Dos crimes militares à luz da Constituição Federal de 1988

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Resumo: A análise aos fundamentos necessários à regularização das normas castrenses, verificou-se que a tipificação de determinadas condutas dá fulcro a sistematização de normas coercitivas específicas para a atividade militar, criando um direito especial, que é o Direito Penal Militar. A proteção aos bens jurídicos penais militares justifica o sustento a normatização de um sistema penal próprio, em que a hierarquia e disciplina se destacam como marcos basilares a serem protegidos.


Resume: L’analyze de base nécessaires pour réglementer les normes castrenses, il est apparu que la pénalisation de certains comportements, est la systématisation des normes fondamentales de la spécificité des activités militaires coercitives, la création d’une loi spéciale, qui est le droit pénal militaire. La protection juridique des biens justifie le soutien militaire pénale à l’arrêt d’un système de justice pénale elle-même, dans lequel la hiérarchie et la discipline se distinguent comme des blocs de repère pour être protégés.


Sumário: 1. Conceito de Crime 2. Conceito de Crime Militar 3. Crime propriamente militar e crime impropriamente militar 4. Crime impropriamente militar 5. Delito militar e delito comum 6. Crime militar em tempo de paz 7. Lei dos Juizados Especiais 8. Bibliografia.


1. Conceito de Crime


Para chegarmos a uma noção exata do que é crime militar, necessário se faz que naveguemos pelos meandros da conceituação geral de crime, pois sem ela não poderíamos compreender as características especiais que levaram ao legislador criar um instituto singular para a solução das infrações penais dentro do âmbito da caserna.


Vários são os doutrinadores que definem o conceito de crime, para uns este conceito reside no caráter danoso do ato, para outros na amoralidade da conduta, e ainda para terceiros no estado psíquico do agente. A doutrina procura definir crime sob três aspectos diversos. No aspecto externo, puramente nominal do fato, que se resume na pura subsunção da conduta ao tipo legal, obtém-se uma definição formal na qual se considera infração penal tudo aquilo que o legislador descreve como tal.Na busca por um conceito material de crime chegamos àquele que tem em vista o bem protegido pela lei penal, pois é função do Estado obter o bem coletivo, mantendo a ordem, a harmonia e o equilíbrio social. Necessita o Estado velar pela paz interna, pela segurança e pela estabilidade coletiva, e somente através da lei penal que ele poderá garantir esta harmonia, logo podemos conceituar crime, de forma material, como sendo a conduta humana que lesa um bem jurídico protegido pelo Estado.


Por fim, na busca por elementos estruturais dentro da teoria do crime, nos deparamos com o aspecto analítico, que nos auxilia a propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor. A Teoria Naturalista ou Clássica, que dominou todo o século XIX, concebida por Franz Von Liszt, conceitua crime como sendo uma ação típica, antijurídica e culpável, uma vez que sendo o dolo e a culpa imprescindíveis para a sua existência, e estando ambos na culpabilidade, este último elemento se torna necessário para integrar o conceito. Trata-se da concepção tripartida. A culpabilidade, para os naturalistas, consistem num vínculo subjetivo que liga a ação ao resultado, ou seja, no dolo ou na culpa em sentido estrito por imprudência, imperícia ou negligência. Verificando-se a existência de um fato típico e antijurídico, deverá ser examinado o elemento subjetivo, ou seja, a culpabilidade.


Para a concepção bipartida, ou seja, a Teoria Finalista, concebida por Hans Welzel, e adotada pelo Prof. Fernando Capez, a culpabilidade não integra o conceito de crime. Para eles o crime é fato típico e antijurídico. O finalismo verifica que o dolo e a culpa integram o fato típico e não a culpabilidade, passando esta a ser mero juízo de valoração externa ao crime, ou seja, uma simples reprovação do Estado sobre o autor de uma infração penal. A ação delituosa é uma atividade que sempre possui uma finalidade, o crime existe em si mesmo por ser antijurídico e típico, e a culpabilidade será externa a conduta delituosa, esperando a reprovação do Estado, podendo haver crime sem que haja culpabilidade, ou seja, a reprovação da conduta.


