O perfil do advogado criminalista do terceiro milênio

Resumo: O advogado do terceiro milênio é aquele que conhece (e também aplica) não só as leis internas (incluem-se aqui os códigos) bem como a Constituição que regem o Estado. O conhecimento da legislação doméstica é necessário, porém não (mais) suficiente para compreensão do Direito. É preciso mais. Reclama-se do advogado um conhecimento global, que começa da pela lei subconstitucional e termina com os tratados internacionais sobre direitos humanos. O advogado do terceiro milênio deve saber manejar as diversas fontes do direito, quais sejam: a) leis e códigos internos; b) a Constituição da República; c) a jurisprudência interna (incluindo nessa acepção as súmulas vinculantes e as não vinculantes); d) os tratados internacionais sobre direitos humanos; bem como e) a jurisprudência internacional sobre direitos humanos.


Palavras-chaves: 1) Legalismo; 2) Constitucionalismo; 3) internacionalismo e 4) universalismo.


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Durante quase toda a história do ensino jurídico no Brasil e também no mundo fomos adestrados a pensar e pautar nossa vida profissional sob uma perspectiva essencialmente legalista-positivista, fruto do pensamento liberal instaurado a partir do final do século XVIII (leia-se: período no qual eclodiram as revoluções americana, 1776, e francesa, 1789).[1]


Não podemos perder de vista as relevantes transformações que se implementaram nesse período (final do século XVIII). Dentre os pontos que merecem nossa consideração está a sujeição do Estado politicamente organizado ao império da Lei. Essa característica – a mais relevante, segundo reputamos – foi a grande responsável por estabelecer limites ao atuar despótico dos monarcas dessa época. A partir das revoluções liberais, o governo deixou de ser guiado pela vontade do monarca e passou a obedecer à vontade da lei[2].


Como se constata, a sujeição do Estado absoluto ao império da lei fez nascer a primeira noção de Estado de Direito. Temos, pois, o que o eminente professor Luiz Flávio Gomes denomina de primeira onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça.[3]


É consabido que os limites impostos pelas leis da época tinham um caráter apenas formal. Malgrado a lei tenha sido a nota de toque do Estado de Direito, ela ainda era editada por pessoas que tinham relações e interesses com as fontes de poder[4]. Vale dizer, a produção legislativa do período absolutista estava concentrada nas mãos do monarca e das pessoas que, por delegação, estavam a ele hierarquicamente submetidas. O Estado de Direito nesse momento tinha somente uma característica formal[5]. O povo (leia-se: a pequena parcela mais frágil e a que mais precisava de ajuda) não detinha qualquer participação na formação da vontade política do Estado[6].


Disso decorre uma interessante questão que tudo tem haver com a atuação dos profissionais do Direito e com o ensino jurídico de modo geral: como na vigência do Estado de Direito não existia um limite superior a que a lei estava submetida (o que só veio acontecer somente com o movimento constitucionalista), o direito era confundido com a lei e os códigos. Direito, portanto, para essa época, era sinônimo de lei.[7]


O leitor desatento poderia se perguntar: ora, o que mais poderia compor o Direito senão somente à lei? O que mais pode valer para além da lei e dos Códigos?


Veremos ao logo deste modesto ensaio que a visão de fonte do direito, sobretudo em matéria jurídico-penal, sofreu irreversíveis transformações ao longo dos séculos. Mas, para o momento, é importante sublinhar que durante todos os cinco anos que passamos na Universidade (leia-se: curso de Direito), fomos dogmatizados a pensar no Direito como sinônimo de leis e códigos. Isso sempre foi assim. Raríssimas são, amigos do coração, as Universidades que ensinam o Direito sob a perspectiva de outras fontes. Pensar o Direito à semelhança da lei e dos códigos sempre foi a tradição do ensino jurídico[8].


 A análise legalista do Direito é extremamente perigosa, porque pode ocultar intenções nocivas por de trás da literalidade do seu texto. Prova emblemática disso aconteceu no período Nazista, na Alemanha. A propósito, o massacre perpetrado por ocasião do holocausto foi fundado exclusivamente na lei pura e fria. Tanto é verdadeira essa premissa que os comandantes do Nacional Socialismo, que foram submetidos a julgamento perante o Tribunal de Nuremberg, alegaram em suas defesas o estrito cumprimento de um dever legal. Arguiram naquela ocasião que não prosperavam as acusações formuladas perante àquele tribunal, porque todas as condutas perpetradas pelos acusados naquele período foram pautadas sob o império da lei da época, as quais estavam em plena vigência[9][10].


