Resumo: O presente trabalho trata sob o senso de justiça do direito penal. São analisados os pressupostos do chamado construtivismo kantiano de Rawls, tratados no livro Uma Teoria da Justiça. Verifica-se a aplicabilidade das concepções propostas por Rawls no direito penal e quais seriam as limitações destas concepções.
Palavras-chave: Construtivismo. Justiça. Direito Penal.
Abstract: The present work deals with a sense of justice in criminal law. The assumptions of Rawls' so-called Kantian constructivism, discussed in the book A Theory of Justice, are analyzed. The applicability of the conceptions proposed by Rawls in criminal law is verified and what the limitations of these conceptions would be.
Keywords: Constructivism. Justice. Criminal Law.
Sumário: Introdução. 1. O construtivismo kantiano. 2. A versão rawlsiana do construtivismo kantiano. 3. Justificativa para o construtivismo kantiano. 4. A prioridade do justo sobre o bem. 5. Qual o senso de justiça do direito penal. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente e despretensioso trabalho foi escrito como requisito parcial para aprovação na disciplina “Tópicos avançados de pesquisa em ciências criminais” do programa de Doutorado em Direito Penal da PUC Minas.
O trabalho foi escrito e desenvolvido a partir dos temas discutidos em sala de aula e a partir da leitura das referências bibliográficas que seguem ao final, principalmente, pela leitura do livro “Uma Teoria da Justiça” e do conjunto d artigos publicados no livro “Justiça e Democracia”.
Durante as aulas ao longo do primeiro semestre de 2017, muito se discutiu acerca da possibilidade de se tornar previsíveis as decisões penais e sobre critérios para não dar margens ao arbítrio do Estado na fixação da pena.
É importante ressaltar que a ideia de se tornar previsível a decisão penal, deriva da necessidade da adoção de critérios científicos para as decisões judiciais.
Em razão desta discussão, o presente trabalho pretende apenas fomentar o debate sobre a fixação de critérios mais adequados para a imposição de uma sanção penal.
Os critérios sugeridos são derivados de uma interpretação dada à teoria da justiça como equidade de John Rawls.
Assim, no primeiro capítulo há a demonstração do que seria o construtivismo kantiano, que é o modelo adotado por Rawls na sua teoria da justiça. Os capítulos dois, três e quatro, tratam da versão rawlsiana para o construtivismo kantiano. O capítulo cinco, por sua vez, descreve an passant como seria a aplicação da teoria de Rawls na fixação da sanção no Direito Penal.
1. O CONSTRUTIVISMO KANTIANO
Inicialmente é preciso demonstrar a característica própria do construtivismo kantiano e a sua distinção para os outros modelos distintos de construtivismo moral.
De uma forma geral, o procedimento do construtivismo descreve que durante o processo do conhecimento, o objeto não seria apenas um elemento “dado a priori” que fora apresentado como se fosse uma evidência inata. Antes de tudo, o objeto seria pensado e construído a partir de uma sistemática teórica da relação que lhe é posta pelo sujeito.
A variante kantiana do construtivismo, por sua vez, descreve que a concepção da pessoa representa uma centralidade para que no procedimento construtivista os princípios possam ter validade objetiva incondicionada.
“o que distingue a versão kantiana do construtivismo é, essencialmente, que ela propõe uma concepção particular da pessoa e que faz disso um elemento de um procedimento Razoável de construção cujo resultado determina o conteúdo dos princípios primeiros de justiça”.[1]
Nesta concepção, a pessoa é demonstrada como dotada de razão, sendo por isso mesmo considerada como fonte autônoma dos seus princípios.
Assim, o modelo kantiano do construtivismo estabelece que a explicação dos pressupostos, a organização dos valores e os preceitos morais, serão validados por este procedimento que justifica as máximas que deverão ser adotadas em respeito à lei moral.
A análise deste modelo argumentativo (construtivismo) se faz necessária, porque uma doutrina construtivista kantiana surge como alternativa a outras filosofias morais não-kantianas, como por exemplo, o intuicionismo racional ou o utilitarismo.
