ix].


Ainda neste período coube aos práticos distinguir as três espécies de plágio: o político (alistamento no exército de outra nação), o literário (usurpação de obra alheia) e o civil (apossamento de homem livre ou servo, com fim de lucro)[x].


3. DA EVOLUÇÃO HISTÓRICO-NORMATIVA NO DIREITO BRASILEIRO


No Brasil, o Código Criminal do Império de 1830, editado sob a égide do regime escravocrata, sancionava apenas a conduta de sujeitar a pessoa livre à escravidão[xi].


O Código Penal de 1890, mesmo editado após a extinção da escravidão como condição de direito, em 13 de maio de 1888, silenciou-se sobre o delito[xii],[xiii].


O Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), prevê a figura delitiva de redução à condição análoga à de escravo, não obstante diversas legislações alienígenas contemporâneas não tenham previsão expressa sob o argumento, segundo a doutrina, da ausência de fatos de tal natureza em povos civilizados[xiv].


O crime de redução à condição análoga à de escravo está inserido no artigo 149, do Título I do Código Penal, “Dos crimes contra a pessoa”, no Capítulo VI, “Crimes contra a liberdade individual”, Seção I, “Dos crimes contra a liberdade pessoal”.


No mesmo Título estão, ex vi, o Capítulo dos crimes contra a vida e contra a honra; no mesmo Capítulo, os crimes contra a inviolabilidade do domicílio, contra a inviolabilidade de correspondência e contra a inviolabilidade dos segredos; e na mesma Seção, os crimes de constrangimento ilegal, de ameaça e de sequestro e cárcere privado.


Antes da alteração pela Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, a redação do artigo 149 era a seguinte:


“Redução a condição análoga à de escravo


Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo:


Pena – reclusão, de dois a oito anos.”


Com a Lei 10.803/2003, o dispositivo passou a ter a seguinte redação:


“Redução a condição análoga à de escravo


Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:


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Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.


§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:


I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;


II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.


§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:


I – contra criança ou adolescente;


II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.”


4. DO CONCEITO JURÍDICO


O crime de redução à condição análoga à de escravo consiste na submissão total, absoluta, de uma pessoa ao domínio de outra[xv]. Prevalece na doutrina que não é necessária a abductio, mas tão-somente o estado de total submissão. Doutrina minoritária defende que é suficiente a relativa liberdade de locomoção, não a submissão total[xvi].


A expressão “condição análoga à de escravo” não visa a uma situação jurídica[xvii]; refere-se a um estado de fato em que a pessoa perde a própria personalidade; é tratada como simples coisa, privada de direitos fundamentais mínimos[xviii]. A liberdade humana fica integralmente anulada, diante da submissão da pessoa a um senhor, reduzida à condição de coisa (res)[xix].


Este crime difere do sequestro ou cárcere privado porque o bem jurídico é atingido integralmente, e não apenas em determinado aspecto, verbi gratia, a liberdade de locomoção[xx].


Todavia, a configuração do tipo não exige que a vítima permaneça enclausurada ou seja transportada de um local a outro (de loco a locum)[xxi]. O domínio configurador do delito não é apenas físico, corporal, mas também psíquico, moral[xxii].


O artigo IV da Déclaration des Droits de l’Homme de 1789 define a liberdade como condição negativa e limitadora: “a liberdade consiste em fazer tudo o que não prejudique a outrem”[xxiii].


A Convenção Americana sobre Direito Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) dispõe no artigo 6:1: “Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as formas.”[xxiv]


Vê-se, pois, que também a dignidade é objeto de proteção haja vista que a pessoa não pode ser submetida a tratamento desumano ou degradante, nos termos do artigo 5o, inciso III, da CR/88[xxv].


Além disso, a repressão ao tráfico de pessoas para o fim de exploração por meio de trabalhos forçados, escravatura e práticas similares é objeto do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova Iorque em 25/05/2000 e promulgado no Brasil pelo Decreto 5.017, de 12/03/2004[xxvi].


5. DA OBJETIVIDADE JURÍDICA


Anteriormente à alteração pela Lei 10.803/2003O delito era crime de forma livre, de tipo aberto, ou seja, praticado por qualquer meio de execução[xxvii], geralmente com uso de fraude, retenção de salários, ameaça ou violência[xxviii].


Ainda na vigência da antiga redação, não se exigia uma “verdadeira escravidão”, nos moldes praticados na Roma antiga, mas “a completa submissão do ofendido ao agente”[xxix], que é justamente a ideia fundamental do instituto jurídico da escravidão[xxx].


À época da antiga redação, parte da doutrina afirmava ser rara a configuração do delito na prática forense, devido ao laconismo do dispositivo[xxxi].


Todavia, a alteração legislativa transformou o crime em forma vinculada, ou seja, a tipificação depende do enquadramento da conduta do agente em uma das hipóteses descritas na lei, em numerus clausus, de forma taxativa[xxxii].


As alterações introduzidas no art. 149, do CP, pela Lei 10.803/2003 são decorrentes do Acordo de Solução Amistosa assinado entre o Brasil e a Comissão Pastoral da Terra, Center for Justice and International Law-Brasil e Human Rights Watch.


