A atuação extraprocessual do ministério público para a garantia de direitos: Um estudo sobre o direito à saúde

A atuação do Ministério Público para a garantia do direito à saúde é premente, na medida em que este direito requer celeridade nas decisões sobre sua implementação. Constatou-se que, para a concretização deste direito, o Ministério Público tem utilizado instrumentos extraprocessuais dinâmicos, tendo em vista a necessidade de resolução imediata de controvérsias.

1. Introdução

O direito à saúde, enquanto direito fundamental, se insere nos chamados direitos de titularidade difusa e coletiva. Segundo Sarlet, estes direitos trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo, como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa (Sarlet, 2001:52)

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São, assim, novas facetas do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que traduz a idéia de que o estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal (idem, 103).

A dignidade da pessoa humana, portanto, revela-se como limite e tarefa dos poderes estatais, e é através dela que as ações em saúde devem se pautar.

Em decorrência disto, para além dos direitos individuais, existem direitos que dizem respeito ao Homem, ao grupo como um todo. As instituições judiciárias, no sentido de lidarem com essa nova modalidade de direitos, devem se adequar, tornarem-se dinâmicas, adquirirem uma nova roupagem. Os principais atores para a concretização destes direitos são o Poder Judiciário e, precipuamente, os órgãos que compõem as funções essenciais da justiça, que estão dispostos na Constituição.

Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada nos Ministérios Públicos estaduais e federais de Porto Alegre e Rio de Janeiro. Observou-se que a atuação do Ministério Público para a garantia do direito à saúde é premente, na medida em que este direito requer celeridade nas decisões sobre sua implementação. Observou-se também que, para a concretização deste direito, o Ministério Público tem utilizado instrumentos extraprocessuais dinâmicos, tendo em vista a necessidade de resolução imediata de controvérsias.

2. As funções essenciais à justiça e o Poder Judiciário

No Poder Judiciário – que é a esfera de Poder do Estado responsável pela atividade jurisdicional – reina a máxima nemo iudex sine actore, ou seja, não há juiz sem autor. Essa máxima evidencia que o judiciário somente pode agir para a concretização de direitos se for mediante provocação de quem se sentir lesado pela ação ou omissão de outrem, portanto deve tomar uma atitude estática enquanto não for chamado à resolução do litígio.

Tal atitude remonta à própria idéia de que o Estado deve intervir minimamente nas relações sociais, de modo que a resolução de conflitos extrajudiciais é sempre preferível. Assim, o princípio da intervenção mínima do Estado, dentre as suas diversas facetas, traz a noção de que o poder judiciário, no intuito de respeitar a separação dos poderes e a continuidade das relações sociais, só pode atuar mediante provocação para a manutenção da ordem social.

Assim, faz-se mister que existam instâncias dinâmicas para garantia de direitos, inclusive do direito à saúde. Essas instâncias dinâmicas compõem as chamadas funções essenciais da justiça. Segundo José Afonso da Silva, estas funções são “aquelas atividades profissionais públicas ou privadas, sem as quais o Poder Judiciário não pode funcionar ou funcionará muito mal” (Silva, 1993:506) em virtude da sua atuação estática. Tais funções encontram-se descritas nos artigos 127 a 135 da Constituição de 1988 e, dentre elas, destacam-se o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Neste artigo realizaremos uma análise, em especial, da atuação do Ministério Público no âmbito do direito à saúde, na medida em que este é uma instituição dinâmica para a garantia deste direito, haja vista não precisar ser provocado para atuar em prol de sua concretização. Para tal, devemos distingui-lo das atividades do Poder Judiciário e das atividades da Defensoria Pública.

Segundo Bastos, o Ministério Público tem a sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda coletividade. (Bastos, 1996)

De acordo com a Constituição, o Ministério Público é uma instituição permanente, que se caracteriza por ser essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses individuais indisponíveis e dos interesses coletivos e difusos, ou seja, dos direitos que não se pode dispor pois fazem parte da personalidade humana. Para o exercício de seus deveres, o Ministério Público é um órgão autônomo e, conseqüentemente, não se encontra submetido a nenhum Poder.

