Anotações sobre as perplexidades e os caminhos do processo civil contemporâneo — Sua evolução ao lado da do direito material

1- Os principais problemas do direito processual civil de nossos dias – A evolução do processo não ocorreu descompassadamente da do direito material.


O processo civil de nossos dias encontra-se num estágio de modificação profunda, na mesma esteira do que precedentemente se tem verificado no mundo ocidental, consistente em colocar ao lado do que se pode designar como processo civil clássico (em sua estrutura) outros instrumentos, destinados a fazer frente às necessidades, que não datam de hoje, mas que são, cada vez mais agudas, nestes dias contemporâneos [1], conduzindo a uma espécie de convivência entre o processo civil clássico (já, em si mesmo, intrinsecamente alterado, em decorrência do descarte da inspiração individualista radical, assumindo uma absorção de valores sociais, que se impõem na sociedade contemporânea) e esse novo aparato hodierno resulta vitalmente dinamizada pela tutela de urgência. [2] Os pontos nodais, porque constitutivos de setores de estrangulamento do processo civil, que merecem destaque são os seguintes: 1) as custas judiciais, enquanto podem significar óbice de Acesso à Justiça [3]; 2) as Cortes menores, ou, mais especificamente, entre nós, os Juizados de Pequenas Causas e os Especiais [4][5][6], destinadas à ‘ absorção’ de contingentes imensos, que demandam Acesso à Justiça, segmentos sociais que estão se instalando dentro dos quadros de uma sociedade institucionalizada; 3) a ‘incapacidade’ ou a ‘inabilitação’ da parte, do ponto de vista de não lograr se defender (=acionar [ativamente] ou defender-se [passivamente], se acionada), o que também se sedia na temática do Acesso à Justiça; 4) a definição dos interesses difusos ou coletivos, para viabilizar que ‘interesses e direitos’ com nova configuração e fisionomia, possam ser defendidos, utilmente; [7] 5) a conflituosidade da sociedade contemporânea, porque muito mais intensa, está a exigir a idealização de outros meios de solução para muitíssimos dos conflitos, tais como a intervenção de leigos, com vistas à obtenção incentivada de transação —— o que pode ocorrer através de mediação —— , e, por intermédio de cujo processo, exercido de forma argumentativa e bilateralmente didática, em relação a ambas as partes, possível será, muitas vezes, que os contendores, mais facilmente cheguem a transacionar, porque entendam, ao menos, parcialmente, as razões do outro, ou compreendam os litigantes que a solução judiciária poderá não coincidir com aquilo a que aspiram. Ainda, dentro do âmbito dessa conflituosidade, identificam-se conflitos, ou, mais precisamente, atritos permanentes, qualitativamente diferentes, que, de uma parte, não deverão deixar de existir (porque isso se mostra impossível) e, por isso mesmo, não comportam uma pretensa ‘solução definitiva’ , própria do processo estatal, que os extinga. São, em verdade, tais conflitos/atritos, representados por relações duráveis e continuativas, que merecem ou precisam ser conservadas. Na verdade, caracterizam-se por sintomas ou aspectos que devem ser superados ou resolvidos, e, o grau de tensão neles existente não pode ou não deve conduzir a uma ruptura, mostrando-se que conservada a relação isso será melhor. Em realidade, configuram um grau de litigiosidade menor’ e ‘menos intensa’ do que o clássico conflito de interesses , propriamente dito, como também, apresentam-se com tendência incontida à repetição. Tais são, exemplificativamente, as dissenções ou tensões provocados pelo valor crescente, em termos de valor nominal, das mensalidades escolares, reivindicações salariais outras, pela mesma razão (mormente num país de inflação que se tem mostrado constante, ainda que nos últimos anos, de 1994 até hoje, tenha se logrado um controle apreciável sobre a inflação), como ainda, do acesso à escolaridade, de segmentos mais carentes; assuntos relativos à vivência em fábricas (o que, entre nós, tenderá a aumentar em sua problematicidade) e os pertinentes à convivência em condomínios de apartamentos. São, de certa forma e em alguns casos mesmo, tensões ou atritos provocados por uma instabilidade externa aos litigantes, como, por exemplo, a conjuntura econômica, como o que, em parte, resultou do contrôle da inflação, que, sendo muito bom por um lado, angustia pela menor disponibilidade de numerário  (ou, como na hipótese da vivência num condomínio de apartamentos, similar a inumeráveis outras hipóteses), mas dentro da qual, inevitavelmente, todos ou muitos, tem de viver. Para estas relações preferíveis são organismos informais que exerçam funções de mediação constante entre pessoas que esteja em conflito, ou, em relação a grupos opostos, pois, geralmente, tais tensões são engendradas entre grupos que se opõem (ou, dentro do próprio grupo), mas que tem de inevitavelmente conviver próximos, como se percebe dos exemplos fornecidos, e outros mais, intuitivamente perceptíveis. É certo que isto será possível diante de um juízo arbitral, menos formal do que o existente, ou mesmo por outro meio, ainda mais flexível, porém, mais operativo e funcional.