Nesse acordo, o Estado brasileiro se comprometeu a melhorar a legislação penal no tocante ao delito de redução à condição análoga à de escravo com o objetivo de evitar a impunidade[xxxiii].


Assim, a Lei 10.803/2003 especificou o modus operandi da prática de reduzir a vítima à condição análoga à de escravo, transmutando-o em crime de forma vinculada[xxxiv].


Entre os comportamentos delitivos que caracterizam a figura típica, cumpre mencionar aqueles apresentados na Carta de Belém, síntese do Seminário Internacional sobre “Trabalho Forçado – Realidade a ser combatida”, realizado em Belém do Pará, in verbis[xxxv]:


“a) utilização de trabalhadores, com intermediação de mão-de-obra dos chamados “gatos” e por cooperativas fraudulentas;


b) utilização de trabalhadores aliciados em outros municípios ou estados, pelos próprios tomadores de serviços ou por interposta pessoa, com promessas enganosas e não cumpridas;


c) servidão de trabalhadores por dívida, com cerceamento da liberdade de ir e vir e o uso de coação moral ou física, para mantê-los no trabalho;


d) submissão de trabalhadores a condições precárias de trabalho, pela falta ou inadequado fornecimento de alimentação sadia e farta e de água potável;


e) fornecimento aos trabalhadores de alojamentos sem condições de habitabilidade e á míngua de instalações sanitárias adequadas;


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f) falta de fornecimento gratuito aos trabalhadores de instrumentos para prestação de serviços, equipamentos, de proteção individual e materiais de primeiros socorros;


g) não utilização de transporte seguro e adequado aos trabalhadores;


h) não-cumprimento da legislação trabalhista, desde o registro do contrato na CTPS, passando pela falta de cumprimento das normas de proteção à saúde e segurança dos trabalhadores, até a ausência de pagamento da remuneração a eles devidas;


i) coação, ou, no mínimo, indução de trabalhadores no sentido de que se utilizem de armazéns ou serviços mantidos pelos empregadores ou seus prepostos;


j) aliciamento de mão-de-obra feminina para fins de exploração sexual, tolhendo-lhes a liberdade de ir e vir.”


Outrossim, segundo a doutrina, entre as condutas caracterizadoras do delito no meio rural estão as seguintes: “1. falta de pagamento de salários; 2. alojamento em condições subumanas (e.g., barracos de lona); 3. inexistência de acomodações indevassáveis para homens, mulheres e crianças (convivência promíscua); 4. inexistência de instalações sanitárias adequadas, com precárias condições de saúde e higiene (e.g., falta de material de primeiros socorros ou de fossas sépticas); 5. falta de água potável e alimentação parca; 6. aliciamento de trabalhadores de uma para outra localidade do território nacional (que, isoladamente, configura o crime do artigo 207, caput, do CP, com pena cominada de um a três anos e multa); 7. aliciamento de trabalhadores de fora para dentro ou de dentro para fora do país (e.g., bolivianos e outros hispano-americanos mantidos em condições análogas à de escravo em fábricas têxteis clandestinas nos grandes centros urbanos); 8. truck-system (os populares “barracões”, que têm representado o renascimento da servidão por dívidas); 9. inexistência de refeitório adequado para os trabalhadores e/ou de cozinha adequada para o preparo de alimentos; 10. ausência de equipamentos de proteção individual e/ou coletiva; 11. meio ambiente de trabalho nocivo (selva, chão batido, animais peçonhentos, umidade etc.); 12. coação física ou moral (vis relativa ou absoluta); 13. cerceamento da liberdade ambulatória (o direito de ir e vir é limitado pelas distâncias, pela precariedade de acesso ou pela vigilância pessoal); 14. falta de assistência média; 15. vigilância armada e/ou presença de armas na fazenda; 16. ausência de registro em CTPS.”[xxxvi]


6. DO BEM JURÍDICO TUTELADO


Em linha de princípio, considerando a posição topográfica no Código Penal (entre os crimes contra a liberdade pessoal e não entre os crimes contra a organização do trabalho), a doutrina defende que a objetividade jurídica tutelada é o status libertatis (liberdade individual), mais especificamente a liberdade pessoal.


Reforça essa posição a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, in verbis:


“No artigo 149, é prevista uma entidade criminal ignorada do Código vigente: o fato de reduzir alguém, por qualquer meio, à condição análoga à de escravo, isto é, suprimir-lhe, de fato, o status libertatis, sujeitando-o o agente ao seu completo e discricionário poder. É o crime que os antigos chamavam plagium. Não é desconhecida a sua prática entre nós, notadamente em certos pontos remotos do nosso hinterland.”


Conforme visto alhures, a concepção contemporânea do status libertatis abrange a liberdade no seu aspecto ético-social, ou seja, a própria dignidade do indivíduo, o amor-próprio, o orgulho pessoal[xxxvii].


