Novidades trazidas pela Lei 11.343/2006: a descriminalização do uso das drogas ilícitas e a patente seletividade do Direito Penal

Resumo: O presente artigo cuida de uma breve análise da nova Lei n.º 11.343/2006, principalmente no que diz respeito ao usuário de drogas e à descriminalização de sua conduta, sendo o ponto alto de análise a seletividade do direito penal, que pune diferentemente, menos pela conduta e mais pela identidade do sujeito, passando também pela nova situação penal do traficante. Cuida ressaltar que o presente limitou-se a analisar o aspecto material da nova Lei, sem cuidar do âmbito processual, fugindo qualquer questão a sua alçada.


Sumário:1. Introdução e aspectos gerais; 2. A Descriminalização do uso de drogas ilícitas e a seletividade do Direito Penal; 3. Repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; 4. Conclusão; Referências Bibliográficas.


1. Introdução E Aspectos Gerais


Em 23 de Agosto de 2006 foi promulgada a Lei n.º 11.343, tendo entrado em vigor no dia 08 de outubro daquele mesmo ano, na qual institui o Sistema de Políticas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.


A nova Lei revogou expressamente as Leis n.º 6.368/76 e n.º 10.409/2002 e desta forma trouxe algumas novidades que devemos apontar. Assim, objetiva-se com este trabalho analisar alguns pontos trazidos pela Lei que se analisará, focando em algumas questões que são de suma importância que não se passem desarpercebidas, em especial a descriminalização do usuário das drogas ilícitas, bem como a seletividade do direito penal, que bem se evidencia.


Inicialmente, devemos registrar que o parágrafo único do art. 1º traz o conceito de drogas, afirmando que são elas consideradas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, estando as mesmas relacionadas em listas divulgadas pelo Poder Executivo, mais nomeadamente na Portaria do Ministério da Saúde, SVS/MS n.º 344, de 12 de maio de 1998. Trata-se, como se sabe, de norma penal em branco.


As drogas, bem como plantio, cultura, colheita e exploração de tudo aquilo que se possa extrair ou produzi-las, são proibidas em todo o território nacional, salvo quando para fins medicinais ou científicos, conforme determina o artigo 2º e seu parágrafo único, da Lei sob análise.


A Lei 11.343/2006 criou o Sistema de Políticas sobre Drogas – Sisnad, e, em seu artigo 3º, dispõe que o mesmo tem por finalidade articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas com:


I – a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas;


II – a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.


O artigo 18 da Lei refere-se às atividades de prevenção ao uso indevido das drogas como sendo àquelas direcionadas para a redução dos fatores de vulnerabilidade e risco e para a promoção e o fortalecimento dos fatores de proteção, e o artigo 19 trata dos princípios e diretrizes tendentes à essas atividades, nomeadamente:


I – o reconhecimento do uso indevido de drogas como fator de interferência na qualidade de vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade à qual pertence;


II – a adoção de conceitos objetivos e de fundamentação científica como forma de orientar as ações dos serviços públicos comunitários e privados e de evitar preconceitos e estigmatização das pessoas e dos serviços que as atendam;


III – o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas;


IV – o compartilhamento de responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias;


V – a adoção de estratégias preventivas diferenciadas e adequadas às especificidades socioculturais das diversas populações, bem como das diferentes drogas utilizadas;


VI – o reconhecimento do “não-uso”, do “retardamento do uso” e da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza preventiva, quando da definição dos objetivos a serem alcançados;


VII – o tratamento especial dirigido às parcelas mais vulneráveis da população, levando em consideração as suas necessidades específicas;


VIII – a articulação entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e a rede de atenção a usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares;


IX – o investimento em alternativas esportivas, culturais, artísticas, profissionais, entre outras, como forma de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida;


X – o estabelecimento de políticas de formação continuada na área da prevenção do uso indevido de drogas para profissionais de educação nos 3 (três) níveis de ensino;


XI – a implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas instituições de ensino público e privado, alinhados às Diretrizes Curriculares Nacionais e aos conhecimentos relacionados a drogas;


XII – a observância das orientações e normas emanadas do Conad;


XIII – o alinhamento às diretrizes dos órgãos de controle social de políticas setoriais específicas.