Com base nessa premissa, iniciaram-se inúmeros movimentos contestando a garantia de um sistema jurídico edificado exclusivamente sob um plano legicêntrico.


Foi motivado por esses ares que o gênio Radbruch sustentou a existência de uma crise do legalismo, ao asseverar que nem tudo que é legal é justo. Com assento nessa premissa, o professor de Heidelberg sustentou que leis extremamente injustas não poderiam ser consideradas Direito.[11]


Em abono as lições de Radbruch, pode ser acrescentado o magistério de Luigi Ferrajoli, segundo o qual o plano de vigência da lei não se confunde com o de sua validade. Vigência e validade são conceitos intercalados, porém, infensos.[12]


A vigência tem haver com a obediência ao devido processo legislativo: deve observância e acatamento ao aspecto formal da norma produzida pelo parlamento; ao passo que a validade tem haver com a compatibilidade material entre o que está estatuído pela Lei hierarquicamente superior à norma produzida[13]. Exemplificativamente, é possível que uma lei tenha vigência e ao mesmo tempo não seja considerada válida. Exemplo emblemático disso aconteceu com a vedação da progressão de regime instituída pela Lei dos crimes hediondos e assemelhados. Como se constata, o dispositivo vedatório à benesse (progressão) estava vigente (porque obedeceu corretamente os pressupostos formais, subjetivos e objetivo de elaboração – devido processo legislativo), mas não era válido, uma vez que feria o princípio da individualização da pena, o qual consiste em um direito subjetivo à pessoa humana[14].


Logo após a criação do Estado de Direito, iniciou-se o movimento constitucionalista, o qual apregoava uma nova (e mais forte) forma de imposição de limites ao Estado[15].


O constitucionalismo foi um movimento (político, ideológico, político etc. (16) que teve a pretensão de vincular toda a produção legislativa a um fundamento de validade que é exatamente a Constituição.


Na época da vigência do Estado de Direito, na sua perspectiva pura, o produto legislativo produzido pelo monarca ou por quem fizesse a sua vez não estava submetido à autoridade de nenhum outro instrumento jurídico. A medida da lei era tão-somente o monarca. Disso decorreu o nascimento de leis absurdas e iníquas.


Para por freios a essa sanha despótica que imperava no Estado de Direito, surge o movimento constitucionalista, o qual possui como característica primacial três grandes pontos, a saber: a) a limitação de poder, b) o nascimento da fundamentalidade dos direitos e c) a separação dos poderes[16].


Se o Estado de Direito, submetido que estava à autoridade da lei e não mais a do governante, pertence a primeira onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça, o constitucionalismo, com maior razão, pertence à segunda onda evolutiva (Estado de Direito Constitucionalista)[17].


De todos os méritos do movimento constitucionalista, a compatibilidade do produto legislativo interno (leis) à autoridade de um documento superior chamado Constituição parece ter sido a característica mais emblemática desse período. A partir de então, para que um ato legislativo fosse considerado valido, dever-se-ia ser compatível com o que estabelecia o Documento superior.


Esse panorama perpetuou-se até a eclosão da segunda grande guerra (1945). A partir de então se pode dizer com segurança que o mundo mudou (radicalmente) sua forma de ler e interpretar os valores[18].


A concepção de Direito como sinônimo de lei foi amplamente revista. Na rabeira dessa premissa vieram também uma reformulação do papel do jurista, o qual passou a ser considerado não mais legalista, mas sim constitucionalista[19].


Esses novos ares garantistas influenciaram todos os ramos do direito. A esse fenômeno deu-se o nome de constitucionalização do direito[20]. No âmbito penal, por exemplo, as mudanças foram muitas. O devido processo legal convolou-se em devido processo constitucional, porque não mais fundado em valores meramente legicêntricos (legalistas). Ao lado do legalismo de Rousseau, Hart, Kelsen, foram acrescidos valores constitucionais. Daí ser erronia (atualmente) adjetivar o devido processo em “legal”: recomenda-se o emprego da locução “constitucional” em sucedâneo aqueloutra expressão, justamente por externar uma visão mais condizente com o atual estádio de coisas que nos encontramos submetidos[21].


