O Crime de Estupro de Vulnerável e as Alterações Promovidas Pelo Estatuto da Pessoa Com Deficiência

THE CRIME OF RAPE OF VULNERABLE AND THE CHANGES PROMOTED BY THE STATUTE FOR THE PERSON WITH DISABILITY

 

VEDANA, Paola Cristine[1]

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WENDRAMIN, Cassiane[2]

 

RESUMO

A instituição do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) gerou a discussão a respeito de eventual conflito entre referida legislação e o artigo 217-A do Código Penal, o qual tipifica o estupro de vulnerável. Diante desse aparente conflito, objetiva-se discutir se há incompatibilidade entre o reconhecimento da capacidade civil das pessoas com deficiência e o crime de estupro de vulnerável. Isso porque, de um lado o Estatuto Protetor garante no artigo 6º a plena capacidade civil individual do portador de enfermidade ou deficiência para exercer, inclusive, direitos sexuais e reprodutivos. Noutro ponto, a previsão penal contida no artigo 217-A considera como crime de estupro de vulnerável ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência, não tenha o discernimento necessário para consentir com o ato. A partir de uma pesquisa teórica, utilizando a metodologia analítica, analisa-se posições doutrinárias visando resolver o conflito entre normas. Concluiu-se que o conflito entre os dispositivos legais é meramente aparente, pois o discernimento para a prática do ato é elemento essencial para a caracterização ou não do crime de estupro de vulnerável, não havendo presunção de incapacidade, devendo-se proceder a análise pontual a cada caso.

Palavras-chave: estupro de vulnerável; estatuto pessoa com deficiência; vulnerabilidade; relativização; capacidade civil.

 

ABSTRACT

The institution of the Disabled Persons Statute (Law n. 13.146/2015) occasioned a discussion concerning the eventual conflict between the above-mentioned law and the article 217-A of the Penal Code, which typifies the rape of vulnerable. In this apparent conflict, the objective is to discuss if there is incompatibility between the recognition of civil capacity of disabled persons and the crime of rape of vulnerable. That’s because, on the one hand the Protector’s Statute ensures in its 6th article full individual civil capacity of the disabled to exercise, including, sexual and reproductive rights. On other hand, the criminal prosecution proposed in the article n. 217-A considers as a crime rape of vulnerable having carnal conjugation or libidinous practice with someone that, due the illness or disability, do not have the necessary discernment to consent to the act. From a theoretical research, using an analytical methodology, doctrinal positions are analyzed in order to solve the conflict between rules. It was concluded that the conflict between the legal regulations is appearance, because the discernment to the act practice is the essentials element for the characterization or not of the crime of rape of vulnerable, not having presumption of incapability, a punctual analysis of each case should be proceeded.

Keyword: rape of vulnerable; statute for the person with disability; vulnerability; relativization; civil capacity.


1 INTRODUÇÃO

Durante muitos anos, o portador de enfermidade ou deficiência mental sofreu limitações ao exercício de alguns direitos, em virtude de ser considerado absolutamente incapaz, incapacidade esta que, após a vigência da Lei n. 13.146/2015, sofreu significativa alteração, visto que, desde então, a pessoa com deficiência passou a integral o rol de incapacidade relativa, em alguns casos.

Objetivou-se, com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) a inclusão da pessoa com deficiência, de modo a garantir a igualdade e a não discriminação, além de promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, tendendo à sua inclusão social e cidadania, garantindo a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida, o direito à habitação e a reabilitação, saúde, educação, trabalho, entre outros, culminando em importantes conquistas ao enfermo ou deficiente mental, inclusive no tocante à tipificação de novos crimes que punem o preconceito e discriminação contra pessoas com deficiência, porém, notou-se que a Lei n. 13.146/2015 não alterou o Código Penal Brasileiro, de modo que surgem supostas incompatibilidades entre os textos legais.

Denota-se no capítulo nominado crimes contra a dignidade sexual, do Código Penal, que, de acordo com a reforma parcial realizada pela Lei n.º 12.015, de 7 de agosto de 2009, passou a ser crime de estupro de vulnerável a prática de qualquer ato sexual com pessoa menor de 14 anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, punido com 8 (oito) a 15 (quinze) anos de reclusão (artigo 217-A). Dessa forma, as pessoas com deficiência mental, para o Código Penal e notadamente no que tange aos crimes sexuais, são consideradas vulneráveis e, de primeiro momento, incapazes de consentir com a prática de atos sexuais.

Noutra perspectiva, com a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, especificamente em seu artigo 6º, prevê-se que a pessoa com deficiência não tem a capacidade civil afetada, ao contrário, tem proteção legal para exercer seus direitos civis, inclusive no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos.

Percebe-se haver contradição entre as duas normas, gerando conflito sobre suas aplicações, assim, eventual inobservância pelo legislador gerou discussões entre os operadores do direito, vez que precisam avaliar caso a caso quando uma pessoa tem ou não discernimento para os atos da vida sexual, gerando incertezas e inseguranças.

Assim, o presente artigo buscará compatibilizar as duas normas. O tipo de pesquisa utilizada será a bibliográfica e qualitativa, enquanto que o método aplicado será hipotético dedutivo. Primeiramente, fazendo a análise da capacidade civil e seus desdobramentos, como sendo capacidade de direito e capacidade de fato. Na sequência, far-se-á o estudo da capacidade civil segundo as disposições trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, identificando as mudanças trazidas pela nova legislação e seus reflexos. O terceiro capítulo adentrará na esfera penal, caracterizando o tipo penal do estupro de vulnerável, de acordo com a disposição do Código Penal, e principalmente, quando se tratar de vítima deficiente. Ainda se fará a análise da figura de vulnerabilidade trazida pela Lei n. 12.015/09, legislação esta responsável pela criação do tipo penal em estudo.