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Praticamente as mesmas razões que inspiraram a obra, referida em a nota 2, levaram a outra obra, do mesmo autor e do Prof. J. A. Jolowicz.[8] Em seqüência a esta obra, seguiu-se outra onde, parcialmente, os mesmos temas são retomados, ao lado de outros. [9]


Estas verdadeiras premências, motivadoras dessas transformações, não datam de hoje, senão que, tiveram início perceptível, principalmente ao depois da segunda guerra mundial, e, entre nós, mais recentemente. Tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos, como aqui, verificaram-se pressões sociais, pela ‘reivindicação’ de ‘novos’ direitos, e, bem assim, detectou-se — talvez com perplexidade inicial, ao menos — a insuficiência dos instrumentos processuais existentes, de caráter estruturadamente individualista. [10] A mutação intrínseca dos sistemas jurídicos, abandonando o individualismo, como espinha dorsal desses, operou-se em diversos ramos do direito.


Referimo-nos a que os problemas que vieram, verdadeiramente ‘assolar’ o direito processual civil, não surgiram somente nesta seara do direito, senão que, emergiram em sintonia com problemas e conseqüentes modificações operadas no direito material.


No continente europeu, provavelmente já na década de 20 ou antes, era detectável o fenômeno da ascensão das massas [11], no sentido de que, com essa ascensão, já se percebia a turbulência social, que envolvia e acompanhava o fenômeno. Aquelas ascenderam da marginalização social, principalmente, por causa da revolução industrial (v. notas 1 e 2), com o que, deixando da integrar o rol dos que se encontravam nas periferias das sociedades e respectivas civilizações, não alcançadas, de fato, pelo aparelho do Estado, iniciaram um processo para forçar a entrada nos quadros melhores da civilização, com o que se colocou, de um lado, a insuficiência do aparato estatal e bem assim do sistema tradicional.


Possivelmente um dos setores mais modificados, no direito privado, foi o obrigacional. E, na raiz das modificações operadas no direito obrigacional — segundo pensamos — encontram-se em escala apreciável os mesmos fenômenos que levaram à necessidade de reequacionamento dos instrumentos processuais, motivadas aquelas e estes, pelo mesmo valor axiológico: um reequilíbrio dos que se defrontam na ordem jurídica. [12]


2 – A gravidade do fenômeno na América Latina


Fenômeno similar, bastante mais gravemente, ocorre na América Latina, mutatis mutandis, ainda que protraído no tempo, ou seja, especialmente, a contar de uma ou duas décadas, depois da segunda guerra mundial, o que se explica pelo descompasso do desenvolvimento do capitalismo, em nosso continente, o que estabeleceu momentos mais tardios para a ocorrência de tais reivindicações sociais e respectivas conseqüências. Em nosso continente, mais especialmente, no Brasil, simultaneamente e ao lado do fenômeno da ascensão das massas, verificou-se, com incrível intensidade um desdobramento, com gravidade cumulativa, ou seja, a vinda desses ‘peregrinos ascendentes’ em verdadeiras populações para os grandes centros; vale dizer, houve ascensão social, ou, mesmo quando esta não ocorreu, ainda assim, houve aglutinação nos grandes centros. É um fenômeno que subsiste, diante de fluxo contínuo para os grandes centros. Criaram-se megalópoles, as quais, correlatamente, vieram vertiginosamente a perder a qualidade de vida. [13]


