O direito criminal tribal frente ao direito penal e processual penal capitalista brasileiro – Não monopólio do Jus Puniendi Estatal

Resumo: Trata-se de ensaio jurídico que aborda o jus Puniendi do Estado em relação a tribos e comunidades isoladas da civilização


Palavras-chave: direito processual penal – jus puniendi estatal – não monopólio – direito de ação – modalidades de ação penal – estatuto do índio – lei 6001/73 – jus puniendi tribal – inconstitucionalidade parcial do artigo 57 da lei 6001/57


Sumário: 1. Introdução. 2. Breve história acerca do direito de punir. 3. Da ação pelo estado-juiz e seu fundamento constitucional. 3.1. Teoria Abstrata da ação. 3.2. Direito Penal subjetivo e suas características. 3.3. Fundamentos Constitucionais do direito de punir estatal. 4. Ação Penal: pública e ação penal privada. 4.1. Ação Penal pública. 4.2. Ação Penal Privada. 5. Do Estatuto do Índio – Lei 6001/73. 5.1. Conceitos e elementos. 5.2. Do Jus Puniendi Tribal – artigo 57. 5.3. Inconstitucionalidade do artigo 57 segunda parte. 5.3. Do tratamento diferenciado dispensado pelos artigos 56 e 57. 6. Conclusão.


1- INTRODUÇÃO


Este artigo jurídico tem por intuito promover o debate sobre as questões que envolvem o não monopólio do Jus Puniendi Estatal, ou seja, examinar a possibilidade da não incidência da lei Penal e Processual Penal em relação às tribos indígenas, conforme Artigo 57 da lei 6001/73.


Trataremos no presente artigo, de forma breve, sobre a história do direito de punir, sobre as formas de punição em sociedades mais arcaicas, época em que a vingança privada predominava, sempre com penas cruéis e degradantes, inclusive com a morte; dos elementos que compões a ação penal, no sentido de poder punitivo do Estado-juiz, bem como demais elementos que necessitamos para um maior entendimento sobre o tema, para que possamos assim entender a atual sistemática do jus puniendi estatal frente a sociedade.


Por se tratar de um tema pouco debatido no meio jurídico e quase raro em manuais de Direito Processual Penal, posicionamentos pessoais predominarão no presente artigo, no entanto sem descurar a análise das breves e raras exposições sobre o tema.


Desta maneira, trataremos da exceção ao jus puniendi estatal, no que toca, mais especificamente, ao monopólio estatal sobre o direito de punir o particular, pois que, conforme artigo 57 da lei 6001/73, cabe aos grupos tribais aplicar sanções penais ou disciplinares contra seus membros, restando claro e evidente a exceção ao monopólio do direito de punir por parte do Estado.


Ademais, o tema restará balizado à luz da constitucionalidade ou não do artigo 57 da lei 6001/73, pois que o dispositivo legal em comento veda a aplicação de penas cruéis e degradantes bem como a pena de morte sendo que o artigo 231 da constituição garante o tratamento diferenciado aos indígenas, de acordo com a cultura, costumes de cada tribo.


“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”


Destarte, o presente ensaio não possui o intuito de exaurir o tema, mesmo por que se trata de assunto pouco debatido no meio jurídico doutrinário, quanto mais no meio acadêmico em instituições de ensino.


2- BREVE HISTÓRIA ACERCA DO DIREITO DE PUNIR


Nem sempre o Direito de punir foi monopólio do Estado. Hoje é fácil entender o porquê de o Estado ter o monopólio na função punitiva criminal dos indivíduos.


Antes do atual modelo de formação Estatal que conhecemos, as punições (criminais) eram exercidas de forma completamente inaceitável para os dias atuais. Vivia-se a época do “olho por olho e dente por dente” em que a vingança predominava e as punições cruéis e degradantes não eram vedadas nem sequer controladas por ninguém. Época em que a punição se dava pelos parentes das vítimas ou até, quando possível, pela própria vítima.


