(In) constitucionalidade do artigo 854, do novo Código de Processo Civil

Resumo: Este artigo se propõe a investigar a constitucionalidade do artigo 854, do novo Código de Processo Civil, que dispõe sobre a constrição de dinheiro antes de efetivada a citação nas ações de execução. A necessidade e a importância desta pesquisa têm fundamento na seguinte problemática: se a relação processual se forma somente com a citação do devedor, a constrição realizada antes da citação respeita o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório? Através da pesquisa, concluiu-se que o artigo 854 é inconstitucional.

Palavras-chave: Penhora. Citação. Nulidade.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo investigar la constitucionalidad del artículo 854 del nuevo Código de Procedimiento Civil, que prevé la constricción de dinero antes de la notificación en las acciones de ejecución. La necesidad y la importancia de esta investigación se basan en la siguiente cuestion: ¿si la relación procesal se forma solamente con la notificación del deudor, la constricción a cabo antes de la notificación respeta el debido proceso, la amplia defensa y la contradictoria? Através de la investigación, se concluyó que el artículo 854 es inconstitucional.

Palabras-clave: Embargo. Notificación. Nulidad.

Sumário: Introdução. 1. Análise Crítica da Constrição Patrimonial Realizada Antes da Efetivação da Citação. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O novo Código de Processo Civil (CPC), em seus artigos 238 e 239, afirma que “a citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual” e “para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado”[1]. Apesar de a Lei não deixar explícito, é evidente que está a falar da citação regular, ou seja, a citação válida e em observância aos princípios constitucionais e normas processuais brasileiras. Somente assim é formada a relação processual com relação ao demandado.

Nas ações de execução, com a citação, o executado pode pagar o débito, pode garantir o juízo e se defender, ou se defender mesmo sem garantir o juízo, isto, pois, de acordo com o artigo 914, do novo CPC, os embargos à execução independem de penhora, depósito ou caução.

Contudo, o novo CPC, no artigo 854, afirma que: “para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução. ”

A chamada “penhora preventiva”, que já era utilizada por alguns tribunais e combatidas por outros, tornou-se obrigação legal. O novo CPC, objetivando a satisfação do direito do credor, oficializou a penhora efetivada antes da citação regular do executado. Ainda que se diga que o procedimento não representa a penhora propriamente dita, pois, seria prévio à penhora, é uma medida constritiva que a ela se assemelha e tem os mesmos efeitos de indisponibilidade patrimonial. Com a devida vênia, esta afirmação mais parece um subterfúgio para escamotear a verdadeira intenção do legislador, permitir a penhora antes da citação. Sendo assim, neste trabalho optou-se por utilizar o termo “penhora” para indicar justamente a medida constritiva prevista no artigo 854, do novo CPC.   

Este artigo se propõe a investigar a constitucionalidade do artigo 854, do novo Código de Processo Civil, que dispõe sobre a constrição de dinheiro antes de efetivada a citação nas ações de execução. A necessidade e a importância desta pesquisa têm fundamento na seguinte problemática: se a relação processual se forma somente com a citação do devedor, a constrição patrimonial realizada antes da citação respeita o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório?

1. ANÁLISE CRÍTICA DA CONSTRIÇÃO PATRIMONIAL REALIZADA ANTES DA EFETIVAÇÃO DA CITAÇÃO

A oficialização da penhora realizada antes da efetivação da citação, consoante o disposto no artigo 854, do novo CPC, elevou o nível do debate acerca da legitimidade deste procedimento. Se antes os Tribunais poderiam aceitar ou não este posicionamento, agora todos têm de observá-lo, sob pena de falta funcional.

Todavia, o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, partindo do princípio de que nenhum juiz deve ser obrigado a seguir uma lei inconstitucional, permite o controle difuso de constitucionalidade. Assim, caso o juiz, diante de um caso concreto, entenda que determinado dispositivo de lei é inconstitucional, ele deve declarar a sua inconstitucionalidade e deixar de aplicá-lo. Destarte, é importante destacar que o artigo 854, do novo CPC, pode ter sua constitucionalidade questionada.

O artigo 854, do novo CPC, tem a vantagem de permitir uma execução mais célere, pois, o devedor (executado), ao perceber seus bens indisponíveis, terá de ir ao Judiciário para saber informações sobre o bloqueio e, querendo, realizar sua defesa. A partir deste aspecto, o direito do credor (exequente) está devidamente garantido.

Ocorre que, a partir de uma nova concepção do direito obrigacional, fundada nos princípios da função social do contrato e da boa-fé, a doutrina entende que a obrigação deve ser entendida como um processo dinâmico e funcionalizado, isto é, em atenção não somente à satisfação dos interesses do credor, como, também, um cumprimento mais satisfatório e menos oneroso para o devedor. Com isso, a relação obrigacional deixa de ser uma relação de subordinação para se tornar uma relação de mútua cooperação[2].