De forma simplista, o intuicionismo enquanto filosofia da teoria moral pressupõe que as proposições ou princípios são imediatamente evidentes, em relação a razões válidas que serão utilizadas. O conteúdo das razões utilizadas que justificam as concepções morais seria fixado por uma ordem moral anterior a uma concepção de pessoa.
“[o acordo dos julgamentos morais] está baseado no reconhecimento de verdades a respeito das razões válidas a serem utilizadas. Ademais, o conteúdo dessas razões é fixado por uma ordem moral que é anterior à nossa concepção da pessoa e do papel social da moralidade”.[2]
Por sua vez, o utilitarismo clássico seria uma teoria que determina o procedimento da produção do princípio da utilidade, tendo como busca, o bem estar geral. Pode se dizer aqui, que na concepção do utilitarismo clássico seria possível uma supremacia do bem sobre o justo.
“Estes três princípios [equidade, prudência Racional e boa vontade que compõe o utilitarismo] se combinam com o princípio segundo o qual, enquanto seres razoáveis devemos buscar necessariamente aquilo que é bem em geral, e não em particular, e eles produzem assim, segundo Sidgwick, o princípio da utilidade, isto é, o princípio que recomenda maximizar o total liquido de felicidade”.[3]
Tanto o utilitarismo quanto o intuicionismo, não seriam suficientes enquanto teorias morais, porque o fundamento destas teorias não estaria em puros conceitos racionais abstraídos de toda forma de contingências possíveis. A doutrina kantiana, por outro lado, pressupõe esta pureza dos princípios em relação às contingências.
“Basta que lancemos os olhos aos ensaios sobre a moralidade feitos conforme o gosto preferido para breve encontrarmos ora a idéia do destino particular da natureza humana (mas por vezes também a de uma natureza Racional em geral), ora a perfeição, ora a felicidade (…) um pouco disto, um pouco daquilo, numa misturada espantosa; e nunca ocorre perguntar se por toda a parte se devem buscar no conhecimento da natureza humana (que não pode provir senão da experiência) os princípios da moralidade, e, não sendo este o caso, sendo os últimos totalmente a priori, livres de todo o empírico”.[4]
A ideia do construtivismo kantiano se contrapõe, portanto, as concepções do intuicionismo racional e do utilitarismo clássico, propondo um procedimento de definição de princípios a partir da concepção da pessoa como sendo racional, livre e igual.
Uma doutrina kantiana descreve os princípios das máximas da ação de forma autônoma, se contrapondo à ideia do intuicionismo. Da mesma forma, o que é válido para a doutrina kantiana, não seria a maximização do total liquido de felicidade e sim, o conteúdo da máxima de uma ação.
Significa dizer, que o construtivismo kantiano não é apresentado apenas como um modelo de análise, mas sim, como um modelo de justificação sobre aquilo que é argumentado.
2. A VERSÃO RAWLSIANA DO CONSTRUTIVISMO KANTIANO
Neste capítulo será demonstrada a variante de Rawls para o construtivismo kantiano. A versão de Rawls, na verdade, representa a condição kantiana da teoria da justiça como equidade, levando em consideração os conceitos de Racionalidade e de bens primários utilizados pelo autor estadunidense.
Nesta variante utilizada por Rawls, a Racionalidade ou escolha Racional é completada pelo conceito de Razoável, sendo que este subordina aquele. Por sua vez, os bens primários são descritos como aquilo que é indispensável, ou seja, como aquilo que é condição de possibilidade à realização pelo ser humano, da sua personalidade moral.
“(…) a Racionalidade, no sentido da teoria da escolha Racional, é aqui completada pelo conceito do Razoável, ao qual está subordinada. Por outro lado, os bens primários aqui são descritos não mais como aquilo que satisfaz às necessidades vitais, mas como aquilo que é indispensável à realização pelo ser humano de sua personalidade moral no sentido kantiano”.[5]
É demonstrado, portanto, em que sentido a doutrina de Rawls é construtivista num sentido kantiano, configurando a autonomia moral dos membros de uma sociedade bem ordenada, desconsiderando fatores heterogêneos das noções de justiça.
“Nestas conferências vou examinar a idéia de uma concepção moral construtivista ou, de forma mais exata, dado que existem vários tipos de construtivismo, a variante kantiana de tal concepção. A variante que examino aqui é a da teoria da justiça como equidade tal como apareceu em meu livro TJ”.[6]
Não se pode esquecer, que a teoria da justiça como equidade, pelo procedimento do construtivismo kantiano sugerido por Rawls, busca uma concepção de justiça adequada para uma democracia moderna.