O status libertatis do ser humano é tão-valioso que, mesmo na seara civil, é objeto de proteção, como demonstra o artigo 598, do Código Civil de 2002 (antigo 1.220 do Código Civil de 1916) que limitou a locação de serviços por 4 (quatro) anos[xxxviii].


Contudo, outra posição sustenta que o bem jurídico objeto de tutela é a organização do trabalho porque a proteção à liberdade pessoal é apenas mediata.


A questão não é meramente acadêmica em virtude do que dispõe o artigo 109, VI, da CR/88:


“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (…) omissis


VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;”


Portanto, a determinação do bem jurídico tutelado, se a status libertatis ou a organização do trabalho, repercute na competência da Justiça Federal para processamento e julgamentos do feitos.


A jurisprudência dos Tribunais Superiores, anteriormente pacífica a respeito do assunto, tem sido objeto de revisão.


O Egrégio Supremo Tribunal Federal, no RE 90.042/SP, rel. Min. Moreira Alves, inicialmente firmara a competência da Justiça Comum Estadual, nos seguintes termos:


“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 125, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.


A expressão “crimes contra a organização do trabalho”, utilizada no referido texto constitucional, não abarca o delito praticado pelo empregador que, fraudulentamente, viola direito trabalhista de determinado empregado. Competência da Justiça Estadual.


Em face do artigo 125, VI, da Constituição Federal, são da competência da Justiça Federal apenas os crimes – e aí, vem a definição do alcance da Carta – “que ofendem o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores”.


Em consequência, o extinto Tribunal Federal de Recursos editara a Súmula 115 com o seguinte teor:


“Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente”.


Todavia, no julgamento do RE 398.041/PA, rel. Min. Joaquim Barbosa, o STF, por maioria, alterou o entendimento, nos seguintes termos:


“EMENTA: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO Á CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 398041, rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/2006, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-09 PP-02007 RTJ VOL-00209-02 PP-00869)


Durante os debates no julgamento acima, surgiram três posições entre os ministros da Corte Suprema. A vencedora: o bem jurídico é a organização do trabalho e a competência é da Justiça Federal; a vencida: o bem jurídico tutelado é a liberdade individual e a competência é da Justiça Comum Estadual; uma terceira, que acompanhou a vencedora pelo resultado (competência da Justiça Federal) mas sem alterar a jurisprudência firmada no RE 90.042/SP e na Súmula 115 do TFR.


Acórdãos recentes do Colendo STJ têm acompanhado o entendimento de que o delito malfere a organização do trabalho, senão vejamos:


“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DIREITO PENAL. CRIME DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CP. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Compete à Justiça Federal o processamento e julgamento dos processos, cujo delito é o previsto no art. 149 do Código Penal, que se enquadra na categoria dos crimes contra a Organização do Trabalho. 2. Crime de redução a condição análoga à de escravo fere a dignidade da pessoa humana, bem como colocam em risco a manutenção da Previdência Social e as instituições trabalhistas, evidenciando a ocorrência de prejuízo a bens, serviços ou interesses da União, conforme as hipóteses previstas no art. 109 da CF. 3. Precedentes do STF e do STJ. 4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 9ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, o suscitado.” (CC 63.320/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/02/2009, DJe 03/03/2009) (destaquei)


Além disso, o Superior Tribunal de Justiça tem afirmado a competência da Justiça Federal também com fundamento no inciso V-A do artigo 109, da CR/88, que assim enuncia:


“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (…) omissis


V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (…) omissis


§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)


Verbi gratia, são os seguintes julgados:


“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA E AO SISTEMA PROTETIVO DE ORGANIZAÇÃO AO TRABALHO. ART. 109, V-A E VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.


1. O delito de redução a condição análoga à de escravo está inserido nos crimes contra a liberdade pessoal. Contudo, o ilícito não suprime somente o bem jurídico numa perspectiva individual.


2. A conduta ilícita atinge frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, violando valores basilares ao homem, e ofende todo um sistema de organização do trabalho, bem como as instituições e órgãos que lhe asseguram, que buscam estender o alcance do direito ao labor a todos os trabalhadores, inexistindo, pois, viés de afetação particularizada, mas sim, verdadeiro empreendimento de depauperação humana. Artigo 109, V-A e VI, da Constituição Federal.


3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 11. ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais/MG, ora suscitante.” (CC 113.428/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/12/2010, DJe 01/02/2011)


“COMPETÊNCIA. TRABALHO ESCRAVO.


