O usuário de drogas na nova lei de tóxicos: Uma abordagem prática da Lei 11.343/06

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Resumo: O propósito do presente trabalho não é uma abordagem sobre toda a matéria regulamentada na Lei 11.343/2006, e sim apresentar uma breve reflexão sobre o tratamento legislativo destinado ao usuário de drogas, sobre as sanções escolhidas para a aludida prática, e, finalmente, sobre as questões processuais penais que ostentem pertinência e relevância jurídica com a aludida matéria. Diante das várias críticas, sugestões e das primeiras decisões sobre a matéria, parece oportuno retomar e aprofundar um pouco mais esse complexo assunto.


Palavras-chave: Lei 11.343/06; Drogas; Usuários; Despenalizar; Descriminalizar; Penas Alternativas.


Sumário 1. Introdução. 2. Sistemas penais e funcionalismo 3. Síntese e a lei de tóxicos: bases para uma interpretação conseqüente. 4. O uso de drogas: para além da instrumentalidade da pena. 5. O tráfico, o uso e as penas: descriminalização? 6. Prisões cautelares e vedação da liberdade provisória 7. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


No Brasil, que, possivelmente, ocupa o primeiro lugar na produção legislativa do mundo ocidental, a criação de leis, geralmente, é obra de pouca reflexão, e, quase sempre, de poucos autores.


Os dois males andam juntos: a ausência de debates públicos e, assim, da participação popular – não no processo legislativo, em si, já que assim não o prevê nosso modelo constitucional – indica a menor amplitude na argumentação por ocasião da elaboração das normas e, em conseqüência, a sua diminuição (da participação) no âmbito da formação da vontade popular. Tais são os problemas mais sensíveis em relação à ausência de legitimidade de um sem número de leis nacionais, e, particularmente, em relação àquelas de maior alcance social, frutos, quase sempre, ou da solidão parlamentar, ou, o que é muito pior, da prevalência de interesses exclusivamente privados de determinadas hegemonias econômicas e/ou políticas.


Não bastasse, campeia também a fragilidade técnica na produção dos textos normativos.


Recentemente, por exemplo, e possivelmente movidos por interesses predominantemente eleitoreiros, o Legislativo e o Executivo brindaram a população feminina brasileira com a Lei 11.340/06, destinada à produção de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, garantindo a elas as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar comunitária (art. 3º). Direito, enfim, e para além do manifesto apelo retórico da citada legislação, a um efetivo Estado Democrático de Direito, que simplesmente faça cumprir as promessas da modernidade, ignoradas desde a perspectiva liberal e social, e que parecem também irrealizáveis pelo atual modelo político de Estado, que sequer dá sinais da concretização dos direitos fundamentais garantidos em texto constitucional. A citada Lei, além de outros graves defeitos de forma e conteúdo, comete o desatino de se referir aos (inexistentes) territórios nacionais, que teriam também competência legislativa para a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14). Ao lado, então, da relevância da matéria – violência à mulher – predomina a fragilidade das soluções legislativas.


Os mesmos defeitos, entretanto, não estão presentes na Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que, revogando expressamente as Leis 6.368/76 e 10.409/2002 (art. 75, da Lei 11.343/06), passou a regular toda a matéria atinente ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –Sisnad, destinado à prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, bem como à repressão à produção e ao seu tráfico ilícito. Há equívocos ali, como é próprio à atividade legiferante e à veiculação de políticas criminais. Mas os acertos estão em número muito superior.


Nosso propósito, aqui, não é uma abordagem sobre toda a matéria regulamentada na nova legislação, o que demandaria esforços e espaço temático bem mais amplos que um trabalho desta natureza pode apresentar. Nossas pretensões são bem mais modestas. Procuraremos levantar e discutir duas questões específicas a respeito da nova Lei de Tóxicos, a serem examinadas no contexto do atual universo jurídico brasileiro, incluindo, ainda mais especificamente, a perspectiva teórica do funcionalismo aplicado ao Direito Penal e Processual Penal. O objetivo é apresentar uma possível mediação entre as pretensões da política criminal anunciada na Lei 11.343/06 e de algumas das categorias dogmáticas do respectivo Direito, isto é, do Direito Penal e Processual Penal, que deverão conduzir a realização da política pública ali deduzida.


Trata-se de breve reflexão sobre o tratamento legislativo destinado ao usuário de drogas, sobre as sanções escolhidas para a aludida prática, e, finalmente, sobre as questões processuais penais que ostentem pertinência e relevância jurídica com a aludida matéria. O alcance limitado do trabalho é inexorável: decorre das deficiências pessoais do autor e da complexidade do tema, cujo enfrentamento,


contudo, se impõe a quem se dedica às ciências penais, abrindo-se, assim, às críticas dos doutos.