Parágrafo único-  As atividades de prevenção do uso indevido de drogas dirigidas à criança e ao adolescente deverão estar em consonância com as diretrizes emanadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda.


Analisando, agora, o aspecto penal, pode-se perceber dois tratamentos distintos para o usuário e para o traficante de drogas. Seguindo a Lei, começaremos com as novidades trazidas para o usuário das drogas.


2. A Descriminalização Do Uso De Drogas Ilícitas E A Seletividade Do Direito Penal


Inicialmente, cumpre determinar a diferenciação entre descriminalização do consumo e legalização das drogas. Descriminalização significa retirar o status de crime de determinadas ações. Isso significa que certos atos deixam de se constituir ofensas criminais. Em relação às drogas, a descriminalização se refere à demanda (os atos de comprar, possuir e consumir). A descriminalização, entretanto, não torna esses atos legais. Eles deixam de ser ofensas criminais, mas continuam sujeitos a sanções administrativas, como multas, suspensão da licença para dirigir ou trabalhos comunitários.


Já a legalização[1] é um processo que traz para o controle da lei uma atividade específica anteriormente ilegal ou proibida. No campo das drogas, a legalização significaria que a produção, a venda para uso não-médico, a posse e o consumo seriam reguladas pelo Estado, tornado-se legais como as atividades relacionadas ao álcool e ao tabaco. Mesmo assim, ainda existiriam controles e medidas judiciais a serem aplicadas. Do ponto de vista jurídico, qualquer forma de legalização é contrária às três convenções das Nações Unidas sobre drogas, das quais o Brasil é signatário. Essas convenções limitam o uso de narcóticos e outras substâncias psicotrópicas a propósitos médicos e científicos, mas a posse, mesmo para uso pessoal, tem que ser considerada ilegal quando não autorizada explicitamente pela legislação local.


O artigo 28 da nova Lei dispõe que:


“Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:


I – advertência sobre os efeitos das drogas;


II – prestação de serviços à comunidade;


III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.


Verifica-se, aqui, que duas ações foram incluídas e, portanto, foram igualmente descriminalizadas: a de ter em depósito e a de transportar, ações estas não previstas no artigo 16, da revogada Lei n.º 6.368/76[2].


Às mesmas penas incorre aquele que, “para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”, conforme determina o parágrafo 1º do mesmo artigo 28.


Em primeiro, podemos logo perceber que o uso das drogas ilícitas foi descriminalizado, pois ainda se pune a conduta, mas de maneira mitigada, visto não mais haver a imposição de pena privativa de liberdade, encontrando-se no lugar a advertência sobre os efeitos negativos do seu uso, a prestação de serviço à comunidade e medida educativa.


De acordo com o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal Brasileiro, Decreto Lei n.º 3914/41, considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Assim, em uma interpretação sistemática do direito, tendo em vista que o artigo 28 da Nova Lei retirou a possibilidade de se aplicar pena de prisão ao usuário de drogas ilícitas, deixou a mesma de ser considerada infração penal, posto também que não foi lançada ao rol de contravenções, até porque estas também, conforme o mesmo dispositivo citado na Lei de Introdução, só existe se seu preceito secundário prever a hipótese de prisão simples e/ou multa.


Houve sim a descriminalização, mas a conduta continua contrariando o direito, não tendo sido, pois, permitida. Assim, concordamos com Luiz Flávio Gomes (2006) que afirma que a nova Lei criou uma infração sui generis, visto que perdeu o caráter de infração penal, pois não é nem crime e nem contravenção, mas as sanções impostas também não são de natureza administrativa, até porque impostas e aplicadas por juiz de direito, em sede de juizados especiais criminais ou varas especializadas. Entendemos, também, que a pena de prestação de serviços à comunidade trata-se mesmo de pena restritiva de direito e deve seguir seus ditames, respeitadas as diferenciações trazidas pela nova Lei e que serão tratadas abaixo.