Por fim, buscar-se-á a compatibilização das disposições civis e penais,  objetivando solucionar eventual conflito existente entre as duas normas.

 

2 A CAPACIDADE CIVIL E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

O Código Civil, em seu primeiro capítulo, aborda sobre a personalidade e a capacidade das pessoas naturais. Um dos preceitos mais importantes quando se estuda a pessoa natural, é o relacionado com a sua capacidade, conceituada em sentido amplo como sendo “a aptidão da pessoa para exercer direitos e assumir deveres na órbita civil” (TARTUCE, 2017, p. 120).

Ao adquirir a personalidade jurídica, toda pessoa passa a ser capaz de direitos e obrigações, havendo, portanto, a capacidade de direito ou de gozo. Podendo atuar pessoalmente para a prática dos atos civis, possuem também, a capacidade de fato ou exercício. Reunindo os dois atributos, fala-se em capacidade civil plena (GAGLIANO, 2015).

Dessa forma, denota-se que a capacidade civil tratada pelo ordenamento jurídico desdobra-se em capacidade de direito e capacidade de exercício.

A capacidade de direito, trazida pelo artigo 1º da codificação civil, trata-se da capacidade que toda pessoa possui para ser titular de direitos e deveres na ordem civil. Logo, havendo pessoa, haverá capacidade, sem importar questões formais, a exemplo da exigência de certidão de nascimento ou documentos (TARTUCE, 2017).

Isso importa dizer que qualquer ser humano, sem distinção, tem total possibilidade de adquirir direitos e obrigações (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2017).

Utiliza-se, também, a expressão capacidade jurídica, a qual refere-se a aptidão atribuída pelo ordenamento jurídico às pessoas em geral, e a certos entes, em particular, formados por grupo de pessoas ou universalidades patrimoniais, para   serem titulares de uma situação jurídica (MELLO, 2000, apud GAGLIANO, 2015).

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Assim, a capacidade tratada pelo artigo 1º do Código Civil não admite graduações, ou seja, o sujeito é ou não é capaz, uma vez que esta é reconhecida a todo sujeito, sem qualquer requisito a ser preenchido.

Entretanto, embora a capacidade de direito seja reconhecida a todo e qualquer sujeito, não necessariamente lhe será permitido o exercício por si só de atos da natureza privada, surgindo então, a falta de capacidade de exercício ou de fato, a qual se refere à capacidade do sujeito exercer os atos da vida civil diretamente por si, sem auxílio de terceiros.

O sujeito dotado da capacidade de exercício de direitos atua pessoalmente na prática dos atos que colocam em movimento a sua esfera jurídica, isto é, não carece de ser substituída por um representante legal, quer seja designado na lei ou em conformidade com ela, e atua autonomamente, isto é, não precisa do consentimento, anterior ou posterior ao ato de outra pessoa, no caso, assistente (PINTO, 2005).

Segundo Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus e Maria Izabel Melo (2017, p. 121), “A capacidade para o exercício dos direitos envolve, para muito além da mera personalidade, o preenchimento de requisitos legais para que o sujeito de direitos possa, além de adquirir direitos, exercê-los plenamente.”

Tais requisitos são firmados pela legislação civil, a fim de proteger a situação de determinadas pessoas que, por imaturidade ou alguma outra condição especial, podem adquirir direitos, mas não podem exercê-los senão através de representante ou assistente, conforme o caso (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2017).

Denota-se que, ao contrário da capacidade de direito, a capacidade de fato expressa critério quantitativo, especificados nos artigos 3º e 4º do Código Civil[3], fixando critérios legais que justificariam que alguém viesse a ser considerado incapaz. Denota-se a classificação etária, ao dispor que são absolutamente incapazes os menores de 16 anos e, relativamente incapazes os maiores de 16 anos e menores de 18 anos. Ainda, conforme previsão expressa do artigo 5º, caput, também do Código Civil, são plenamente capazes os maiores de 18 anos.

Ressalta-se que, no tocante aos direitos do menor, a vontade deste, sempre que possível, deve ser levada em consideração, desde que, para tanto, este demonstre discernimento (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2017).

No tocante ao fator sanidade, objeto de estudo do presente trabalho, era expressamente previsto nos artigos 3º, II e III, e 4º, II e IV, do Código Civil, até ocorrer a mudança nesse regime com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, qual seja, Lei n. 13.146/2015.

Assim, todo ser humano tem capacidade de direito, pelo fato de que a personalidade jurídica é atributo inerente à sua condição, porém, nem toda pessoa possui aptidão para exercer pessoalmente os seus direitos, praticando atos jurídicos, em razão de limitações orgânicas ou psicológicas (GAGLIANO, 2017). De tal modo, a capacidade, conforme exposto, é relativizada pela lei, logo, poderá sofrer restrições somente quanto ao seu exercício. Reunindo-se a capacidade de direito com a capacidade de exercício ou de fato, tem-se a capacidade civil plena.

Diante disso, “A capacidade civil consiste na restrição legal ao exercício dos atos da vida civil, devendo sempre ser encarada estritamente, considerando-se o princípio de que ‘a capacidade é regra e a incapacidade a exceção’” (DINIZ, 2010, p. 12).