A cooperação, em sintonia do que foi afirmado no início deste item, leva a uma análise diferenciada do processo obrigacional, que “impõe a tutela dos interesses econômicos do devedor no mesmo nível e grau da tutela dos interesses econômicos do credor”[3].

Dessa forma, cumpre observar os potenciais prejuízos (e graves) que a penhora realizada antes da citação pode causar ao devedor. Para fins de debate, pode-se elencar o débito prescrito, o título executivo fraudado, a execução excessiva, dentre outros. Pragmaticamente falando, em face do grande número de processos judiciais em cada vara do país, normalmente o juiz determina a citação e aguarda o posicionamento do executado. Não há uma análise profunda de elementos relacionados a prescrição, ao excesso de execução. E não é suficiente a alegação de que o devedor poderá defender-se e exigir o desbloqueio da quantia em excesso, nos termos dos parágrafos do mesmo artigo 854, pois, qualquer ato processual demanda tempo e a indisponibilidade do dinheiro é capaz de causar graves danos, ainda que por alguns dias.

Na medida em que a discussão deixa de se situar no campo legal, cumpre analisar os dispositivos constitucionais e averiguar se a “penhora preventiva”, prevista no artigo 854, do novo CPC, pode ser admitida.  

Em primeiro lugar, é importante destacar que todo e qualquer ato de constrição do patrimônio, ou da liberdade do cidadão, deverá observar o devido processo legal, a ampla defesa e contraditório, e os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, consoante artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF/88.

Nenhuma pretensa rapidez processual ou celeridade judicial legitima o Poder Público a desconsiderar os postulados supracitados, sob pena de esvaziamento dos princípios constitucionais afetos à questão.

James Marins, ao tratar das execuções fiscais, tece fundamentada crítica nesse sentido: “As aplicações imoderadas da lei processual em face do contribuinte, através de providências executórias instantâneas, que agridem o direito de defesa e ampliam a vulnerabilidade do devedor do Estado, frequentemente incidem no risco inconsciente de escapar da “legalidade do razoável” e resvalar para o campo do arbítrio.[4]

Nesse passo, temos que somente após decisão judicial fundamentada, nos termos do artigo 93, IX, da CF/88, é que os atos constritivos podem se efetivar. Caso contrário, são nulos de pleno direito.

Outrossim, de acordo com a lei processual civil, sabe-se que somente a citação regular produz efeitos válidos nas ações judiciais. Só assim é formada a relação processual com relação ao demandado e, somente desta forma, os atos processuais subsequentes podem ser considerados válidos.

Contudo, mesmo antes do advento do novo CPC, algumas varas passaram a adotar, em nome da celeridade processual, a “penhora preventiva”. Trata-se da penhora efetivada antes da citação do executado. Conforme este posicionamento foi sendo adotado por alguns Tribunais, a doutrina e a jurisprudência contrária reagiram. Em síntese, a corrente contrária entende que, no caso do bloqueio on-line, ato constritivo que é, deveria ser utilizado de maneira restritiva, sob pena de atrocidades processuais. Embora seja ferramenta de grande utilidade para a agilidade dos processos executivos judiciais, não pode subverter a regra constitucional.

Sabe-se que a execução se faz no interesse do credor. Contudo, também é de conhecimento geral que ela deve ser feita da maneira menos onerosa para o devedor, e sempre respeitando os princípios comezinhos do direito, como, por exemplo, o devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

No caso das execuções fiscais, considerando a urgência no recebimento do crédito tributário, a legislação é extremamente favorável no sentido da satisfação do ente público. Contudo, mesmo assim, quando se trata da necessidade de efetivação da citação para que os atos constritivos tenham validade, o artigo 185-A, do CTN, é explícito ao dar ao executado a garantia de ser regularmente citado antes da penhora de seus bens: “Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005) [5]

O Superior Tribunal de Justiça, ao se manifestar sobre a possibilidade de bloqueio de ativos financeiros, foi categórico ao afirmar que o entendimento da Corte Superior se orienta no sentido de que apenas o executado validamente citado que não pagar nem nomear bens à penhora é que poderá ter seus ativos financeiros bloqueados por meio do sistema conhecido como BACEN-JUD, sob pena de violação ao princípio do devido processo legal. (STJ: EDcl no AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.296.737 – BA (2011/0299896-7)[6]

A partir desta interpretação, a penhora é nula e o prejuízo é manifesto, pois, sem a citação regular o executado não gozará de um termo inicial válido e formal para pagar a dívida ou garantir a execução, contrariando o artigo 185-A, do CTN, e, sobretudo, os artigos 7, inciso II, e 10, da Lei de Execução Fiscal, que garantem expressamente tal direito.

