Resumo: O presente artigo aprecia o fenômeno da migração de uma jurisdição ortodoxa, baseada no suporte papel, para uma jurisdição tecnológica, alicerçada na simbiose entre as novas Tecnologias da Informação e o Poder Judiciário, e alerta para a necessidade de uma hermenêutica que adapte os institutos processuais existentes a essa nova realidade, afastando a insegurança jurídica. Tendo essa necessidade como premissa, analisa o impacto da Lei 11.419/2006 na regra estabelecida pelo art. 172 do Código de Processo Civil, acerca do tempo de realização dos atos processuais.
Palavras-chave: Processo Telemático. Jurisdição Tecnológica. Informatização do Processo Judicial. Acesso à justiça. Hermenêutica Jurídica. Tempo de realização dos atos processuais.
Sumário: I. Da necessidade de uma hermenêutica orientada para a jurisdição tecnológica – II. O tempo de realização dos atos processuais telemáticos e a relativização das barreiras cronológicas do art. 172 do Código de Processo Civil – Referências Bibliográficas.
I. Da necessidade de uma hermenêutica orientada para a jurisdição tecnológica.
Com o advento da Lei 11.419/2006, surge, no modelo dogmático brasileiro, o Processo Judicial Telemático, entendido como toda e qualquer relação jurídico-processual cujo procedimento se desenvolve em ambiente informático – com o processamento eletrônico das informações jurídicas – e telemático – com o auxílio das telecomunicações, com vistas à eliminação dos óbices de ordem geográfica e à imposição de celeridade ao transporte dos dados jurídicos.
Com a desmaterialização dos autos e com o estabelecimento desse novo paradigma processual, por sua vez, surgem novos e instigantes desafios para os juristas, dentre os quais, o de promoverem uma hermenêutica orientada para a jurisdição tecnológica. Isso porque, antes de alarmarem-se – equivocadamente, enfatize-se – com a ameaça de um caótico vazio normativo, e de uma onda de insegurança jurídica daí decorrente, os profissionais do Direito deverão proceder a uma verdadeira releitura dos institutos processuais, sob o enfoque da cultura do virtual.
Longe de inutilizar os institutos processuais construídos ao longo de toda a história do direito, dever-se-á interpretá-los passando-os pelo filtro da nova mentalidade, a da jurisdição tecnológica – na feliz expressão de Pimentel (2003, p. 854) – surgida da compenetração do jurídico com o tecnológico e que impõe um afastamento do habitual esquema mental do formalismo jurídico, onde o direito era considerado como um reduzido universo escrito sobre códigos (PIMENTEL, 2003, p. 855).
Assim, à guisa de exemplo, embora a própria denominação do agravo de instrumento deva-se à exigência de tal recurso ser operacionalizado por meio da formação de um instrumento – com cópia de importantes peças processuais e interposição diretamente perante o órgão judicial competente para seu julgamento – parece-nos perfeitamente possível interpretar que assim continuará a acontecer no âmbito do Processo Telemático, apenas com a ressalva de que o supra mencionado instrumento não mais será formado pela reprodução em papel das peças exigidas, mas, desta feita, pela reprodução eletrônica das mesmas peças, constantes dos autos virtuais.
Não há que se duvidar que tal esforço hermenêutico por que terá que passar todo o sistema processual, quando da sua plena penetração na jurisdição tecnológica, vale a pena, uma vez que, na preciosa lição de José Miguel Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier (2006, p. 142)
“o direito processual deve se amoldar ao fim a ser alcançado, as soluções jurídicas estabelecidas pelo sistema processual aos direitos veiculados nas ações judiciais não poderiam se condicionar à observância de proposições teóricas de pouca ou nenhuma relevância prática”
Para os mencionados autores (2006, p. 174), portanto, o direito processual civil é informado por um critério de conveniência prática, de adequação a fins, e, por isso mesmo, “tende a ser mais operativo no sentido de ser um sistema capaz de adotar soluções que facilitem o caminho para que se chegue ao resultado que seria obtido se a obrigação tivesse sido cumprida espontaneamente”.
Nessa ótica, é cediço que o sistema processual, tal como tradicionalmente estabelecido, vem falhando em promover o acesso à ordem jurídica justa, resultando, dentre outras causas, em uma intensa crise de legitimidade do Poder Judiciário, que vem sendo combatida por inúmeras reformas processuais, como a recente modificação no sistema de execução – cujo expoente foi a Lei nº 11.232/05 – não se devendo medir esforços, outrossim, para a implementação efetiva do processo informatizado, que tantas benesses pode trazer para a qualidade da prestação jurisdicional.
Inclusive, nota-se no agravo de instrumento a ser desenvolvido no âmbito do processo telemático, aproveitando o exemplo dado, um dos inúmeros sinais de ampliação do acesso à justiça, o respeito ao princípio da economia processual – despendendo-se, tanto quanto possível, o menor tempo e dinheiro para a prática de atos processuis. Isso, na medida em que não mais se onerará a parte em custear as fotocópias – e, se for o caso, autenticações – necessárias à formação do instrumento, bem como em perder seu tempo com a ida à sede do órgão judicial, com a retirada dos autos da secretaria, com a reprodução das peças em papel e com o deslocamento até a sede do tribunal ad quem para interpor o recurso em comento.