Tal apresentação se justifica, porque na obra “Uma teoria da justiça”, o autor não demonstrou de forma clara, como a sua teoria se baseia em fontes kantianas.
3. A JUSTIFICATIVA PARA O CONSTRUTIVISMO KANTIANO
A versão de Rawls do construtivismo kantiano, pela própria expressão do termo, se sustenta na concepção particular da pessoa, sendo esta, o eixo gravitacional de um procedimento razoável de construção, do qual resultariam os conteúdos dos princípios da justiça que seriam aplicáveis em uma sociedade bem ordenada.
O construtivismo de Rawls é fundado em certas exigências num procedimento razoável de construção, estando claro que as pessoas integrantes deste processo de construção, pela sua concordância e deliberação autônoma, definem o conteúdo dos primeiros princípios de justiça.
“O que distingue a versão kantiana do construtivismo é, essencialmente, que ela propõe uma concepção particular da pessoa e que faz disso um elemento de um procedimento Razoável de construção cujo resultado determina o conteúdo dos princípios primeiros de justiça. Em outras palavras, ela estabelece um certo procedimento de construção que satisfaz a certo número de exigências razoáveis, e no âmbito desse procedimento as pessoas caracterizadas como agentes racionais desse processo de construção definem, por sua concordância, os princípios primeiros de justiça”.[7]
O construtivismo de Rawls propõe um procedimento de construção no qual existe um elo entre a concepção de pessoa no sentido kantiano e os primeiros princípios da justiça. É esta ligação entre os princípios primeiros, entre a concepção de pessoa e entre o procedimento, que permitem a adjetivação de kantiano ao construtivismo de Rawls.
“A idéia diretora consiste em estabelecer uma relação satisfatória entre uma concepção particular da pessoa e os princípios primeiros de justiça por meio de um procedimento de construção. Numa ótica kantiana, a concepção da pessoa, o procedimento e os princípios primeiros devem estar ligados de uma certa maneira que, é claro, permite variações”.[8]
Insta esclarecer que a proposta de Rawls é uma versão do construtivismo kantiano e não uma teoria kantiana propriamente dita. Esta versão se dá muito mais em face de uma proximidade e semelhança do que por uma identidade.
A variante de Rawls é apresentada sob condições que autorizam uma concepção de justiça válida para a filosofia política, desde que se compreenda possíveis a argumentação e o entendimento pelas pessoas caracterizadas como morais.
“A teoria da justiça como equidade, evidentemente, não é uma teoria kantiana no sentido estrito. Ela se afasta do texto de Kant em inúmeros pontos. O adjetivo kantiano exprime apenas uma analogia, não uma identidade; ele indica que minha doutrina se parece, em boa parte, com a de Kant, e isso se dá a respeito de muitos pontos fundamentais, pelo que ela está bem mais próxima dela do que das outras doutrinas morais tradicionais que nos servem como termos de comparação.
Na doutrina kantiana que vou apresentar, as condições que permitem justificar uma concepção da justiça só são válidas se, no contexto da cultura política, for estabelecida uma base que permita a argumentação e o entendimento políticos”.[9]
A proposta é justificar porque as instituições políticas de uma sociedade devem ser aceitáveis pelos cidadãos que delas compartilham, como também, permitir que todos tenham esta compreensão. Esta possibilidade somente se mostra como adequada quando se recorre a fundamentos válidos publicamente
Estas instituições políticas somente serão aceitáveis, do ponto de vista da teoria da justiça como equidade, se todos os cidadãos se julgarem como capazes, independentemente da posição social ou dos seus particulares fins subjetivos.
O construtivismo kantiano na versão Rawlsiana tem por objeto justificar a possibilidade das pessoas representadas como morais, acordarem acerca da concepção de justiça que seja mais razoável para elas de forma cooperativa.