Pode-se imaginar o “grau” da punição a que o criminoso estava sujeito quando julgado por quem o mesmo tenha lesado, podendo ser pela própria vítima ou pela família da mesma. Sem dúvida alguma, era a mais cruel imaginável. Muito menos se imaginou falar em direitos a ampla defesa e o contraditório, pois a medida punitiva era imposta a ferro e fogo, sem direito a explicações da parte contrária.


Evidentemente, tal prática, denominada autotutela (justiça pelas próprias mãos) foi se enfraquecendo com o decorrer do tempo, a partir do surgimento dos estados mais legalistas, na medida em que a sociedade progressivamente evoluiu seus conceitos e a forma de enxergar o infrator, fortalecendo o conceito de que somente o Estado-juiz deveria ter o “monopólio” em julgar e punir os criminosos.


Por fim, é possível asseverar que somente ao Estado é concedido o JUS PUNIENDI, ou seja, existe um “monopólio estatal” no direito de punir.


3- DA AÇÃO PELO ESTADO-JUIZ E SEU FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL


3.1- Teoria Abstrata da ação


Sobre a Teoria Abstrata da ação, tem-se, segundo ensinamentos de Eugênio Pacelli de Oliveira, verbis:


Para a teoria abstrata, a existência ou não do direito material é absolutamente irrelevante para explicar o direito de ação. Aliás, para os adeptos dessa teoria nem sequer é correto falar em procedência ou improcedência da ação. A ação é sempre um direito. Uma ver exercitado, não há como recusar: o que pode ser recusado e, por isso, ser julgado improcedente é o pedido, jamais a ação.”


“A existência do direito estaria configurada a partir da própria ideia de jurisdição estatal.”


“Instituído o monopólio da função jurisdicional – de aplicação de direito – pelo Estado, os eventuais conflitos de interesses existentes entre os membros da comunidade passaram automaticamente à tutela do Poder Público.”


“Com isso, e porque retirada do interessado a possibilidade de solução unilateral do conflito, o Estado passou a ser devedor da atuação da jurisdição, sempre que a tanto provocado. Nesse sentido, e diante do vínculo de exigibilidade que caracteriza a noção tradicional da relação jurídica, todo aquele que entender necessária a solução de qualquer questão jurídica terá o direito subjetivo de ação, a ser endereçado ao Estado. Trata-se, portanto, segundo a teoria em questão, de direito subjetivo de natureza pública, exatamente por que dirigido em face do estado, devedor da tutela ou prestação jurisdicional.”


3.2- Direito Penal subjetivo e suas características


No que toca a classificação do Direito Penal, parte da doutrina classifica o Direito Penal em Objetivo (sendo o conjunto de leis penais em vigor no país) e em Subjetivo, que seria o direito de punir por parte do Estado (princípio da Soberania).


Referido Direito Penal subjetivo, seria o Jus Puniendi Estatal, possui limitações a tal poder conferido ao Estado-juiz, sendo que se trata de um poder condicionado, em que o direito de punir Estatal é limitado, merecendo destaque os limites:


a) Temporal = Prescrição, em que, em regra, o direito estatal de punir é limitado temporalmente;


b) Espacial = territorialidade (art. 5º, CP), em que o Direito Penal brasileiro se aplica a fatos cometidos somente em território brasileiro, em regra;


c) Modal = Humanização das penas (um dos motivos / princípios que ensejou a inconstitucionalidade do regime integralmente fechado), vedando determinadas penas quando da condenação penal por parte do Estado-juiz.


3.3- Fundamentos Constitucionais do direito de punir estatal


Como cediço a Doutrina afirma, de forma unânime, caber ao Estado o monopólio de administrar a justiça, principalmente quando nos referimos à justiça punitiva, ao JUS PUNIENDI estatal, a administração da justiça.


Fernando da Costa Tourinho Filho leciona que:


Para exercer a função de Administração da Justiça, que pertence ao Estado, este põe à disposição de todos os órgãos da administração da justiça. E, por isso, o dever do Estado de administrar a justiça aparece em relação aos particulares como o dever dos órgãos da administração da justiça (instituídos pelo Estado) de desenvolver uma atividade, na forma regulada em lei, visando ao cumprimento daquele dever de garantir justiça.”