2 SISTEMAS PENAIS E FUNCIONALISMO


A idéia de sistema a que aqui nos reportaremos acha-se vinculada não só à teoria do conhecimento, mas, de modo ainda mais específico, ao tradicional conceito de dogmática jurídica, ou seja, o estudo acerca da interpretação e sistematização das normas jurídicas, bem como do desenvolvimento científico de determinada ordem normativa. ¹ Conceito, aliás, que pode ser encontrado[1] desde KANT, no sentido de uma unidade dos múltiplos conhecimentos sobre uma idéia, ou uma totalidade de conhecimentos ordenada sobre princípios. Evidentemente, a adesão ao pensamento sistemático, mesmo no âmbito de uma dogmática jurídica, não pode e nem deve excluir a abertura crítica para o reconhecimento das deficiências de semelhante metodologia para a aplicação do Direito. Parece já fora de dúvidas que não raras vezes o método de indução e de dedução, próprios à busca de soluções dentro e no sistema, nem sempre oferecerá respostas que satisfaçam as premissas valorativas de um dado sistema jurídico. Ainda teremos oportunidade de mencionar alguns exemplos.


No âmbito do Direito Penal, como se sabe, a evolução sistemática da matéria teve início ainda no século passado, podendo-se, com ROXIN, apontar a passagem do modelo clássico, causal, para o finalismo, com amplas conseqüências na teoria do delito, arrolando-se, ainda, o sistema neoclássico, com maiores preocupações valorativas, até a chegada ao que se convencionou denominar funcionalismo, que tem em Claus ROXIN e Günter JAKOBS dois de seus mais importantes elaboradores.


Em linhas muito gerais, pode-se apontar nos aludidos sistemas penais as seguintes distinções teóricas (e práticas, a depender do ordenamento jurídico específico que se quiser examinar):


a) no sistema clássico, atribuído a VON LISZT e BELING, a perspectiva prevalecente, do ponto de vista epistemológico (isto é, do modo de se examinar cientificamente as suas categorias e conceitos – tipicidade, ilicitude, culpabilidade etc.), o método de conhecimento da matéria assemelhava-se àquele atinente ao exame das leis naturais, ou seja, com ênfase na descoberta dos processos causais para determinação de suas conseqüências;


b) no sistema neoclássico, que teve em MEZGER o seu expoente, e o seu florescimento, sobretudo, a partir do reconhecimento da importância dos elementos subjetivos do tipo (a subtração de coisa alheia – dado objetivo -, sem a finalidade de assenhoreamento – elemento subjetivo – como exemplifica ROXIN[2], seria irrelevante para a definição de furto), teve como característica principal o deslocamento do eixo metodológico do sistema anterior, clássico, passando de uma concepção naturalista, na qual o injusto permanecia neutro, para uma abordagem valorativa. Com isso, a ilicitude, mais que uma contrariedade de um fato a uma norma de direito, deveria ser também a expressão de uma lesividade social da conduta. Trata-se, com efeito, de alteração inserida ainda no contexto do positivismo, enquanto método e explicação do fenômeno do direito, com o reconhecimento de que a ciência jurídica, como ciência do espírito e não ciência da natureza, haveria de se construir segundo finalidades desde logo declaradas, e que deveriam ocupar a base do sistema. Do mesmo modo, na culpabilidade, antes entendida unicamente como o aspecto subjetivo do delito, reconheceu–se a presença de algumas exceções, de natureza objetiva, de que era exemplo a culpa inconsciente. Por fim, a culpabilidade, enriquecida com a ênfase dada ao papel do sujeito na filosofia neokantiana, passa a expressar também um juízo de reprovabilidade em face do autor do fato;


c) no sistema finalista, ainda predominante na doutrina brasileira, a mudança é, então, radical. Com WELZEL à frente, rechaça-se o conceito e a estrutura meramente causal da ação até então existente, para, a partir da compreensão epistemológica) de que as ciências, de modo geral, não poderiam desconsiderar em suas formulações a realidade do ser do homem, chegar-se a uma nova definição da ação penalmente relevante: o homem, conhecedor das coisas e do meio em que vive e, assim, dos resultados que produz no mundo físico, se conduz por meio de antecipações dos cursos causais, de tal maneira que sua ação é sempre uma ação orientada finalisticamente. É dizer: o homem age segundo finalidades pré-definidas, em razão do que a sua ação não pode ser cega e sim vidente, conhecedora de si. E, sendo assim, não haveria mais razão para que o dolo e a culpa permanecessem como formas de culpabilidade (como nos sistemas anteriores); ao contrário, se a ação é finalisticamente orientada, o dolo, pelo menos, deve se posicionar no tipo.


A ciência, seja enquanto instrumento para um conhecimento metodologicamente orientado, ou, ainda, como o aporte do saber para a transformação do mundo, há de ser compreendida como um esforço em prol da realização do homem. E não se pode afirmar, seriamente, que o Direito Penal tivesse vivido nas trevas de uma absoluta incompatibilidade da teoria com a práxis em quaisquer dos sistemas penais a que nos referimos. Causalistas, neoclássicos e finalistas sobreviveram e sobrevivem às supostas superações que cada novo sistema pretende, seguindo aplicando o Direito Penal aos homens de seu tempo. Mesmo a grande reviravolta metodológica ocorrida na passagem entre o causalismo e o finalismo, com a retirada do dolo (e a culpa) da culpabilidade para o tipo, jamais autorizou qualquer conclusão que retirasse a viabilidade prática do sistema causal elaborar e aplicar o Direito Penal. E, como convém à humanidade, nenhum deles (conhecimento) está a cavaleiro da crítica.