No processo civil em geral, muito mais garantidor dos direitos do executado que a lei execução fiscal, a redação dada pelo artigo 854, do novo CPC, parece violar princípios comezinhos relacionados ao devido processo e ao direito de defesa. Isto, pois, declara indisponíveis bens da parte executada sem que esta sequer faça parte da relação processual. Aliás, o novo Código de Processo Civil (CPC), em seus artigos 238 e 239, é bem claro ao afirmar que “a citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual” e “para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado”[7]. Neste sentido, verifica-se uma contradição dentro da própria lei federal.

Desta forma, quando os bens de alguém (que no caso é o executado) são penhorados quando sequer é inaugurada a relação processual, parece caracterizar uma restrição relevante à propriedade privada. A situação parece ser mais gravosa quando se percebe que a própria lei processual, ao exigir a citação para a formação da relação processual e para a validade dos atos processuais subsequentes, ou mesmo ao admitir a oposição de embargos sem a necessidade de garantia do juízo, aponta no sentido de a penhora preventiva ser uma excrescência dentro do processo civil.

Inevitavelmente, a “penhora preventiva” subtrai direitos defensivos básicos do executado, como, por exemplo, o direito de saber qual o motivo da pretensão executória, antes mesmo de perder a livre disposição de seu patrimônio.

A penhora antes da citação parece inverter a lógica do inciso LIV, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal[8]. Isto, pois, o executado acaba sendo privado de seus bens antes mesmo de iniciada a relação processual.

Nos termos da Constituição, é devido o processo que “dá decisões jurídicas efetivas, justas e razoáveis, materializando o objetivo de “sociedade justa”, da República Federativa do Brasil, previsto no art. 3º, I, da CF.”[9] Certamente, não é devido o processo que admite a constrição do patrimônio do devedor antes de iniciada a relação processual. Outrossim, não é constitucional o dispositivo de lei que permite este modus operandi.

CONCLUSÃO

Com a pesquisa, conclui-se que:

1. Todo e qualquer ato de constrição do patrimônio, ou da liberdade do cidadão, deverá observar o devido processo legal, a ampla defesa e contraditório, e os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, consoante artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF/88.

2. Nenhuma pretensa rapidez processual ou celeridade judicial legitima o Poder Público a desconsiderar os postulados supracitados, sob pena de esvaziamento dos princípios constitucionais afetos à questão.

3. De acordo com a lei processual civil, sabe-se que somente a citação regular produz efeitos válidos nas ações judiciais. Só assim é formada a relação processual com relação ao demandado e, somente desta forma, os atos processuais subsequentes podem ser considerados válidos.

4. Inevitavelmente, a “penhora preventiva” subtrai direitos defensivos básicos do executado, como, por exemplo, o direito de saber qual o motivo da pretensão executória, antes mesmo de perder a livre disposição de seu patrimônio.

5. Certamente, não é devido o processo que admite a constrição do patrimônio do devedor antes de iniciada a relação processual. Outrossim, não é constitucional o dispositivo de lei que permite este modus operandi.

 

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 26 de julho de 2016.
BRASIL. Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm Acesso em 26 de julho de 2016.
BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Dispõe sobre o Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 26 de julho de 2016.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ: EDcl no AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.296.737 – BA (2011/0299896-7). Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=28028430&num_registro=201102998967&data=20130425&tipo=5&formato=PDF. Acesso em 26 de julho de 2016.
CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de direito civil: teoria geral das obrigações e dos contratos: institutos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009.
VALENTE, Natasha Rocha; BORGES, Felipe Garcia Lisboa Borges. Conteúdo e limites aos poderes instrutórios do juiz no processo civil contemporâneo. Revista de Processo. Vol. 243. Ano 40. P. 109-133, São Paulo: Ed. RT, maio 2015.
 
Notas:
[1] BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Dispõe sobre o Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 26 de julho de 2016.

[2] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de direito civil: teoria geral das obrigações e dos contratos: institutos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 30.

[3] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. op. cit. p. 30-31.

[4] MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009. p. 125.

[5] BRASIL. Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm Acesso em 26 de julho de 2016.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ: EDcl no AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.296.737 – BA (2011/0299896-7). Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=28028430&num_registro=201102998967&data=20130425&tipo=5&formato=PDF. Acesso em 26 de julho de 2016.

[7] BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Dispõe sobre o Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 26 de julho de 2016.

[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 26 de julho de 2016.

[9] VALENTE, Natasha Rocha; BORGES, Felipe Garcia Lisboa Borges. Conteúdo e limites aos poderes instrutórios do juiz no processo civil contemporâneo. Revista de Processo. Vol. 243. Ano 40. P. 109-133, São Paulo: Ed. RT, maio 2015. p. 125.


Informações Sobre o Autor

Felipe Garcia Lisboa Borges

Mestre em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Pará (CESUPA). Pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Advogado


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