O inimigo no direito penal brasileiro: Incompatibilidade do direito penal do inimigo à luz do Estado Democrático de Direito

Renata Mendes Pordeus de Queiroz[1]

Resumo: O trabalho científico em questão se encarrega da análise e reflexão acerca da inaplicabilidade da teoria do Direito penal do inimigo no ordenamento jurídico brasileiro. Tal teoria passa a ser vista com bons olhos pela sociedade civil, em virtude da urgência por medidas realmente capazes de gerar segurança. Todavia, a Constituição Federal de 1988 constituiu o Brasil em Estado Democrático de Direito e, com isso, inúmeros princípios, explícitos ou não na legislação, lhe são decorrentes, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da legalidade, dentre outros. Diante disso, sabendo que a teoria jakobesiana prega um adiantamento da punibilidade, penas desproporcionalmente altas, bem como uma relativização ou até mesmo supressão de garantias processuais, impossível torná-la compatível com o Direito Penal democrático.

Palavras-chave: Direito penal. Direito penal do autor. Direito penal do inimigo. Estado Democrático de Direito. Terceira Velocidade.

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Abstract: The present essay focuses on an analysis and a reflection about the inapplicability of the enemy’s criminal law theory in the Brazilian legal system. Such theory is welcomed by the civil society, due to the urge for measures really capable of generating security. However, the Federal Constitution of 1988 established Brazil as a Democratic State of Law and, thus, innumerous principles, explicit or not in the legislation, derive from it, such as the principles of human dignity, isonomy, legality, among others. Therefore, knowing that the Jakobesian theory preaches an advance of punishment, disproportionately high penalties, as well as a relativization or even suppression of procedural guarantees, it is impossible to make it compatible with democratic Criminal Law.

Keywords: Criminal law. Criminal law of the author. Criminal law of the enemy. Democratic state. Third Speed.

 

Sumário: Introdução. 1. O Direito penal e o Estado Democrático de Direito. 1.1. Direito penal do autor e o Direito penal do fato. 1.2 As velocidades do Direito penal. 2. Direito penal do inimigo: origem e fundamentos. 3. Direito penal do inimigo à luz do ordenamento jurídico brasileiro. 3.1. Uma análise constitucional do Direito penal do inimigo. 3.2. Direito penal do inimigo na lei 13.260/16 – Lei antiterrorismo? Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

            Diariamente, a população brasileira vem sendo abalada com notícias de homicídios cruéis, estupros e inúmeros escândalos de corrupção, bem como se aflige com ataques terroristas ocorridos ao redor do planeta. Diante disso, as pessoas se veem totalmente desprotegidas e esperam, erroneamente, que o Direito Penal seja a solução.

Assim, muito embora a sociedade civil não saiba propriamente, ao ansiar por medidas mais rigorosas a serem aplicadas em face daqueles criminosos habituais, no sentido de almejarem penas perpétuas, ausência de defesa desses delinquentes, ou até mesmo aderindo a um discurso de “direitos humanos para humanos direitos”, estão recorrendo ao Direito penal do inimigo, espécie de Direito penal do autor.

O Direito Penal do Inimigo é uma teoria desenvolvida pelo professor Günther Jakobs[2]. Para ele, o inimigo é aquele indivíduo que não respeita as normas jurídicas impostas pelo Estado, afronta sua estrutura pretendendo desestabiliza-la, o que acontece, por exemplo, com os terroristas. Dessa forma, para Jakobs, esse delinquente profissional e habitual (o inimigo) não se enquadra como cidadão (Direito penal do cidadão), não devendo, sequer, ser tratado como pessoa.

Nesse diapasão, o inimigo deve ser interceptado previamente, para que um dano futuro seja combatido, ou seja, o que se pune, em tal teoria, é a periculosidade do agente, diferentemente do que ocorre com os cidadãos, os quais são punidos de acordo com a culpabilidade.

Diante disso, Jakobs defende que o inimigo não deve usufruir de garantias e direitos processuais, bem como suas penas deverão ser substituídas por medidas de segurança, a fim de que haja uma duração indeterminada e, consequentemente, seja eliminado o perigo. O sacrifício do inimigo, portanto, visa o bem-estar de toda a sociedade.

Ocorre que a Constituição Federal de 1988 constitui o Brasil em um Estado Democrático de Direito, defendendo a soberania popular e a aplicabilidade de direitos e garantias fundamentais em prol dos indivíduos. Ademais, a Carta Magna também traz em seu bojo inúmeros princípios que reforçam esse pensamento, a exemplo dos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade e da isonomia.