Nesse sentido, a capacidade de direito é confundida com a personalidade, em virtude de toda pessoa ser capaz de direitos. Ninguém pode ser totalmente privado dessa espécie de capacidade.

Não se pode exercer um direito sem ser capaz de adquiri-lo, logo, a capacidade de fato condiciona-se à capacidade de direito. Contudo, pode-se ter capacidade de direito sem capacidade de fato, ou seja, o sujeito adquire o direito, mas não pode exercê-lo por si. Assim, a impossibilidade do exercício é, tecnicamente, incapacidade (GOMES, 2010, apud GAGLIANO, 2015).

 

2.1  A CAPACIDADE CIVIL E A PREVISÃO DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Conforme exposto, as disposições anteriores contidas no Código Civil consideravam como incapazes os que por enfermidade ou deficiência mental não tivessem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, bem como os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Tal incapacidade sofreu significativa alteração desde a vigência da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, tendo como marco inicial o Decreto Legislativo n. 186, de 2008, que formalizou a recepção, com status de emenda constitucional, do texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, pelo Brasil. Desde então, o texto da referida Convenção já produzia efeitos no país, com força de emenda constitucional.

Publicada em 6 de julho de 2015, a Lei n. 13.146 entrou em vigor após 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial, instituindo, assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

O objetivo da Convenção que fundamentou o Estatuto é o de proteger, promover e assegurar o exercício pleno e de forma igual de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por pessoas portadoras de deficiência, além de promover o respeito pela sua dignidade (CAPUCHO; SOUZA, 2018).

Já em suas primeiras disposições, denota-se que a nova legislação acarretou em significativas mudanças no ordenamento jurídico, refletindo diretamente no Código Civil, onde trata sobre as incapacidades, que deixou de considerar como absolutamente incapaz de exercer direitos da vida civil a pessoa portadora de deficiência, conforme se extrai do artigo 6º do Estatuto, in verbis:

Art. 6o  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I – casar-se e constituir união estável;

II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

De acordo com a Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência, confere-se ao deficiente direitos que antes lhe eram limitados, modificando diversos dispositivos legais vigentes. A pessoa com deficiência deixa de ser considerada incapaz, na medida em que os artigos 6º e 84[4] da Lei n. 13.146/15 deixam claro que a deficiência não afeta a capacidade civil.

Pablo Stolze (2017, p. 50, grifo do autor) aduz que “com o advento da Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, uma verdadeira reconstrução jurídica se operou. Com efeito, de maneira inédita, o Estatuto retira a pessoa com deficiência da categoria de incapaz. Trata-se de uma mudança paradigmática, senão ideológica”. Completa considerando ser uma “verdadeira reconstrução valorativa na tradicional tessitura do sistema jurídico brasileiro da incapacidade civil”.

Sabe-se que em determinadas situações a pessoa com deficiência não terá condições de, por si só, tomar decisões e expressar adequadamente sua vontade, a qual fica permitida a instituição da curatela. Todavia, a nomeação de curador é medida excepcional, sendo possível somente a partir de decisão judicial, conforme previsão contida no §1º[5] do artigo 84 da Lei n. 13.146/15.

De acordo com a nova previsão, a pessoa com deficiência não será considerado absolutamente incapaz. A partir da Lei n. 13.146/15, as causas transitórias que impedem a manifestação da vontade tornam o sujeito relativamente incapaz, de acordo com o artigo  4º, inciso III, do Código Civil. Então, as pessoas relativamente incapazes de exercer seus direitos devem ser assistidas para a prática dos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade do ato ou negócio. Os enfermos, deficientes mentais e acometidos de causas transitórias (incapazes condicionados) serão assistidos por curadores, também nomeados na forma da lei (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2017).

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Uma vez que a pessoa com deficiência física torna-se capaz ao completar 18 anos e não necessita de proteção especial nesse aspecto, estabeleceu-se que a pessoa com deficiência deve sofrer a mínima limitação possível no exercício de seus direitos de natureza patrimonial e negocial, considerando-se que a curatela é medida protetiva extraordinária, mantida pelo menor tempo possível.

Assim, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, o rol de incapacidade absoluta previsto no Código Civil sofreu alteração, passando a pessoa com deficiência transitória ou permanente a se enquadrar nas hipóteses de incapacidade relativa (art. 4º, III, do Código Civil).

Com o advento do Estatuto Protetor, precisamente no §2º do já citado artigo 84, criou-se ainda a figura da tomada de decisão apoiada, atualmente prevista no artigo 1.783-A[6] do Código Civil, que permite que a pessoa com deficiência que tenha alguma dificuldade para se expressar possa nomear duas pessoas de sua confiança para auxiliá-lo no exercício de sua capacidade.

Segundo Pablo Stolze (2017), em homenagem o princípio da dignidade da pessoa humana, a pretensão do Estatuto da Pessoa com Deficiência foi fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada” como incapaz, para ser considerada — em uma perspectiva constitucional isonômica — dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a citada tomada de decisão apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil.

Notória a importância de tal legislação, pois sabe-se que durante anos a pessoa portadora de deficiência foi de certa forma excluída e tinha seus direitos civis negados, tudo, é certo, em virtude de trazer maior proteção e resguardo. Entretanto, de maneira equivocada, a sociedade acabava por empregar conceitos de inaptidão diante aos atos da vida civil, ignorando a vontade, opiniões e desejos da pessoa com deficiência (CAPUCHO; SOUZA, 2018).