Foi depois da segunda guerra mundial que se vieram a perceber, com maior nitidez, pela sua gravidade e dramaticidade, os problemas que passaram a afligir as sociedades existentes e respectivos governos, os quais podem, sinteticamente, ser surpreendidos pelos seguintes indicativos: 1º) desequilíbrio entre os litigantes, constantemente defrontando-se um forte com um fraco (ainda que, na Europa, já em fins do século passado, não fosse esse fenômeno estranho à contextura social, o qual, no entanto e por isso mesmo já encontrava relativo remédio no sistema do Código de Processo Civil austríaco, mercê do reconhecimento de um juiz ativo, onde, sem embargo deste ponto pioneiro, dentre outros, dever tal Código, ainda, ser considerado um sistema mais afeiçoado ao passado) ;  2) convivendo com esse desequilíbrio, que vem subsistindo , passou-se a verificar precariedade, ou  ausência  mesmo, da possibilidade de Acesso à Justiça, para um grande número de pessoas, porque: a) não sabem que tem direitos; b) se, eventualmente tem consciência de que os têm, todavia, não tem condições de arcar com os custos de um litígio; c) e, em função de características, cada vez mais acentuadas, das sociedades moldadas pelo sistema capitalista, em grande número de hipóteses, muitos litígios acabam não sendo individualmente  compensatório,  mesmo que o lesado tenha consciência dos seus direitos, e, ‘teoricamente’ pudesse cogitar de arcar com os ônus de um litígio, como, exemplificativamente, nos casos de relações de consumo, que, frequentemente se caracterizam, da perspectiva do impacto individual como mini-lesões, ainda que, no conjunto dessas, somadas ou aglutinadas (o que é comum) o impacto social seja grande ou imenso . [14] Daí uma das razões de haverem de comportar um tratamento ou uma providência coletiva, de cujos reflexos hajam de emergir benefícios individualizados.


Consequentemente, a chamada igualdade formal, que se constituiu numa grande vitória (senão o núcleo vitorioso da Revolução francesa), na verdade sem descarte de que tenha havido um progresso nessa equalização formal dos membros da sociedade , nem por isto, todavia, proporcionou, esse parâmetro formal, uma almejada igualdade entre os homens [15] tal como se ‘prometia’ pela pregação ideológica liberal individualista.


Conquanto se tivessem verificado progressos na ordem social, particularmente em virtude da industrialização, este fenômeno — se, de um lado, proporcionou que maior número de pessoas pudesse participar de bens materiais, mercê do ‘abastecimento’ possível de grande massa de pessoas — acarretou alterações profundas nos segmentos sociais. Isto tanto mais se verificou porque o individualismo foi também elemento constante do rol de modificações aportadas pela Revolução francesa. [16]


Isto veio a significar que, o sistema jurídico todo, que fora construído com respeito às premissas de verdade do individualismo, o que, por isso mesmo, gerou profunda aversão pelo papel de grupos sociais ——  começou a ser posto em dúvida. O esquema originário, no limiar e sucessivamente, na Idade Contemporânea, no processo civil e da ordem jurídica, era aquele em que indivíduo deveria se defrontar com indivíduo, ainda que um deles pudesse ser forte e outro fraco.


O perfil do processo civil, emergido do individualismo se traduziu em institutos jurídicos que consideravam o indivíduo, enquanto tal, agindo isoladamente. [17] 


Pode-se dizer também que o próprio direito civil e comercial foram assim estruturados, tendo como autor sempre um indivíduo, ou seja, cogitava-se de um indivíduo, isoladamente. [18] 


Isto quer dizer que esses ramos do direito privado desconheciam, em suas fisionomias clássicas outras realidades, que não fosse o indivíduo. E, mais, o ambiente absoluto em que deviam se confrontar os indivíduos era o da liberdade absoluta, o que, diante de um crescente desequilíbrio dos indivíduos, gerou o predomínio dos fortes sobre os fracos e, daí, conseqüentemente, a necessidade de intervenção do Estado.