Apesar deste entendimento, coadunar-se com a melhor técnica, o legislador parece ter-se olvidado da mesma, visto que coloca o capítulo III, que trata do usuário, sob a rubrica Dos crimes e das penas. Será que se esqueceu da regra geral prevista na Lei de Introdução ao Código Penal?


Assim, quem estiver preso em razão do uso de drogas ilícitas, deverá ser posto em liberdade, visto que tal sanção não é mais autorizada.


O juiz deve, atendendo ao critério trifásico de imposição de pena, previsto no artigo 68, do Código Penal, e ainda o artigo 59 do mesmo diploma repressivo, escolher qual penas previstas em abstrato que melhor se adeque à situação daquele que for condenado, podendo determiná-la isolada ou cumulativamente, ou, ainda, ser substituída a qualquer tempo, após oitiva do Ministério Público e do defensor, conforme inscrito no artigo 27, da Lei Antidrogas.


Há uma novidade que aqui se deve observar. A segunda modalidade de pena prevista é a prestação de serviços comunitários. Sim, trata-se de uma inovação à teoria das penas alternativas, visto que pela primeira vez pode-se verificar a aplicação de uma pena restritiva de direito prevista abstratamente.


Perde, assim, neste caso em particular, sua natureza substitutiva, pois não será aplicada “no lugar”da pena privativa de liberdade, pois esta não está mais prevista em abstrato. Ela própria, a prestação de serviço à comunidade, já em pena prevista em espécie.


Como se sabe, as penas restritivas de direito, conforme determina o artigo 55, do Código Penal, mas especificamente as espécies prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana, terão a mesma duração da pena privativa de liberdade que fora imposta e substituída. Entretanto, conforme disposto na nova Lei antidrogas, o mesmo não ocorre, pois não há como haver correspondência com a pena privativa de liberdade, visto que esta não foi cominada abstratamente.


A regra de aplicação da pena de prestação de serviço comunitário deve obedecer ao disposto nos parágrafos 3º e 4º do artigo 28, da Lei, sendo, pois, pelo prazo máximo de 05 (cinco) meses, aumentando-se para 10 (dez) meses, em caso de reincidência, devendo o juiz fazer o cálculo da pena atendendo ao critério trifásico, previsto no artigo 68, do Código Penal, chegando à melhor quantidade de pena no caso concreto. Quanto à quantidade de pena em abstrato, o mesmo vale para a pena de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.


Quanto à reincidência mencionada no parágrafo 4º do artigo em questão, entende-se tratar de reincidência específica, isto é, quando for condenado novamente, com trânsito em julgado anterior, no crime previsto no artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 (usuário de drogas ilícitas).


A nova Lei em análise trouxe como espécie de pena alternativa a prestação de serviço à comunidade somente, nada mencionando, no inciso II, do artigo 28, da Lei, quanto à mesma prestação em entidades públicas, mas o fazendo no parágrafo 5º, do mesmo dispositivo, passando a incluir, também, as entidades privadas sem fins lucrativos e que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas, podendo, esta finalidade ser observada também para as entidades públicas, ressaltando que o dispositivo menciona ser preferencialmente, nada impedindo, portanto, que a entidade escolhida tenha outro objeto, que não a prevenção ou tratamento de usuários de drogas.


Há mais um ponto a ser observado aqui. De acordo com o artigo 44, parágrafo 4º, do Código Penal, o condenado que descumprir a pena de prestação de serviço à comunidade, injustificadamente, terá sua pena convertida em privativa de liberdade, devendo o juiz atentar ao que menciona o parágrafo 1º do artigo 118, da Lei de Execução Penal, que afirma que a pena alternativa de prestação de serviço imposta será convertida quando o condenado estiver em local incerto ou não sabido, desatender intimação por edital; não comparecer, injustificadamente, ao local onde o serviço deve ser prestado; recusar-se a cumprir o serviço imposto; ou, ainda, praticar falta grave.