Trata-se de uma das legislações institucionais mais avançadas do mundo, que colocou o Parquet fora da subordinação a quaisquer dos Poderes, mantendo, porém, uma similitude com o Poder Judiciário, eis que estabeleceu princípios e garantias comuns àquelas aplicáveis ao referido Poder e aos seus juízes. (Ritt, 2002:124)

Para realizar suas funções de maneira eficiente, há uma repartição de competências, de modo que cada Ministério Público fique responsável por uma área de atuação. No âmbito da saúde, por exemplo, são as atuações do Ministério Público Estadual – fiscalizando Municípios e a Unidade da Federação – e do Ministério Público Federal – fiscalizando a União – que ganham relevo.

Mais especificamente, no tocante às suas atribuições, o Ministério Público é responsável pela defesa dos direitos individuais indisponíveis[1] e dos direitos coletivos e difusos[2]. Segundo Ritt,

Preparado para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, o Direito, e a dogmática jurídica que o instrumentaliza não conseguem atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa. O paradigma (modelo de direito ou modo de produção) liberal-individualista está esgotado. O crescimento dos direitos transindividuais reclama novas posturas dos operadores jurídicos (idem, 187)

Mais propriamente, os direitos coletivos e difusos representam interesses que transcendem o âmbito de proveito individual, atingindo área de benefício de um grupo indeterminado de pessoas, e que, inegavelmente, possuem preponderante carga de natureza pública.

A Defensoria Pública, por sua vez, representa um serviço de assistência judiciária, de modo que possibilite o acesso de pessoas menos favorecidas financeiramente aos seus direitos. Presta, assim, serviços de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Logo, as demandas da Defensoria Pública são de caráter individual, ao passo que as demandas do Ministério Público dizem respeito a um grupo determinado ou indeterminado de pessoas.

3. O Promotor como fiscal

Durante a pesquisa, observou-se que as atividades do Ministério Público para a concretização do direito à saúde se pautam, principalmente, pela fiscalização do gestor e dos prestadores de serviços. Para tal, ele pode realizá-la de duas formas genéricas: através de trabalho “de gabinete” ou através de visitas in locci.

A primeira forma, o trabalho “de gabinete”, é aquele realizado dentro do próprio espaço físico do Ministério Público. O Promotor (leia-se também Procurador), age de acordo com as demandas em saúde que lhes são apresentadas por jornais, pela ouvidoria (ou semelhante) da instituição, ou por representação social. Em todos os casos, a demanda passa por um crivo de veracidade, para que a sua atuação não seja despropositada ou em vão.

No caso dos jornais, o Promotor formula a sua intervenção através da regularidade e da importância da notícia. Ou seja, na medida em que o caso noticiado se apresenta como relevante, e que este caso tenha uma certa regularidade em outros jornais, o Promotor age no sentido da concretização do direito que esteja insuficientemente satisfeito.

No caso da ouvidoria, é em geral o cidadão comum que a utiliza para demandar direitos individuais. Como foi visto, o Ministério Público não atua na concretização de direitos individuais, portanto o caso é repassado à Defensoria Pública para que esta tome as providências necessárias. Entretanto, esta demanda individual é registrada no Ministério Público pois, caso seja repetida por outras pessoas, configura-se um direito essencialmente coletivo e difuso, ensejando a sua atuação.

No caso da representação social, o Ministério Público recebe a denúncia por parte da sociedade civil organizada, como associações de classe, representações profissionais, conselhos de saúde, etc. Procura-se, assim, sempre agir de forma conjunta com a sociedade civil de modo que ambos concretizem o direito violado ou insatisfeito. A atuação conjunta é sempre preferível para que a atuação do Ministério Público, além de legalmente possível, tenha uma legitimidade advinda da sociedade civil.