Dessa forma, percebe-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência gerou uma evolução social, introduzindo em seu artigo 12, item 2, que “os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida” (BRASIL, 2007). (Grifou-se).

O tratamento da sociedade face às pessoas com deficiência evoluiu significativamente, tendo como maior avanço a inclusão social. A deficiência torna-se um dever coletivo de adaptação às diferenças.

Nesse sentido, para a inclusão de todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada, partindo do entendimento de que ela é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros. Através da educação, reabilitação, qualificação profissional, entre outros, o desenvolvimento das pessoas com deficiência deve acontecer dentro do processo de inclusão, e não como um pré-requisito para estas pessoas poderem fazer parte da sociedade, como se elas “precisassem pagar ‘ingresso’ para integrar a comunidade” (CLEMENTE FILHO, 1996, p.4 apud SASSAKI, 1999, p.40).

A sociedade torna-se menos excludente e, por consequência, mais inclusiva, a partir do momento em que reconhece a diversidade humana e as necessidade específicas dos vários segmentos sociais, incluindo as pessoas com deficiência, para que se promova ajustes razoáveis e correções que sejam imprescindíveis para seu desenvolvimento pessoal e social, “assegurando-lhes as mesmas oportunidades que as demais pessoas para exercer todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. (FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016).

Dentro deste paradigma de inclusão social e direitos humanos é que se deve inserir e tratar a questão da deficiência. Atualmente, o desafio é promover uma sociedade que seja para todos, onde os projetos, programas e serviços sigam o conceito de desenho universal, que se atenda, da melhor forma possível, às demandas da maioria das pessoas, e que não se exclua as necessidades específicas de determinados grupos sociais, dentre os quais estão as pessoas com deficiência (FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016).

A pessoa com deficiência, numa perspectiva dignificante, passou a ser plenamente capaz. O Estatuto compreendeu que o conceito de capacidade é umbilicalmente ligado ao valor supremo da dignidade da pessoa humana (GAGLIANO, 2017)

Por outro lado, de primeiro momento, denota-se que referida alteração talvez deixou de observar outras situações previstas no ordenamento jurídico, no que se refere aos crimes contra a dignidade sexual, especificamente o crime tipificado como estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, conforme se verá adiante.

 

3 A CONDUTA TIPIFICADA DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

De acordo com o Código Penal, o crime de estupro de vulnerável constitui-se da conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, cuja pena é de “reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”    (BRASIL, 1940).

Considera-se o estupro de vulnerável como uma das mais importantes inovações promovidas pela Lei 12.015/2009, pois, com a criação do artigo 217-A, aboliu-se a presunção de violência nos crimes sexuais, a partir da revogação artigo 224[7] do Código Penal”.

Como vulnerável, considera-se o menor de 14 anos e aquele que, por enfermidade ou doença mental não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou aquela que, mesmo por causa transitória, não possa oferecer resistência, conforme se verifica pela redação do §1º do art. 217-A do Código Penal.

Na redação original do Código Penal, existiam os crimes de estupro (art. 213) e de atentado violento ao pudor (art. 214), estando, atualmente, tais delitos reunidos no mesmo tipo penal, disciplinado no art. 213 e com o nomen iuris estupro. Além disso, o estupro com violência real ou grave ameaça e o estupro com violência ficta integravam um único tipo penal, com penas idênticas. Enquanto no estupro com violência real ou grave ameaça a adequação típica era imediata, permitindo a imputação ao agente do crime definido no art. 213 do Código Penal, no estupro com violência presumida a adequação típica era mediata, dependendo do socorro de norma de extensão da tipicidade. Com efeito, a imputação, em algumas situações, dizia respeito ao art. 213 cumulado com o art. 224 (MASSON, 2014).

Atualmente são dois crimes diversos, dependendo do perfil subjetivo do ofendido. Nos casos em que a vítima for pessoa vulnerável, aplicar-se-á o art. 217-A, ao passo que nas demais hipóteses incide o art. 213, ambos do Código Penal.

Para Cleber Masson, a fragilidade da vítima e a amplitude dos efeitos negativos causados à pessoa de pouca idade, portadora de enfermidade ou deficiência mental ou sem possibilidade e resistir ao ato sexual, torna o crime de estupro de vulnerável mais grave, justificando-se a maior reprovabilidade na covardia do agente (MASSON, 2014).

A prática do delito em tela fere tanto a liberdade quando a dignidade sexual do vulnerável, permitindo ainda, apontar o desenvolvimento sexual também como bem juridicamente tutelado pelo tipo penal em estudo (GRECO, 2014).

Aduz Rogério Greco (2014, p. 746) que “o estupro de vulnerável, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, presumivelmente incapaz de consentir para o ato, como também seu desenvolvimento mental”.

A conduta típica consiste em ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. De acordo com o § 1º, incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Luiz Régis Prado (2010, p. 623) define que a conjunção carnal “consiste na cópula natural efetuada entre homem e mulher, ou seja, a cópula vagínica natural, com a intromissão do pênis na cavidade vaginal”.

Ato libidinoso, segundo Fernando Capez (2012), compreende, nesse conceito, outras formas de realização do ato sexual, que não a conjunção carnal. São os coitos anormais (por exemplo, a cópula oral, anal).