Ocorre que, se durante muito tempo reivindicações de segmentos sociais desprotegidos (pelas mais variadas razões, rapidamente elencadas, nos seus aspectos mais evidentes), passaram despercebidas, mercê do avultado dos problemas engendrados, tais reclamos não mais poderiam ser ignorados.


A estrutura do direito privado, como se disse, e, os próprios propósitos do legislador, em disciplinando determinados institutos, era a de, considerando somente indivíduo isoladamente, como o sujeito, por excelência, da vida social e econômica, acabar, virtualmente, vindo a favorecer aquele que tivesse bens. Desta forma, para nos servirmos de um exemplo que, pela sua importância prática na ordem econômica, pode-se asseverar, nessa perspectiva exemplificativa (dentre muitas)  altamente expressivo; ou seja, o de que os Códigos clássicos foram diplomas feitos em favor do  fabricantes e fornecedores [19], que eram os que detentinham o poder econômico e que, em função desse sistema, dele se utilizaram para a sua expansão econômica. Por outro lado, a própria responsabilidade, do fabricante, lastreada na culpa, pelos produtos que fabricava (ou pelos serviços que prestasse), não era uma modalidade de responsabilidade, de um teor tal, que viabilizasse, na ordem prática, que os compradores pudessem efetivamente obter indenizações pelos produtos que adquirissem, ainda que danos e prejuízos ocorressem. [20] Somavam-se, portanto, à luz deste exemplo, dois aspectos: 1º) o tipo de responsabilidade, só por causa de culpa, era em si mesmo se comparado com a responsabilidade ‘objetiva’ ou pelo risco civil inócuo; 2º) cumulativamente a isto, havia que se considerar que, pelos incômodos, dispêndios, perda de tempo, etc., não se mostraria compensatória a demanda individual, até mesmo supondo-se que o litigante individual (por exemplo, um consumidor), pudesse resultar vitorioso. [21] Em suma, de certa forma, até a vitória seria sempre uma derrota.


Quer para responsabilizar-se um vendedor, por um vício (=vício redibitório), pela exigüidade do prazo decadencial, em que o vício oculto haveria de ser identificado, quer, ainda, para se pretender responsabilizar um fabricante, por um dano ocasionado pela aquisição de uma coisa (=um dado produto), é de se ter presente que os diplomas de direito material não continham regras que ensejassem uma situação ou condições de viabilidade aceitável, seja para o desfazimento da compra de um produto, seja para o caso em que este produto causando danos, obter-se a reparação destes. Nesta última hipótese, a responsabilidade do fabricante era informada pela teoria da culpa e esta, certamente, comportando diversas excludentes, acabava resultando daí a existência de pouquíssimos responsáveis pelos danos. Por outras palavras, constatava-se um quadro literalmente adverso para que efetivamente pudessem ocorrer indenizações. Simultaneamente, as relações passaram a ser, crescentemente, entre o grupo de agentes econômicos que viria a ser denominado de fornecedores em relação aos que viriam a ser designados de consumidores. A intensidade ou o aumento desse relacionamento, criando o tecido do que viria a ser a chamada sociedade de consumo aumentou, imensamente, o número de negócios, no que estava implicado que, regular-se essa massa negocial pela teoria da culpa, significaria praticamente não responsabilizar o que vendia no consumo.


Quando se fala em  vendedor, no plano do direito comercial, há que, no plano teórico e também no patamar da lei e do sistema do Código do Consumidor, que se traduzir esta expressão, como a significar toda a cadeia de produção, para que na ordem prática, se possam vir a obter resultados que, à luz da consciência contemporânea se reputem aceitáveis e  justos.


De outra parte, a evolução da sociedade veio a identificar outros bens jurídicos a respeito dos quais se pode asseverar que, mais antigamente, eram praticamente inexistentes, ou, ao menos, eram desconsiderados pelas ordens jurídicas. De certa forma, pode-se dizer que eram bens a respeito dos quais não ‘ocorriam problemas’. É de se ter presente, por outro lado, que essas novas realidades, que vieram a obter guarida e proteção, por parte do direito contemporâneo — porque transformados em bens objeto de submissão à categoria dos interesses e direitos difusos — em verdade, em tempos mais antigos,  eram incomparavelmente menos duramente atingidas.[22] E, acentue-se que essa realidade, quando resultou assumida pelos legisladores, o foi, desde logo, destacada e privilegiadamente, passando a refugir ao âmbito do direito privado, uma vez que essas relações, antes disciplinadas pelo direito privado, quando desse egressas ingressaram numa área intermediária entre o direito público e o direito privado, a que se pode designar como direito social, regida por normas de ordem pública. [23]