Essa mudança de paradigma levada a efeito pelo constitucionalismo não acarretou na transformação de uma simples referência, que da lei passou à Constituição. Os avanços desse novo modelo de Estado, de Direito e de Justiça, a par de ter inaugurado um novo Estado, qual seja o Estado de Direito Constitucional, foi responsável por rever o papel do jurista e sobretudo do ensino jurídico[22].


O Direito, para o jurista constitucionalista, não se adstringe às leis ou aos códigos. A compreensão do Direito para essa nova concepção é mais ampla. Além da lei e dos códigos, extremamente importantes para um Estado de tradições pautas no sistema da civil law, o Direito conta também com a aplicação dos preceitos constitucionais[23].


No início do constitucionalismo (do quando das primeiras revoluções liberais, séc. XVIII), as constituições não tinham força suficiente para condicionar e modelar o legislador. As disposições constitucionais desse período não passavam de exortações, conselhos ao legislador; vale dizer: não tinham caráter vinculante, como acontece atualmente[24].


 A partir do momento em que a consciência jurídica foi alterada para admitir efeitos vinculantes às constituições (Constituição como norma jurídica), o legislador não mais poderia editar leis que ofendessem ou que contrariassem os ditames encapsulados na Constituição. Essa vinculação fomentou o respeito aos valores constitucionalmente prescritos. A lei, portanto, foi destronada, assumindo em seu lugar a Constituição[25].


Com base nessa mudança de paradigma, houve a imperiosa necessidade de se construir um modelo de Estado no qual fosse possível controlar a compatibilidade do produto legislativo com os valores e regras contemplados constitucionalmente. Entra em cena então o judiciário.


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Com a missão precípua de guardar à Constituição e os Direitos fundamentais, o poder (leia-se: função) jurisdicional foi, a partir do Estado de Direito Constitucional, condecorado com a função de controlar a higidez constitucional, a lei passou a submeter ao filtro depuratório constitucional.


Com base nessa orientação forjada no Estado de Direito Constitucional, compete ao juiz (constitucionalista) bem como aos profissionais que militam no cenário jurídico conhecer essa nova pirâmide bidimencional, composta pela Constituição e pelas leis vigentes e válidas que integram nosso ordenamento jurídico interno.


Apesar dessa nova onda evolutiva (responsável por instituir o Estado de Direito Constitucional), muitos juízes e profissionais (notadamente advogados) desconhecem ou – que é pior e mais nocivo ainda – fazem questão de não aplicar essa nova onda evolutiva.


Como se contata, o sistema legicêntrico, fundado que está numa visão rasa, que prestigia tão-somente o aspecto legal e nada mais, está morto, porém ainda não foi sepultado, conforme bem lembrado pelo magistral professor Luiz Flávio Gomes[26].


Inúmeros juízes, membros do Ministério público e advogados ainda persistem em aplicar a lei fria ao caso concreto, sem, contudo, refletir sobre a validade dela frente aos valores contemplados na Constituição.


Comentamos até agora sobre o Estado de Direito, o qual representa a primeira onda evolutiva, que possui como premissa básica a confusão entre vigência e validade da lei (Ferrajoli), bem como confunde lei com Direito (Radbruch). Também tivemos a oportunidade de enfatizar em breves linhas a segunda onda evolutiva, a qual é representada pelo Estado de Direito Constitucional, cuja característica precípua pode ser extraída da supremacia da Constituição sobre qualquer outro produto legislativo interno.


Vimos até o presente que a lei não é mais sinônimo de Direito. Ela (a lei) representa apenas uma fração do Direito compreendido em sua globalidade. Em metáfora aplicada ao tema, pode-se afirmar que a lei (inclui-se aqui também os códigos) é a ponta do iceberg (que é o Direito). Ao lado da lei encontram-se outras fontes do Direito. E é exatamente sobre essa ampliação das fontes que passamos a nos debruçar a partir de agora.