Dito isso, faz-se uma análise de maneira mais aprofundada acerca da teoria do Direito penal do inimigo de forma a verificar se a mesma seria compatível, ou não, com o Estado democrático de direito e os princípios que lhe são decorrentes, adentrando-se em conceitos paralelos a ela, quais sejam o direito penal do autor e as velocidades do direito penal. Por fim, se faz importante avaliar sobre os possíveis reflexos da referida teoria na lei 13.260 (Lei Antiterrorismo).

 

  1. O DIREITO PENAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Como pressuposto à análise do conceito e das espécies e velocidades do Direito Penal, dada a complexidade e a extensão temática, torna-se mister abordar, ainda que de maneira breve, o enquadramento do Direito Penal no Estado Democrático de Direito.

A Constituição da República Federativa do Brasil, no caput de seu artigo 1º, elucida, de forma bastante clara, que o Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito.

Segundo José Afonso da Silva, o Estado Democrático de Direito é uma junção entre o Estado democrático e o Estado de Direito, mas não apenas formalmente. Aduz que é “um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo” (SILVA, 2014, p. 115).

O Estado de Direito surgiu em um meio liberal, sendo também chamado Estado liberal de Direito. Nesse aspecto, o que importava era seguir o que estava descrito na legislação, de forma que toda e qualquer atividade do Estado submetia-se ao império da lei (considerada ato do Poder Legislativo). Não se pode olvidar que também houve a consagração da separação dos poderes, bem como a garantia dos direitos individuais.

Já o Estado democrático funda-se na soberania popular, a qual veicula a vontade do povo ao poder político, de modo que a população possui uma participação efetiva no funcionamento estatal. Exemplos concretos e instrumentos que refletem perfeitamente tal premissa são: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (artigo 14, CF).

Dito isso, José Afonso da Silva (SILVA, 2014, p. 121) conclui:

“a democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, II, CF), em que o poder emana do povo, deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por seus representantes eleitos (artigo 1º, parágrafo único, CF); participativa, por que envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, por que respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamento divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes na sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício”.

Assim, o Estado Democrático de Direito pugna pela aplicabilidade da lei, a qual é reflexo dos anseios dos cidadãos na fruição de seus direitos fundamentais, protegendo este cidadão da ingerência abusiva e da opressão estatal.

Ademais, essa forma de Estado é verificada não apenas pela proclamação de uma igualdade material entre os homens, mas sim por todos os fundamentos e objetivos fundamentais que embasam e estão perfeitamente dispostos na nossa Constituição. São eles:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

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II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Observa-se que no Estado Democrático de Direito o princípio da dignidade da pessoa humana ocupa um papel protagonista, como assevera o professor José Afonso da Silva (SILVA, 2014, p. 123), a Constituição de 1988 deixou apto ao Estado brasileiro “concretizar as exigências de um Estado de justiça social fundado, na dignidade da pessoa humana”.

Tomando por base o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é um dos sustentáculos de todo o sistema jurídico brasileiro, conclui-se que o Direito penal não deve ser instrumento de opressão, mas sim uma ferramenta adequada à proteção de bens jurídicos e à aplicação da justiça, posto que, por meio dele, haverá a devida punição dos indivíduos que cometerem infrações penais, gerando, pois, uma sensação de segurança e uma compensação à vítima, como também, à sociedade.

Por outro lado, deve-se destacar que o Direito Penal também exerce um papel de garantidor, mantendo o respeito aos direitos fundamentais de cada um, conforme assegura o Estado Democrático de Direito, o que implica em um julgamento imparcial do indivíduo acusado e em um devido processo legal.

Importante, ainda, ressaltar que o Estado Democrático de Direito[3] não apenas compele os indivíduos a se submeterem a uma mesma legislação, mas também impõe a elaboração dessa legislação com base em uma real lesividade social. Isso quer dizer que a norma penal será efetivada desde que possua conteúdo socialmente relevante e adequado, criando infrações penais a fim de garantir e proteger bens jurídicos fundamentais (e dignos de proteção). Não sendo assim, haverá ofensa ao princípio da dignidade humana.

Desta feita, não mais se admite a criação de tipos penais ou penas por meio de critérios absolutistas, pois a partir do Estado Democrático de Direito, o Direito penal passou a se submeter aos limites constitucionais (respeitando os princípios constitucionais), seja de ordem formal, seja de ordem substancial.

