Limites implícitos do tipo omissão de socorro


Resumo: O estudo do presente artigo versa sobre a omissão de socorro e sua aplicação no Direito Penal. Tema bastante controvertido doutrinariamente e que possui relação íntima não só com o Direito, mas, também, com a moral. Busca-se no artigo delimitar seu alcance, reduzir a densa carga valorativa transmitida ao magistrado e tornar o tipo mais objetivo.


Sumário: 1 Introdução 2 Definição do tipo omissão de socorro 2.1 Sujeitos do crime e momento consumativo 3 Elementos objetivos do tipo e dificuldades probatórias 4 Omissão de socorro e resultado inevitável 5 Possibilidade da omissão gerar crime 6 Considerações sobre a figura da omissão de socorro


1 Introdução


Exemplo clássico de crime omissivo próprio, o tipo penal de omissão se socorro tem como bem tutelado a vida e a saúde da pessoa humana. Trata-se de norma de conduta positiva, uma vez que obriga o indivíduo a fazer algo, mesmo não havendo nexo de causalidade entre ele e o periclitante.


Trata-se, então, de abstenção de conduta positiva quando a norma era mandamental. Desta forma teremos a omissão em sentido lato, bifurcando-se em um tipo omissivo próprio e outro impróprio, porém ambos os tipos trazendo mandamentos para o indivíduo.


Todavia, a doutrina é bastante divergente quanto aos elementos básicos do tipo omissivo. Seu sujeito ativo, momento e forma de sua consumação, responsabilização do agente omitente, são alguns pontos de controvérsia doutrinária que fragilizam o tipo legal.


Assim, até onde podemos entender esse tipo legal como mero dever moral? Sob que aspecto pode, esse tipo, representar uma obrigação legal para o individuo? Quais as possíveis falhas na definição desse crime? Este é o objeto desse artigo.


2 Definição do tipo omissão de socorro


Segundo o artigo 135 do nosso Código Penal Brasileiro estará caracterizado a omissão de socorro quando o agente


“Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública”


Dessa forma a lei obriga a todo o indivíduo que vive em sociedade o dever de, em certos casos, desde que não ponha o indivíduo sob risco pessoal, prestar assistência a pessoas que dela necessitam através do dever de solidariedade imposto a todos.


Sob esse aspecto solidariedade leciona Magalhães de Noronha que “O art. 135 traduz uma norma de solidariedade humana, sob o imperativo legal. Já não se trata de simples dever moral, mas de uma imposição da lei”.[1] De acordo com esse entendimento percebe-se que o tipo de omissão de socorro é, na verdade um dever predominantemente moral, mas imposto a todos por força da lei.


2.1 Sujeitos do crime e momento consumativo


De acordo com a própria leitura do art. 135 do CP qualquer um é potencialmente apto a praticar o crime sem ser exigido do agente omitente qualquer qualidade especial.


A partir desse conceito a doutrina costuma se dividir em dois pontos: parte dela defende que o sujeito ativo não precisa estar no local para ser enquadrado no tipo de omissão de socorro; os demais defendem que o sujeito só será responsabilizado no local e no mesmo instante em que a vítima necessita do socorro.


De acordo com a primeira linha de raciocínio, leciona Damásio E. de Jesus que o ausente responde pelo crime quando chamado ao local para exercer o dever de assistência. Segundo este autor, para que o ausente possa ser responsabilizado faz-se necessário que tenha consciência do grave e iminente perigo em que se encontra a vítima.


Já Cezar Roberto Bitencourt, defensor da segunda vertente doutrinária, diz que


“O sujeito ativo deve estar no lugar e no momento em que o periclitante precisa de socorro; caso contrário, se estiver ausente, embora saiba do perigo e não vá ao seu encontro para salvá-lo, não haverá crime, pois o crime é omissivo, e não comissivo.”[2]


A partir desse momento já fica patente a vulnerabilidade desse tipo quando não capaz de definir o alcance da responsabilidade do agente, transferindo uma carga valorativa densa para o julgador, que disporá dessas duas correntes doutrinárias para imputar ao agente o tipo de omissão.


Ousamos ir além da definição do professor Damásio E. de Jesus. Entendemos que mesmo que ausente o sujeito omitente no local da periclitação da vida, no caso de imputação do tipo ao agente, a conduta possui a potencialidade de produzir materialmente o mesmo efeito. Nesse caso, basta que o agente tenha recebido informação sobre o local em que se encontra a vítima.