Pela regra geral, antes de determinada a conversão, deve o juiz da execução marcar a audiência de justificação, para que o condenado esclareça os motivos que o levaram ao descumprimento do que lhe foi imposto na sentença. Havendo a conversão, será descontado, para a determinação da pena privativa de liberdade, o tempo já cumprido de pena alternativa, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão.


Ocorre que esta regra não serve para a pena de prestação de serviço imposta, se for o caso, ao usuário de drogas ilícitas, visto que não há mais previsão de pena privativa de liberdade para o condenado pelo uso de drogas ilícitas. Assim, para que o cumprimento da determinação judicial se faça valer, o parágrafo 6º, do artigo 28 da Lei antidrogas, determinou que em caso de descumprimento, injustificado, de quaisquer das penas aplicadas, o juiz deverá submeter o condenado, sucessivamente a admoestação verbal e multa.


O artigo 29 da nova Lei determina que a pena de multa deve ser aplicada, em relação a quantidade de dias-multa, quantidade nunca inferior a 40 (quarenta) nem superior a 100 (cem), tendo como parâmetro a capacidade econômica do condenado, prevendo, ainda, seguindo a mesma análise, o valor de cada dia multa, variando de um trinta avos a até três vezes o valor do maior salário mínimo vigente no país. Os valores auferidos pelo Estado em decorrência do pagamento da multa serão creditados ao Fundo Nacional Antidrogas.


Quanto ao descumprimento da multa, entendemos que deverá ser observada a regra geral prevista no artigo 51, do Código Penal, que afirma que “transitada em julgado a sentença penal condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”.


No mais, toda as regras gerais de aplicação das penas alternativas são aqui aplicadas, mais nomeadamente o previsto nos artigos 44 e 46, do Código Penal, atentando, entretanto, para a particular regra para sanção quanto ao descumprimento da pena imposta, devendo-se levar em conta também, quanto à aplicação e observâncias presentes na Lei de Execução Penal que trata da espécie de pena restritiva de direito em questão.


Afirma o artigo 30, da nova Lei, que a imposição e execução das penas prescrevem em dois anos, devendo-se observar o disposto nos artigos 107 e seguintes do Código Penal.


Em qualquer caso, o usuário deverá fazer tratamento de saúde, gratuito, na rede pública, e de preferência ambulatorial, se o caso assim permitir, que deverá ser determinado pelo Juiz.


Chegamos aqui no ponto que consideramos ser o mais importante da presente Lei e que, de forma alguma, poderá passar desapercebido. O parágrafo 2º do artigo 28, da nova Lei Antidrogas determina os critérios de análise para o juiz verificar se a droga se destinava a consumo pessoal ou não. Afirma o dispositivo:


“Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.


Uma determinante realmente causa espécie, mas deixa bem clara, por outro lado, o caráter seletivo do direito penal. Afirma, assim, entre outros, que as circunstâncias sociais e pessoais serão índices de verificação se a droga destinava-se ao consumo ou ao tráfico. Enfim, fica patente a máxima: rico é usuário e pobre é traficante.


Os membros das camadas superiores conseguem impor ao sistema uma quase total impunidade de suas próprias condutas criminosas, como bem expõe Andrade (2003), devendo-se ressaltar que são estes quem, em regra, cometem crimes mais lesivos à sociedade. Assim, os pobres são os que acabam por constituir o sistema penal, não por terem mais tendência à delinqüência, mas sim pelo fato de sua imagem estar mais associada ao crime, visto serem constantemente estigmatizados como criminosos.