Isto posto, normas que vão de encontro à dignidade da pessoa humana geralmente serão materialmente inconstitucionais, haja vista tratar-se de conteúdo ofensivo às determinações da Constituição Federal. Mister usar o termo “geralmente”, pois à luz da doutrina o referido postulado não é um princípio absoluto[4], embora existam autores que caminhem por esse entendimento.

Nesse sentido, o Direito penal deve atuar conforme e a serviço do Estado Democrático de Direito, limitando o próprio poder punitivo do Estado, pois, só estando sob uma base principiológica e constitucional, haverá a contenção de arbitrariedades e à defesa da dignidade humana (SOUZA, 2013).

Assim, do Estado Democrático de Direito deriva o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual ajusta o Direito penal aos mandamentos constitucionais tornando-o Direito penal democrático. Por sua vez, da dignidade humana decorrem inúmeros princípios, tais como o princípio da legalidade, da presunção de inocência, da humanidade, entre outros.

Conclui-se que o Direito penal brasileiro somente pode ser entendido e aplicado à luz do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito, com base nessa premissa, serão analisados a seguir os institutos do Direito penal do autor e do Direito penal do fato.

 

1.1. Direito penal do autor e o Direito penal do fato

O Direito penal do autor propõe a aplicabilidade de uma pena em razão do “ser”, ou seja, para ele não interessa o fato que eventualmente fora praticado, mas sim a pessoa. O indivíduo será punido por ser quem é e não pelo que cometeu, de modo que o que será efetivamente criminalizado é a sua personalidade e não a conduta ora praticada.

Com o Direito penal do autor surgem tipos de autor, são eles: tipo normativo do autor e tipo criminológico do autor. No primeiro, haverá uma comparação entre o fato concreto e o modelo de conduta que se espera de um típico autor do delito, já no tipo criminológico do autor, o que acontece é uma constatação empírica de que a personalidade do autor se assemelha a de um criminoso habitual.

Esse modelo foi amplamente difundido na Alemanha fascista no período do governo nazista, onde eram punidos todos aqueles que, suposta e abstratamente, atentassem contra a nação ariana, não havia necessidade de uma concreta lesão a bem jurídico, bastavam, apenas, as condições pessoais do agente.

Na visão da doutrina do Direito penal do autor, por exemplo, punir um indivíduo de forma mais rigorosa, só por ele ser um “vagabundo”, não é nenhum absurdo como pode se parecer, sendo, pois, algo totalmente aceitável e, até mesmo, recomendável, dado que o que importa para tal teoria é a contenção de uma ameaça à comunidade.

Por tais motivos é que o Direito penal do autor tem como fruto o Direito penal do inimigo, teoria esta desenvolvida por Gunther Jakobs e considerada por Jesús-María Silva Sánchez (2002) um Direito penal de terceira velocidade, consoante matéria a ser abordada em tópico seguinte.

Diante do exposto, revela-se visível que o Direito penal do autor deveria ser incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, muito menos encontra suporte no ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, no que diz respeito à fixação da pena, mais precisamente às circunstâncias judiciais (artigo 59, Código Penal), há uma leve referência a este modelo de Direito penal, haja vista que se aumenta a pena em virtude de qualidades pessoais do agente.

Desta feita, nosso ordenamento abraçou o Direito penal do fato na caracterização das infrações penais, ou seja, aqui, diferente do modelo explicitado anteriormente, o que interessa é o fato, o ato, a conduta praticada pelo agente e não sua personalidade. Nessa esteira, por exemplo, no caso do crime de furto, a pessoa deverá ser punida por ter furtado coisa alheia móvel e não por ser um ladrão.

Portanto, deverão ser excluídos no momento da responsabilidade jurídico-penal os meros pensamentos do agente, bem como os antecedentes do sujeito, posto que, por mais criminoso que seja, ainda assim, para a caracterização da autoria, é necessário que o titular da ação penal comprove por meios lícitos o suposto envolvimento do agente na atividade criminosa.

Outrossim, para fomentar ainda mais o Direito penal do fato, tem-se o princípio do in dubio pro reo, o qual preceitua que, em caso de dúvidas, deve-se decidir em favor do réu, de forma que não haverá condenação em meio à dubiedade.