Nos crimes de redução à condição análoga à de escravo e frustração de direito assegurado por lei trabalhista (arts. 149 e 203 do CP), é da Justiça Federal a competência, quando eles se referem a determinado grupo de trabalhadores (art. 109, V-A e VI, da CF/1988; art. 10, VII, da Lei n. 5.010/1966, e Título IV da Parte Especial do CP). Precedentes citados do STF: RE 398.041-PA, DJ 19/12/2008; RE 508.717-PA, DJ 11/4/2007; RE 499.143-PA, DJ 1º/2/2007; do STJ: HC 26.832-TO, DJ 21/2/2005, e HC 18.242-RJ, DJ 25/6/2007. CC 95.707-TO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 11/2/2009. Informativo 383.”[xxxix]


Mais recentemente há…


“Crime de Redução a Condição Análoga à de Escravo e Competência – 1


O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário, afetado ao Pleno pela 2ª Turma, interposto contra acórdão da 3ª Turma do TRF da 1ª Região que declarara ser da competência da Justiça Estadual processar e julgar ação penal por crime de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo” (CP, art. 149) — v. Informativo 556. O Min. Cezar Peluso, relator, negou provimento ao recurso. Entendeu que a conduta prevista no art. 149 do CP não basta para deslocar a competência da Justiça Estadual para a Federal, quando não é caso de aplicação do art. 109, IV e VI, da CF. Relativamente à incidência do inciso VI, asseverou que não se desconheceria o precedente da Corte consubstanciado no acórdão do RE 398041/PA (DJE de 19.12.2008). Lembrou que, na ocasião, teria se manifestado no sentido de que, quando aquela norma constitucional se refere a crimes contra a organização do trabalho, está a tratar dos que, típica e essencialmente, dizem respeito a relações de trabalho, e não, aos que, eventualmente, possam ter relações circunstanciais com o trabalho, haja vista que apenas no primeiro caso se justificaria a competência da Justiça Federal, perante o interesse da União no resguardo da específica ordem jurídica concernente ao trabalho. Ressaltou, ademais, não discordar que o cerne desse julgamento estaria em que o princípio da dignidade humana seria indissociável dos princípios que regem a organização do trabalho. Ponderou, contudo, que, embora o princípio da dignidade humana seja a fonte última de todos os outros valores e direitos fundamentais, isso não autorizaria concluir que a violação daquele implique violação de todos estes. Aduziu que, no caso, a norma penal estaria a proteger não a organização do trabalho, não obstante tenha a dignidade humana como um de seus princípios informadores. Enfatizou que o tipo penal da conduta de redução a condição análoga à de escravo não seria tutelar a organização do trabalho como sistema ou ordem, mas evitar que a pessoa humana fosse rebaixada à condição de mercadoria. Nesse sentido, o foco da tutela normativa seria o ser humano considerado em si mesmo, na sua liberdade imanente de sujeito de direito, cuja dignidade não tolera seja reduzido a objeto, e não o interesse estatal no resguardo da organização do trabalho, dentro da qual o ser humano é visto apenas como protagonista de relações que daí se irradiam. Por essa razão, concluiu não ser possível incluir o delito tipificado no art. 149 do CP na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, a qual seria uma noção sistêmica cuja autonomia conceitual, apesar de refletir a preocupação da ordem jurídica com a pessoa do trabalhador, constituiria a objetividade jurídica primeira da norma.” RE 459510/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 4.2.2010.  (RE-459510)


“Crime de Redução a Condição Análoga à de Escravo e Competência – 2


O relator afastou, da mesma forma, a aplicação do inciso IV do art. 109 da CF. Frisou que, para a incidência de tal preceito, a alegação de lesão a bens, serviços ou interesse da União, ou de suas autarquias, haveria de ser estimada perante a situação concreta, dentro da qual o interesse haveria de ser direto e específico, conforme reiterada jurisprudência da Corte, o que não ocorreria no caso. No ponto, salientou, ainda, não ser possível confundir o objeto de fiscalização da entidade federal com sua atividade fiscalizatória, para assim demonstrar interesse da União ou da entidade, como pretendido pelo recorrente. Registrou, por fim, não ter o recorrente apresentado elementos que demonstrassem e justificassem o reconhecimento de interesse direto e específico da União, concluindo ser da Justiça Estadual a competência para cognição do processo e das medidas conexas. Em divergência, o Min. Dias Toffoli deu provimento ao recurso, por vislumbrar ofensa ao art. 109, VI, da CF. Considerou, em suma, que esse dispositivo constitucional conteria o art. 149 do CP, haja vista que o crime de redução a condição análoga à de escravo atentaria contra o principal objetivo da organização do trabalho que é garantir a liberdade do trabalhador de, dignamente e dentro dos parâmetros legais e constitucionais, vender a sua força de trabalho. Após, pediu vista dos autos o Min. Joaquim Barbosa.” RE 459510/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 4.2.2010.  (RE-459510) informativo 573.