A criminologia crítica trabalha com o paradigma da reação social ou controle social, que se refere às formas pelas quais a sociedade trata comportamentos e pessoas que considera como desviantes, problemáticos, indesejados, podendo ser este controle tanto formal[3] ou informal[4]


Enfim, aqui verifica-se claramente a distinção de tratamento garantida ao pobre e ao de camada social mais elevada. Esse critério se quer deveria constar como determinante para o juiz verificar se a droga encontrada destinava-se ao uso ou ao tráfico. Esse paradigma é inconstitucional, pois viola preceito inscrito no artigo 5º, da Carta Magna, que determina que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Viola também um dos objetivos da República Federativa do Brasil, prescrito no artigo 3º, IV, qual seja “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.


Essa constatação é de suma importância, pois, como já visto, a conduta do usuário foi descriminalizada, enquanto a do traficante não o foi.


Quanto aos aspectos processuais relativo ao usuário, deve-se dizer que o mesmo será encaminhado aos Juizados Especiais Criminais, salvo se em concurso com os crimes previstos nos artigos 33 a 37, da nova Lei (artigo 48, parágrafo 1º), não podendo, ainda, ser preso em flagrante (até porque a pena privativa de liberdade não lhe é mais imposta), caso em que será imediatamente levado ao Juizado competente ou, em sua falta (comarca na qual não haja Juizado de plantão), deverá o usuário assumir compromisso de comparecer, lavrando-se termo circunstanciado (artigo 48, parágrafo 2º, da Lei). Assim, também não se fala mais em inquérito policial.


Se o usuário de drogas, em razão da dependência, ou sob o efeito de drogas, consumida por força maior ou caso fortuito, cometer qualquer infração penal, será isento de pena, caso, no momento da ação ou da omissão, seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar conforme este entendimento (artigo 45, da Lei Antidrogas). Entretanto, se sua capacidade de entendimento e de autodeterminação eram somente reduzidas, no mesmo sentido será sua pena, com decréscimo de 1 a dois terços (artigo 46, do mesmo Diploma Legal).


3. Repressão À Produção Não Autorizada E Ao Tráfico Ilícito De Drogas


Esse é a rubrica inscrita no Título IV, da Lei n.º 11.343/2006, que se inicia com as disposições gerais acerca da necessidade de licença prévia da autoridade competente para “(…) produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação, observadas as demais exigências legais”.  (artigo 31, da Lei)


As plantações ilícitas serão incineradas, pela autoridade policial judiciária, no prazo máximo de 30 dias, e após prévia autorização judicial e oitiva do Ministério Público, guardando-se amostra para exame pericial. A destruição deverá ser feita na frente de membro do Ministério Público e de agente da autoridade sanitária competente. A gleba será objeto de expropriação (artigo 32, da Lei n.º 11.343/76).


Os crimes previstos para o tráfico estão nos artigos 33 a 47, da nova Lei. Interesserá aqui somente os aspectos materias, deixando-se de lado, proprositadamente, as questões instrumentais.


Percebemos alterações significativas nos preceitos primários e secundários dos dispositivos que prevêem crimes para o tráfico.


O caput do artigo 33, da nova Lei passou a tratar das hipóteses que configuram o tráfico de drogas ilícitas, mantendo todas as condutas inseridas no artigo 12, da extinta Lei n.º 6368/76, tendo, entretanto, aumentado os parâmentros em abstrato do preceito secundário, que passou de reclusão de três a quinze anos e pagamento de multa de cinqüenta a trezentos e sessenta dias-multa para reclusão de cinco a quinze anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.


Outra novidade aqui se verifica quanto à quantidade de dias-multa, pois a regra geral prevista no artigo 49, do Código Penal estabelece um mínimo de 10 e um máximo de 360 dias-multa. Pela primeira vez, após a introdução do sistema dias-multa, foi estabelecido parâmetro mínimo e máximo no próprio preceito secundário.


O parágrafo 1º do artigo 33, da nova Lei prevê as hipóteses daqueles que incorrerão nas mesmas penas do caput deste dispositivo.


Segundo o que determina o parágrafo 4º, do artigo 33, da lei em análise, as penas previstas no seu caput e parágrafo primeiro, poderão sofrer diminuição de pena de um sexto a dois terços, sendo vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes (o que já impossibilita a redução para o tecnicamente primário), não se dedique às atividades criminosas e nem integre organização criminosa.