No tocante aos sujeitos do estupro de vulnerável, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo, indistintamente, homem ou mulher, contra, inclusive, pessoa do mesmo sexo. O sujeito passivo, da mesma forma, pode ser qualquer pessoa que apresente a qualidade ou condição especial de vulnerabilidade exigida pelo tipo penal, quer seja pela questão etária, seja em razão enfermidade ou deficiência mental, que por ela não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou, ainda, que por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (BITENCOURT, 2012).

Rogério Greco (2014, p. 746) traz a ressalva de que “quando se tratar de conjunção carnal, a relação deverá, obrigatoriamente, ser heterossexual.”

Assim, conclui-se que nas demais hipóteses qualquer pessoa poderá figurar nessa condição.

Quanto à consumação, cita-se Rogério Greco (2014, p. 747):

No que diz respeito à primeira parte constante do caput do art. 217-A do Código Penal, o delito de estupro de vulnerável se consuma com a efetiva conjunção carnal, não importando se a penetração foi total ou parcial, não havendo, inclusive, necessidade de ejaculação. Quanto à segunda parte prevista no caput do art. 217-A do estatuto repressivo, consuma-se o estupro de vulnerável no momento em que o agente pratica qualquer outro ato libidinoso com a vítima. Vale frisar que, em qualquer caso, a vítima deve se amoldar às características previstas tanto no caput, como no § 1º do art. 217-A do Código Penal, não importando se tenha ou não consentido para o ato sexual. Em se tratando de um crime plurissubsistente, torna-se perfeitamente admissível a tentativa.

Logo, a consumação do estupro de vulnerável não pressupõe conjunção carnal propriamente dita, mas qualquer prática de ato libidinoso contra menor.

Pune-se o crime de estupro de vulnerável a título de dolo, devendo o agente ter ciência de que age em face de pessoa vulnerável. As qualificadoras estão elencadas nos §§3º e 4º do artigo 217-A, punindo-se com reclusão de 10 a 20 anos quando resultar lesão grave, e 12 a 30 anos, quando da conduta se resulta a morte (CUNHA, 2017).

Completando tais avanços trazidos pela Lei n. 12.015/2009, a novel legislação erigiu o estupro de vulnerável à categoria de crime hediondo, tanto na sua forma simples como na forma qualificada (art. 1.°, VI, Lei 8.072/1990). Nesses casos são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança (art. 2.°, I e II, Lei 8.072/1990 e art. 5.°, XLIII, CF).

Conforme exposto, a Lei n. 12.015/2009, importou em diversas mudanças à legislação penal, ao criar o artigo 217-A do Código Penal, punindo a prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso, especificamente, contra aquele que a lei eleger como vulnerável. A proteção trazida pelo caput de referido dispositivo é a favor do menor de 14 anos, trazendo de forma taxativa a proibição de prática sexual com menor de idade. O mesmo dispositivo em seu § 1º, tratou de elencar como vulnerável a pessoa com deficiência, quando lhe faltar discernimento para consentir com o ato. Percebe-se não ser por acaso que o legislador tratou de diferenciar os sujeitos passivos, visto que, tratando-se do menor de 14 anos, basta a prática do ato sexual e restará configurado a conduta vedada pelo tipo penal, e no tocante ao §1º, traz-se uma condição determinante para a incidência do crime de estupro de vulnerável.

 

3.1 O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRATICADO CONTRA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Como já visto, a Lei n. 12.015/09 criou o tipo penal de estupro de vulnerável. Além do menor de 14 anos, a disposição prevê outra figura de vulnerável, conforme se vê pelo §1° do art. 217-A do Código Penal, dispõe que incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, em virtude de enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

O revogado art. 224, b, do Código Penal, já citado anteriormente, fazia menção à vítima alienada ou débil mental, exigindo que o agente devesse conhecer essa circunstância. O art. 217-A, §1º, abrangeu a referida hipótese, incluindo, ainda, a vítima enferma, a qual já era tutelada pelo art. 224, c, do Código Penal.

Denota-se, pela própria redação do tipo penal, que se deve provar, no caso concreto, que em virtude de tais condições, a vítima não tem o necessário discernimento para a prática do ato.

Sobre a comprovação da ausência de discernimento deverá ser realizada através de laudo pericial, caso contrário, correrá o risco de não restar atestada a materialidade do crime (CAPEZ, 2012).

Tal situação em tudo difere da prevista no caput de referido artigo. Infere-se não ter sido por acaso que o legislador cindiu o tipo penal entre o caput e o § 1º, mas sim para tratar do sujeito passivo do crime. No caso da vítima deficiente, assim como ocorria em relação ao menor de quatorze anos, o ordenamento anterior à Lei n. 12.015/09 presumia a violência por meio do mesmo artigo 224 do Código Penal. No caso do deficiente mental, não se pune a relação sexual pelo simples fato de ter sido praticada com alguém nesta condição, como ocorre no caso do menor de 14 (quatorze) anos (CUNHA, 2017).

Define-se, de acordo com o artigo 2º da Lei n. 13.146/15, como pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Rogério Greco (2014, p. 744), dissertando sobre o assunto, define enfermidade mental como “toda doença ou moléstia que comprometa o funcionamento adequado do aparelho mental”.

Logo, deve-se considerar os casos de neuroses, psicopatias e demências mentais (GRECO, 2014).

Além do critério biológico (enfermidade ou deficiência mental), para que a vítima seja considerada pessoa vulnerável, não poderá ter o necessário discernimento para a prática do ato (critério psicológico).