Estes bens são os relativos ao meio ambiente [24], ao consumidor [25], a bens e direitos de valor artístico, histórico [26], turístico e paisagístico. Recentemente, entre nós, acrescentou-se ao rol de tais bens a possibilidade de proteção a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, com o que se constata uma abertura do sistema jurídico a realidades antes não cogitadas pelo legislador. Ou seja, esta abertura, vem a significar uma ‘válvula’ num sistema jurídico que não mais se reputa ‘fechado’, dado que está receptivo, não só para interesses e direitos difusos, já dele nominalmente constantes, bem como para quaisquer outros. O âmbito da tutela do direito civil é diferente da tutela do meio ambiente, de que cogitamos. Na Itália isto restou bem claro, ao se dizer que “do ponto de vista civilístico, a disciplina do ambiente se circunscreve à tutela da propriedade, tendo em vista imissões”. [27]


3 – Elenco e sucessividade das modificações verificadas no direito processual civil —— Perspectivas defluentes do nosso direito constitucional


As primeiras grandes modificações sofridas pelo direito processual civil — sem ainda, considerarem-se a incorporação ao sistema processual, das ações coletivas — consistiram, fundamentalmente, nos seguintes pontos:


1º) manter, em escala apreciável, o modelo estrutural legado pelo século passado, ainda que com modificações, alteradoras da fisionomia individualista, neste mesmo inseridas: a) o juiz não deve ser um espectador do litígio, senão que deve ser um juiz ativo, o que se traduz na possibilidade de determinar provas, para que tenha condições de conhecer a verdade, da mesma forma que é ao juiz que cabe conduzir o processo [28]; b) o critério, mercê do qual deve o juiz apreciar as provas é o do seu livre convencimento, o que significa e importa, também, modificação do próprio valor que, em outros tempos, aprioristicamente, era atribuído a muitas provas, mercê do que estas deveriam prevalecer, ainda que o juiz, intimamente, pudesse estar convencido de não traduzirem elas a verdade; com isto, afetou-se mais poder ao juiz, com vistas à apuração de uma verdade, dita ‘verdade real’; c) distinguida a relação processual, ou o processo, do seu conteúdo, aquela fica, fundamentalmente, sob a fiscalização do juiz, quer no que diz respeito ao respectivo andamento, quer, ainda e principalmente, no que atine com os requisitos gerais de sua formação, resguardando-se espaço para as partes no que diz respeito ao objeto do litígio, propriamente dito; 2º) se, de uma parte, estas alterações procuraram reequilibrar o processo tradicional, envergando o juiz de maiores poderes, passando e devendo este ser um juiz ativo, de outra parte, todavia, não resolveu os problemas maiores, que constituem na possibilidade de equacionar a defesa de várias situações sociais: A) a dos mais enfraquecidos socialmente; B) aqueles que  difusamente  são os ‘titulares’ de determinados bens, tais como o meio ambiente, os bens estéticos, artísticos, etc., e, mesmo, quaisquer outros  ‘interesses’ que possam merecer proteção jurídica; C) ainda, de uma maneira especial, o consumidor, estava inteiramente desprotegido, pelo sistema individualista.


É certo que essas situações, se são diferentes no que diz respeito aos bens tutelados, encontraram, no que diz respeito à sua proteção (rectius, desproteção) pelo direito material e pelo direito processual clássico, um denominador comum. Ou seja, ‘cumulavam-se’ ausência de proteção pelo direito material e pelo processual, para todas estas situações. [29]


Este denominador comum consistiu, precisamente, na carência de proteção, propriamente dita, e, mais, ou, por isso mesmo, na ausência de uma pauta ou mesmo de indicativos, de como tais bens poderiam ser efetivamente protegidos.