Para além destas possibilidades de atuação do Promotor “no gabinete”, há outras formas muito mais dinâmicas, que se baseiam fundamentalmente no diálogo. Segundo Ritt,

Os membros do Ministério Público devem abandonar a praxe de sustentação do direito tradicional e sair de seus gabinetes com o fim de, em contato direto com a sociedade, conhecer suas carências e procurar efetivar seus direitos. Portanto, deve privilegiar sua atuação como órgão agente, na busca da efetivação dos direitos sociais (idem, 194-195)

As visitas in locci –  nos locais – têm se mostrado um instrumento eficaz. O hábito dos Promotores de ir ao local problemático para ver, diretamente, qual a controvérsia e formular possíveis soluções é uma forma interessante de atuação. Em virtude disto, o Promotor torna-se não somente aquele que defende o direito mas também aquele que fiscaliza diretamente o que não está sendo feito.

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A atividade, neste sentido, pauta-se pelo diálogo. Tenta-se, a partir da visita in locci, dialogar com os próprios atores sociais (profissionais de saúde, gestores, usuários, etc) para obter maneiras de solucionar a questão. Assim, o papel de fiscalização da gestão e dos profissionais de serviço fica plenamente realizado pelo Promotor.

4. Formas de atuação do Ministério Público

O Ministério Público é uma instância dinâmica de garantia do direito à saúde, e o que confere dinamicidade às suas ações são, certamente, as suas formas de atuação. Desde já, deve-se dizer que enumera-las de maneira exaustiva é inviável, pois um simples telefonema do Promotor ao hospital ou a simples visita in locci podem resolver o problema.

Deve-se dizer que uma forma geral de atuação – e que pauta todas as outras – é o diálogo. Através do diálogo, procura-se resolver o problema por intermédio de meios não-formais que, por vezes, são o melhor caminho. O Poder Judiciário, por exemplo, levaria anos para resolver um problema com relação à gestão ou com relação às licitações, sendo que, enquanto não resolve, há muitas pessoas que permanecem prejudicadas em seu direito.

A dinamicidade dos meios de resolução, desta forma, é um elemento essencial à atuação do Ministério Público. Inclusive, os próprios Promotores reconhecem que, na área da saúde, a rapidez na solução dos problemas está diretamente relacionada à dinamicidade e à maleabilidade dos instrumentos de concretização de direitos.

Não bastando o diálogo, o Ministério Público tem utilizado, principalmente, dois instrumentos formais para a garantia do direito à saúde: o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e a Ação Civil Pública

O TAC, como o próprio nome sugere, visa instaurar um direito ou um serviço de saúde que se encontra insuficientemente satisfeito. Mais propriamente, ele consiste em um compromisso firmado entre o Ministério Público e o hospital, por exemplo, de modo que este realize alterações necessárias para o exercício de um determinado direito.

Este Termo de Ajustamento busca corrigir uma situação débil de modo a torna-la suficientemente garantidora de um direito. No caso da estrutura do hospital que não tem leitos suficientes, faz-se um TAC através do qual o gestor se compromete a, em um ano e meio, por exemplo, prover um número de leitos correspondente à demanda do hospital; ou quando o hospital não dispõe de ambulâncias, então faz-se um TAC para que, em um ano, por exemplo, ele adquira o número necessário.

Este instrumento, o TAC, ainda goza de força de título executivo, ou seja, caso seja descumprido o Ministério Público entra com ação no Poder Judiciário na fase de execução, o que demanda consideravelmente menos tempo do que uma ação comum.

A Ação Civil Pública, por sua vez, é vista como última ratio, um último recurso a ser utilizado pelo Promotor. Ela consiste em uma ação proposta pelo Ministério Público perante o Judiciário para a garantia de um direito que se encontra violado[3].

Este tipo de ação, na medida em que é proposta perante o Poder Judiciário, demanda um grande tempo para ser solucionada. Portanto, nos assuntos relacionados à saúde – que, em geral, precisam de rapidez nas decisões -, a Ação Civil Pública não é um meio eficaz de resolução.