Pelo contido na primeira parte do aludido parágrafo do artigo 217-A do Código Penal, Luiz Regis Prado (2010, p. 624) entende que “para que a vítima receba a tutela penal há necessidade de se apresentar praticamente nas mesmas condições psíquicas do artigo 26[8] do Código Penal”, ou seja, não ter nenhuma capacidade de discernimento sobre o ato atentatório à sua liberdade sexual.

Ressalta-se que não se proíbe que alguém acometido de uma enfermidade ou deficiência mental tenha uma vida sexual normal, tampouco pode-se punir aquele que com ele teve algum tipo de ato sexual consentido.

A proibição trazida pela legislação é que se mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com alguém que tenha alguma enfermidade ou deficiência mental que não possua o necessário discernimento para a prática do ato sexual (GRECO, 2014).

Aduz Bittencourt (2015, p. 109), que “ainda que, in concreto, se comprove que a vítima realmente não tem ‘o necessário discernimento para a prática do ato’, não pode ser ignorado o direito à sexualidade dos portadores de enfermidade ou deficiência mental”.

Para Rogério Greco (2014, p. 745) “não se pode confundir a proibição legal do §1º do art. 217-A do Código Penal com uma punição ao enfermo ou deficiente mental”.

Ante o exposto, denota-se que somente será considerada vítima do delito de estupro de vulnerável aquele que não tenha condições de consentir com o ato, devido à ausência de discernimento, em virtude de ser conferido à pessoa com deficiência total liberdade para a prática de atos da vida sexual e reprodutiva, sem deixar de possui, é claro, a proteção trazida pelo Código Penal, quando for vulnerável.

 

3.2 A FIGURA DA VULNERABILIDADE CRIADA PELA LEI Nº 12.015/2009

Durante muito tempo os Tribunais, principalmente Superiores, questionavam a presunção de violência constante do revogado artigo 224 da legislação penal, entendendo-a, em muitos casos, como relativa, sob o argumento de que a sociedade do final do século XX e início do século XXI havia modificado significativamente, e que os menores de 14 anos não exigiam a mesma proteção que aqueles que viveram quando da edição do Código Penal, em 1940 (GRECO, 2014).

No entanto, doutrina e jurisprudência se desentendiam quanto a esse ponto, discutindo se a aludida presunção era de natureza relativa (iurís tantum), que cederia diante da situação apresentada no caso concreto, ou de natureza absoluta (iurís et de iuré), não podendo ser questionada (GRECO, 2014).

Discutiu-se, ainda, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, se o estupro de vulnerável, sem violência ou grave ameaça, era ou não hediondo. A Lei n. 12.105/2009 acabou com tal discussão ao incluir expressamente o artigo 217-A no rol de delitos hediondos (CUNHA, 2017).

Com o advento da Lei n. 12.015/09 ocorreram significativas alterações no Título VI da parte especial do Código Penal, passando a denominá-los “Crimes contra a dignidade sexual”. Preocupou-se, principalmente com a dignidade da pessoa humana, pilar do Estado Democrático de Direito, quando referida alteração de nomenclatura indica, desde logo, que a preocupação do legislador não se limita ao sentimento de repulsa social a esse tipo de conduta, da mesma forma que ocorria nas décadas anteriores, mas sim à efetiva lesão ao bem jurídico em questão, ou seja, à dignidade sexual de quem é vítima desse tipo de infração (NUCCI, 2014).

Uma das mais importantes mudanças trazidas pela novel legislação – trazendo também profundas consequências – para Guilherme de Souza Nucci refere-se à junção, em um único tipo penal, das condutas anteriormente trazidas pelos artigos 213 e 214 do Código Penal, estando agora previstas como estupro, no artigo 213. Em relação ao estupro de vulnerável, tal conduta era genericamente tratada pelos artigos 213 e 214, combinados com o artigo 224, ambos do Código Penal, sendo que com a nova lei, recebeu tipificação exclusiva, estando agora prevista no artigo 217-A (NUCCI, 2014).

Conforme se extrai de referido tipo penal, a legislação elencou os sujeitos vulneráveis sexualmente, sendo o menor de 14 anos, conforme disposição do artigo 217-A, caput; o portador de enfermidade ou deficiência mental que em razão da patologia não tem o necessário discernimento para a prática do ato; e aquele que em razão de qualquer outra causa não pode oferecer resistência (§1º).

Percebe-se que o legislador criou uma figura típica em substituição às hipóteses de presunção de violência constantes do revogado artigo 224 do Código Penal (GRECO, 2014).

A vulnerabilidade, seja em razão da idade, seja em razão do estado ou condição da pessoa, diz respeito a sua capacidade de reagir a intervenções de terceiros quando no exercício de sua sexualidade. Assim, o sujeito passivo é caracterizado como vulnerável quando é ou está mais suscetível à ação de quem pretende intervir em sua liberdade sexual, de modo a lesioná-la (PRADO, 2010).

O legislador utiliza-se do conceito de vulnerabilidade para diversos enfoques, em condições distintas. Tais aspectos demonstram que há concepções distintas de vulnerabilidade, ou seja, uma vulnerabilidade absoluta e outra relativa: a primeira refere-se ao menor de quatorze anos, configuradora da hipótese de estupro de vulnerável (art. 217-A), quando a segunda se refere ao menor de dezoito anos, empregada ao contemplar a figura do favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 218-B). Aliás, os dois dispositivos legais usam a mesma fórmula para contemplar a equiparação de vulnerabilidade, nas respectivas menoridades (quatorze e dezoito anos), ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (BITENCOURT, 2012).