Continua: “Uma vez que o Estado proibiu ao particular de fazer direito com as próprias mãos”… Conforme artigo 345 do Código Penal que prevê o crime de EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES.


“Art. 345. Fazer justiça palas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:


Pena: Detenção de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.”


“...surgiu para eles o direito de se dirigirem ao Estado (representado pelos órgãos incumbidos de administrar a justiça) para reclamar a aplicação da sanção em relação àquele que, por acaso, lhes violou o direito. Se é o estado que distribui a justiça e , para tanto, instituiu órgãos adequados, é claro que aqueles que dela necessitam têm o direito subjetivo de levar-lhe ao conhecimento um litígio, invocando-lhe a aplicação de uma norma agendi. Aí está, pois, o direito de ação. Direito subjetivo, público, abstrato, genérico, indeterminado. Direito que todos nós temos de nos dirigir ao Estado-Juiz, invocando-lhe a garantia, a tutela jurisdicional. Enfim: o direito de pedir ao juiz a aplicação da lei ao caso concreto.”


“É exatamente nessa proibição imposta pelo Estado aos particulares de fazer justiça com as próprias mãos repousa o fundamento do direito de ação.”


“O fundamento do direito de ação repousa, pois na proibição da autodefesa e seu fundamento jurídico está no próprio capítulo dos direitos e garantias individuais”: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito” (Art 5º, XXXV, da CF)


“Havendo qualquer violação de qualquer direito individual, cabe ao Poder Judiciário apreciá-la. E nem mesmo a lei pode impedir que o cidadão se dirija ao Poder Judiciário”


Trata-se do ensinamento do saudoso mestre Tourinho filho sobre a regra geral no que toca ao JUS PUNIENDI, ou seja, sobre a quem toca o dever de punir em matéria criminal.


No que se refere à Ação Penal, esta representa o procedimento utilizado pelo Estado para que este chegue a uma conclusão sobre a punição ou não do indivíduo que infringiu as normas penais incriminadoras impostas em lei. O Estado não pode, de per si, simplesmente aplicar a lei e pronto, não pode autoexecutar o seu direito de punir, devendo se dirigir ao Estado-juiz, que é quem tem a competência para apreciar o caso concreto e punir ou não o acusado, sempre se respeitando o contraditório e a ampla defesa, dispensados como direitos do acusado. Os fundamentos da Açspacerão Penal solicitada pelo Estado-administração ao Estado-juiz estão nos incisos XXXV, LIII, LIV e LV do artigo 5º de nossa Constituição de 1988.


4- AÇÃO PENAL: PÚBLICA E AÇÃO PENAL PRIVADA


Trataremos no presente título das formas de se provocar o Estado-juiz, quais sejam, mediante a ação penal pública, que pode ser pública condicionada a representação e pública condicionada a requisição do ministro da justiça e a ação penal privada, que é aquela promovida, através da peça inaugural queixa crime, diretamente ao magistrado.


4.1-Ação Penal pública


Quando mencionado o termo “AÇÃO PENAL PÚBLICA”, o mesmo se refere ao poder-dever de o Estado dar início à Ação Penal.


A Ação Penal, no caso em tela, será de iniciativa do próprio Estado, que se faz representado pelo Ministério Público, na figura do Promotor de Justiça ou do Procurador de Justiça, tendo como peça inaugural da ação, a Denúncia.


A Ação Penal Pública pode se dar de três formas, quais sejam, mediante a representação da vítima, que ocorrerá quando previsto no tipo penal incriminador; pode ser mediante requisição do Ministro da Justiça e será, em regra, uma Ação Penal Pública Incondicionada, ou seja, não necessita de manifestação da vítima para que tenha início a Ação Penal frente ao Estado-juiz.