Além disso, a omissão de socorro se caracteriza pela conjugação de duas condutas: o agente não prestar socorro à vítima; e não solicitar o socorro à autoridade pública responsável.


Levando-se em consideração o atual estado de avanço tecnológico em que a sociedade se encontra e que, para prestar socorro, mesmo não presente no local em que o periclitante se encontra, basta uma solicitação às autoridades responsáveis, é possível a responsabilização daquele que, mesmo não estando junto à vítima, se recuse a solicitar o socorro.


3 Elementos objetivos do tipo e dificuldades probatórias


Duas são as formas de se praticar o crime:


a) O agente não presta o auxílio pessoal à vítima;


b) Não solicita socorro à autoridade pública. O pedido de socorro, portanto, deve ser dirigido à autoridade competente, sem demora, isto é, logo que o agente encontre a vítima em perigo.


Além dessas formas, a jurisprudência do extinto TACrim já havia perfilhado entendimento de que, para que se configure o crime de omissão de socorro, o perigo ao qual a vítima foi exposta não pode ter sido causado pelo omitente.[3]


Aqui encontramos uma falha na definição do tipo legal que o compromete em seu âmago. Analisemos o seguinte exemplo: João, que estava seguindo a pé por uma estrada de barro em direção de sua casa ouve gemidos vindos de dentro da mata; quando se aproxima percebe que os gemidos eram de seu maior inimigo, José. Percebendo que não passava ninguém por aquela estrada e tendo conhecimento da imposição da lei observa, com prazer sádico, seu inimigo definhar até a morte. No exato momento da morte retira seu celular, liga para a polícia e narra a situação como se acabara de chegar ao local.


Nesse exemplo ocorreu nitidamente a omissão de socorro, porém, por uma impossibilidade probatória da ocorrência do tipo legal o sujeito ativo do exemplo sairia impune, passando a figura legal e impositiva da omissão de socorro para o segundo plano; não passando de mera imposição moral, nesse caso, de uma conduta a ser tomada pelo sujeito ativo.


Desse modo, a omissão de socorro tipificada no art. 135 do nosso Código Penal só teria significado quando presentes mais de duas testemunhas.


Ao citar exemplo semelhante ao nosso, o professor Luiz Flávio Gomes leciona que “No momento em que ele omite, aumenta (incrementa) o risco já existente ou, no mínimo, não diminui esse risco, (embora pudesse fazê-lo)”.[4]


No sentido em que leciona o ilustre professor Luiz Flávio Gomes, a atitude do agente omitente do exemplo acima, desde que devidamente comprovada a omissão, seria utilizada como agravante penal.


Reitere-se que a análise trazida por esse ilustre professor pressupõe a existência de provas para imputar o crime a seu agente, refletindo a sua conduta na majoração da pena.


4 Omissão de socorro e resultado inevitável


Uma questão bastante interessante é trazida pelo professor Fernando Capez ao indagar se seria possível o agente responder pelo crime de omissão de socorro quando o resultado se mostrasse inevitável. Nessa hipótese, por mais que o agente se esforçasse o resultado seria o mesmo.


De acordo com esse arguto mestre, não seria possível imputar o crime de omissão de socorro “na medida em que a atuação do omitente não evitaria a produção do evento letal”.[5] O professor Rogério Sanches, ainda comentando o exemplo de Fernando Capez, traz como condição para o afastamento do tipo de omissão de socorro “que se prove no caso concreto que a conduta omitida seria capaz de impedir o resultado mais gravoso”.[6]


Segundo Luiz Flávio Gomes, a omissão só seria juridicamente relevante “quando aumenta ou não diminui o risco proibido para o bem jurídico protegido”.[7] Ou seja, de acordo com as palavras do douto professor, e interpretando esse texto a omissão de socorro só seria afastada quando o agente diminuísse o risco de perigo do periclitante.


Se o resultado for inevitável, não há nada que o agente possa fazer para diminuir o risco de perigo. Dessa forma, qualquer conduta tomada pelo agente levaria ao mesmo resultado, quer ele se omitisse ou não. Não seria possível exigir conduta diversa do agente, sequer haveria conduta exigível para essa situação.