A prática tem mostrado que o TAC é preferível à Ação Civil Pública pois, mesmo que ambos responsabilizem o gestor pelos seus atos, o TAC permite: uma previsão de quando será solucionado o problema (através de um prazo); quem o solucionará (através de quem assinou o termo); e como solucionará (medidas a serem tomadas no prazo para solucionar). Logo, a segurança de que o problema será resolvido, conjugada à rapidez do processo decisório, propicia ao TAC o status de melhor caminho de atuação formal do Ministério Público, pois dá a certeza da garantia de um direito.

Do lado do gestor, a assinatura do TAC demonstra a sua boa vontade em resolver a questão pois, caso não assinasse, a Ação Civil Pública demandaria muito tempo e, por vezes, quando é resolvida, o próprio gestor já não se encontra mais no comando gestão.

Neste sentido, o gestor que assina o TAC demonstra, simbolicamente, que não quer se aproveitar da lentidão do poder judiciário para não implementar uma política. Assina, assim, mediante prazo fixado e responsabilização certa, caso não concretize o compromisso.

Conclusão

O Ministério Público, no Brasil, desempenha uma função fundamental para a continuidade da democracia: na medida em que não está vinculado a nenhum Poder, o Ministério Público representa não somente o defensor da lei, como também o defensor da sociedade, portanto esta instituição age pela sociedade.

Neste sentido, as ações do Ministério Público só se justificam na medida em que espelham anseios sociais pela concretização de direitos. Um Ministério Público forte e eficaz se constrói quando está em plena consonância com o que se espera dele socialmente. Portando é imprescindível que seus mecanismos de atuação dêem respostas e ao mesmo tempo solucionem problemas. Segundo Cintra et al.,

Se temos hoje uma vida societária de processo de massa, com a proliferação dos meios de proteção a direitos supra-individuais e relativa superação das posturas individuais dominantes; se postulamos uma sociedade pluralista, marcada pelo ideal isonômico, é preciso ter também um processo sem óbices econômicos e sociais ao pleno acesso à justiça; se queremos um processo ágil e funcionalmente coerente com os seus escopos, é preciso também relativizar o valor das formas e saber utiliza-las e exigi-las na medida em que sejam indispensável à consecução do objetivo que justifica a instituição de cada uma delas. (Cintra et al., 2005:46)

Ou seja, não se trata aqui de extinguir as formas do processo, seja ele civil ou penal. Deve-se, entretanto, reconhecer que as formas não são absolutamente efetivadoras de direitos. São as pessoas – e não os textos – que constroem a legalidade e a legitimidade. Relativizar quer dizer saber ponderar se, no caso concreto, é preciso recorrer às formas ou a métodos não-formais que sejam mais próximos da realidade e, conseqüentemente, mais eficazes para a resolução de um problema.

No campo da garantia do direito à saúde, o Ministério Público tem sido um entusiasta da relativização das formas, razão pela qual sua atuação tem obtido resultados satisfatórios. Não obstante, essa relativização não se trata de uma opção, mas de uma necessidade para que o direito à saúde seja plenamente satisfeito, pois a recorrência às formas, como vimos, não possibilita a celeridade das decisões.

 

Bibliografia
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1996
CINTRA, Antonio Carlos; GRINOVER, Ada Pellegrini & DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005
RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Malheiros, 1993
  
Notas
[1] Os direitos individuais indisponíveis são aqueles que existem como tais desde a constituição da personalidade humana, sendo os seus titulares identificáveis desde que pertencentes a uma coletividade
[2] Os direitos coletivos e difusos são direitos metaindividuais, porque atingem grupos que tem algo em comum, e não pertencem a uma pessoa isolada, nem a um grupo nitidamente delimitado de pessoas. O direito ao meio ambiente, por exemplo, é um direito desta natureza, pois não diz respeito a uma pessoa singular ou a um grupo específico, mas a toda a humanidade, sob pena de ser visto como um privilégio
[3] Como vimos, a principal forma de atuação do Ministério Público é o diálogo, o que justifica o fato da Ação Civil Pública ser o último recurso a ser utilizado pelo Promotor

Informações Sobre o Autor

Felipe Dutra Asensi

Pesquisador em direito constitucional, instituições democráticas e processos decisórios. Também analisa os efeitos da Globalização nos diversos institutos jurídicos brasileiros.


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