4.2. Ação Penal Privada


A ação penal privada, em que a iniciativa se dará por parte da pessoa que teve seu bem jurídico lesado ou por parte de seu representante, salvo casos de ação penal privada personalíssima. Temos como peça inicial da ação a queixa, que será dirigida ao Estado-juiz para que promova a devida Ação Penal.


Portanto, como se pode observar, apenas a iniciativa será da vítima ou seu representante, apenas a peça inaugural que informa o acontecido com seus elementos, pois o direito de punir, em regra, será sempre do Estado-juiz, no que chamamos de MONOPÓLIO DO JUS PUNIENDI ESTATAL.


5- DO ESTATUTO DO ÍNDIO – LEI 6001/73


5.1- Conceitos e elementos:


Os artigos 3º e 4º da lei em comento trazem conceitos importantes a respeito dos índios, que nos serão de grande valia para fazer-nos entendidos acerca do tema:


Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas:


I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;


II – Comunidade Indígena ou Grupo Tribal – É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados.


Art 4º Os índios são considerados:


I – Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;


II – Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;


III – Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.” (grifamos)


Conforme podemos observar com a leitura do artigo 6º da lei em comento, o indígena terá respeitado os seus costumes e leis próprias. Temos assim constatada uma autonomia tribal.


Art. 6º Serão respeitados os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e seus efeitos, nas relações de família, na ordem de sucessão, no regime de propriedade e nos atos ou negócios realizados entre índios, salvo se optarem pela aplicação do direito comum.


5.2- Do Jus Puniendi Tribal – Artigo 57


“Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.”


Tratamos aqui o objeto principal de nosso artigo, qual seja o direito de punir tribal, ensejador da quebra do monopólio do Jus Puniendi Estatal.


Trata-se de tema pouco explorado em nossa doutrina e jurisprudência, sendo de grande valia no que toca ao amplo conhecimento jurídico de casos excepcionais, figurando como mais uma exceção, desconhecida pela maioria esmagadora de bacharéis em Direito e demais áreas, principalmente para a crescente classe adepta dos concursos públicos, mas que se trata de um tema muito interessante.


No que toca ao objeto do artigo, qual seja o direito de punir por parte dos grupos tribais, temos que a lei respeita a diferença de crença, de pensamentos, de cultura, pois que completamente diferentes do que observamos em nossa sociedade capitalista. Os indígenas mais remotos, sem acesso ao homem branco, ao mundo capitalista, não podem ser tratados da mesma forma que o criminoso que atua em São Paulo ou em Belo Horizonte, sendo que este é um ser preparado para a legislação específica atual, qual seja o Código Penal de 1940 com sua parte geral de 1984 e demais alterações. Tais diferenças de tratamento inerentes aos grupos tribais serão citadas em tópico a seguir.


Portanto, resta claro que o Estatuto do Índio, lei 6001/73, prevê aos índios a possibilidade de os mesmos, valendo-se de suas próprias leis internas, de seus costumes e cultura, aplicarem de per si a sua própria norma interna, e, o ponto principal, sem a ingerência Estatal, sem o controle do Estado-juiz.


Cabe também destacar a forma de investigação tribal, que, como a punição, também fica a livre arbítrio das próprias comunidades tribais, não havendo que se falar em outra forma de investigação, nem policial, nem pelo Ministério Público, nem por meio de Comissão parlamentar de Inquérito nem qualquer outra prevista em lei ou doutrinariamente reconhecida. Cada tribo possui a sua forma de apurar a ocorrência de um fato contrário à norma prevista dentro da tribo, não cabendo abordar a forma de investigação, até mesmo pelo desconhecimento de causa. Portanto, não temos que falar em ingerência de Polícia Judiciária, seja ela a Civil Estadual ou Civil Federal, pois que a tribo elege a forma que melhor convier.


5.3. Inconstitucionalidade do artigo 57 segunda parte


O artigo 57 limita o Jus Puniendi tribal, mencionando que a punição tribal não será permitida em caso de pena que revistam caráter cruel ou infamante ou em caso de pena de morte. Tal limitação não se mostra coerente com o intuito da lei, com a ideia de tratamento diferenciado aos diferentes, conforme previsão expressa no artigo 231 da Constituição assegura aos índios o direito à diferença, ou seja, o direito de serem tratados de forma diferenciada.