Com relação ao prescrito no parágrafo 2º, I, do extinto artigo 12, Lei n.º 6368/76, a conduta daquele que induz, instiga ou auxilia alguém ao uso indevido de droga, sofreu uma redução, pois passou a ser punida com detenção de um a três anos, e multa de cem a trezentos dias-multa e, administração, guarda ou vigilância, ou ainda consente que alguém venha a utilizá-lo, mesmo que de forma não remunerada, para o tráfico ilícito de drogas.


A nova Lei, no parágrafo 3º, do artigo 33, passou a abranger e criminalizar aquele que oferece, de forma eventual e sem objetivar lucro, qualquer droga a pessoa de seu relacionamento, para a juntos a consumirem, sendo, pois, punido com detenção de seis meses a um ano, além do pagamento de setecentos a mil e quinhentos dias-multa, sem prejuízo do previsto no artigo 28, da Lei.


Assim, vejamos. Esse indivíduo que passa a ser criminalizado é também usuário da droga e quer companhia para consumir a droga, portanto a oferece. Neste momento, ele passa a ser punido e responderá nas penas incursas tanto no artigo 28, como no § 3º, do artigo 33, da Lei. Atente para o fato de que se somente oferecer, mas não para consumir também, mesmo que a pessoa de sua relação, estará incidindo no crime do artigo 33, caput, na modalidade oferecer. Aquele que consumirá atendendo ao convite do “amigo”, responderá somente pelo artigo 28.


Desta forma, a Lei exige a presença dos seguintes requisitos:


a) que o indivíduo ofereça a droga;


b) que esse oferecimento seja eventual;


c) que esse oferecimento não objetive lucro;


d) que aquele a quem se oferece seja pessoa do relacionamento, o que se faz entender a impossibilidade de ser mero encontro;


e) que consumam juntos a droga.


Agora. Se indivíduo que oferece a droga a seu amigo, para também consumí-la, for dependente de substância entorpecente, ou aquele que o fizer, mas sob o efeito involuntário (caso fortuito ou força maior), poderá ser isento de pena ou ter a mesma reduzida (artigos 45 e 46, da nova Lei).


O artigo 34, da Lei pune aquele que de alguma forma instrumentaliza, de qualquer modo, visto que é de ação múltipla, a fabricação, preparação, produção ou transformação da droga.


O artigo 35, da Lei manteve a associação criminosa para a prática reiterada do crime de tráfico de drogas, tendo excluído, obviamente da sua esfera a associação para o uso, pois esta não é mais criminalizada. Sua pena igualmente se manteve, tendo sofrido majoração a quantidade de dias-multa atribuída em abstrato[5].


Na mesma pena, de associação, incorre aquele que financia ou custeia a prática de quaisquer das condutas previstas nos artigos 33 e 34, da nova Lei, sem prejuízo da pena cominada no artigo 36, do mesmo dilpoma legal.


O artigo 37 passou a prever a hipótese do informante, aquele que ajuda, com informações sobre a atuação policial, ajudando, assim, na não captura de grupo, organização ou associação destinadas a quaisquer crimes previstos nos artigos 33 e 34, da nova Lei.


O artigo 38,da Lei deixou de indicar o sujeito ativo do crime culposo, mas ao mencionar as expressões prescrever, ministrar  e  paciente, julgamos tratar-se daqueles mesmos que eram tratados no artigo 15, da Lei n.º 6368/76, quais sejam o médico, dentista, farmacêutico e enfermeiro, incluindo também o técnico de enfermagem. Se a conduta for dolosa, o crime previsto será o do artigo 33, da nova Lei.


Após o trânsito em julgado da condenação, seja crime doloso (artigo 33, da Lei) ou culposo (artigo 38, da Lei), o juiz comunicará a sentença ao Conselho fedral da profissão a que pertença o condenado.