“Inquérito e Redução a Condição Análoga à de Escravo – 1 O Tribunal iniciou julgamento de inquérito no qual se imputa a Senador da República e a co-denunciado a suposta prática dos tipos penais previstos nos artigos 149, 203, §§ 1º e 2º e 207, §§ 1º e 2º, todos do CP, em concurso formal homogêneo. No caso, a inicial acusatória narra que, a partir de diligência realizada por grupo de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, constatara-se que os denunciados teriam, no período de janeiro e fevereiro de 2004, reduzido aproximadamente 35 trabalhadores a condição análoga à de escravos, inclusive com a presença de menor de idade entre os trabalhadores, nas dependências de fazenda de propriedade do parlamentar e administrada pelo co-denunciado. O Ministério Público Federal atribui aos denunciados o possível aliciamento de trabalhadores rurais — em unidade da federação distante daquela em que o trabalho seria prestado — com a conseqüente frustração de seus direitos trabalhistas. Afirma que tais trabalhadores teriam sido reduzidos a condição análoga à de escravos, ante as condições degradantes de trabalho, a jornada exaustiva e a restrição de locomoção por dívidas contraídas. Registra, ainda, que o mencionado relatório de fiscalização detectara que o alojamento para os trabalhadores consistiria em ranchos de folhas de palmeiras, sem qualquer beneficiamento do piso, sendo que um deles levantado sobre um brejo com mau cheiro e excessiva umidade. Constatara, também, a presença de trabalhadores enfermos e com lesões nas mãos. Verificara, ainda, inexistir: a) cozinha e sim fogareiros improvisados; b) refeitório; c) sanitário e água potável; d) fornecimento de equipamento individual de trabalho e material de primeiros socorros, tendo os trabalhadores que comprá-los em armazém existente na fazenda, assim como os alimentos de que necessitavam. O parlamentar sustenta em sua defesa que: a) interpusera recurso perante a Delegacia Regional do Trabalho e, em razão disso, a punibilidade estaria condicionada à decisão administrativa; b) todos os empregados foram unânimes ao afirmar que não eram proibidos de sair da fazenda; c) o vínculo de trabalho na fazenda era temporário; d) os empregados faziam refeições sem qualquer desconto na diária; e) a venda de mercadorias pelo empregador não seria proibida e f) o fato de ser proprietário da fazenda não o vincularia criminalmente à imputação penal. O co-denunciado, por sua vez, alega que: a) o Senador apenas o nomeara como procurador para comparecer à cidade na qual arregimentados os trabalhadores, com o fim de efetivar o pagamento das verbas trabalhistas impostas pelos auditores-fiscais e b) não seria administrador da fazenda, pois, à época dos fatos, era assessor de Governador.” Inq 2131/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 7.10.2010. (INQ-2131)


“Inquérito e Redução a Condição Análoga à de Escravo – 2 A Min. Ellen Gracie, relatora, recebeu a denúncia por reputar preenchidos os requisitos legais (CPP, art. 41). Inicialmente, salientou que a existência de processo trabalhista não teria o condão de afastar o exame do juízo de admissibilidade da denúncia. Destacou, no ponto, o ajuizamento de recurso trabalhista pelo parquet e a independência entre a instância trabalhista e a penal. Em seguida, reiterou que a investigação fora realizada por grupo de fiscalização que contara com a atuação de auditores-fiscais do trabalho e outros servidores do MTE, de procurador do Ministério Público do Trabalho, de delegado, escrivão e agentes do Departamento de Polícia Federal. Observou que, nos últimos anos, houvera a edição de leis que alteraram a disciplina legal referente aos crimes relacionados à organização do trabalho e à liberdade pessoal no exercício de atividade laboral. Aludiu, em especial, à Lei 9.777/98 — que ampliou o rol de condutas que podem se amoldar ao crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, inclusive com a previsão da prática do truck system (forma de pagamento de salários em mercadorias), mantendo armazéns na fazenda para fornecimento de produtos e mercadorias aos trabalhadores mediante desconto dos valores no salário — e à Lei 10.803/2003 — que estendeu o rol de condutas amoldadas ao delito de redução a condição análoga à de escravo. Citou, também, que o único instrumento internacional a conceituar a escravidão seria o Tratado de Roma (art. 7º). Enfatizou que as condutas descritas nos referidos tipos penais atentariam contra o princípio da dignidade da pessoa humana sob o prisma tanto do direito à liberdade quanto do direito ao trabalho digno. Aduziu, ademais, a possibilidade de coexistência dos crimes dos artigos 149, 203 e 207, todos do CP, sem que se cogitasse de consunção. Relativamente ao delito de redução a condição análoga à de escravo (CP, art. 149), consignou que a fiscalização do MTE demonstrara as péssimas condições de alojamento, fornecimento de água, jornada diária superior ao limite de 2 horas excedentes (12 horas-diárias, salvo nos domingos em que seria de 6 horas-diárias) e ausência de repouso semanal remunerado. Haveria, ainda, cópias de lançamentos contábeis acerca das dívidas assumidas por vários trabalhadores no armazém informalmente mantido na fazenda. Considerou que a imputação referente ao possível cometimento do crime do art. 207 do CP, na modalidade de recrutamento de trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, não assegurando condições de seu retorno ao lugar de origem, também encontraria substrato probatório produzido durante as investigações. Assinalou que a fraude descrita consistiria em promessas de salários e outros benefícios trabalhistas por ocasião da contratação. No que concerne ao crime do art. 203 do CP, referente à frustração, mediante fraude, de direitos assegurados pela legislação trabalhista, ressaltou a lavratura dos autos de infração por parte dos auditores do MTE, em face da não formalização de contrato de trabalho.” Inq 2131/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 7.10.2010. (INQ-2131)