“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”


A cultura indígena, principalmente nas tribos completamente isoladas, não pode ser comparada, em nada, com a cultura do homem socializado, sob pena de incorrer em desvirtuamento cultural de uma sociedade que habita este território há séculos anterior ao descobrimento por parte dos Portugueses.


É muito fácil ao legislador legislar sobre o indígena, criando direitos e obrigações aos mesmos, mas o que os congressistas esquecem é que a cultura indígena não se assemelha, na maioria das vezes, em quase nada com a cultura capitalista patrimonialista vivida pelos legisladores. Não possuem conhecimento de causa para afirmar que os indígenas possuem tais ou quais direitos dentro de sua própria comunidade. Existem muitas tribos desconhecidas ainda, que não tiveram qualquer acesso ao mundo capitalista, à tecnologia, informação do “Homem Branco”, e que possuem elas mesmas a sua própria lei, não formalmente como a nossa, mas a lei dos índios, inerente a cada uma das tribos, seja prevendo ou não penas degradantes, penas de morte, seja de que qualidade sejam, mas seja qual ela for, não tem o Legislador nem ninguém que não o próprio índio, a capacidade técnica, mental nem cultural para legislar acerca do tema.


Portanto, Concluímos que a parte do artigo 57 que fala que são vedadas a aplicação de penas que revistam caráter cruel ou infamante ou em caso de pena de morte não fora recepcionada pela constituição de 1988, pois que em confronto com o Artigo 231 de nossa carta maior.


 5.3- Do tratamento diferenciado dispensado pelos artigos 56 e 57


Cito parte de um artigo, escrito por um indígena, que tratou com maestria acerca do tema:


“Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte. Se no art. 5º, caput, da Carta Magna, garante o direito à isonomia, já, o art. 231 da Constituição assegura aos índios o direito à diferença, ou seja, o direito de seremos diferentes e de seremos tratados de forma diferenciada.”


“Para a preservação e respeito ao direito à diferença garantido aos índios pelo art. 231 da Constituição, em caso de execução de pena privativa de liberdade ou de prisão provisória de índios, é impositivo o cumprimento do normatizado pelos arts. 56 e 57 do Estatuto do Índio. Tendo em vista o preceituado nos arts. 5º e 231 da Constituição e do disciplinado no art. 3º do Código de Processo Penal, que em hipóteses de prisão provisória ou definitiva de índio é obrigatória a observância dos comandos contidos nos arts. 56 e 57 do Estatuto do Índio, porque fundados no critério especificador autorizador de tratamento antiisonômico relacionado ao direito à alteridade, que visa, em verdade, a proteção e a manutenção de nós índios em nossa própria forma de vida.”


Continua:


“As normas dos arts. 56 e 57 do Estatuto do Índio estabelecem forma de tratamento justo entre integrantes de sociedades culturalmente diferentes; preservam e dão eficácia ao direito à diferença. Possuem a marca de garantirem a sobrevivência física e cultural dos nossos povos e evitam a perda da identidade étnica e cultural. Dão efetividade ao direito de nós os índios seremos diferentes dos integrantes da sociedade envolvente e de seremos tratados como tais. Somos apenas 410 mil, graças a uma errônea política de extermínio adotada durante séculos e que matou milhões de nós em apenas 500 anos.”


“É natural que o Brasil dos homens bons, de homens e mulheres nobres que aprovaram uma Constituição que tenta minimamente reparar toda a desgraça histórica sofrida pelos Povos Indígenas, sejam hoje questionados e acusados de errados e equivocados aos olhos do poder, da ganância e da intolerância. Somos diferentes sim! Falamos mais de 180 línguas diferentes, é mais do que justo que o Estado que nos submeteu aos horrores do extermínio, assuma a responsabilidade de proteger o que ainda restam das nossas culturas, crenças, tradições e as terras das quais usufruímos.” Azelene Kaingáng, socióloga presidente do Warã – Instituto Indígena Brasileiro.”