3. SÍNTESE E A LEI DE TÓXICOS: BASES PARA UMA INTERPRETAÇÃO CONSEQÜENTE


De tudo o quanto se expôs, em linhas muito gerais, o nosso objetivo é realçar um dos aspectos ou características mais importantes do funcionalismo penal, quando nada como um esboço para a fundamentação de uma hermenêutica mais atualizada da nova legislação sobre as drogas, Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006.


Enquanto os anteriores sistemas penais – causalista, neoclássico e finalista – estiveram mais comprometidos com a elaboração de uma dogmática não tão associada aos propósitos da política criminal ou mesmo da fundamentação do Direito Penal, valendo-se de uma metodologia fundada na acomodação da ciência jurídica aos fatos da realidade, o funcionalismo segue caminho inverso, buscando estruturar o sistema penal e, assim, a definição das categorias dogmáticas, sempre a partir das necessidades regulativas do Direito, associadas às respectivas fundamentações.


E, nesse particular, tanto Jakobs quanto Roxin buscam submeter a dogmática penal aos caminhos apontados na respectiva fundamentação do Direito Penal. Para Jakobs, por exemplo, a punição da tentativa – sem lesão alguma a bem jurídico – deve ser explicada sob a perspectiva da lesão à norma jurídica, de tal modo que o decisivo na apreciação do fato penal deve ser precisamente a lesão à juridicidade, já que inexistente o dano ao bem jurídico.[3]E isso decorre de sua concepção da pena pública estatal, como confirmação da validade de uma norma violada e não como sistema de proteção a bens jurídicos. Na mesma linha, Roxin não vê necessidade alguma na aplicação de pena àquele que age em excesso de legítima defesa, movido por pânico ou medo, tendo em vista não se poder negar ter o agente agido conforme o direito – na legítima defesa – dele se afastando, no excesso, por razões não relacionadas com qualquer déficit de compreensão ou de desrespeito ao Direito.


Por isso, costuma-se atribuir a ambos o papel de articuladores de uma prevenção positiva da pena, associada ao reforço de confiança no Direito (prevenção geral), seja como justificação da pena, seja como consequência dela. A bem da verdade, Jakobs, no que tem de hegeliano – em relação à pena – não pretende justificar a pena pública como prevenção de delitos futuros. Para ele, semelhante resultado (o de prevenir delitos) seria até muito bem vindo, embora a ele pareça impossível demonstrar tal eficácia empiricamente. Mais que isso, Jakobs já chegou a dizer – com razão – que os dados disponíveis dos sistemas penitenciários de todo o mundo estão a demonstrar exatamente o contrário.


Mas, de qualquer modo, seja como a confirmação da validade de uma norma jurídica (Jakobs), seja como um reforço de confiança no Direito (Roxin), a fundamentação da pena pública estatal não pode mesmo ficar de fora no momento de sua aplicação.


Se é verdade que ela (fundamentação) já teria sido analisada por ocasião da própria incriminação (formulação do tipo), não menos verdadeira é a conclusão no sentido de que todo sistema jurídico há de se abrir para os riscos e defeitos próprios da abstração inerente a sua construção. Uma coisa, por exemplo, é desvalorar o excesso de legítima defesa, incriminando-o; outra é aplicar a sanção penal em qualquer hipótese em que a mesma estiver presente.


Impõe-se, agora, examinar, sob a perspectiva da fundamentação do Direito Penal e de suas relações com as demais formas de intervenção estatal – os chamados equivalentes funcionais, sob a ótica de estímulo a um comportamento conforme o Direito – algumas das novas definições típicas da Lei 11.343/06, notadamente a incriminação do uso de drogas, bem como o tratamento processual penal reservado às prisões cautelares, já em um contexto mais amplo da ordem jurídica constitucional, que, em última análise, não deixa de ser a base fundamental para qualquer formulação jurídica de maior relevo.


4. O USO DE DROGAS: PARA ALÉM DA INSTRUMENTALIDADE DA PENA


A primeira questão que surge por ocasião de qualquer debate acerca da incriminação do uso de drogas diz respeito à concepção de Direito Penal que se quer deduzir do universo constitucional. Sem adentrar, por enquanto (já o faremos), o mérito de debates mais recentes acerca de uma segunda velocidade do Direito Penal, no qual se esboçaria uma flexibilização dos rigores na incriminação (formulação do tipo) e no processo penal, com o correspondente afastamento de sanções mais graves, como a privativa da liberdade, como se vê em SILVA SANCHES,[4] parece fora de dúvidas que a legitimidade da intervenção penal estatal vem sendo admitida – quando é – apenas nos limites da proteção aos direitos fundamentais, e contra agressões mais graves a estes direitos, quando insuficientes outras formas de tutela. Trata-se do que se convencionou denominar direito penal mínimo, justificado em geral nas Constituições erigidas em Estados Democráticos de Direitos, então, apenas quando estritamente necessário.