Nos dois dispositivos cria-se hipóteses de interpretação analógica (ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência) que deve obedecer aos atributos dos respectivos paradigmas (BITENCOURT, 2012).

Para os casos de vítima menor de 14 anos, Rogério Greco (2014) sustenta que o critério adotado pelo legislador foi objetivo, logo, não importa discussão sobre a relatividade ou não da ideia de vulnerabilidade, pois “a determinação da idade foi uma eleição político-criminal feita pelo legislador. O tipo não está presumindo nada […] está somente proibindo que alguém tenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de 14 anos […] (GRECO, 2014, p. 774).

Dessa forma, nota-se a divergência doutrinária acerca das circunstâncias em que deve incidir a norma protetora aos ditos incapazes, sendo tal discussão até então travada sob a ótica dos efeitos e da extensão da expressão presunção de violência, mas que agora resta-se moldada sob a ideia de vulnerabilidade.

 

4 COMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL DE ESTUPRO E A CAPACIDADE CIVIL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Conforme já exposto, após a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência houve um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que trouxe uma carga axiológica repleta de reconhecimento de direitos tendentes a quebrar paradigmas, gerando igualdade e propiciando ferramentas para a inclusão das pessoas com deficiência no contexto social.

Entre os direitos conferidos, salienta-se o reconhecimento daqueles relacionados à sexualidade da pessoa com deficiência, expressamente previstos nos artigos 6º, inciso II; 8º; 18, incisos VI e VII; e ainda, 85, §1º; todos da Lei de Inclusão à Pessoa com Deficiência.

Diante do reconhecimento de tais direitos e autonomia da pessoa com deficiência no tocante aos aspectos de sua vida sexual, surge o questionamento se essa independência retira a proteção trazida pelo artigo 217-A do Código Penal.

Na ótima penal, o reconhecimento da autonomia à sexualidade das pessoas com deficiência teria lhes tirado a condição de vulneráveis, deixando, assim, de classificá-las como vítima do estupro de vulnerável?

Verifica-se, a partir das disposições das duas normas, que a resposta é negativa. Isso porque, os efeitos da incapacidade devem ser proporcionais à exata medida da ausência do discernimento, a fim de que não se tolha, sob pretexto protetivo, a autonomia do sujeito, mas também não se o abandone desprotegido quando precisa desse manto protetor da lei (MENEZES, 2016).

Assim sendo, o objetivo da lei é o de preservar, ao máximo, a autonomia do deficiente, respeitadas as limitações do caso concreto. A regra é de que a curatela só atinja relações patrimoniais, logo, o curador não deverá interferir nas relações existenciais, preservando-se, assim, a autonomia e a dignidade do curatelado (FIUZA, 2015).

Ressalta-se que o Estatuto, diante do reconhecimento dos direitos sexuais à pessoa portadora de deficiência tornou expresso que tais pessoas também estão sujeitas a desejos, aspirações, vontades e necessidades típicos dos demais seres humanos, abrindo os olhos da sociedade para tal realidade (SANTOS, 2017).

Nesse contexto, avalia-se que as pessoas com deficiência devem-se atentar para a relatividade de sua vulnerabilidade. Para Cléber Couto (2015), a vulnerabilidade do portador de enfermidade ou deficiência mental, quando em razão disso, falta-lhe discernimento para a prática do ato, deve-se interpretar que o crime somente ocorrerá se a patologia que acomete a vítima retirar-lhe o necessário discernimento para a relação sexual. Logo, o crime só ocorrerá se provada a imaturidade biopsicoética, que afeta a livre determinação no plano das atividades sexuais.

Então, só se caracterizará o crime quando o agente conhecer e aproveitar-se da situação, pois não se pode impedir que aquele que possua deficiência ou enfermidade tenha o direito de amar e ter uma vida sexual (COUTO, 2015)

Denota-se que a capacidade de compreensão do deficiente, a partir da Lei de Inclusão, passa a ser visto como regra. De forma excepcional não estará presente, ensejando medidas protetivas legais nos mais diversos campos, inclusive o penal.

É necessária a compreensão de falta de discernimento como incapacidade de exprimir a própria vontade. Essa capacidade a própria vontade tem de satisfazer um requisito de validade, não é um conceito que se conforme apenas no plano físico, com emissão de palavras, gestos, entre outros. A vontade demonstrada com capacidade é a livre e consciente, livre de fraude, coação, erro, violência, etc., ou seja, a liberdade real é caracterizada por uma ação consciente e informada (PEREIRA, 2015).

Tratando-se de estupro de vulnerável, não se pune a relação sexual pelo simples fato de ter sido praticada com alguém nesta condição, como ocorre no caso do menor de quatorze anos. Caracteriza-se o crime se o agente mantiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, em virtude de enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para consentir com o ato. Dessa forma, ao contrário do que se verifica no caput, é imprescindível apurar no caso concreto se a pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental tinha ou não discernimento para a prática do ato (CUNHA, 2017).

Ainda, segundo Rogério Sanches (2017, p. 500):

O Estatuto da Pessoa com Deficiência em nada interfere na caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois desde a edição da Lei 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a enfermidade ou a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento. As disposições do art. 6° do Estatuto podem servir para reforçar a indicação do Código Penal, mas não há mudança substancial na incidência do tipo.