“Inquérito e Redução a Condição Análoga à de Escravo – 3 A relatora, em passo seguinte, analisou as alegações formuladas pelo parlamentar. Rejeitou o pleito de se aguardar a suspensão do procedimento administrativo no âmbito do MTE, porquanto deveria prevalecer o princípio da independência das instâncias e inexistiria força vinculante do julgamento desse feito administrativo na esfera criminal. Afastou, também, a alegação de atipicidade da conduta relativa ao art. 149 do CP — em virtude da existência de elementos mínimos de prova a autorizar o recebimento da peça acusatória —, bem como a assertiva de responsabilidade objetiva do parlamentar — haja vista a narrativa de concurso de agentes e a informação de que as atividades seriam voltadas à exploração agropecuária da fazenda, sendo, por isso, inequívoco o benefício do proprietário. Afirmou, também, que a circunstância de o serviço desempenhado na fazenda ser transitório não modificaria o quadro jurídico da denúncia. Mencionou que os argumentos acerca da inexistência de armazém na fazenda, de ausência de jornada exaustiva, de inocorrência de condições degradantes de trabalho e de não-caracterização de trabalho sem remuneração deverão ser examinados em outra etapa do processo. Relativamente às questões apresentadas pelo co-denunciado, a relatora asseverou que o argumento de que ele não seria administrador da fazenda poderia vir a ser refutado pelos testemunhos dos trabalhadores. Por fim, asseverou que a comprovação de vínculo funcional com o governo não excluiria, de imediato, a imputação dos fatos em concurso de agentes. Após, pediu vista dos autos o Min. Gilmar Mendes.” Inq 2131/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 7.10.2010. (INQ-2131) Informativo 603.


7. DO SUJEITO ATIVO


A doutrina majoritária afirma que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo, tratando-se, portanto, de crime comum e não próprio[xl], haja vista que não se exige nenhuma qualidade ou condição especial.


Evidentemente que se o agente for funcionário público e praticar o fato no exercício de suas funções poderá haver o enquadramento no crime de abuso de autoridade previsto na Lei 4.898/65[xli].


8. DO SUJEITO PASSIVO


Anteriormente à Lei n. 10.803/2003, a doutrina era unânime em afirmar que qualquer pessoa, sem qualquer distinção de idade, raça, sexo, origem, condição social ou de qualquer outra espécie, civilizada ou não, podia ser vítima do delito[xlii].


O principal argumento é a existência do vocábulo genérico “alguém” contido no caput do art. 149, do CPC.


Após a alteração legislativa, outro argumento passou a ser a menção a situações envolventes a trabalho, em sentido amplo, no caput e nos incisos, que englobariam relações jurídicas submetidas tanto ao sistema celetista, portanto, relação de emprego stricto sensu, quanto a outros sistemas como o civilista, consumerista, estatutário, de legislação específica.


De fato, na redação do art. 149, do CPC, antes da alteração pela Lei 10.803/03, não havia dúvida quanto à classificação.


No entanto, a atual redação do dispositivo faz expressa referência à relação de trabalho na tipificação, ex vi, submeter a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes entre outras.


Assim, apesar da manutenção do termo “alguém” no caput do dispositivo, a doutrina majoritária[xliii] tem afirmado tratar-se de crime próprio quanto ao sujeito passivo, tornando indispensável a relação de prestação de serviço entre o sujeito passivo e ativo[xliv].


Pessoa jurídica não pode ser vítima[xlv].


9. DO TIPO OBJETIVO


Na descrição típica do caput do artigo 149, do Código Penal, o delito de reduzir (sujeitar) à condição análoga (semelhante, comparável, porque não existe situação jurídica de escravo no país, somente estado de fato semelhante àquele[xlvi]) à de escravo (condição deprimente e indigna[xlvii], exploração ilegal e abusiva do trabalho humano, estado de servidão, de submissão absoluta [xlviii]) caracteriza-se pelas condutas de submeter (fazer obedecer às ordens e vontade de outrem por coação física ou moral) a trabalhos forçados (contra a vontade); ou jornada exaustiva (que leva à exaustão, ao esgotamento, ao exaurimento físico); ou sujeitar (obrigar, constranger) a condições degradantes (aviltantes, humilhantes); ou ainda restringir (limitar, reduzir, diminuir) por qualquer meio (desde que apto ao fim a que se destina) a locomoção (ato de andar ou transportar-se) acrescido do elemento normativo “em razão de dívida contraída…”[xlix].


Na primeira modalidade, trabalhos forçados, há privação da liberdade de escolha porque o trabalho decorre da relação de dominação e sujeição por ameaça, violência ou criação ou aproveitamento de circunstância que não permita à vítima resistir[l]. Portanto, eventual pagamento ao sujeito passivo não elide a figura delitiva.


Na segunda modalidade, jornada exaustiva, a doutrina afirma que é preciso considerar as características pessoais da vítima (estrutura física, idade, sexo) e a natureza da tarefa[li].


Na terceira modalidade, condições degradantes, constata-se o abuso do agente quanto às circunstâncias de execução do trabalho diante das condições pessoais da vítima[lii]. Portanto, não é qualquer irregularidade nas relações laborativas que enseja a tipificação legal.