Já vimos que a missão do Direito Penal, de modo geral, está associada à proteção de bens jurídicos – exceção feita a Jakobs, que vê na proteção da norma penal o verdadeiro bem jurídico penal – e, no âmbito de um Direito Penal minimalista, então, a tutela há de escolher bens jurídicos de notória relevância social (individuais e coletivos) e agressões de igual nível de importância.


Posta assim a questão, quais seriam as justificativas para a criminalização do uso de drogas?


Há um certo entendimento no sentido de que a proibição do uso teria como missão, indireta, por assim dizer, a extinção futura do tráfico de drogas, por inevitável ausência de clientela. Este, o tráfico, historicamente, aqui e acolá, sempre mereceu maiores cuidados, em razão das deletérias ramificações de sua organização operacional, na qual, muito além de mera sonegação de impostos, estão presentes os homicídios, torturas, lesões corporais, ameaças, lavagem de dinheiro, além, é claro, dos danos ao consumidor e tudo quanto possa se revelar necessário à manutenção da lucrativa atividade.


O problema de semelhante ponto de vista, muito frequente nos debates populares e nos discursos parlamentares, é a potencialização, ao máximo, de uma suposta eficácia preventiva da pena, sem a mais mínima preocupação com a pessoa do usuário, que, passa a ser tratada, não mais como pessoa, mas como uma coisa, útil aos interesses da coletividade.


Kant, desde sempre e há muito tempo, opunha-se a qualquer fundamentação preventiva da pena pública, por entender que tal justificativa ignorava a máxima segundo a qual o homem seria um fim em si mesmo e jamais poderia ser utilizado como meio para a obtenção de propósitos alheios.[5] Se o raciocínio parece, de fato, adequado à proposta de prevenção geral, do ponto de vista de uma recuperação do agente (prevenção especial, portanto), ao contrário, ainda seria possível salvar a missão preventiva da pena. Mas, note-se que, no caso do uso de drogas e do propósito de combate ao tráfico, a instrumentalização da pessoa parecerá ainda mais evidente, se a pena a ser aplicada não se dirigir de modo muito explícito à recuperação do usuário. Neste caso, a punição do usuário seria declaradamente utilitarista, com a absoluta desconsideração da pessoa do agente, merecedor, segundo tal perspectiva, da mesma reprovação do traficante.


De outro lado, e então se revelaria inevitável paradoxo, se a pena a ser aplicada se dirigir unicamente à recuperação terapêutica do usuário, não se poderá afirmar ter sido este o objetivo da incriminação (combate ao tráfico). É dizer: se a pena ao usuário destina-se a ele, tendo como fim a sua recuperação, nada há que se esperar de qualquer eficácia preventiva no âmbito geral, diante da perda evidente de sua capacidade dissuasória.


Outra hipótese de justificativa para a pena ao usuário seria a proteção da coletividade, em razão do perigo oferecido por aquele que se encontrar sob os efeitos de substância entorpecente. Aqui, de fato, o argumento parece se ajustar mais aos propósitos do Direito Penal, no que se refere à missão de proteção de bens jurídicos.


No entanto, a realidade brasileira mostra diariamente as gravíssimas conseqüências resultantes do uso de bebidas alcoólicas, tanto no interior da vida em família, quanto e, sobretudo, no trânsito viário, sem que haja qualquer movimento social no sentido de impedir a venda de bebida alcoólica. E esta, como ninguém duvida, produz entorpecimento dos reflexos e alteração do ânimo e do humor, revelando-se poderoso combustível para o fomento de conflitos físicos e produção de danos (às vezes irreparáveis) às pessoas. Que ninguém duvide: os incidentes de violência presentes nos estádios de futebol, aqui e no mundo, estão associados ao consumo de bebida alcoólica e não ao uso de drogas.


Nesse sentido, do risco, ou pelo menos de determinado risco, veja-se os tipos penais do art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) e art. 39, da Lei 11.343/06, a nova Lei de Tóxicos, ambos proibindo e sancionando a direção de veículos, embarcação ou aeronave após o consumo de drogas e/ou bebidas alcoólicas. Mas, repita-se, nada há de proibição do simples uso da bebida alcoólica, sem relação com a prática de atos posteriores.


De outro lado, também não parece suficiente para a incriminação do uso de drogas a lesão à integridade física e psíquica do usuário. Assim fosse, não poderíamos conviver de modo tão pacífico com o consumo diário de fumo e de bebidas alcoólicas, sobretudo com as altas taxas de óbito e de doenças crônicas decorrentes do uso das aludidas substâncias e rotineiramente reveladas pelas estatísticas médicas. Ao que parece, no particular, reconhece-se a autonomia do indivíduo para decidir acerca de suas opções de vida e da autodestruição não-oficial dela. Porque seria diferente com o consumo de drogas, e, de modo mais específico, de determinadas drogas, cujo teor de comprometimento à saúde é reconhecidamente inferior ao do fumo e da bebida alcoólica?