Ainda dentro de uma análise do crime temos o aspecto da antijuricidade, que nada mais é do que a contradição entre uma conduta realizada pelo sujeito ativo e o ordenamento jurídico. Ela, com elemento de análise conceitual de crime, assume o sentido de ausência de causas excludentes de licitude. A antijuricidade se resume num juízo de desvalor que recai sobre a conduta típica, moldada no ordenamento jurídico.


2. Conceito de Crime Militar


Antes de enveredarmos ao do crime militar, necessário se faz delimitar o conceito de “militar” para aplicação da lei penal castrense.


Este conceito está expresso na letra do art. 22 do CPM, e se sistematiza com as disposições do art. 42 da Carta Magna:


Art. 22. É considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar. (CPM)


Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)” (CF)


Verifica-se que militar é aquele elemento que foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas, estando em serviço ativo, servindo-se do posto ou graduação estabelecidos pelas normas da administração militar, e que está sujeito às regras de hierarquia e disciplina militar. O mesmo ocorre com os militares estaduais, estando os mesmos sujeitos a todos os ônus relativos à disciplina militar. Porém para os caso de competência das Justiças Militares Estaduais e Federal, este conceito de militar da ativa restringe-se ao seu respectivo âmbito estadual ou federal, não havendo, em regra, transferência entre essas esferas. Os integrantes das Polícias Militares e dos Bombeiros Estaduais, nos termos do art. 42 de Constituição Federal, são militares estaduais, processados e julgados pela Justiça Militar estadual, nos crimes militares definidos pelo CPM e em consonância com o art. 125 de Constituição Federal. Já os integrantes das Forças Armadas, referidos no art. 22 da Carta Magna, são exclusivamente os militares para efeito de aplicação da lei penal castrense no âmbito da Justiça Militar federal, o que exclui o militar estadual, sendo este último tratado como civil.


O crime militar pode ser abordado por vários critérios.


O primeiro deles é o critério ratione personae, em que o crime militar é aquele praticado pelo militar, independente de outra circunstância, sendo suficiente, para o sujeito ativo, a condição de militar. Muito utilizado pelos legisladores em tempo de guerra, foi aplicado no Brasil na época do Império, em especial nos momentos de conflitos externos, com a Lei nº 631, de 18 de setembro de 1851, considerando “militar todos os crimes cometidos por militares nas províncias em que o governo manda observar as leis para o estado de guerra, e bem assim, os cometidos por militares em território inimigo ou aliado ocupado pelo exército.” O ratione personae hodiernamente ainda é aplicado na legislação francesa, onde no Código de Justiça Militar, no seu art. 59 dispõe:


“Hors du territoire de la République et sous réserve des engagements internationaux, les tribunaux aux armées ou les personnes à la suite de l’armée en vertu d’une autorisation. ”


Podemos ainda nos remeter ao critério ratione materiae, consagrado na legislação imperial de nossa pátria, que subordinava a exigência de que o delito seria militar por sua natureza ou por alguma razão especial.


O critério ratione legis, em razão da lei, ou critério objetivo, corolário do princípio nullum crimen sine lege teve uma marcante presença no processo evolutivo do Direito Penal Militar brasileiro, porém só ganhou reconhecimento doutrinário, e posição em nosso direito positivo, com o Código Penal Militar de 1944. Na doutrina e na legislação penal imperial e republicana anterior a era Vargas, o destaque maior era dispensado ao critério ratione materiae.


Em 1946, a Constituição Federal, consagrou o critério ratione legis expressamente em seu art. 108.


“Art. 108 – A Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são assemelhadas.”


A Constituição Federal de 1988, no seu art. 124 manteve este critério, existente em nosso direito desde a Constituição de 1946, para a conceituação de crime militar.


“Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.”