Ademais, o princípio da responsabilidade pelo fato, o qual decorre da dignidade da pessoa humana, é puramente reflexo do Direito penal do fato. Estabelece que “os tipos penais devem definir fatos, associando-lhes as penas respectivas, e não estereotipar autores em razão de alguma condição específica” (MASSON, 2015, p. 56), isto é, ninguém poderá ser condenado por questões de natureza exclusivamente pessoal. O ministro Gilmar Mendes, em relatoria do recurso extraordinário nº 583523 reforçou raciocínio semelhante:

“Não há como deixar de reconhecer o anacronismo do tipo penal que estamos a analisar. Não se pode admitir a punição do sujeito apenas pelo fato do que ele é, mas pelo que faz (…). Acolher o aspecto subjetivo como determinante para caracterização da contravenção penal equivale a criminalizar, em verdade, a condição pessoal e econômica do agente, e não fatos objetivos que causem relevante lesão a bens jurídicos importantes ao meio social” (BRASIL. STF, Recurso Extraordinário nº 583523, 2013).

À luz do raciocínio acima, tem-se que, mesmo a despeito de se poder questionar a existência de elementos do Direito penal do autor no ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo da agravante de reincidência, o Supremo Tribunal Federal já refutou tal argumentação, mediante julgamento do recurso extraordinário nº. 453000, pugnando, destarte, pela constitucionalidade da referida agravante.

Nesse viés, nas palavras da ministra Rosa Weber, assim decidiu a Corte Suprema:

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“Não se trata de Direito Penal do Autor. O reconhecimento da reincidência não representa a criminalização ou estigmatização do agente pelo que ele é. Aqui não se trata, como o repudiado Direito Penal do Autor, próprio de regimes totalitários ou autoritários, de punir alguém por ser judeu, negro, homossexual, comunista, cristão ou muçulmano, para ficar em alguns exemplos tristes da história mundial. Na reincidência, o que é valorado negativamente, para fins de exasperação da pena é uma conduta criminal pretérita, ou seja, o que o agente fez, e não uma condição pessoal dele” (BRASIL. STF, Recurso Extraordinário nº 453000, 2013).

Dessa forma, o ordenamento atribui responsabilidade penal pelos fatos devidamente concretizados e objetivamente dispostos e descritos na legislação penal (Direito penal do fato), pois a função do Estado é proteger bens jurídicos contra efetivas agressões, as quais são reproduzidas em lei na forma de delitos.

Outrossim, o Direito penal do fato não pode ser visto como um fundamento para a impunidade simplesmente por demandar rígida necessidade probatória, mas deve ser encarado sob um aspecto positivo, porquanto, sendo inspirado por inúmeros princípios, tais como o da isonomia, e tendo sua base jurídico-filosófica no próprio Estado Democrático de Direito, impede a ocorrência de injustiças no sistema penal.

 

1.2 As velocidades do Direito penal

Aprofundando o exame em questão, revela-se essencial denotar que a teoria das velocidades do Direito penal foi apresentada pelo professor Jesús-María Silva Sánchez ao tratar da expansão do Direito penal. Sua preocupação era que a modernização se desse de forma tão generalizada que houvesse uma flexibilização dos princípios político-criminais e das regras de imputação relativos à pena privativa de liberdade (MASSON, 2015).

À luz disso, frise-se que, para que essa modernização não se estendesse por todo o Direito penal clássico, Silva Sánchez propõe o estudo do Direito penal em dois blocos diferentes de ilícitos, onde, no primeiro, estariam enquadrados todos os delitos aos quais se culminariam na pena privativa de liberdade (prisão), chamado Direito penal nuclear, e, em outro bloco, situar-se-iam as infrações penais que resultariam em sanções diversas da prisão, chamado Direito penal periférico.

Delimita-se dessa forma, pois seria bastante razoável que, no Direito penal periférico, no qual se impõem sanções mais similares às impostas pela Administração Pública, houvesse uma flexibilização dos critérios de imputação e das garantias político-criminais (SÁNCHEZ, 2002).

Mister enfatizar que não se trata de retirar o Direito penal periférico das mãos do Poder Judiciário, como ocorre no Direito administrativo sancionador, mas apenas, como dito, flexibilizar as regras de imputação e os princípios político-criminais.

Assim, a primeira velocidade seria constituída pelo Direito penal das penas privativas de liberdade, onde se exige um procedimento amplo, garantista e rígido, ou seja, não haveria a flexibilização de princípios e direitos do réu.