Com efeito, a questão é mesmo (e muito) complexa, e, a nosso aviso, bem andou o nosso legislador da recente Lei 11.343/06, ao reconhecer o imenso abismo existente na sociedade brasileira, no que diz respeito ao enfrentamento conseqüente das drogas. Não há como seguir tratando o usuário de drogas como um parceiro do traficante, e, assim, merecedor da mesma reprimenda, no aspecto qualitativo (pena privativa da liberdade), daquele (traficante de drogas).


5. O TRÁFICO, O USO E AS PENAS: DESCRIMINALIZAÇÃO?


Nesse particular, a nova legislação é rica em distinções. Veja-se, por exemplo, que o §3º do art. 33 da Lei 11.343/06 exclui, expressamente, do tipo penal descrito no caput a cessão gratuita e eventual de drogas para consumo entre pessoas socialmente relacionadas, reservando a elas um tratamento muito mais racional que as legislações anteriores, nas quais um pós-adolescente de dezoito anos que repartisse (cedesse) um cigarro de maconha com seu amigo, para consumo conjunto, era condenado como traficante de drogas, sujeitando-se aos rigores do tratamento carcerário ali previsto (art. 12, Lei 6.368/76). Solução delirante e impositiva de males gravíssimos, enfim superada.


Mas certamente não reside aqui o ponto de maior controvérsia na nova legislação de tóxicos, sobretudo para os fins a que nos propusemos neste breve estudo. A grande discussão que já se acha em curso diz respeito a uma possível descriminalização do uso de drogas, que teria ocorrido com a ausência de sanção privativa da liberdade para quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (art. 28). Foram previstas: a) advertência sobre os efeitos das drogas; b) prestação de serviços à comunidade, e c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. E como arremate, para o caso de descumprimento das medidas impostas, estabeleceu-se o seguinte: I- admoestação verbal; II – multa. Nenhuma possibilidade, como se vê, de imposição de pena privativa da liberdade.


E, então, a dúvida: teria havido descriminalização do uso de drogas? Embora, pessoalmente, ainda não tenhamos encontrado justificativa razoável para a incriminação do uso, em um universo que autoriza e até incentiva o consumo de bebidas alcoólicas e de fumo, pensamos que a nova Lei não promoveu descriminalização alguma.


Em primeiro lugar, a se salientar a fragilidade de um argumento habitualmente esboçado em encontros jurídicos, relativamente à previsão do art. 1º, da do Decreto- Lei 3.914/41, a denominada Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais.


Diz o citado art. 1º: Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção…e contravenção, a infração penal a que a lei comina pena de prisão simples… .


Já tivemos oportunidade de examinar a questão, nestes termos: “Ora, para ficarmos apenas no âmbito de uma argumentação ao nível do Direito Penal e da Ciência do Direito Penal, é bem de ver que tal raciocínio pretende confinar o Direito Penal, não às regras da natureza, como fez o causalismo em relação à ação na teoria do crime, mas, pior, às definições prévias, imutáveis e intangíveis, criadas pelo próprio Direito, como se o conceito de crime, uma vez dado no ordenamento jurídico, jamais pudesse ser alterado! Talvez, nem mesmo pela Constituição, já que se trataria de uma entidade construída pela cultura do homem.”[6]


Por certo que a definição da matéria incriminadora é tarefa legislativa, desde que acomodada às exigências constitucionais. Então, as pessoas que jamais se incomodaram com a validade normativa das legislações anteriores, que tratavam o uso de drogas como crime, não podem agora levantar suspeitas sobre o acerto da nova legislação, a menos sobre o aspecto de sua validade. É claro que o argumento no sentido da descriminalização não vai de encontro à validade do tipo previsto no art. 28. Todavia, fundar qualquer interpretação de lei com base em legislação anterior soa bastante problemático. Assim, pode o legislador, à evidência, renovar sua definição acerca das características do crime, sobretudo quando tiver o objetivo de flexibilizar os rigores das conseqüências penais.


Na busca de um modelo penal que, sob o influxo de uma demanda social cada dia mais dirigida contra a impunidade, se veja na contingência de ampliar as suas fronteiras, deve o Estado, responsável pela intervenção penal, e, mais que isso, por uma intervenção racionalmente orientada, optar por alternativas que possam revelar tanto eficácia funcional quanto respeito às garantias individuais, segundo professa SILVA SANCHEZ, com sua oferta do Direito Penal de duas velocidades.[7]


De outro lado, posta a escolha na Lei, e tais são os termos da Lei 11.343/06, não vemos razão alguma para se sustentar a descriminalização do uso de drogas. Não bastasse, pensamos mesmo ser politicamente inconveniente defender uma tal compreensão. Repetimos: “… a prevalência de uma interpretação desta natureza – da descriminalização do uso – certamente trará graves conseqüências no futuro, diante do notório poderio da manipulação da opinião pública, sempre ao alcance de legislações cada vez mais irracionalmente radicais, com promessas mirabolantes de solução para todos os males. Melhor, assim, que se trate mesmo da matéria como de Direito Penal.”[8]


Por fim, sob a perspectiva do funcionalismo, quer em relação aos aspectos preventivos positivos, quer sob a ótica da confirmação da validade da norma, com o recurso aos equivalentes funcionais para o afastamento das perturbações às expectativas, o novo tratamento dado ao usuário de drogas é ainda mais merecedor de aplausos, se analisado sobre as bases do respeito aos direitos fundamentais, como fundamento de um sistema jurídico a ser desenvolvido no âmbito de um Estado que se quer ver democrático e de direito.