“Justificar uma concepção kantiana no quadro de uma sociedade democrática não quer dizer simplesmente argumentar de maneira correta a partir de certas premissas ou a partir de premissas publicamente compartilhadas e mutuamente aceitas. A verdadeira tarefa consiste em descobrir e em formular as bases mais profundas desse acordo que se pode esperar estejam enraizadas no bom senso”.[10]
Contudo, é possível perceber que não existe uma pacificação acerca da maneira de organização das instituições políticas de tal forma que se respeite as concepções de liberdade e igualdade das pessoas representadas como morais.
Isto se dá, porque as concepções de igualdade e liberdade não são apresentadas de forma que satisfaça uma concepção democrática contemporânea.
A versão da justiça como equidade no construtivismo kantiano, por sua vez, apresenta como as concepções de liberdade e igualdade devem ser conciliadas, para que sejam satisfeitas as possibilidades de cooperação social e a escolha dos primeiros princípios da justiça.
“Nestes últimos dois séculos, aproximadamente, o desenvolvimento do pensamento democrático mostrou que, na verdade, não existe concordância sobre o modo de organizar as instituições sociais básicas de maneira que elas respeitem a liberdade e a igualdade dos cidadãos, considerados como pessoas morais. Não existe, expresso de maneira que reúna a aprovação geral, um acordo satisfatório a respeito das idéias de liberdade e de igualdade implícitas na cultura pública das democracias. O mesmo acontece quando se trata de encontrar uma conciliação entre essas duas aspirações. Ora, uma concepção kantiana da justiça busca dissipar o conflito entre diferentes interpretações da liberdade e da igualdade (…)”.[11]
Para tanto é necessária a delimitação dos princípios da liberdade e igualdade que merecem o reconhecimento das pessoas, que são representadas apenas de forma equitativa e que por esta razão, conseguiram se por de acordo sobre os primeiros princípios da justiça.
A situação de equidade entre as pessoas consideradas como morais, representadas pelas concepções de liberdade e igualdade mais satisfatórias, permitiram a definição de quais seriam os princípios da justiça válidos em uma sociedade bem ordenada.
Esta concepção dos princípios da justiça se faz necessária para que se resolva o conflito entre liberdade e igualdade, que deve ser superado em democracias contemporâneas. A concepção da justiça como equidade se faz necessária, não apenas do ponto de vista teórico, mas também e principalmente, da possibilidade prática de validade destes princípios da justiça.
A cooperação social na definição do conteúdo dos princípios da justiça se fundamenta na possibilidade de uma vontade comum, inerente a todo cidadão moral, que deseja ver as suas instituições sociais sustentadas em bases sólidas e razoavelmente justificadas.
A variação kantiana, neste sentido, permite argumentar de maneira coerente a partir de premissas publicamente comuns entre os cidadãos de uma sociedade. Permite ainda, fundamentar de maneira sólida as bases dessa argumentação que de uma ou outra forma, já pertencem aos cidadãos morais.
A especificidade da argumentação kantiana se dá na ligação entre a concepção da pessoa considerada como moral, livre e igual e o fundamento dos princípios da justiça, sendo que por esta razão, o cidadão seria capaz de agir de modo Racional e Razoável, o que possibilitaria um acordo entre as pessoas que foram concebidas com estas qualidades.
“Ora, como disse mais acima, o que é específico de uma doutrina kantiana é a relação entre o conteúdo da justiça e uma certa concepção da pessoa como livre e igual, como capaz de agir ao mesmo tempo de modo Racional e Razoável e, por conseguinte, como capaz de participar da cooperação social entre pessoas assim concebidas”.[12]
A variante de Rawls do construtivismo kantiano pressupõe uma concepção de pessoa que seja a mais satisfatória e razoável para os cidadãos de uma sociedade que assim a compreende e que implicitamente a adote.
“O construtivismo kantiano pretende recorrer a uma concepção da pessoa que seja aquela que a cultura adota implicitamente ou, pelo menos, que se revela aceitável pelos cidadãos uma que lhes tenha sido apresentada e explicada corretamente”.[13]
No construtivismo de Rawls, uma verdade moral fixada, através de argumentos razoáveis que permitem chegar a um acordo e que estejam solidificados na concepção que a pessoa tem dela mesma, substitui uma ordem distinta e separada da própria concepção que esta pessoa tem de si. A concepção da justiça, assim, deve ser aquela aceitável para todos os cidadãos que compreendem a sua relação consigo mesmos e com a sociedade sob um mesmo fundamento.