Ao omitir quais seriam os agentes da infração penal, sejam eles militares ou civis, a Lei Maior transferiu ao legislador ordinário a competência para manter ou não a sujeição de agente civil à jurisdição castrense, nos casos especificados na letra da lei. Desta forma nasce a distinção entre crime propriamente militar e crime impropriamente militar.


3. Crime propriamente militar e crime impropriamente militar


Dentro do sistema do Direito Penal Militar, a doutrina e a jurisprudência distinguia essas duas espécies de crime militar, sem encontrar eco na legislação pátria. Após 1988, a Constituição Federal adotou, através do inciso LXI do art. 5, a summa divisio do crime militar, consagrando a denominação de crime propriamente militar, retornando às origens do Direito Penal Militar.


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)


LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (…)


Além de impor a distinção entre crime propriamente militar e impropriamente militar, a norma constitucional supra produz efeitos na lei adjetiva castrense, na medida em que veda, à autoridade militar, decretar, no curso do inquérito, a prisão provisória do agente autor do crime impropriamente militar. Os efeitos desta divisão alcançam a lei penal geral, extrapolando os limites da lei especial, quando o próprio Código Penal, no seu art. 64, inciso II, não considera para efeito de reincidência, os crimes propriamente militares.


Art. 63 – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.


Art. 64 – Para efeito de reincidência:


I – não prevalece à condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;


II – não se consideram os crimes militares próprios e políticos.”


O Código Penal Militar não define de forma imediata a diferença entre esses dois tipos de crime militar. O Digesto romano já conhecia o crime propriamente militar: “proprium militare est delictum, quod quis uti miles admitti.”. O delito militar, para os romanos, dizia respeito à vida militar, considerada no conjunto da qualidade funcional do agente, da materialidade especial da infração e da natureza peculiar do objeto danificado, que poderia ser o próprio serviço, a disciplina, a administração e a economia militar.


Como crime propriamente militar podemos entender que são aquelas ações previstas e tipificadas no Código Penal Militar, específica e funcional do ocupante do cargo militar, que lesionam bens ou interesses propriamente militares, em particular a disciplina, a hierarquia, o serviço e o dever militar. Este crime pode ser cometido no exercício da função do cargo militar ou fora dele. Igualmente, seguindo a tradição romana de nosso Direito Castrense, é necessário a qualidade militar do agente para a caracterização do crime propriamente militar. O civil não responde, dentro do sistema penal militar, pelo delito propriamente militar.


4. Crime impropriamente militar


Já o crime impropriamente militar, na antiguidade, surgiu da necessidade de Roma manter, para a sua segurança e junto aos povos conquistados, uma maior permanência das Legiões em armas, e consistia no delito que não afetava diretamente o dever, a disciplina ou a obediência militar. Eram infrações que o soldado romano cometia como simples particular, como uti civis, eram crimes ou delitos que atentavam contra a ordem social comum e não particularmente contra a ordem especial militar.


No Direito Penal pátrio, o crime impropriamente militar sempre foi pautado por divergências quanto ao seu conceito. As legislações militares que vigoraram na época do Império e da República Velha reconheciam apenas o crime propriamente militar sob a denominação de puramente ou meramente militar. Segundo o Prof. Célio Lobão, em conformidade com direito material brasileiro, crime impropriamente militar é a infração penal prevista no Código Penal Militar que, não sendo específica e funcional da profissão soldado, lesiona bens ou interesses militares relacionados com a destinação constitucional e legal das instituições castrenses.


É importante ressaltar que o crime impropriamente militar visa à proteção dos bens jurídicos penais militares, cujo agente infrator poderá ser um militar ou um civil. O Código Penal Militar, no seu art. 9º, dispõe que os crimes impropriamente militares são os previstos exclusivamente no diploma castrense, os definidos de forma diversa na lei penal comum e os com igual definição no CPM e no Código Penal. Porém caberá a Justiça Militar competente apreciar essas infrações avaliando a condição do sujeito ativo do delito, visando à proteção da instituição militar.


5. Delito militar e delito comum


Tanto o Direito Penal comum quanto o militar, dispõe em seus diplomas, sobre o princípio da reserva legal.