A segunda velocidade, por sua vez, seria caracterizada pelo Direito penal das penas restritivas de direito ou pecuniárias, isto é, penas diversas da prisão, onde a ação penal poderia tramitar de forma mais ágil, célere, sendo possível a flexibilização de garantias, haja vista não estar em jogo a liberdade do indivíduo, um exemplo de norma de segunda velocidade é a lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais).

Nas palavras de Silva Sánchez:

“Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal ‘da prisão’, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não se tratar já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional à menor intensidade da ação”. (SÁNCHEZ, 2002, p. 148).

O professor catedrático da Universidade Pompeu Fabra ainda acrescenta à sua teoria uma terceira velocidade do Direito penal, qual seja o Direito penal do inimigo. Tal teoria, a ser analisada no tópico a seguir, estabelece uma privação da liberdade do inimigo e uma flexibilização ou, até mesmo, eliminação de direitos e garantias constitucionais e legais, motivo pelo qual Silva Sánchez a coloca como terceira velocidade.

 

  1. DIREITO PENAL DO INIMIGO: ORIGEM E FUNDAMENTOS

Procedendo-se à análise da terceira velocidade do Direito penal, Günther Jakobs, jurista e filósofo alemão, sistematizou a teoria do Direito penal do inimigo (em alemão, Feindstrafrech) nos anos 80, mais precisamente em 1985, a qual não fora, contudo, acolhida desde sua origem.

Em 2001, entretanto, apenas após o ataque terrorista ao World Trade Center, na cidade de Nova York, Estados Unidos da América, essa teoria passara a ganhar espaço, tendo em consideração que a população se encontrava amedrontada, na carência de uma medida eficaz de combate a essa nova forma de criminalidade, o terrorismo.

Jakobs então, em 2003, volta a defender corajosamente sua teoria, justificando, com a obra doutrinária Direito penal do inimigo, a necessidade da imposição de duas tendências opostas em um só contexto jurídico penal, ou seja, o Direito penal propriamente dito sendo composto por dois blocos, o Direito penal do inimigo e o Direito penal do cidadão.

O catedrático da Universidade de Bonn, na Alemanha, inspira-se nos ensinamentos de filósofos como Hobbes (cujo pensamento era de que o homem é essencialmente mau), com a finalidade de identificar um Direito penal do cidadão para aqueles indivíduos que não delinquem de forma persistente, e um Direito penal do inimigo para os que delinquem, que se desviam, puramente por princípio.

Inicialmente, é importante frisar que o Direito penal do inimigo é uma espécie de descendente de dois fenômenos da expansão do Direito penal, quais sejam, especificamente, o Direito penal simbólico e o ressurgimento do punitivismo. Tais fenômenos expansivos não são encontrados individualmente na legislação, não se achando, destarte, norma com características apenas simbólicas ou apenas punitivistas. Assim elucida Meliá:

“(…) Em todo caso, deve sublinhar-se, desde logo, que estes dois conceitos só identificam aspectos fenotípicos-setoriais da evolução global e não aparecem de modo clinicamente < limpo > na realidade legislativa (infra C). Ambas as linhas de evolução (…) constituem a linhagem do Direito penal do inimigo” (MELIÁ; JAKOBS, 2007, p. 57).

O Direito penal simbólico caracteriza-se pela manifestação legislativa, por parte do agente político, como forma de resposta a um apelo social, assim, o legislador cria determinadas leis apenas visando a expectativa da população, não fazendo, porém, qualquer juízo de razoabilidade e proporcionalidade de possíveis consequências. Já o segundo fenômeno, consubstanciado no ressurgimento do punitivismo, determina-se pela “introdução de normas penais novas com o intuito de promover sua efetiva aplicação com toda firmeza, (…) ou (…) (pelo) endurecimento das penas para normas já existentes” (MELIÁ; JAKOBS, 2007, p. 60).

Aliadas às características dos fenômenos acima dispostos, o Direito penal do inimigo possui as seguintes características (MELIÁ; JAKOBS, 2007): i) constata-se em um adiantamento da punibilidade, ou seja, o foco dessa teoria é o fato futuro; ii) penas desproporcionalmente altas e ausência de uma redução de pena correspondente a antecipação; e, iii) algumas garantias processuais são relativizadas ou, até mesmo, suprimidas.

As características supramencionadas são voltadas ao “inimigo”, aquele que não respeita as normas jurídicas impostas pelo Estado, afronta sua estrutura pretendendo desestabilizá-lo, ou seja, é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou sua vinculação a uma organização (SÁNCHEZ, 2002), afastou-se do Direito de modo permanente.