“Devo agora ressaltar que o que denomino “tarefa verdadeira” não é, em primeiro lugar, um problema epistemológico. A procura de argumentos razoáveis que permitiriam chegar a um acordo e que estejam enraizados na nossa concepção de nós mesmos, bem como na nossa relação com a sociedade, substitui a procura de uma verdade moral fixada por uma ordem de objetos e de relações independentes e anterior, seja ela divina ou natural, uma ordem distinta e separada da nossa concepção de nós mesmos. A tarefa consiste em elaborar uma concepção pública da justiça que seja aceitável para todos os que consideram sua pessoa e sua relação com a sociedade de uma determinada maneira”.[14]
Em outras palavras, a concepção de justiça deve ser aquela na qual os cidadãos reconhecem em profundidade, em si mesmos, restando claro, que esta seria a concepção mais razoável para estes cidadãos. De outro modo, esta concepção de justiça não pode ser justificada em uma verdade que seja anterior à própria concepção que o cidadão tem de si.
“O que justifica uma concepção da justiça não é, portanto, que ela seja verdadeira em relação a uma determinada ordem anterior a nós, mas que esteja de acordo com a nossa compreensão em profundidade de nós mesmos e o fato de que reconheçamos que, dadas a nossa história e as tradições que estão na base da nossa vida pública, ela é a concepção mais Razoável para nós”.[15]
Pelo acima dito, pode se afirmar que o construtivismo na teoria da justiça como equidade propõe que a objetividade moral seja compreensível como sendo um ponto de vista socialmente aceitável por todos e que seja corretamente construído. No mesmo sentido, não existiriam fatos morais fora do procedimento pelo qual foram definidos os princípios de justiça.
“O construtivismo kantiano sustenta que a objetividade moral deve ser compreendida como um ponto de vista social corretamente construído e aceitável para todos. Fora do procedimento pelo qual se constroem os princípios de justiça, não existem fatos morais. Só se pode saber se certos fatos devem ou não ser reconhecidos como razões em matéria de justo e de justiça, ou qual o peso a lhes ser atribuído no âmbito do procedimento da própria construção e, por conseguinte, do ponto de vista das ações de agentes racionais de um processo de construção, com a condição de que sejam corretamente representados como pessoas livres e iguais”.[16]
A correta representação das pessoas morais, como livres e iguais, se apresenta como condição sem qual não é possível saber se certos fundamentos podem ser reconhecidos como princípios de justiça, como também, qual seria o peso que estes fundamentos teriam no procedimento de construção. É a representação das pessoas como livres e iguais, que permitiria, ainda, fundamentar o ponto de vista das ações dos agentes racionais no processo de construção.
4. A PRIORIDADE DO JUSTO SOBRE O BEM
Os agentes racionais durante o processo de construção são submetidos a certos cerceamentos. Cumpre frisar, que os cerceamentos não são exteriores ou de natureza heterônoma, mas sim, são cerceamentos provenientes das especificidades essenciais de uma pessoa moral, ou seja, o “Razoável” enquanto reciprocidade e mutualidade, não é um princípio egoísta acomodadamente aceito pela razão. Antes disso, o “Razoável” permite que os agentes durante o processo de construção venham a efetivar e a exercer as suas faculdades morais.
Os cerceamentos não representam condições externas aos agentes, porque derivam de uma concepção de pessoa moral, livre e igual, na qual o “Razoável” enquadra o “Racional”, representando uma unidade da razão prática.
“Segundo os termos utilizados por Kant, a razão prática empírica é representada pelas deliberações racionais dos parceiros; a razão prática pura é, por sua vez, representada pelos cerceamentos no âmbito dos quais essas deliberações ocorrem. A unidade da razão prática é expressa pela definição do “Razoável” como enquadrando o “Racional” e condicionando-o de modo absoluto”.[17]
Pela citação acima, é possível afirmar a existência de uma prioridade do justo sobre o bem, ou seja, uma concepção “utilitarista” de uma maior dose de bem-estar-social não pode prevalecer sobre os princípios da justiça definidos durante o processo de construção. Esta prioridade do justo sobre define um construtivismo de Rawls como sendo kantiano.