Parece-nos, portanto, muito apropriada a tese do esforço hermenêutico, procedendo-se, a uma releitura dos institutos processuais sob o crivo da nova mentalidade, a da jurisdição tecnológica, adaptando-se os institutos, tanto quanto possível, conceitualmente, sem entendê-los revogados – posto que, se assim, equivocadamente, o fizermos, estaremos, irresponsavelmente, submetendo o sistema processual a um caótico e insustentável grau de insegurança jurídica.
A propósito, como bem assevera o jusfilósofo João Maurício Adeodato (apud PIMENTEL, 2003, p. 854):
“em todo processo de mutação é indispensável a existência de um núcleo que permaneça, sob pena de não se poder sequer identificar os caracteres acidentais. Com efeito, fosse o direito uma série de fatos contingentes em contínua e desordenada sucessão, não haveria possibilidade de erigi-lo em objeto do conhecimento e conceituá-lo; é a identidade da processualidade, característica do ser real”.
A seguir, tentaremos contribuir, ao menos infimamente, com o avanço da hermenêutica jurídica no bojo da jurisdição tecnológica, analisando, brevemente, o impacto da entrada em vigor da Lei 11.419/06 na interpretação a ser atribuída ao art. 172 do Código de Processo Civil.
II. O tempo de realização dos atos processuais telemáticos e a relativização das barreiras cronológicas do art. 172 do código de processo civil.
Para o art. 3º da Lei 11.419/2006, consideram-se realizados os atos processuais por meio eletrônico no dia e hora do seu envio ao sistema do Poder Judiciário, do que deverá ser fornecido protocolo eletrônico. Percebe, desde já, o ganho, máxime em termos de celeridade, proporcionado por essa realização imediata de atos processuais, sem deslocamentos físicos, esperas em fila e sobrecarga dos recursos humanos dos Tribunais – homenageando, assim, o princípio constitucional da duração razoável do processo, imposto pelo inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna, também presente na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, em seus arts. 8º, 1. e 25º,1.
Medida de extrema importância prática, essencial para promover a segurança no processo telemático, é a do art. 10º, §2º da Lei em comento, que diz que se o Sistema do Poder Judiciário se tornar indisponível por motivo técnico, o prazo fica automaticamente prorrogado para o primeiro dia útil seguinte à resolução do problema.
Sob o prisma da preocupação com a inclusão digital, colocada por muitos como possível óbice ao sucesso do processo telemático, o legislador foi prudente em impor aos órgãos do Poder Judiciário, no §3º do mesmo artigo, a disponibilização e a manutenção de equipamentos de digitalização e de acesso à rede mundial de computadores para distribuição de peças processuais.
Prevê-se, ainda, no parágrafo único do art. 3º, que, na hipótese de petição eletrônica enviada para atender prazo processual, serão consideradas tempestivas as transmitidas até as 24 (vinte e quatro) horas do seu último dia, o que decorre da revolucionária acessibilidade dos autos de forma imediata e sem restrições de ordem geográfica e temporal – no que diz respeito às limitações de horário, resultantes do expediente forense – deixando-se que a tecnologia esteja a serviço do homem, otimizando-se, destarte, o acesso à justiça, sem, contudo, ocasionar dispêndio para o erário com horas-extras de funcionários.
Entendemos que o enunciado em tela resta incompatível com a interpretação literal do art. 172 do Código de Processo Civil – que preconiza que os atos processuais realizar-se-ão em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas. Para a solução do aparente conflito de leis, deve-se proceder à utilização da regra hermenêutica de que a lei posterior – sendo ambas leis de mesma natureza, in casu, ordinárias – derroga a lei anterior, bem como à aplicação da regra que determina a prevalência de norma especial – decorrendo tal especialidade da exceção, feita pelo parágrafo único do art. 3º da Lei 11.419/06, àquele art. 172 tão somente no que diz respeito ao peticionamento das partes por via telemática, não se aplicando aos demais atos processuais.
Contudo, é de se indagar, pela própria natureza, peculiar ao Processo Telemático, de acessibilidade dos autos em tempo integral, se estaria revogado tacitamente o art. 172. A nosso ver, a melhor interpretação é a de que os atos processuais que possam ser praticados à distância, por meio do sistema informático, estarão excluídos da incidência do art. 172, sob pena de, tendo recursos para promover a efetividade do processo, limitar esta, sobrepondo a regra do dispositivo processual ora em análise, elaborado dentro de uma concepção cartácea do procedimento judicial, ao direito fundamental da duração razoável do processo.
Logo, o art. 172 só deverá subsistir na esfera daqueles atos processuais cuja realização não é viabilizada de forma eletrônica e telemática, e que, por depender da atuação, de forma não-automática, dos servidores do Poder Judiciário, como, exempli gratia, as audiências de conciliação, de instrução e julgamento e o cumprimento de mandados pelos oficiais de justiça – o que, até nesse particular, é relativizado diante da possibilidade de citação eletrônica e da já existente penhora online – vinculam-se ao exercício de seus cargos, normalmente ocorrido durante o horário de expediente forense.
Referências bibliográficas:
Informações Sobre o Autor
Augusto Cesar de Carvalho Leal
Acadêmico de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Bacharelando em Administração de Empresas pela Universidade de Pernambuco; Pesquisador do CNPq