O artigo 39, da Lei trata de crime de perigo abstrato, bastando a mera condução de embarcação ou aeronave, sob o efeito de drogas, não se necessitando provar o efetivo perigo. As penas previstas são cumulativas, sendo elas: pena privativa de liberdade punível com detenção; apreensão do veículo; cassação da habilitação respectiva ou proibição de obtê-la pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade aplicada; bem como pena de multa de duzentos a quatrocentos dias-multa.


Entretanto, se o veículo referido no caput do artigo 39 tratar-se de transporte coletivo de passageiro, as penas detentiva e de multa, cumulativas com as demais, sofreram aumento para, respectivamente, de quatro a seis anos e de quatrocentos a seiscentos dias-multa, conforme previsão do parágrafo único do artigo mencionado.


O artigo 40 da nova Lei estabelece que as penas previstas nos artigos 33 a 37, sofrerão majoração de um sexto a dois terços, caso incursas nas seguintes hipóteses:


I- a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circusntâncias do fato evidenciarem a transcacionalidade do delito;


Trata-se, aqui, de tráfico internacional de drogas ilícitas.


II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública ou no desempenho de missão de educação, poder familiar, guarda ou vigilância;


Aqui, pune-se aquele que exerce função pública, de qualquer natureza, em em decorrência dela, aproveita-se para cometer o crime de tráfico, em qualquer modalidade prevista nos artigos 33 a 37, da Lei n.º 11.343/2006.


Abrange também aquele que por qualquer título tenha poder sobre o menor, seja responsável legal, judicial ou mesmo aquele que chama para si a responsabilidade, mesmo transitória, de assistir, de vigiar o menor.


III – a infração iver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de dorgas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;


A razão do aumento de pena nestes casos é categórica e os locais falam por si só como motivação, visto serem locais públicos, ou para lazer e esporte, ou ainda escolas, prisões, e locais para reabilitação,tratamento de usuários etc.


O que se deve observar é quanto ao estabelecimento educacional, pois pode já estar incluído no inciso II, caso em que não se aplicará o aumento, também, pelo inciso III, pois seria dupla punição pelo mesmo fato.


IV – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva;


Aqui, o aumento se dá em razão da maior violência na prática do crime.


V – caracterizado o tráfico entre estados da federação ou entre estes e o Distrito Federal;


O inciso I, do presente dispositivo em análise trata do tráfico internacional, como já afirmado, enquanto este inciso V cuida do tráfico interestadual.


VI – sua prática envolver ou visar atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;


Aqui, o aumento se justifica em razão do sujeito passivo. Trata-se de incapaz, seja por maturidade, seja por baixa ou total incapacidade de entendimento e de se determinar contrariamente à conduta praticada pelo agente.


VII – o agente financiar ou custear a prática do crime.


Cabe aqui uma especial atenção, visto que o artigo 36, da nova Lei prevê pena diferenciada, para aquele que financia ou custeia os crimes previstos nos artigos 33, caput e § 1º e artigo 34.


Assim, entendemos que o inciso VII, do artigo 40, somente se aplica aos crimes previstos nos artigos 35 e 37, da nova Lei, excluindo-se os demais por já estarem previstos na regra do artigo 36.


O artigo 41, da Lei, trata da delação premiada e garante a redução de pena de um a dois terços para aquele que, seja em fase de inquérito policial (indiciado) seja em fase de processo judicial (acusado), voluntariamente colaborar com a identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e recuperação total ou parcial do produto do crime. Ambos requisitos são essenciais e cumulativos: a colobaração para identificação e a recuperação do produto do crime, em qualquer estado.


Para a fixação da pena de quaisquer dos crimes tratados (artigo 33 e seguintes, da nova Lei), para além das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59, do Código Penal, e com prepeonderância destas circusntâncias, o juiz observará a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente, conforme determina o artigo 42, da Lei. Deve-se, entretanto, observar que a personalidade e a conduta social já fazem parte dos critérios analisados no próprio artigo 59, do CP. Assim, deve-se entender que a natureza e a quantidade da droga é a novidade para fixação da pena e que a personalidade e conduta social sobressair-se-ão frente aos outros critérios do artigo 59, CP.