“Isso ilustra uma característica dessa unidade da razão: o “Razoável” e o “Racional” ficam unificados num esquema único de argumentação prática que estabelece a estrita prioridade do “Razoável” em relação ao “Racional”. Essa prioridade do justo sobre o bem é a característica do construtivismo kantiano”.[18]
Afirma-se então, que na posição original, o objeto da cooperação é a justificação dos primeiros princípios da justiça que serão aplicáveis na sociedade bem ordenada. Estes princípios da justiça são definidos por um procedimento de construção na qual há uma correta representação da concepção que os agentes têm de si, como sendo pessoas morais, livres e iguais e, portanto, Razoáveis e Racionais. É com base na defesa e no exercício público desses princípios construídos, que as pessoas são representadas na sua autonomia completa, que se exprime num ideal possível de concretização na sociedade bem ordenada.
“A isso eu responderia (indagação sobre motivações heterônomas) dizendo que uma concepção kantiana não nega que nós agimos em função de desejos. O que importa aqui é o tipo de desejos que nos faz agir, bem como a sua hierarquia, isto é, a maneira pela qual eles nascem do eu (self) e estão vinculados a ele, o modo pelo qual sua estrutura e sua prioridade são determinadas por princípios de justiça ligados à concepção da pessoa que defendemos. A concepção mediadora da posição original nos permite vincular certos princípios precisos de justiça a uma certa concepção da pessoa que a trata como livre e igual”.[19]
Os interesses inerentes à personalidade moral estão vinculados no modo pela qual a sua prioridade é definida por princípios de justiça diretamente ligados à própria concepção desta personalidade moral. É por esta razão, que o senso de justiça não se apresenta de forma heterônoma, mas sim, vinculados a uma concepção própria da pessoa como sendo moral, livre e igual, ou seja, como sendo completamente autônoma.
“(…) o desejo de agir a partir de princípios de justiça, não está no mesmo plano que as inclinações naturais. É um desejo de ordem superior, eficaz e regulador, de agir a partir de certos princípios em razão de seu vínculo com uma concepção da pessoa livre e igual. Um desejo desse tipo não é heterônomo; (…)”.[20]
No procedimento do construtivismo, a posição original aparece como uma concepção-modelo mediadora, ao passo que as concepções de sociedade bem ordenada e de pessoa moral, são concepções que dão fundamento ao procedimento de definição dos princípios da justiça.
A posição original, assim, estabelece a relação de simetria entre os agentes racionais, para que eles possam definir os primeiros princípios que sirvam para uma concepção pública de justiça. Na posição original, portanto, a autonomia racional é representada como sendo um elo necessário para ligação entre uma concepção particular de pessoa e os princípios de justiça a serem definidos, não podendo esta autonomia ser confundida com a autonomia completa dos membros de uma sociedade bem ordenada.
A versão proposta por Rawls do construtivismo kantiano satisfaz o critério sob o qual os princípios da justiça adotados, sejam os mais razoáveis e ponderados para uma sociedade bem ordenada.
Não se pode deixar de lado, a afirmação de que no construtivismo proposto, a concepção de pessoa moral é um ideal situado em conjunto à concepção de uma sociedade bem ordenada e, portanto, dever ser respeitado e almejado. A concepção da pessoa moral, portanto, deve ser apropriada e compatível com a concepção de uma sociedade bem ordenada. Esta reflexão é demonstrada pela representação da autonomia completa na posição original, através dos elementos do “Razoável” e do “Racional”.
“Esta última (autonomia completa) é um ideal moral e faz parte do ideal mais amplo de uma sociedade bem ordenada. A autonomia Racional não é de modo algum, na sua condição, um ideal, mas apenas um instrumento de representação utilizado para vincular a concepção das pessoas a princípios precisos”.[21]
A possibilidade de cooperação social durante o processo de construção não guarda lugar para as qualquer crença de uma sociedade, em virtude dos cerceamentos impostos aos agentes racionais quando se encontram na posição original, salvo na medida, que estas crenças sejam gerais e limitem a possibilidade de intervenção de fatores externos na adoção dos princípios de justiça.