Posicionamento contrário é trazido pelo professor Cezar Roberto Bitencourt. Segundo esse autor pouco importa se o resultado era ou não inevitável, esse não seria um juízo cabível ao sujeito ativo do crime. Para esse sujeito só restaria agir. Vejamos o que esse autor traz sobre o assunto:


“A sua obrigação era de agir e não evitar o resultado, e, por isso, via de regra, os crimes omissivos próprios dispensam a investigação sobre a relação de causalidade, porque são delitos de mera atividade, ou melhor, inatividade.”[8]


Entendimento no mesmo tem tido o STJ ao julgar a omissão de socorro nos crimes de trânsito:


“A prestação de socorro é dever do causador do atropelamento, e a causa especial de aumento da pena só é afastada em situação que impossibilite fazê-la, tal como a que comporte risco de vida ao autor ou que caracterize que ele estava fisicamente incapacitado de prestar o socorro. A alegação de que houve a morte imediata da vítima também não exclui aquele aumento, visto que ao causador não cabe, no momento do acidente, presumir as condições físicas da vítima ou medir a gravidade das lesões; isso é responsabilidade do especialista médico. Com esse entendimento, a Turma, por maioria, negou provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 161.399-SP, DJ 15/3/1999, e REsp 207.148-MG, DJ 4/9/2000.”[9]


5 Possibilidade da omissão gerar crime


Sobre a possibilidade de a omissão gerar crime a doutrina costuma se bifurcar em dois pólos distintos: a teoria naturalista e a teoria normativa.


De acordo com a teoria naturalista a omissão é um fenômeno perceptível no mundo dos fatos. A omissão é uma atividade que se caracteriza como espécie de uma ação.


Dessa forma, quem se omite faz alguma coisa, uma vez que essa omissão gera resultados naturalísticos. O omitente fez uma coisa, porém coisa diversa do que deveria ser feita.


Segundo a teoria Normativa, entende-se que a omissão é um fazer nada, e que do nada, nada pode surgir. Excepcionalmente, e desde que prevista a obrigação de fazer em lei, pode aquele que se omitiu ser responsabilizado pela omissão.


Em arguta lição sobre o que seria um comando normativo, o professor Fernando Capez leciona que


“a norma é o mandamento de uma conduta normal, ditada pelo senso comum da coletividade; não se encontra escrita em nenhum lugar, defluindo da consciência de cada um dos integrantes da sociedade, por essa razão, o dever jurídico de agir não pode ser equiparado a um mero dever descrito em lei; é isso e muito mais, envolvendo todos os casos em que o senso comum impuser a realização do comportamento comissivo”[10]


Quem defende essa tese, da teoria normativa, é o jusfilósofo Reinhart Maurach, que observou que se a omissão é um nada, “do nada, nada pode surgir (…) por isso, o delito de omissão não pode originar nenhuma causalidade”.


Pedimos vênia para discordar do nobre doutrinador, pois é possível a omissão gerar resultados naturalísticos, desde que o processo natural de acontecimentos pudesse ser impedido pela ação do agente omitente.


Como exemplo, podemos citar o médico que se recusa, sem justificativa, a tratar de paciente que se encontra em perigo de vida. Sem a ação de um médico, há grande probabilidade de que esse paciente venha a ser lesionado.


6 Considerações sobre a figura da omissão de socorro


Apesar do enorme avanço que o ramo do Direito Penal vem ostentando ao longo dos séculos, e sobre a proteção pelo Direito Penal dos bens jurídicos mais relevantes da sociedade, entendemos que a figura da omissão de socorro necessita ser reformulada, tanto pela sua enorme incerteza em relação à definição do próprio tipo e seus agentes, quanto pelo seu alcance real enquanto norma penal cogente.


Tal tipo legal produz, no mínimo, uma confusão quanto à linha divisora entre a moral enquanto norma de cunho ético e a lei, norma de cunho impositiva para toda a coletividade. Enquanto essa nuvem de incerteza existir o tipo não terá sua definição bem delineada.





Notas:
[1]
NORONHA, Magalhães de. Direito Penal. Vol. 2. P.93.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito Penal. Vol. 2. P.249-250.

[3] JTACrSP 47/232.

[4] Gomes, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 2. P.427.

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 2. P.207.

[6] CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal. Vol. 3. P.70.

[7] Gomes, Luiz Flávio. Direito Penal. Vol. 2. P.427.

[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito Penal. Vol. 2. P.258.

[9] REsp 277.403-MG, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 4/6/2002

[10] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 1. P.144.


Informações Sobre o Autor

Jefson Márcio Silva Romaniuc

Advogado. Pós graduado pela Escola Superior de Advocacia do Estado da Paraíba – ESA/PB


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