Logo, a vulnerabilidade não será analisada com base somente na existência de enfermidade ou doença mental, mas na autonomia da vontade da pessoa com deficiência. A partir disso, verifica-se a necessidade de uma interpretação compatível com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em consonância com as disposições legais previstas no Código Penal (SANTOS, 2017).

Demonstra-se que, embora a Lei de Inclusão tenha trazido a garantia de direitos subjetivos, como aqueles sexuais e reprodutivos, não importa dizer que o Código Penal produzirá interferências nos direitos assegurados aos indivíduos contemplados pela nova legislação. O exercício de tais direitos pressupõe que o deficiente tenha capacidade de entender as consequências dos atos praticados, não ocorrendo, então, com aqueles que tenham a consciência afetadas por alguma enfermidade, deficiência intelectual, ou ainda, que por causa transitória não possa oferecer resistência (CAPUCHO; SOUZA, 2018).

O Tribunal de Minas Gerais tem adotado o posicionamento da análise do caso concreto para julgamento das causas. Extrai-se:

EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – ESTUPRO DE VULNERÁVEL – VÍTIMA INTERDITADA – APLICAÇÃO DA LEI Nº 13.146/15 – RECONHECIMENT DE “ABOLITIO CRIMINIS” – ATIPICIDADE DA CONDUTA – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.- O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15) em nada interfere na caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois desde a edição da Lei nº 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a enfermidade ou a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento.- As disposições do art. 6º do referido Estatuto podem servir para reforçar a indicação do Código Penal, mas não há mudança substancial na incidência do tipo, razão pela qual, não se trata, no caso em comento, de reconhecer o “abolitio criminis” (art. 217-A, §1º, do CP), tampouco a atipicidade da conduta do condenado. (TJMG – Agravo em Execução Penal 1.0637.14.001814-3/001, Relator(a): Des.(a) Wanderley Paiva, 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 06/12/2016, publicação da súmula em 25/01/2017) (MINAS GERAIS, 2017, grifou-se).

Ainda, já se posicionou o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[9], que não havendo comprovação de que a vítima, à época do fato não possuía o necessário discernimento para a prática do ato, não está configurada a tipicidade do delito previsto no artigo 217-A, §1º, do Código Penal (RIO DE JANEIRO, 2017).

Nota-se que o Estatuto veio reforçar algo já trazido desde a vigência da Lei n. 12.015/09, em que a presunção de violência foi excluída do ordenamento jurídico brasileiro, gerando a necessidade de apurar se a deficiência mental ocasiona a falta de discernimento. Ausente tal discernimento, resta-se comprovada a incidência do tipo penal previsto pelo artigo 217-A do Código Penal (SOARES, 2017).

Assim, demonstra-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência teve repercussões na esfera penal, mas para tornar mais sólida a aplicação das proteções e garantias de direitos do portador de alguma enfermidade ou deficiência, adequando-se caso a caso, diante da realidade normativa que ainda traz inseguranças e incertezas quanto a sua aplicação (SOARES, 2017).

Verifica-se, diante do exposto, que incumbe aos operadores do Direito saber distinguir o portador de enfermidade ou deficiência mental, enquanto sujeito de direito e, assim, plenamente capaz de exercer atos da vida sexual, daquele em que a enfermidade lhe retire a consciência e discernimento, tornando-o vítima de exploração sexual.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência refletiu diretamente nas incapacidades adotadas pela codificação civil, fazendo com que, atualmente, haja apenas uma causa de incapacidade absoluta, dizendo respeito apenas ao fator etário.

Frente à deficiência, a capacidade será a regra, podendo ser relativizada em alguns casos excepcionais. Referida alteração gerou questionamentos quanto à proteção trazida pelo Código Penal, no que diz respeito ao crime de estupro de vulnerável, ao dispor que o enfermo ou deficiente mental tem plena capacidade para exercer atos da vida civil, inclusive sexuais. Discutiu-se desde logo a incompatibilidade entre as duas normas, gerando entraves quanto a aplicação tanto da proteção legal trazida pelo Código Penal, quanto à liberdade inaugurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Contudo, tal incompatibilidade é meramente aparente, pois a Lei n. 12.015/09 desde então deixava claro a necessidade de se apurar concretamente o discernimento necessário para a prática dos atos sexuais. A capacidade trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência em nada interferiu na tipificação do Estupro de Vulnerável, tampouco retirou a proteção do portador de enfermidade ou deficiência.

Logo, deverá ser feita uma análise a cada caso concreto, a fim de se verificar o discernimento da vítima para posterior caracterização do delito. Assim, a pessoa com deficiência terá livremente o exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos sem perder a proteção penal quando se encontrar em estado de vulnerabilidade.

 

REFERÊNCIAS

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e parte geral. 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. 1 v.

 

[1] Graduanda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Maravilha – SC;

[2] Professora orientadora e das disciplinas de Penal e Processo Penal na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Advogada.

[3] Art. 3o  São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

Art. 4o  São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;  II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV – os pródigos.

[4] Art. 84.  A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

[5] § 1o  Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.

[6] Art. 1.783-A.  A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.                         (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)        (Vigência)

[7] Art. 224 – Presume-se a violência, se a vítima: (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)

  1. a) não é maior de catorze anos; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
  2. b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009);
  3. c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

[8] Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

[9] TJ-RS – APL: 00057972620148190045 RJ 0005797-26.2014.8.19.0045, Relator: DES. JOAQUIM DOMINGOS DE ALMEIDA NETO, Data de Julgamento: 10/12/2015, SÉTIMA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 17/12/2015 14:00.

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