5. QUAL SENSO DE JUSTIÇA DO DIREITO PENAL?
Segundo Tauchert e Souza Lima, o Direito Penal seria Legislado para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira.
O Direito Penal, poderia ser entendido a partir desta premissa, como um modelo formal de controle social, principalmente pela atuação e exercício, do Judiciário e do Poder de Polícia.
Na perspectiva de Tauchert e Souza Lima, se o indivíduo não tiver uma postura em conformidade com as pautas de condutas transmitidas e aprendidas na sociedade, entrarão em ação as instâncias formais que atuarão de maneira coercitiva, impondo sanções qualitativamente distintas de reprovações existentes na esfera penal.
Todavia, o Direito Penal apresentado apenas como teoria da pena enquanto retribuição, não encontraria mais respaldo no Estado Democrático de Direito.
É preciso salientar que uma teoria retributivista da pena, por mais inovadora que possa ser, via de regra supõe que a pena criminal é justificada por um objetivo, “modesto”, consistente em aplicar ao mal do crime, o mal da pena.
Segundo Merle, esta visão retributivista propõe que a pena seja vista como a expressão do julgamento moral feito pela sociedade em consequência do crime praticado.
Merle critica esta posição, defendendo de certa forma que à pena não se permite ter um objetivo. Para o autor, uma justificativa moral para a pena pressupõe uma espécie de “merecimento” da pena pelo criminoso.
Nesta perspectiva o autor propõe quatro teses: 1ª todos os criminosos devem ser punidos; 2ª a pena é uma retribuição; 3ª a gradação da pena deve ser proporcional ao crime; 4ª a gradação da pena deve ser igual ao crime.
É preciso esclarecer, que aqui não há uma oposição radical à visão da pena como retribuição. A pena é uma consequência legal do crime e por ser uma consequência, não há como ela não ter um caráter retributivo.
Mas é preciso, entretanto, utilizando o paradigma da teoria da justiça de Ralws, superar o discurso retributivista, não só com os gritos de prevenção e ressocialização.
Quando os olhos são lançados para a aplicação da pena no contexto criminal brasileiro, é possível constatar que o “jus puniend” é exercido pelo Estado de forma arbitrária, heterônoma e desproporcional.
Não há nenhum preocupação pelo Estado e até mesmo pelos operadores e estudiosos do Direito, em trazer critérios, ainda que teóricos, de aplicação da pena.
Ainda que existam teorias que superam o discurso da retribuição, o que se vê, de fato, é aplica da violência da pena como forma de compensação para a violência do crime.
Os próprios critérios das teorias da prevenção geral e da ressocialização são contraditórios.
Por exemplo:
No caso do ser humano que se “converteu”, se arrependendo de fato pelo crime praticado e tendo reparado na medida do possível os efeitos do crime praticado, como se daria a aplicação da pena? Quais seriam as finalidades desta pena?
Merle preleciona que:
“No caso do ser humano que se converte, não há mais qualquer razão para a punição, desde que se possa vislumbrar que exista nele efetiva melhora.
(…) as transgressões anteriores de alguém (que após essas transgressões se tornou bom) não nos autorizam a causar-lhe dano ou a denegar-lhe a sua liberdade, se tanto esse dano quanto essa negativa de liberdade não forem necessários à segurança pública”. Pag. 597/598.
É preciso reconhecer que as interpretações dadas às teorias penais, em especial ao garantismo, descrevem que o Direito Penal busca proteger o indivíduo do autoritarismo do Estado, prescrevendo o desenvolvimento da democracia e da justiça social, especialmente, segundo Tauchert e Souza Lima, com uma persecução penal transparente e justa.
Por outro lado, quando se fala em justiça no Direito Penal e garantismo penal, pelas interpretações mais tradicionais, a preocupação se esgota com o percurso do processo de conhecimento criminal e principalmente com a observância do contraditório e da ampla defesa enquanto oposição à acusação.
Não há, de fato, uma preocupação com relação aos critérios de justiça, na perspectiva de participação efetiva do acusado, na hora de fixação da pena.
O construtivismo de Ralws – ou pelo menos esta interpretação que se faz dele neste artigo – propõe a teorização de critérios mais justos de fixação da pena.