“Art. 1 – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” (Código Penal)


“Art. 1 – Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” (Código Penal Militar)


Com relação à definição da infração penal militar, observamos a igual definição entre crime comum e militar, tornando dificultosa a diferenciação do delito militar do delito comum. É necessário que se aplique regras de hermenêutica jurídica para possibilitarmos traçar esta diferença. Para se verificar a subsunção do fato à norma penal comum, basta confrontarmos o fato a um determinado tipo penal encontrando ali presentes todos os elementos de sua definição legal, sejam eles elementos objetivos ou descritivos, normativos ou subjetivos, conforme o caso. Diversamente, para que haja subsunção no campo penal militar, a operação de hermenêutica desenvolve-se buscando a tipicidade na Parte Especial, e depois verificando a adequação em uma das hipóteses circunstanciais previstas no artigo 9º do Código Penal Militar.


Não ocorrendo subsunção do fato e circunstâncias em qualquer das duas operações o delito não será crime militar. Quando se verifica a prática de contravenção penal pelo militar, dispostas na letra do Decreto-lei nº 3.668,/1941, mesmo que ocorra dentro de um quartel e contra outro militar, e que o ato não consista em crime definido pela lei especial ou transgressão disciplinar administrativa, será considerado delito comum. Também não será considerado crime militar quando verificamos o caso de lesão corporal praticada por um militar, fora do ambiente do quartel e fora da situação de serviço, contra um civil, pois neste caso o interesse da instituição militar, definido pela Carta Magna, não foi ameaçado. De igual forma referimos ao tráfico de entorpecentes realizado por um militar, mesmo que dentro do quartel, já que pelo princípio da especialidade prevalece a legislação especial, a Lei nº 6368/76; Quanto ao crime de tortura, mesmo que praticado dentro do estabelecimento militar, não será considerado crime militar, pois o mesmo tipifica-se por lei especial (Lei nº 9455/97).


Desta forma, se a conduta não foi tipificada no Código Penal Militar, mas em alguma lei penal especial, esta prevalece. Se, todavia, o fato se subsume tanto à norma penal militar quanto à comum, prepondera à primeira em razão do princípio da especialidade.


6. Crime militar em tempo de paz


O art. 9º do Código Penal Militar trata de crime militar em tempo de paz, sobressaindo o critério de ratione legis. Pelo critério objetivo, tanto o crime propriamente militar quanto o impropriamente militar devem estar necessariamente definidos na legislação castrense, com observância às disposições da Lei Maior, ou seja, a tutela das instituições militares federais e estaduais devem prevalecer.


Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:


I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;


II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados (…)


A primeira parte do inciso I do artigo supra mencionado trata de crimes impropriamente militares, isto é, aqueles definidos de modo diverso do CPM no Código Penal comum, ou seja, figuras delituosas cuja descrição típica não são idênticas nos dois diplomas repressivos, podendo ser sujeito ativo deste crime tanto o militar quanto o civil. Na segunda parte compreende os crimes propriamente militares, e os impropriamente militares sem definição na lei comum.


A parte final do inciso I, ao consignar a expressão “qualquer que seja o agente”, busca dar amplitude à norma que, na esfera estadual não ocorre, tendo em vista o disposto no parágrafo 4º do artigo 125 da Constituição Federal.


Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. (…)


§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)


No inciso II do art. 9º do CPM trata-se de crimes com definição idêntica no instituto penal castrense e no Código Penal comum, não sendo suficiente a capitulação na norma especial para que as hipóteses de crime militar se concretize. Somente teremos crime militar com a ocorrência das condições constantes nas alíneas da letra “a” até “e” deste inciso.


Art. 9º (…)


II – (…)


a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;


b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;


c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)


d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;


e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar; (…)


O inciso III do art. 9º do CPM consigna os crimes praticados por militares da reserva, ou reformado, e por civis, cuja conduta seja afrontar a própria instituição militar. Não basta, para a configuração do ilícito penal, que o fato encontre uma mera tipificação legal nas páginas da Parte Especial da norma penal castrense, e que o agente esteja nas condições dispostas no inciso in casu. É necessária a verificação de um elemento subjetivo especial do tipo, na espécie de delito de intenção.