As fontes do Direito até o presente momento se limitaram à análise da lei (leia-se: códigos) e da Constituição, esta última portadora de supremacia que condiciona e determina todo o produto legislativo do Estado.


A grande questão que se impõe destacar cinge-se em saber o papel da jurisprudência interna. Segundo Villey, o Direito não pode se divorciar da interpretação que o judiciário faz do ordenamento jurídico. O Direito começa com o poder constituinte e termina com os pronunciamentos emitidos pelo poder judiciário. Tendo como parâmetro essa premissa, podemos afirmar que na atual conjuntura na qual nos encontramos insertos (Estado de Direito Constitucional), a palavra do Poder judiciário é tão relevante que não podemos mais estudar o Direito sem levarmos em conta a jurisprudência interna[27].


Sob o viés dessa nova onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça, é lícito sustentar que o juiz (constitucionalista) é o grande responsável por dar efetividade ao ordenamento jurídico.


Postas as considerações nestes exatos termos, não há como desconsiderar mais a jurisprudência como parte integrante do Direito. Ora, se é certo que a jurisprudência é a última fronteira do Direito, não é exagero nenhum incluí-la como fonte formal imediata do direito[28].


Na vigência do Estado legalista, a única fonte de direito admitida era a lei. Com a entrada em cena do constitucionalismo, as constituições ganharam relevância capital. Com base nisso, foram consideradas fontes qualificadas do Direito, haja vista a topografia pinacular que ocupam no ordenamento jurídico (supremacia).


Se o poder judiciário foi o grande garante da higidez constitucional, incluindo aqui os direitos e garantias ali contidos, seus pronunciamentos são dotados de certa dose de força jurídica. Prova dessa força motriz que possui o poder judiciário é facilmente constatada com o advento das súmulas vinculantes, as quais, como o próprio nove revela, vincula tanto o Poder Executivo (exceto nas suas funções políticas), legislativo, nas suas funções atípicas bem como o próprio poder judiciário, exceto o pleno do STF[29].


Desta forma, do Estado de Direito Constitucional podemos extrair quatro fontes de Direito: Constituição, as leis (incluindo os códigos), a jurisprudência, e as súmulas vinculantes.


Vimos que do Estado legalista (legicêntrico) ao Estado Constitucionalista, fundado nos valores e na supremacia da Constituição (Constituição como norma jurídica) houve um enorme salto rumo à concretização dos direito humanos positivados (direitos fundamentais).


Todavia, com a eclosão da segunda guerra mundial (1945), o sistema jurídico global se viu impelido pela necessidade de atribuir maior efetividade aos sacrossantos direitos humanos. Vale dizer: a tutela de tão elevados direitos não poderia se limitar ao âmbito doméstico (interno). Havia a necessidade de uma garantia regional de tais direitos[30].


A despeito de o movimento constitucionalista erigir os direitos fundamentais à categoria de dogmas jurídicos, ainda assim era possível perceber, com bastante visibilidade, o desrespeito a inúmeros direitos humanos no âmbito interno de cada Estado[31].


Preocupada com a tutela e a efetividade de tal classe de direitos, a ONU, por intermédio da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, vazada em 1948, deliberou estender o debate e a proteção dos direitos humanos para um nível que transcendesse o âmbito interno dos estatutos jurídicos nacionais[32].


Iniciou-se a partir dessa concepção internacionalista de proteção aos direitos humanos o que em doutrina se convencionou chamar de universalização dos direitos humanos.


A necessidade de proteção a tais standards de direitos motivou grande parte dos Estados a aderirem aos tratados internacionais versantes sobre direitos humanos. No que se relaciona ao âmbito doméstico, o Brasil é signatário de quase todos os tratados internacionais de direito humanos.