Os critérios apontados servem se, e somente se, forem consideradas as bases teóricas do construtivismo kantiano de Rawls. Há aqui, portanto, uma limitação teórica de fundamentação. Abstraindo para outros critérios, de outras teorias, a discussão poderia ficar infindável. Mas é preciso dizer, que esta limitação teórica não tem a menor pretensão de esgotar a discussão sobre o tema.
Como foi demonstrado no início deste trabalho, o que define uma teoria construtivista como kantiana, é o reconhecimento do conceito de pessoa como núcleo axiológico de valoração.
Por sua vez, a versão rawlsiana do construtivismo kantiano é sustentada na condição da pessoa, como eixo de construção do procedimento que resultaria nos princípios da justiça.
Atendendo a esta perspectiva peculiar, a pessoa que interessa para a fixação da pena, seria o criminoso.
De uma forma geral e simplista, pelo discurso rawlsiano, toda a pessoa destinatária de uma norma, deve ao mesmo tempo ser a criadora desta norma. Em outras palavras: o destinatário da legislação universal deve ao mesmo tempo ser um legislador universal.
Como o criminoso é o destinatário da pena a ser imposta, em uma interpretação livre feita do construtivismo de Rawls, deve ele, ser ao mesmo tempo, fixador desta sanção.
Esta participação do criminoso não se daria apenas durante a persecução do processo de conhecimento, por meio do contraditório e da ampla defesa, mas principalmente na atribuição dos critérios da fixação da pena.
Esta participação efetiva do criminoso nos critérios da fixação da pena que lhe será imposta, possibilitaria uma eficiente participação democrática e equitativa do réu no processo penal.
Os critérios fixados por Rawls para que uma participação seja possível, são os determinados pelas concepções-modelo do livro “Uma Teoria da Justiça” do trabalho “O Construtivismo Kantiano na Teoria Moral”.
Superficialmente, as concepções-modelo utilizadas por Rawls, são definidas como: 1º concepção da pessoa moral; 2º concepção da posição original; concepção da sociedade bem ordenada.
As concepções que interessariam para a fixação da pena seriam principalmente as concepções da pessoa moral e da posição original.
Assim, de forma despretensiosa, seria possível teorizar uma concepção de pena adequada ao modelo penal democrático.
CONCLUSÃO
A ideia de justiça como equidade proposta por Rawls tem como ponto de partida as concepções-modelo, em especial as concepções de pessoa e de posição original.
As concepções-modelo permitiriam aos agentes definirem quais seria os primeiros princípios de justiça que seriam direcionados a eles mesmos. Em outras palavras: o destinatário da norma seria ao mesmo tempo o seu criado e o agente deveria obediência somente à norma que ele mesmo definiu.
Segundo Tauchert e Souza Lima, a justiça de John Rawls teria o mérito de ser a primeira grande teoria geral sobre a justiça, o que possibilitaria objetivamente, determinar quais princípios seriam válidos numa sociedade justa.
Transportando as principais ideias da teoria da justiça como equidade de John Rawls para o Direito Penal, principalmente no que se refere à aplicação da pena, tem-se a proposta de que para que uma sanção seja justa, o seu destinatário deve participar da construção dos seus parâmetros de fixação.
Assim, atendendo às propostas de Rawls, principalmente atendendo ao modelo de justificação proposto em sua teoria, o agente que cometeu um crime, deverá efetivamente participar do processo de delimitação da sanção que lhe será atribuída.
Isto porque, segundo a interpretação que foi dada neste trabalho, o construtivismo kantiano de Rawls pressupõe como eixo fundamental de fixação das normas a concepção de pessoa. No caso do Direito Penal, a pessoa que interessa neste primeiro momento, seria o agente criminoso.
Por esta razão, deverá partir do criminoso, sem excluir a participação do Estado, o modelo de fixação da pena. É claro, os parâmetros deverão estar previamente constituídos.
Informações Sobre o Autor
Francisco José Vilas Boas Neto
Advogado Criminalista. Professor dos cursos de Graduação e Pós-graduação da FAPAM. Mestre em Filosofia pela FAJE/MG. Pós-graduado em Direito pela UCAM/RJ. Graduado em Direito pela PUC Minas. Coordenador subseccional e professor da Escola Superior de Advocacia da OABMG