O elemento subjetivo do tipo penal é a expressão “contra as instituições militares”, isto é, a proteção do bem jurídico penal militar disposto na nossa Carta Magna. Neste elemento subjetivo, o legislador destacou uma parte do dolo e o inseriu no tipo penal. Essa parte inserida é a finalidade especial, a qual pode ou não estar presente na intenção do autor. Quando o tipo incriminador contiver elemento subjetivo, será necessário que o agente, além da vontade de realizar o núcleo da conduta, tenha também a finalidade especial descrita explicitamente no modelo legal.


Verifica-se ainda neste inciso que a Justiça Militar estadual, por força do § 4º do art. 125 da Constituição Federal, não tem competência para julgar civis, o que resulta em atipicidade penal militar para os fatos praticados por agentes não militares. Neste caso, o inciso III, no âmbito da Justiça Militar estadual, somente poderá ser aplicado nas possibilidades de cometimento de crime militar por militar da reserva ou reformado.


Art. 9º (…)


III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:


a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;


b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;


c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;


d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.”


No caso dos crimes dolosos praticados por militares contra a vida de civis temos a aplicação do parágrafo único do art. 9 do CPM, acrescido na norma penal castrense pela Lei nº 9.299/96.


Trata a doutrina, sobre a inconstitucionalidade apresentada por esta modificação promovida pela norma ordinária supracitada, porquanto sua edição suprimiu a competência da Justiça Militar, expressa no art. 124 e no § 4º do art. 125 do texto constitucional.


O deslocamento de competência para a Justiça Comum de julgamento de crimes dolosos contra a vida, cometidos contra civis cujo sujeito ativo é o militar, apresenta flagrante inconstitucionalidade, pelo fato de que a existência de um escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, além disso, nas constituições rígidas verifica-se a superioridade da norma magna em relação às demais. Logo uma lei ordinária não poderá modificar uma competência gravada no texto constitucional. O art. 124 da nossa Carta Magna dispõe sobre a competência das Justiças Militares, sendo os crimes militares definidos pelo CPM, complementado os ditames magnos de nossa constituição. Se o crime era militar e, por previsão expressa da Lei Maior, era de competência da Justiça Militar, o deslocamento do julgamento para a Justiça Comum, materializada por lei ordinária, resultava na submissão do jurisdicionado a autoridade não competente.


“Art. 124. A Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”.


A doutrina e jurisprudência não se tornaram pacíficas quanto a este caso de inconstitucionalidade, ficando o Superior Tribunal Militar sozinho na defesa da inconstitucionalidade da Lei nº 9.299/96.


Destarte, o entendimento jurisprudencial dominante era o de que os crimes em apreço deveriam ser julgados pela Justiça Comum. Essa realidade levou muitos à conclusão de que, se a lei não era inconstitucional (até mesmo na visão da Corte Maior), somente uma solução poderia ser dada ao problema: concluir, a fórceps, que os crimes dolosos contra a vida praticados por militares, contra civis, deixaram de ser crimes militares com o advento da Lei nº 9.299/96.


Com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, alterando dispositivos constitucionais relativos à competência da Justiça Militar estadual, em especial no § 4º do art. 125, ocorreu à queda da discussão sobre a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 9 do CPM, no âmbito das Justiças Militares estaduais. Quanto aos militares federais, a situação permanece inerte no que se refere ao crime militar doloso contra a vida de civil, já que a EC nº 45/2004, não alterou o art. 124 da CF.


É importante frisar que o Direito Penal Castrense visa à proteção do bem jurídico penal tutelado, não se prendendo à existência de uma justiça especial. É importante que os bens jurídicos da hierarquia e disciplina sejam protegidos pela lei penal, seja ela especial ou geral. No Direito Comparado, principalmente no Direito Francês, encontramos o caso de crimes militares serem julgados pelo direito penal comum, haja vista a extinção da Justiça Militar Francesa, exceto para as tropas estacionadas ou em operação fora do seu território.