 A partir do dia 03, de dezembro de 2008, no emblemático julgamento do RE 466.343 – SP, no qual se discutia a validade da prisão civil do depositário infiel, o pleno do STF se viu dividido em duas orientações. De um lado a proposição do Min. Gilmar Mendes, a qual sustenta que os Tratados internacionais sobre direitos humanos não submetidos ao quorum qualificado de aprovação (3/5) nem votado em dois turnos de votação em cada Casa Congressual ostentam status de norma supralegal. Isso significa dizer que os TIDH não submetidos à cláusula do § 3º, do art. 5º da CF (quorum qualificada e dupla votação em cada uma das Casas Congressuais), estão abaixo da Constituição e acima da lei ordinária.[33]


De outro lado encontra-se o posicionamento vencido capitaneado pelo Min. Celso de Mello, segundo o qual quaisquer TIDH, sejam eles submetidos ou não a regra do § 3º, do art. 5º, da CF, teriam status de norma Constitucional. O argumento que serviu de apoio a esse entendimento tem amparo no § 2º, do art. 5º, da CF, o qual dispõe que os “direito e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados…”. Trata-se, consoante a doutrina que assim sufraga, de cláusula de incorporação automática.[34]


Malgrafo o dissenso entre os Ministros do STF inaugurado sobre a natureza jurídica dos TIDH, uma conclusão preliminar podemos extrair: apesar da divergência instaurada, o fato (inquestionável) é que a majoritária composição da Excelsa Corte de Justiça de nosso país consolidou entendimento que os TIDH estão acima da legislação ordinária[35].


Como base nesse entendimento, podemos extrair outra conclusão: o Estado de Direito Constitucional se convolou em Estado de Direito Internacional. Isso porque, se as fontes do direito até a fase internacionalista (a qual estamos a estudar) eram compostas pela lei (e também pelos códigos), pela Constituição, pela jurisprudência interna e pelas súmulas vinculantes (instituídas após a EC 45/2004), agora, com o Estado de Direito Internacionalista, agrega-se a tudo isso os TIDH[36].


Como se dessume, a importância dos TIDH não pode ser desconhecida dos estudantes e dos profissionais do Direito. Se o TIDH aprovados com quorum qualificado, nos termos do § 3º, do art. 5º, da CF, são, inequivocamente, equivalentes à Emenda Constitucional, e se os TIDH não aprovados pelo quorum qualificado foram reconhecidos pelo STF como norma supralegal (tese vencedora do Min. Gilmar Mendes), é fora de dúvida que os TIDH devem se considerados fontes do Direito[37].


É possível e recomendável invocar os TIDH para paralisar os efeitos jurídicos da legislação ordinária que com eles seja incompatível. O advogado criminalista do terceiro milênio deve se ater aos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e passar a aplicá-los em seus arrazoados. Os TIDH não são penduricalhos que só têm incidência nos bancos acadêmicos. Quem assim pensa está na contramão da efetividade dos direitos humanos.


Assa nova era, vale dizer, a terceira onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça (Estado de Direito Internacional), alargou ainda mais o núcleo das fontes do direito. Como o Direito internacional dos direitos humanos tem o compromisso de defender tal estirpe de direitos, tal efetivação nunca seria completa se sua tutela se adstringisse ao âmbito do Direito domestico de cada país.


A necessidade da proteção aos direitos humanos foi elevada a patamares regional e universal. Desta forma, há tribunais internacionais cuja competência se limita à tutela dos direitos humanos no âmbito do direito interno dos Estados. No âmbito regional podemos citar a comissão interamericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos. É bom que se frise que a competência da corte interamericana não tem jurisdição penal, mas tão-somente cível, e sua incidência está condicionada ao preenchimento de certos requisitos, dentre os quais o encerramento da instância interna[38].


Com base nisso, podemos avançar dizendo que além das fontes até aqui traçadas (leis – também os códigos -, Constituição, jurisprudência, súmula vinculante), acresça-se a tudo isso a jurisprudência internacional.


Não se pode (mais) estudar e ler o Direito sem levar em conta o que pensa a jurisprudência internacional sobre assuntos afetos aos direitos humanos. Operar o direito ficou muito mais complexo. Exige-se do profissional (juiz, promotor, advogado etc.) um conhecimento global e sistematizado sobre as fontes do Direito. Em outras palavras, devemos dialogar com as fontes do Direito (Erik Jaymes), a fim de ser permitido extrair a leitura que mais homenageie a efetividade dos direitos humanos[39].


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 Os avanços das ondas evolutivas do Estado, do Direito e da Justiça não param por aqui. Há uma nova onda – a quarta para ser mais exato -, ainda em fase embrionária, responsável por implantar um sistema supraconstitucional de direitos[40].