Com efeito, o usuário de drogas não é parte de nenhuma engrenagem do mal. Ao contrário, é vítima dela. Caso se queira reconhecer a sua autonomia e independência para a escolha do uso, com o fim de não se reconhecer nele nenhuma vítima, haverá também que se reconhecer que ele não pode ser usado como meio de obtenção de políticas de combate ao tráfico de drogas, na exata medida em que a autodestruição por ele empreendida não está relacionada com o dano a terceiros. As violações aos bens jurídicos da comunidade, quando decorrentes de drogas e substâncias entorpecentes, devem ser imputadas aos traficantes e membros das organizações que operam com referida atividade, recrutando, inclusive, menores sem quaisquer perspectivas de vida digna, que passam, então, a desempenhar a dupla função de agente e de vítima do sistema. É dizer; ou se trata o usuário no plano de sua maioridade e capacidade de auto-gestão, e aí há de se lhe reconhecer o direito às escolhas pessoais que causem prejuízo a eles mesmos, ou, de outro lado, se afirma a sua incapacidade para lidar com os problemas advindos do uso de drogas, caso em que, necessariamente, se deverá admitir o acerto do tratamento terapêutico trazido com a Lei 11.343/06.


6. PRISÕES CAUTELARES E VEDAÇÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA


Como vimos, a principal inovação da nova lei de tóxicos diz respeito à distinção de tratamento reservado ao usuário e ao traficante, adotando soluções terapêuticas para o primeiro e pena corporal para o segundo. Distinção, aliás, repita-se, absolutamente correta, sob qualquer ângulo que se examine a questão, adequada ainda a quaisquer dos sistemas penais aqui brevemente analisados.


No entanto, embora elogiável a Lei em relação à aludida escolha, o mesmo não se pode dizer das pretensões de endurecimento da matéria, quando atinente ao tráfico de drogas. Por certo que parece inegável a existência – até crescente – de uma demanda social contra a impunidade, especialmente, em relação aos conflitos que subjazem à estrutura do tráfico de drogas, na qual se vê também crescente a radicalização da violência. E, obviamente, não caberia aqui um exame mais detido das possíveis razões de tais conflitos. Mas, é de se ver, no mínimo, que, em um mundo dominado pelas oligarquias político-econômicas, no qual o trânsito entre o público e o privado, ao menos no seio das elites (políticas, econômicas, financeiras) já se faz de modo cada vez mais descarado, com o completo menoscabo e indiferença pelas grandes questões sociais, gerações e gerações se perderão no universo das organizações criminosas associadas ao tráfico de drogas, à falta, absoluta, de outras alternativas (não) oferecidas pela sociedade oficial.


O problema, em relação à legislação, reside, primeiro, no âmbito da própria normatização infraconstitucional, relativamente ao aumento de pena mínima (de três para cinco anos) e vedação da conversão da pena privativa da liberdade em restritivas de direito para o núcleo duro da Lei 11.343/06 (as várias modalidades de produção e tráfico de substância entorpecente), consoante se vê da alteração promovido no art. 33, em confronto com o antigo art. 12 da Lei 6.368/76. Ao depois, manifesta-se também (o problema) ao nível constitucional, com o desprezo, incansavelmente repetido, pela estrutura das liberdades públicas ali contidas (princípio da inocência etc.).


 No primeiro aspecto, cuida-se da velha estratégia de efeitos sabidamente simbólicos, à maneira de Pilatos, com a promessa de solução do problema pelo aumento da pena, na inútil esperança do crescimento da eficácia preventiva (intimidatória, evidentemente) da intervenção penal. Da matéria não cuidaremos aqui, sobretudo neste tópico, dedicado às questões processuais, e, mais especificamente, da prisão anterior ao trânsito em julgado.


Diz, então, o art. 44, da Lei 11.343/06: Os crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º, e art. 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a concessão de suas penas em restritivas de direito.


E, mais adiante, pontifica o art. 59: Nos crimes previstos nos arts. 33, caput e §1º, e 34 a 37 desta Lei, o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória.


Dois equívocos manifestos, portanto. E, mais que isso, repetidos.


O primeiro decorre da vedação de concessão de liberdade provisória aos aprisionados em flagrante dos crimes ali mencionados. É entendimento já assentado em doutrina e jurisprudência a natureza cautelar da prisão antes do trânsito em julgado. Aliás, de toda prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em conseqüência, impõe-se a identificação da razão cautelar, isto é, da confirmação, ainda que em juízo provisório, da presença da aparência de um fato criminoso e da necessidade da providência, para fins de acautelamento de algum interesse legalmente protegido. E de que maneira é feita semelhante identificação? Nos termos da norma constitucional pertinente, por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI). Nem poderia ser diferente: se a prisão antes do trânsito em julgado é a prisão do inocente (art. 5º, LVII – ninguém será considerado culpado…) não se poderia prescindir de uma justificação não-arbitrária para a supressão provisória de direito fundamental, a ser feita com fundamentação na própria Constituição da República, fonte dos princípios em tensão (inocência, tutela penal, proteção eficiente etc).