O valor de cada dia-multa a que se refere os artigos 33 a 39, da nova Lei, deverão ser atribuídos segundo a capacidade econômica do condenado (a lei fala em acusado, mas não se deve ler desta forma, em razão do princípio da inocência), sendo nunca inferior a trinta avos e sem superior a cinco vezes o maior salário mínimo vigente (artrigo 43, da Lei). Caso sejam insuficientes, em razão da situação econômica do condenado, o valor máximo pode ser aumentado até o décuplo (paráfrao único do mesmo artigo).


Para finalizar, sem entrar na questão processual, os crimes pervistos nos artigos 33, caput e parágrafo 1º, 34 e 37, da Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, ficando proibida a conversão em pena restritiva de direito (artigo 44, da Lei), bem como somente serão objeto de livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, sendo, para o reincidente específico (nestes crimes), vedada a concessão do benefício do livramento (parágrafo único do mesmo dispositivo).


4. Conclusão


O que aqui se pretendeu demonstra a novidade acerca da descriminalização do uso das drogas ilícitas, principalmente a notória seletividade do direito penal, já agora explícita, ao se determinar como critério para a verificação pelo juiz se a droga se destinava ao uso ou ao tráfico, a condição social do indivíduo.


Passou-se também pela análise da nova situação material dispensada ao traficante de drogas e também suas novas figuras, concluindo-se que para este o sistema penal se endureceu.


Todas esses pontos aqui tratados, em especial a seletividade do direito penal, devem ser analisados e pensados por toda a comunidade, jurídica ou não, para que injustiças não sejam feitas em seu nome.


Referências Bibliográficas

Andrade, Vera Regina Pereira. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In.: Introdução crítica ao estudo do sistema penal. Florianópolis: Diploma Legal. 2003.

Baratta, Alessandro. Criminologia Crítica e a Crítica da Criminologia, Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1999.

________________. Filósofo de uma Criminologia Crítica. In. Mídia e Violência Urbana. Rio de Janeiro: Faperj. 1994.

Gomes, Luiz Flávio, Nova lei de tóxicos não prevê prisão para usuário, ano 10, Teresina. Revista Eletrônica Jus Navegandi – www.jus.com.br, 2006.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

 

Legislações:

BRASIL. 2006, 23 de Agosto. Lei Antidrogas n.º 11.343. www.planalto.gov.br

BRASIL. 2002. Lei de Tóxicos N.º 10.409. www.planalto.gov.br

BRASIL. 1976. Lei de Tóxicos N.º 6.368. www.planalto.gov.br

 

Notas:

 

[1] Dentro desta orientação, Giovanni Quaglia afirma que nenhum país legalizou drogas listadas pelas convenções como ilícitas. Afirma, entretanto, que se verifica o surgimento de novas tendências na aplicação das convenções, principalmente na União Européia, sendo o consumo pessoal a principal questão.

[2] O artigo 16, da Lei n.º 6.368/76, tinha a seguinte redação: “Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determina dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar”.

[3] O controle formal pode se dar por meio dos órgãos institucionalizados de controle, como normas, sistema penitenciário, policiais, promotores de justiça etc.

[4] Este tipo de controle tem como exemplo a família, a escola, a mídia, a religião entre outros.

[5] O artigo 14, da revogada Lei n.º 6368/76 tinha como preceito secundário a pena de três a dez anos de reclusão e pagamento de cinquenta a trezentos e sessenta dias-multa, enquanto o artigo 35, da nova Lei prevê a mesma pena privativa de liberdade, qual seja pena de três a dez anos de reclusão, mas o pagamento de setecentos a mil e duzentos dias-multa.


Informações Sobre os Autores

Cristiane de Souza Reis

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)

Carlo Arruda Sousa

Técnico Jurídico da Justiça Federal do Rio de Janeiro e MBA em direito da empresa e da economia e advogado


logo Âmbito Jurídico