Enquanto a terceira onda (internacionalista) se limita ao âmbito regional, porque leva em conta alguns países unidos por um vínculo internacional (normalmente um tratado ou outro documento internacional equivalente), a quarta onda é mais ampla porque cria uma justiça universal (global), na qual todos os países estão a ela submetidos[41].


Atualmente podemos citar como exemplo emblemático desse modelo de Estado universalista (global) a criação do TPI pelo Estatuto de Roma. A competência desse tribunal é criminal, supletiva e vincula até mesmo as autoridades pertencentes aos Estados que não ratificaram formalmente esse documento[42].


É oportuno sublinhar que, embora o TPI tenha competência penal, somente os crimes de lesa humanidade são julgados perante ele (genocídio, crimes de guerra, etc.)[43].


Exemplo da extensão da competência da TPI é retratado no mandado de prisão expedido contra o presidente do Sudão, Omar Hassan Ahmad al-Bashir[44].


CONCLUSÃO


Tivemos a oportunidade de enfatizar que o Estado, o Direito e a Justiça passaram por bruscas ondas evolutivas durante a história.


A onda evolutiva zero é aquela marcada pela falta de limites formais e materiais ao soberano despótico. O governo, nesse período, era irresponsável (não prestava contas ao povo) e ilimitado (não havia limitação).


A primeira onda evolutiva teve como marco inicial as revoluções liberais (americana, 1776, e francesa, 1789). A segunda onda evolutiva foi responsável por instituir o Estado de Direito. Esse modelo de Estado buscava limitar o Estado não mais ao império do monarca, mas sim à autoridade da lei (substituição da vontade do homem pela vontade da lei). A lei nesse período era sinônimo de Direito. Confundia-se vigência com validade da lei. O judiciário não tinha autonomia: era apenas porta voz do legislativo (la bouche de la low).


A segunda onda evolutiva foi marcada pelo constitucionalismo. Através desse modelo de Estado inaugurou-se o que em doutrina convencionou chamar de Estado de Direito Constitucional. Com base nesse novo modelo, a lei foi destronada, e no seu lugar entrou a Constituição. A partir daí a lei parou de ser considerada como sinônimo de Direito. Passou a viger a máxima de que nem tudo que é legal é justo. Injustiça extrema não é justiça (Radbruch). Vigência e validade são coisas distintas (Ferrajoli).


A terceira onda evolutiva é caracterizada pela presença dos TIDH. Segundo o STF, no célebre julgamento de RE 466.343 SP, duas correntes se formaram naquele Excelso Tribunal. A primeira e vencedora teoria, capitaneada pelo Min. Gilmar Mendes, entendeu que os TIDH, não obedientes ao § 3º, do art. 5º da CF, tinham status de norma supralegal. Do outro lado da ponta, encontra-se o magistério do Min. Celso de Mello, para quem os TIDH não observantes ao § 3º, do art, 5º, da CF, gozavam de envergadura constitucional. Apesar da divergência inaugurada no âmago do STF, uma coisa é certa: a maioria esmagadora dos ministros daquele Tribunal é concorde que os TIDH vale mais que a lei ordinária.


Outro ponto relevante que acompanhou o desenvolvimento do Estado de Direito Internacionalista (terceira onda evolutiva) conecta-se a importância que a jurisprudência interamericana passou a exercer sobre o direito interno de cada Estado.


A soberania de cada Estado foi completamente revisitada pelo incremento dos TIDH. A colidência entre os direitos humanos internacionais e os direitos domésticos dos países deve ser resolvida pela incidência dos princípios pro homine e da vedação de retrocessão.


A quarta e última onda evolutiva diz respeito ao direito supraconstitucional, que está fundada na máxima efetividade dos direitos humanos, e se preordena à atuação supletiva e limitada aos crimes de lesa humanidade. Sua competência está afetada ao TPI, com sede em Haia. Sua jurisdição é tão ampla que alcança autoridades pertencentes a Estados que não estão juridicamente vinculadas ao Estatuto de Roma, certidão de nascimento do TPI, a exemplo do mandado de prisão expedido contra o presidente do Sudão Omar Hassan Ahmad al-Bashir.