Isto posto, o Direito penal do inimigo reage em face de comportamentos transgressores que afetam elementos essenciais e especialmente vulneráveis de determinada sociedade. Assim, para Jakobs, os criminosos econômicos, delinquentes organizados e, de forma mais evidente, os terroristas, são exemplos de inimigos.

Desta feita, o delinquente profissional e habitual, ou seja, o inimigo, não se enquadra como cidadão, não devendo, sequer, ser tratado como pessoa, no sentido de gozar dos direitos e benefícios que tal termo lhe conferiria.

Para essa teoria, portanto, o indivíduo que se desvia do Direito e não garante uma segurança cognitiva de seu comportamento, não pode usufruir de garantias e direitos processuais, tais como o direito de se comunicar com seu advogado. Ademais, as penas que, porventura, lhe forem aplicadas, serão substituídas por medidas de segurança, pois as mesmas possuem duração indeterminada, fazendo assim com que seja eliminado o perigo e assegurado o bem estar da sociedade.

Mister deixar clarividente, contudo, que, conforme salienta Jakobs, o Estado não necessariamente excluirá o inimigo de todos os seus direitos. Direitos como o de propriedade, portanto, restam incólumes.

Consoante dito anteriormente, haverá, no Direito penal do inimigo, um adiantamento da punibilidade, isso quer dizer que o inimigo deverá ser interceptado previamente a fim de que sua periculosidade seja combatida. Para Jakobs (MELIÁ; JAKOBS, 2007), “o ponto de partida ao qual se ata a regulação é a conduta não realizada, mas só planejada, isto é, não o dano à vigência da norma que tenha sido realizado, mas o fato futuro”.

De outra banda, a repressão com os cidadãos ocorre de forma diversa, espera-se até que se exteriorize a conduta para que haja a reação do Estado, tendo, os mesmos, total amparo do devido processo legal.

Resta demonstrado, então, que o que Jakobs sustenta nada mais é que um Direito penal do autor, como bem salientou Cancio Meliá (2007), pois pune o sujeito por sua personalidade e não pelo fato ilícito que houvera cometido.

Diante de todo o exposto, embora Jakobs afirme que sua teoria deverá ser aplicada excepcionalmente, configurando, assim, um “direito penal de emergência” (JAKOBS, 2003, p. 143), conclui-se, ainda assim, que o “Direito penal do inimigo” não é, na verdade, Direito, sendo uma contradição, enquanto o Direito penal do cidadão configura-se um pleonasmo (GOMES, 2010).

 

  1. DIREITO PENAL DO INIMIGO À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Como sabido, o Direito penal brasileiro apenas pode ser contemplado à luz do perfil constitucional do Estado Democrático de Direito, do qual parte o princípio da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, inúmeros outros princípios constitucionais limitadores da atividade legislativa do Estado, no que tange à criação de normas incriminadoras, bem como da atividade jurisdicional, ao proceder à adequação típica.

Assim, é essencial fazer uma análise acerca da constitucionalidade do Direito penal do inimigo.

 

3.1. Uma análise constitucional do Direito penal do inimigo

Conforme mencionado em tópico anterior, a teoria do Direito penal do inimigo prega um adiantamento da punibilidade, penas desproporcionalmente altas, bem como uma relativização ou até mesmo supressão de garantias processuais.

Desta feita, o inimigo, indivíduo atingido por tais características, não é considerado pessoa, muito menos cidadão, no sentido de lhe ter assegurada a plenitude de garantias e direitos inerentes a tal condição. No entanto, conforme assevera Zaffaroni:

“Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso” (ZAFFARONI, 2007, p. 18).

Ao deixar de considerar um indivíduo como pessoa, o Estado o está “coisificando” e, consequentemente, violando o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual preceitua que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Ocorre que o Brasil, que é signatário do referido instrumento, em assim o fazendo, não apenas viola tal declaração, mas também estará indo na contramão dos princípios enraizados na sua própria Constituição Federal.

Inicialmente, é sabido que o Estado Democrático de Direito assegura a todos o respeito e a efetividade dos direitos individuais fundamentais, seguindo critérios de legalidade estabelecidos pela Constituição.

Desta feita, a teoria do Direito penal do inimigo, ao retirar a qualidade de pessoa do indivíduo, bem como ao defender a efetiva punição deste, relativizando suas garantias processuais, está colidindo frontalmente com a essência constitucional do Estado Democrático de Direito.