E exatamente por se exigir ordem escrita e fundamentada já se poderia concluir que a Lei não detém semelhante prerrogativa.


Com efeito, as prescrições legais expressam juízos abstratos, e, em regra, para regulamentação de fatos e/ou conflitos futuros. No que respeita, então, às normas processuais de natureza cautelar, a legislação somente pode delimitar os espaços e os critérios de apuração das regras de cautelaridade, mas, jamais, determinarem a própria cautelaridade. E por uma razão muito simples: o juízo cautelar é sempre um juízo de mediação entre uma situação de fato, concreta, e um risco, potencial, concretamente deduzível. A Lei pode até graduar a natureza de determinados crimes, apontando aqueles que julga mais ou menos graves. E pode até afirmar que a prática de tais delitos implicaria uma necessidade de maior cautela por parte das autoridades públicas. No entanto, ainda assim, não poderia afirmar, peremptoriamente, que todas as prisões efetuadas sob tal ou qual rubrica (tipos penais) corresponderiam efetivamente aos crimes então referidos pelos agentes da prisão. E, mais ainda, não poderia também afirmar que todos os autores de tais delitos – supondo o acerto da prisão prévia – preencheriam efetivamente os requisitos imaginados por ele (legislador) no momento da definição da necessidade da prisão.


Não bastasse, a norma constitucional, além da ordem escrita e fundamentada, exige que o seu titular (da ordem) seja a autoridade JUDICIÁRIA competente. Aí, não há como fugir: não pode o legislador subtrair uma competência atribuída a outro órgão do Poder Público pelo próprio texto constitucional. E de maneira tão cristalina.


Assim, a vedação de concessão de liberdade provisória revela-se absolutamente inconstitucional, independentemente da natureza e da gravidade do delito em apuração.


De se relembrar, ainda, que mesmo para a imposição de restrições de comportamento àquele que se achar sob processo penal, tal com ocorre com a liberdade provisória, com ou sem fiança, faz-se necessário o exame de cada caso concreto, como é próprio ao juízo cautelar. De tal maneira que também a liberdade provisória, como medida cautelar que é, não prescinde de um exame de viabilidade futura da persecução penal. Por isso, desde o início da década de oitenta (no século passado, pois) o Prof. Weber Martins Batista, no estudo monográfico mais completo já escrito sobre o tema, já ponderava que se, iniciado o processo, prova mais segura convencer o juiz da existência de uma das excludentes do art. 19 do Código Penal (hoje, art. 23 da nova Parte Geral), na impossibilidade de parar o processo a meio caminho, deverá ele colocar o detido em liberdade sem vínculos[9].


Não bastasse, a Lei 11.464/07, recentíssima, promoveu significativa alteração na Lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), de modo a vedar, para àqueles crimes, e também para o crime de tráfico de drogas (caput, do art. 2º) tão somente a liberdade provisória com fiança. O que significa dizer que o art. 310, parágrafo único, do CPP, pode perfeitamente ser aplicado aos citados crimes, agora com suporte em lei expressa. Nem se diga que a modificação na Lei dos Crimes Hediondos não pode ser estendida aos crimes de tráfico de drogas, que têm regulação legal específica. Trata-se de Lei posterior, e que, expressamente, mantém o alinhamento na equiparação dos crimes de tráfico àqueles considerados hediondos.


De outra parte, o segundo equívoco é fruto de um certo atavismo legislativo. O art. 59 da nova Lei 11.343/06 é reprodução do vetusto art. 594 do Código de Processo Penal de 1941, com a redação dada pela Lei 5.941/73, à exceção da ressalva relativa às infrações a que o réu se livra solto, constante do CPP.


Como se vê, mesmo aos olhos do legislador, o réu primário e de bons antecedentes, poderá aguardar o julgamento de seu recurso em liberdade. Problema: e se o réu, primário e de bons antecedentes tiver sido preso em flagrante? Note-se que o art. 44 veda a concessão de liberdade provisória! Poderia ele, preso durante a instrução, ver-se solto após a condenação, em primeiro grau?


Há remansosa jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça[10] – daí nos dispensarmos de maiores registros – no sentido de compatibilizar a regra prevista no art. 2º, §2º, da Lei 8.072/90, a Lei dos Crimes Hediondos (Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade) com a vedação de concessão de liberdade provisória constante do mesmo art. 2º, item II, a partir da distinção entre o acusado que respondesse ao processo já preso (flagrante ou preventivamente) e aquele que se encontrasse em liberdade desde antes da sentença condenatória. Assim, segundo a aludida jurisprudência, a regra do recurso em liberdade (art. 2º, §2º) somente se aplicaria à segunda hipótese, isto é, ao acusado que tivesse respondido ao processo em liberdade.