A par dessas constatações, podemos ainda assentar que o advogado do terceiro milênio deve não mais dar exclusiva atenção ao direito interno (leis e códigos), para ampliar seu campo de visão, explorando outras fontes do direito, tais como a Constituição, os TIDH, bem como a jurisprudência interna e externa.


Saber dialogar com as (novas) fontes do direito (Erik Jayme) torna o advogado mais preparado para o enfrentamento das causas a ele confiadas. Na área criminal esse intercâmbio entre as fontes do direito é mais latente, uma vez que o Brasil é signatário de inúmeros tratados que se conectam com os direitos de primeira era, direcionados aos direito de liberdade.


A convenção Interamericana de direitos humanos (pacto de San José da Costa Rica) traz inúmeros princípios extensíveis à jurisdição penal. A importância do advogado em conhecer as regras ali insertas, possibilita invocá-las em seus arrazoados, já que os TIDH, segundo inteligência do STF, possui, desde 03 de dezembro de 2008, status de norma supralegal.


Também não prospera a não aplicação, pelo profissional da advocacia, dos TIDH, ao argumento de que o judiciário pouco aplica seus comandos, não obstante seu reconhecimento pelo STF como documentos que estão acima das leis ordinárias do Estado.


A advocacia deve começar a criar o hábito de, na defesa dos interesses do jurisdicionado, arguir suas pretensões com os olhos voltados na Constituição e, sobretudo, nos TIDH, sem olvidar os pronunciamentos emanados da jurisprudência interna e internacional.


 


Bibliografia

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. 11º ed, Saraiva: São Paulo, 2009.

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio-Pablos de Molina. Direito Penal: parte geral, V. 2., RT: São Paulo, 2007.

_______, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. Premier: São Paulo, 2008.

_______, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. RT: São Paulo, 1997.

________, Luiz Flávio e VIGO, Rodolfo Luis Vigo. Do Estado de Direito Constitucional e Transnacional: riscos e precauções, RT: São Paulo, 2008.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3º ed. Método: São Paulo, 2009.

VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica. RT: São Paulo, 2005.

 

Notas: 

[1] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010, p. 21

[2] GOMES, Luiz Flávio e VIGO, Rodolfo Luis Vigo. Do Estado de Direito Constitucional e Transnacional: riscos e precauções, RT: São Paulo, 2008.

[3] GOMES, Luiz Flávio e VIGO, Rodolfo Luis Vigo. Do Estado de Direito Constitucional e Transnacional: riscos e precauções, RT: São Paulo, 2008.

[4] Idem.

[5] VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica. RT: São Paulo, 2005.

[6] Idem.

[7] Ferrajoli, Radbruch, apud GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[8] GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. RT: São Paulo, 1997

[9] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[10] Para um estudo reflexivo sobre o tema ler “O caso dos denunciantes invejosos”.

[11] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[12] Apud. GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[13] GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. Premier: São Paulo, 2008.

[14] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[15] idem.

[16] Carbonel, apud NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3º ed. Método: São Paulo, 2009.

[17] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3º ed. Método: São Paulo, 2009.

[18] GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. Premier: São Paulo, 2008.

[19] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[20] Idem.

[21] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. 11º ed, Saraiva: São Paulo, 2009.

[22] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[23] GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. RT: São Paulo, 1997.

[24] GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. RT: São Paulo, 1997.

[25] BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

[26] GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. Premier: São Paulo, 2008.

[27] idem.

[28] GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito. RT: São Paulo, 1997.

[29] GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. Premier: São Paulo, 2008.

[30] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010

[31] Idem.

[32] Idem.

[33] GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. Coleção: Direito e Ciências afins, v. 5. RT: São Paulo, 2010.

[34] Idem.

[35] Idem.

[36] Idem.

[37] Idem.

[38] Idem

[39] Idem

[40] Idem

[41] Idem

[42] Idem

[43] Idem

[44] Idem


Informações Sobre o Autor

Júlio César Konkowski da Silva

Pós-graduado em Criminologia, em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho. Membro da coordenadoria de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Comissão do Jovem Advogado a OAB/SP. Membro colaborador da Comissão de Segurança Pública da OAB/SP. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Direito Constitucional em curso preparatório para carreiras jurídicas. Advogado militante em São Paulo.


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