Desse modo, mister elencar quais princípios constitucionais e legais são espécies de barreiras, no ordenamento jurídico brasileiro, ao acolhimento do Direito penal do inimigo.

O primeiro e mais importante é o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Este, como visto anteriormente, é fruto do próprio Estado Democrático de Direito, sendo conceituado, segundo Ingo Sarlet, como:

“(…) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (SARLET, 2006, p.60).

Diante de tal definição, resta clarividente a incoerência do Direito penal do inimigo em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, visto que este preconiza respeito por parte do Estado e da comunidade, protegendo o indivíduo contra atos degradantes, enquanto aquele busca, justamente, o oposto, tratar seres humanos como objeto de coação, não lhe conferindo direitos e garantias processuais.

Além disso, a teoria de Jakobs também é contrária ao conhecido princípio constitucional da legalidade, disposto no artigo 5º, XXXIX da Constituição Federal de 1988, tendo em vista que a mesma preconiza uma punição a um determinado indivíduo simplesmente por enquadrá-lo como inimigo e não pela conduta que ele efetivamente praticou. Outrossim, a referida teoria prega a efetiva sanção por fato futuro, ou seja, apenas pelo perigo, e não por um dano à vigência da norma.

Um outro princípio constitucional ao qual o Direito penal do inimigo é visivelmente contrário é o da isonomia, disposto no caput do artigo 5º da Carta Magna. Isto porque, enquanto um difunde o ideal de igualdade entre todos perante a lei, o outro separa a sociedade em dois grupos: cidadãos e inimigos, onde o primeiro será tratado de acordo com o devido processo legal, ao passo que o segundo terá suas garantias processuais reduzidas ou suprimidas.

Talvez, o princípio da isonomia seja um dos violados de maneira mais flagrante, tendo em vista que o ponto principal da teoria de Günther Jakobs é a composição do direito penal propriamente dito em dois blocos, o Direito penal do cidadão e o Direito penal do inimigo.

Ademais, ao acolher a teoria em questão, o Estado estará não só violando princípios consagrados constitucionalmente, mas, também, princípios legais como o da responsabilidade pelo fato e da exclusiva proteção do bem jurídico, além do salutar postulado da proporcionalidade.

Assim, o princípio da responsabilidade pelo fato, conforme explicitado em tópico anterior, enuncia que ninguém poderá ser condenado por questões de natureza exclusivamente pessoal, posicionamento completamente contrário ao fundamento do Direito penal do inimigo, o qual pune indivíduos pela sua periculosidade, pela sua personalidade perigosa.

De outra banda, a teoria de Jakobs também vai de encontro ao princípio da exclusiva proteção do bem jurídico, pois o mesmo narra que o Direito penal não deve se preocupar com os pensamentos e intenções das pessoas, com suas condutas internas, enquanto a atividade delitiva não for exteriorizada (MASSON, 2015, p. 54). De forma inversa funciona o Direito penal do inimigo, haja vista que nele, os indivíduos considerados inimigos serão punidos de forma antecipada, isto é, adianta-se o âmbito de proteção da norma, alcançando, inclusive, os atos preparatórios, uma vez que, aqui, a ideia é o combate a um perigo futuro.

Por fim, mas não menos importante, a teoria sistematizada pelo professor catedrático de Bonn não encontra espaço em nosso ordenamento jurídico por, além de violar os princípios elencados alhures, transgredir um postulado de extrema relevância, o da proporcionalidade. Verifica-se que tal postulado defende a proibição ao excesso, vedando a cominação e aplicação de penas de forma desarrazoada e exagerada, o que, do contrário, para o Direito penal do inimigo, é algo até aconselhável.

 

3.2 Direito penal do inimigo na lei 13.260/16 – Lei antiterrorismo?

Após tal análise principiológica, resta clarividente a incompatibilidade da teoria do Direito penal do inimigo com o ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, ainda assim, há quem questione sua aplicabilidade a casos extremos, como ao crime de terrorismo.

Especificamente no contexto brasileiro, embora a Constituição Federal de 1988 tenha previsto, em seu artigo 5º, inciso XLIII, a inafiançabilidade e a insuscetibilidade de graça ou anistia do crime de terrorismo, não havia, no ordenamento, lei que o tipificasse. Desta feita, em 16 de março de 2016 houve a publicação da lei 13.260, a qual disciplina o terrorismo, trata de disposições investigatórias e processuais e reformula o conceito de organização terrorista.