Na quarta modalidade, privação por dívidas, a restrição dá-se por qualquer meio, como o enclausuramento ou confinamento, desde que haja certa duração temporal. A legitimidade do crédito (dívida) não elide a figura típica até porque, frequentemente, ele é artificiosamente criado ou incentivado[liii]. Também denominada de servidão por dívidas ou truck system, a inconsciência da vítima quanto a essa condição ou seu consentimento não afastam o delito.


As figuras equiparadas previstas nos incisos I e II do § 1o referem-se às condutas de cercear (impedir), ou manter (conservar, fazer permanecer)  vigilância ostensiva (à mostra, intencionalmente), ou ainda apoderar-se  (apossar-se) de documentos ou objetos pessoais (capazes de dificultar ou impedir a saída), com o fim de reter (impedir de sair) a vítima no local de trabalho[liv]. A doutrina também exige certa permanência para afastar o crime de retenção de documentos, previsto no artigo 203, do Código Penal[lv].


As figuras qualificadas contidas no § 2o determinam o aumento da pena pela metade se a vítima é criança (até 12 anos, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente), adolescente (de 12 a 18 anos, nos termos do ECA) ou por motivo de preconceito. A doutrina majoritária entende que eventual emancipação civil, a partir de 16 (dezesseis) anos, não afasta a qualificadora no âmbito penal[lvi].


10. DO TIPO SUBJETIVO


As figuras típicas descritas no caput são punidas a título de dolo: vontade livre e consciente de submeter à sujeição. Trata-se de dolo genérico por inexistir finalidade especial


Todavia, note-se a redação do § 1o:


“Art. 149, § 1o Nas mesmas penas incorre quem:


I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;


II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.”


As duas figuras típicas descritas acima exigem a finalidade especial de retenção no local de trabalho. Assim, trata-se de dolo específico.


11. DA CONSUMAÇÃO


A consumação dá-se no instante em que a pessoa é reduzida à condição análoga à de escravo.


Além disso, trata-se de crime permanente, ou seja, a consumação, por vontade do agente, é prolongada no tempo, com contínua agressão ao bem jurídico protegido[lvii].


Portanto, enquanto perdurar a submissão é possível a caracterização do flagrante.


Ademais, aplica-se ao presente delito o disposto na Súmula 711 do STF, in verbis:


“A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência.”


É interessante notar que o crime de redução à condição análoga à de escravo, em certas circunstâncias, poderá configurar a consunção denominada pela doutrina de minus a plus, senão vejamos.


Pelo princípio da consunção, a definição legal de um fato típico, se este constituir meio necessário ou fase normal da preparação ou execução de outro tipo penal, poderá ser absorvida por este segundo.


No específico caso da consunção de minus a plus, também denominada pela doutrina de crime progressivo, são necessários os seguintes requisitos: i) unidade de elemento subjetivo; ii) pluralidade de atos; iii) crescente violação ao bem jurídico tutelado.


Ex vi, o crime de sequestro, cuja descrição típica é “privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado” (art. 148, caput, do CP), poderá absorvido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo.


12. DAS CAUSAS DE AUMENTO DE PENA


As causas de aumento de pena estão previstas no § 2o do artigo 149, do Código Penal:


“§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:


I – contra criança ou adolescente;


II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.”


Não há que se falar em figuras qualificadas. A despeito de estarem na Parte Especial do Código Penal, não são previstos novos limites (mínimo e máximo) da pena, mas determinado aumento, fixo ou variável[lviii].


Note-se que, ao contrário de alguns tipos penais arrolados no Título IV, dos crimes contra a organização do trabalho, ex vi, arts. 203, § 2o, e 207, § 2o, do Código Penal, o fato de a vítima ser idosa ou gestante não enseja o agravamento da pena.


 

Bibliografia

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________ , ___________. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1 – Parte Geral. 3a ed. São Paulo: RT, 2002.

 

Notas:

[i] Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910), político, diplomata, historiador, jurista e jornalista, graduado pela Faculdade de Direito de São Paulo, foi um dos expoentes do movimento abolicionista do final do século XIX.

[ii] Organização Internacional do Trabalho. As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil : a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Brasília: OIT, 2010, p. 56. Disponível em: <http://www.oit.org.br/info/downloadfile.php?fileId=504>. Acesso em: 25/06/2011.

[iii] COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal. Parte Especial. 5a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 501.

[iv] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 2 – Parte Especial. 2a ed. São Paulo: RT, 2002, p. 300.

[v] COSTA JR., Paulo José da. Código Penal Comentado. 8a ed. São Paulo: DPJ, 2005, p. 452.

[vi] PRADO, p. 300.

[vii] COSTA, p. 504.

[viii] PRADO, p. 301.

[ix] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume 4. 4a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 198.

[x] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 28a ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 172. PRADO, p. 301.