A nosso aviso, a posição do E. Superior Tribunal de Justiça incorre em equívoco, quando aceita a manutenção da prisão em flagrante pelo só fato do flagrante. É dizer: não atende às exigências constitucionais a manutenção de prisão em flagrante que não se arrime em razões cautelares que transcendam os motivos do flagrante.


Ninguém pode ser mantido preso sem ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Preso, pode (flagrante), mas mantido preso não. E assim é porque a prisão em flagrante se justifica de modo inteiramente diferente da prisão preventiva. Aquela, a prisão em flagrante, presta-se a impedir um resultado mais grave da ação criminosa (art. 302, I, CPP – aquele que está cometendo a infração penal) ou permitir a imediata coleta da prova, com a oitiva, inclusive, do réu (se do seu interesse), bem como do reconhecimento de pessoa ou outra prova em que seja prudente ou necessária a presença do aprisionado.


De outro lado, é de se notar que a redação do art. 59, do mesmo modo que aquela, do art. 594, CPP, nada diz sobre a possibilidade de o juiz, eventualmente, permitir o recurso em liberdade, optando por fazê-lo de modo expresso, e como regra, para o aprisionado primário e de bons antecedentes.


Nada obstante, e tal como interpretamos o art. 594 do CPP, somente será possível impedir-se o recurso em liberdade, por ocasião da sentença penal condenatória, quando o juiz, fundamentadamente (por ordem escrita e fundamentada, segundo a Constituição da República), entender presentes razões cautelares que estejam a exigir a manutenção da prisão ou mesmo o recolhimento daquele que se encontrar solto. Fora daí, a prisão será sempre inconstitucional, fruto de juízos legislativos de mera abstração de perigo e/ou da incompreensão da relevante missão reservada ao Poder Judiciário para a preservação, tanto das liberdades públicas quanto da efetividade da tutela penal, quando esta tiver lugar e puder se legitimar como único meio da proteção aos direitos fundamentais.


CONCLUSÃO


Relativamente às condutas relacionadas co drogas para consumo pessoal, diversamente do que temos lido e ouvido, não pode-se entender que tenha havido descriminalização, apenas porque haja previsão de que, neste caso, não haverá lavratura de auto de prisão em flagrante, tendo em vista que não há proibição da prisão e condução do infrator até a presença da autoridade competente (art. 48 § 2°), e, mesmo porque existe a previsão de aplicação de três modalidade de sanções, o que, deturpa a descriminalização.


Elogiável também é a previsão de pena diversa do tipo penal de tráfico para os casos de oferta de “droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos consumirem” (o chamado uso compartilhado), cuja duração prevista é de seis meses a um ano de detenção (art. 33, § 3°).


Por outro lado, a insatisfação que se verifica do exame da situação dos usuários de drogas tem levado setores importantes a reclamar uma mudança radical na Política Criminal em matéria de drogas, rompendo com o saguidismo acrítico das diretrizes internacionais.


 


Referências

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 11.ed., São Paulo: Saraiva, 2004.

GOMES, Luiz Flávio, ET all. Nova lei de drogas comentada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

_______. Reforma Penal: a nova lei de tóxicos no país e a situação dos usuários. Disponível em: http://conjur.uol.com.br/textos/14259/. Acesso em 25/02/2009.

JAKOBS, Gunter. La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente. Trad. Teresa Manso Porto. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000.

MORAES FILHO, Antônio Evaristo de. Nova política penal em face do tráfico de drogas. Disponível em: http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/evaristo_moraes/em_1.html. Acesso em 25/02/2009.

MORAES, Alexandre de; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação penal especial. 6.ed., São Paulo: Atlas, 2002.

ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Tradução e introdução de Luís Greco. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

Notas:

[1] ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Tradução e introdução de Luís

Greco. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002, p. 186/187.

[2] Ob. cit. p.199.

[3] JAKOBS, Gunter. La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente. Trad. Teresa Manso Porto. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2000, p.27.

[4] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002

[5] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintera. Lisboa: Editoras 70, 1995.

[6] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7a. edição. Belo Horizonte; Del Rey, 2007

[7] SILVA SANCHES, Jesús Maria. A expansão do direito penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol. 11, 2002, p. 145

[8] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal …cit

[9] BATISTA, Weber Martins. Liberdade provisória. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 118. Note-se que o eminente Professor faz referência à hipótese diversa daquela prevista no caput do art. 310, CPP, que determina a concessão de liberdade provisória vinculada, isto é, sob o dever de comparecimento a todos os atos do processo. No seu exemplo, a possibilidade da incidência das excludentes do atual art. 23, CP, somente surge no curso do processo e não por ocasião do flagrante delito. De todo modo, bem demonstra a percepção do insigne doutrinador em relação à natureza também acautelatória da liberdade provisória, e a possibilidade da não-imposição dela (liberdade provisória) quando demonstrada a inviabilidade da ação penal.

[10] STJ – HC 21.795/PB, Rel. Min. Félix Fischer, DJ, I, 17.2.2003


Informações Sobre o Autor

Lauriano Vasco da Silveira

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes


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