E conclui:


“NÃO, mil vezes não, – como diria o jornalista Silva Junior – a prisão especial do indígena não se dá em função da incapacidade do índio, mas, em proteção ao seus usos, costumes e tradições, que são vilipendiados em contato com indivíduos de índole má nos estabelecimento prisional.” (grifamos)


6- CONCLUSÃO


Tratamos como regra que o jus puniendi pertence ao Estado, sendo que devemos diferenciar o Direito de ação, que seria o direito de punir, de processar, dos meios de se iniciar tal procedimento punitivo, da legitimidade para solicitar a ação penal ao Estado. Contamos como ação penal, no sentido de legitimidade para provocar o Estado, a pública incondicionada, a condicionada a representação, a ação penal condicionada à requisição do Ministro da Justiça e a ação penal de iniciativa privada. Portanto, conclui-se que a legitimidade de requerer a ação penal por parte do Estado-juiz pode ser também privada, que se dará pela vítima ou por seu representante legal, quando permitido em lei, mas independentemente de quem venha a invocar o Estado, será sempre deste Estado o direito de punir o infrator, salvo no caso que estudamos acima quando tratamos do artigo 57 da lei 6001/73, referente à punição tribal.


No que toca a punição tribal, vimos que a mesma ocorrerá de acordo com os costumes de cada tribo, com suas diferenças de pensamento, de práticas punitivas, investigativas, aplicando as suas leis aos casos em que tiverem por conveniente, em conformidade com a realidade local.


Deve-se considerar a existência, no território brasileiro, de tribos indígenas ainda desconhecidas, sem qualquer tipo de contato com a população civilizada, patrimonialista e capitalizada, sendo razoável, não haver qualquer tipo de ingerência legislativa Penal e Processual Penal da forma que conhecemos em tais comunidades isoladas. Não pode simplesmente o homem branco, civilizado e capitalizado legislar sobre a vida dessas comunidades, que já ocupavam o território nacional muito antes da colonização portuguesa, sob o pretexto de julgar compreender a cultura indígena ao ponto de julgar a legitimidade da aplicação de penas cruéis. O isolamento de algumas tribos chega a ser tamanho que nem mesmo a FUNAI sabe precisar a quantidade de tribos existentes, principalmente na região Amazônica, mais especificamente nas regiões limítrofes com o Acre e Bolívia. Comunidades que cultivam certos hábitos como caçar, sem qualquer instrumento moderno, sem auxílio de qualquer tipo de tecnologia por mais de 800 anos, havendo. Inclusive, relatos de canibalismo.


Diante dos fatos e argumentos expostos acima, em conjunto com a análise do artigo 231 da constituição, resta clara a inconstitucionalidade de qualquer norma que venha a interferir, seja como for, no modo de vida tribal, seja na cultura punitiva, investigativa, alimentar ou onde quer que seja, isto porque são sociedades muitas vezes isoladas e que merecem respeito, não a ingerência do homem branco civilizado, capitalista, patrimonialista brasileiro.


Portanto, diante de tudo o que foi dito no presente artigo, conclui-se pela inexistência do monopólio Estatal no que toca ao direito de punir, sendo esta a regra jurídica atual. Porém, a punição por parte da comunidade tribal é uma exceção à regra. Temos pois que a punição tribal é a única exceção à regra, sendo que a justiça feita com as próprias mãos, fora das aldeias indígenas constitui na prática do crime previsto no artigo 345 do Código Penal.


 


Referências:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 1: Parte Geral / Cezar Roberto Bitencourt. -14 ed. Ver.; atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2009

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal / Eugênio Pacelli de Oliveira. 6 ed. Ver. Atual. E ampl. – Belo horizonte: Del Rey, 2006. 782p.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal / Fernando da Costa Tourinho Filho. – 14 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011





Informações Sobre o Autor

Fábio Marcio Piló Silva

Advogado, especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro (UCAM)


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