[xi] “Art. 179. Reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse da sua liberdade. Penas – de prisão por tres a nove annos, e multa correspondente à terça perte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor que o do captiveiro injusto, e mais uma terá parte.” Segundo Bitencourt, a redação continha uma impropriedade técnica ao confundir a situação jurídica (escravidão) com a situação fática (reduzir alguém à escravidão). BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 2. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 484.

[xii] PRADO, p. 301.

[xiii] COSTA, p. 504.

[xiv] COSTA, p. 504. PRADO, p. 301.

[xv] COSTA JR., p. 424. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 371. ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Direito Penal do Trabalho. 3a ed. Saraiva: São Paulo, 2010, p. 80.

[xvi] Para as posições, ver COSTA, pp. 506-507.

[xvii] JESUS, Damásio de. Direito Penal Parte Especial. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 299.

[xviii] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Do crime de redução a condição análoga à de escravo, na redação da Lei nº 10.803/2003. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 678, 14 maio 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6727>. Acesso em: 25 jun. 2011.

[xix] COSTA JR., p. 453.

[xx] BITENCOURT, p. 485.

[xxi] COSTA JR., 424.

[xxii] COSTA, p. 507.

[xxiii] Idem, p. 506

[xxiv] MIRABETE, Julio Fabrini e FABRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume 2. 27a ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 157.

[xxv] Idem, p. 157.

[xxvi] MIRABETE p. 157.

[xxvii] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 11a ed. Volume 1. Saraiva: São Paulo, 2007, p. 267. Importante não confundi-lo com “Crime de tipo aberto”, que apresenta descrição típica incompleta do caso concreto (art. 216-A, do CP).

[xxviii] DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 8a ed. Saraiva: São Paulo, 2010, p. 535.

[xxix] Idem.

[xxx] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Do crime de redução a condição análoga à de escravo, na redação da Lei nº 10.803/2003. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 678, 14 maio 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6727>. Acesso em: 25 jun. 2011.

[xxxi] GOMES, Ângela de Castro Gomes. Trabalho análogo a de escravo: construindo um problema. História Oral, volume 11: Rio de Janeiro, 2008, p. 24, apud Organização Internacional do Trabalho. As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil : a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Brasília: OIT, 2010. Disponível em: http://www.oit.org.br/info/downloadfile.php?fileId=504. Acesso em: 25/06/2011.

[xxxii] “a) de crime comum que era, não exigindo qualquer qualidade ou condição especial do sujeito ativo, foi transformado em crime especial quanto ao sujeito passivo, exigindo deste uma relação ou um vínculo trabalhista com o sujeito ativo; b) modo ou forma de execução, que antes era livre, agora, somente pode der praticado segundo as formas previstas no caput e seu § 1o, nos termos da nova redação atribuída ao art. 149”. BITENCOURT, ob. cit., p. 493.

[xxxiii] Organização Internacional do Trabalho. As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil : a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Brasília: OIT, 2010. Disponível em: http://www.oit.org.br/info/downloadfile.php?fileId=504. Acesso em: 25/06/2011.

[xxxiv] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 11a ed. Volume 1. Saraiva: São Paulo, 2007, p. 267. Não deve ser confundi-lo com “Crime de tipo fechado”, que apresenta descrição típica completa (art. 129, do CP).

[xxxv] BREMER, Felipe Fiedler. Análise didática do trabalho escravo no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2166, 6 jun. 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12944>. Acesso em: 21 ago. 2011.

[xxxvi] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Do crime de redução a condição análoga à de escravo, na redação da Lei nº 10.803/2003. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 678, 14 maio 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6727>. Acesso em: 25 jun. 2011.

[xxxvii] DELMANTO, p. 532, BITENCOURT, p. 485

[xxxviii] BITENCOURT, 486.

[xxxix] No âmbito do STJ, os crimes de redução à condição análoga à de escravo, de aliciamento de trabalhadores, do atentado contra a liberdade do trabalho e de frustração de direito assegurado por lei trabalhista têm sido considerados “grave violação dos direitos humanos”.

[xl] BITENCOURT, p. 486, DELMANTO, p. 532, MIRABETE, p. 158, PRADO, p. 341

[xli] BITENCOURT, p. 486.

[xlii] MIRABETE, p. 158. BITENCOURT, p. 486.

[xliii] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, BITENCOURT, p. 487.

[xliv] BITENCOURT, p. 487.

[xlv] DELMANTO, p. 532, BITENCOURT, p. 487.

[xlvi] MIRABETE, p. 158.

[xlvii] BITENCOURT, p. 487.

[xlviii] MIRABTE, p. 158.

[xlix] DELMANTO, p. 532.

[l] MIRABETE, p. 158.

[li] Idem, p. 158.

[lii] Idem, p. 158.

[liii] Idem, p. 158.

[liv] DELMANTO, p. 352.

[lv] MIRABETE, p. 158.

[lvi] DELMANTO, p. 352.

[lvii] CAPEZ, 2007, p. 264.

[lviii] PRADO, V. 1, 2002, p. 439.


Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Almeida Martins de Andrade

Procurador da Fazenda Nacional lotado na Procuradoria Regional da Fazenda Nacional da 3a Região.


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