7. Lei dos Juizados Especiais


Igualmente, devemos analisar os aspectos da lei n° 9.099/95, alterada pela lei nº 9.839/99, que possui estreita relação com a tutela da disciplina militar.


O perigo de enfraquecimento da hierarquia e a disciplina militar, sustentáculos basilares das instituições militares, tornaram-se as justificativas para a inaplicabilidade, dentro de direito penal castrense, desses novos institutos. Não é admissível que uma composição civil entre dois militares da ativa colocasse termo a um crime militar em que eles fossem, respectivamente, sujeito ativo e sujeito passivo, ocorrendo uma grave mácula nos bens jurídicos penais militares. Os crimes militares de menor potencial ofensivo devem ter a autoria penalmente apurada, a fim de promover a prevenção geral e o conseqüente fortalecimento da hierarquia e da disciplina militar, não sendo cabível a aplicação dos institutos da Lei nº 9.099/95. Foi necessário a edição da Lei n° 9.839, de 27 de setembro de 1999, que acrescentou o artigo 90-A a Lei n° 9.099/95, nos termos: “As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.”


Depois de editada a inaplicabilidade da Lei n° 9.099/95, no âmbito da Justiça Militar, verificou-se que os seus efeitos não puderam incidir sobre os fatos ocorridos antes da vigência da lei n° 9.839/99, devido à necessidade de obediência ao princípio constitucional da irretroatividade penal. Sendo que aqueles fatos foram, de certa forma, beneficiados pela lei mais benigna.


É fato que a nossa sociedade vem sofrendo os efeitos da modernização de sua cultura, criando novos conceitos sociais, éticos e morais. O meio militar não é diferente do restante, ele sofre todas as pressões das mudanças de paradigmas de nossa cultura. É necessário que não deixemos de visualizar a finalidade constitucional das Forças Armadas e Forças Auxiliares, dispostas nos art. 142 e § 5º do art. 144 da Constituição Federal, que é a defesa incondicional da Nação e a segurança pública. O bem jurídico penal militar deverá ser protegido pelo operador do direito, sob pena de tornar inerte a hierarquia e disciplina militares, princípios basilares desta instituição.


O Direito Militar, em especial o Direito Penal Militar, não tem como única visão a existência de um foro especial, único para a solução de suas contendas, mas visa à existência de um foro que permita a correta tutela de seus bens jurídicos mais basilares.


 


Bibliografia

BORGES, Leonardo Estrela. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte. Ed. Del Rey. 2006.

BRASIL. Código de Processo Penal Militar. 14ª ed. São Paulo. Ed. Saraiva. 2003.

BRASIL. Código Penal Militar. 13ª ed. São Paulo. Ed. Saraiva. 2002.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte geral. 2ª ed. São Paulo. Ed. Saraiva. 2005.

JESUS, Damásio de. Prescrição Penal. 16ª ed. São Paulo. Ed. Saraiva. 2003

LOBÃO, Célio; Direito Penal Militar. 3ª ed. Distrito Federal. Ed. Brasília Jurídica. 2006.

MARTINS, Ives Gandra. Manual de Iniciação ao Direito. 1ª ed. São Paulo. Editora Pioneira. 2002

MIRABETE, Julio Fabbrini; Manual de Direito Penal – Parte Geral – 18ª ed. São Paulo. Ed Atlas. 2002

NEVES, Cícero Robson C. Apontamentos de Direito Penal Militar. São Paulo. Ed. Saraiva. 2005

NEVES, Cícero Robson C. Direito Administrativo Disciplinar Militar. São Paulo. Ed. Suprema Cultura. 2003

NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade Humana. São Paulo. Ed. Saraiva. 2002.


Informações Sobre o Autor

Paulo Pereira Ramos

Acadêmico de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Papiloscopista Policial pela polícia civil do Estado de São Paulo


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