A referida lei, em seu artigo 2º, conceitua o crime de terrorismo e descreve atos que seriam tipificados como de terrorismo. Nesse sentido:

“Art. 2º: O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

  • 1º: São atos de terrorismo:

I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

II – (VETADO);

III – (VETADO);

IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência” (BRASIL, lei 13.260, 2016).

Dessa maneira, a lei antiterrorismo veio atender ao clamor social de uma população civil que se encontra desamparada, tendo em vista os inúmeros ataques terroristas cometidos ao redor do mundo, os quais resultam em incontáveis mortes, tais como os ocorridos nas cidades de Paris (em 13 de novembro de 2015) e Nice (em 14 de julho de 2016), ambas localizadas na França.

A lei 13.260/2016 inovou o Direito penal brasileiro ao disciplinar, em seu artigo 5º, a punição do agente que realiza atos preparatórios. Nesses termos:

“Art. 5º: Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito: Pena – a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade” (BRASIL, lei 13.260, 2016).

Isto porque o Código Penal, em regra, não pune atos preparatórios, uma vez que não houve a realização do núcleo da infração penal, punindo apenas crimes consumados ou tentados (que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente). Excepcionalmente, no entanto, tais atos serão puníveis quando o Código os incriminar autonomamente (crimes-obstáculo), como é o caso do delito de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal).

Todavia, em se tratando da lei antiterrorismo, vislumbra-se que o núcleo do tipo penal é a realização de atos preparatórios, ou seja, é uma descrição bastante ampla, diferente de qualquer outra. Sendo, portanto, tal artigo, admitido como um leve reflexo da teoria jakobesiana, tendo em vista que uma das características do Direito penal do inimigo, conforme estudado anteriormente, é a antecipação da tutela penal para alcançar os atos preparatórios.

É, por conseguinte, meramente um reflexo, não se podendo afirmar que a lei 13.260/2016 seja uma real apologia à teoria de Jakobs, pois a mesma não faz qualquer diferenciação acerca de cidadão e inimigo, bem como os crimes nela elencados serão apurados mediante o procedimento ordinário do Código de Processo Penal e, principalmente, não seria compatível com o Estado Democrático de Direito.

 

CONCLUSÃO

Com isso, em razão de todo o pensamento elaborado, pode-se, com bastante propriedade, concluir que mesmo com todo o clamor social, a pressão midiática e o aumento da criminalidade e insegurança, o Direito penal do inimigo não é viável e, muito menos, solução para tais problemas.

Ademais, conforme restou demonstrado, a teoria jakobesiana encontra óbice na Constituição Federal de 1988, a qual constituiu o Brasil um Estado Democrático de Direito, ou seja, um Estado que busca a efetividade dos direitos fundamentais. Além disso, o referido modelo de Estado traz em seu bojo inúmeros princípios, dentre os quais, o da dignidade da pessoa humana, o da isonomia, o da legalidade e outros não previstos expressamente na Carta Magna, que se contrapõem, visivelmente, ao Direito penal do inimigo.

Nesse prisma, deve-se concluir que a teoria desenvolvida por Günther Jakobs não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro, sua prática seria um completo retrocesso, sendo, portanto, de extrema necessidade, a real e efetiva aplicação da lei, pois, apenas assim, veríamos eficácia no sistema penal e a proteção da sociedade civil.

 

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[1] Advogada. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Email: [email protected]

[2] JAKOBS, Gunther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo. Noções e críticas. Org e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

[3] O Estado Democrático de Direito surgiu como um novo modelo de Estado, “que tem como notas distintivas a introdução de novos mecanismos de soberania popular, a garantia jurisdicional da supremacia da Constituição, a busca pela efetividade dos direitos fundamentais e ampliação do conceito de democracia” (NOVELINO, 2015, p. 286).

[4] Conforme entendimento da doutrina pátria, nos termos da lição de Novelino (2015, p. 293) o princípio da dignidade da pessoa humana “(…) apesar de ter um peso elevado na ponderação, o seu cumprimento, assim como o de todos os demais princípios, ocorre em diferentes graus, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes”. Ademais, não se pode esquecer do postulado da proporcionalidade, o qual ampara e justifica as leis restritivas de direitos fundamentais. Ele exige que a restrição imposta a um determinado direito fundamental seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.

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