É certo que a chamada dogmática, ou, preferivelmente designável como dogmática tradicional,  não continha quaisquer parâmetros, sequer de ordem histórica, em escala apreciável, para se construir um sistema. Ou seja, não se tinham  dados  ou diretrizes,  sequer, de um sistema  histórico ou mesmo  paralelo  ao sistema tradicional, mercê do qual esses bens lograssem a vir obter proteção jurídica, sob os dois ângulos necessários, vale dizer, no plano do direito material e no patamar do direito processual.


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Legou-nos essa dogmática clássica, todavia, dois dados, curiais, na verdade, mercê de cuja articulação, os bens podem ser objeto de proteção por parte do Direito.


Como primeiro dado, necessário é que o direito defina, ou, ao menos, considere suscetíveis de proteção, determinados bens.


Ou seja, como primeiro dado imprescindível é que determinadas realidade deixem de ser ‘bens’  (ou, realidades) indiferentes ao Direito, passando a ser, tais realidade, então, bafejadas pela ‘atenção’ do legislador, que venham a ser consideradas, bens jurídicos, propriamente ditos, agora, em função de um valor axiológico antes não cogitado ou não percebido.


Como segundo dado, todavia, mesmo que modificado o direito material, seria isso razoavelmente inócuo que aí existissem bens jurídicos, como tais consideradas na pauta do Direito posto, mas se, de outra parte, inexistissem instrumentos processuais eficientes para que esse reconhecimento pudesse ser efetivado na ordem prática.


Por isto é que dissemos que, sem a articulação do direito processual civil ao direito material, na ordem prática, a proteção, somente desta último, revelar-se-ia sem grandes objetivos práticos, porque não ancorada numa tábua instrumentos destinados a tornar eficaz o direito material, construída em torno de valores sociais contemporâneos, em que se pretende traduzir um sentimento mais adequado de Justiça.


POR ISSO, é insuficiente proteger no plano do direito material, se inexistirem formas de viabilizar essa proteção. [30]


Desta forma, os problemas que se colocaram foram os de proteger os que não tinham condições de se defender, pois, nem pelo fato de existirem instrumentos processuais adequados e funcionais, isto virá a significar a efetiva atuação, na ordem empírica, desses instrumentos.


A esta realidade, no Brasil, acorreu a instituição da justiça gratuita. Isto, todavia, tem sido insuficiente, porque muitíssimos, constantemente, não tem consciência de que têm direitos, e, se a tem, não tem condições de ‘tráfego’ social para lograr obter o patrocínio de um advogado.


A Constituição Federal de 1988 previu a criação da Defensória Pública para essa finalidade, com a ambição de poder ver, realmente institucionalizada, a proteção aos incapazes de se defenderem. É o que está previsto no texto constitucional, verbis:


“Artigo 134 – A Defensória Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.


Parágrafo único – Lei complementar organizará a Defensória Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios, e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada aos seus integrantes a garantia de inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais”.


Ainda que isto se constitua numa promessa do legislador constituinte, revela-se como indicativa de consciência plena do reconhecimento dessa realidade de que, parcelas imensas da população são ‘indefesas’, e, evidencia que essa mesma realidade foi digna da atenção do próprio constituinte.


No que diz respeito aos outros bens jurídicos — meio ambiente, ‘bens e direitos’ de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico — ao lado da consideração em lei, nessa mesma lei, adjudicou-se competência a entidades de caráter público e privadas, de molde a que tais bens possam ser defendidos.[31] 


4 – Um modelo de ações coletivas no direito brasileiro


O Código do Consumidor é representativo da forma de como se procurou criar largas condições para a defesa do consumidor em juízo.


O Código do Consumidor, em verdade, procurou estabelecer uma correlação ou articulação entre o  direito processual e o material  (modificando profundamente o direito privado=comercial) preexistente.


Ponto saliente é a sua disciplina de como restaram vedadas práticas abusivas dos fornecedores e estabelecidas, no seu artigo 51, XVI modalidades de nulidades, através de previsão das hipóteses e, a de número XV, estabelecendo que, qualquer violação ao CDC, importa nulidade. Em estabelecendo a responsabilidade pelo fato do produto (pelo risco civil, subtraindo a ocorrência de indenização por danos da esfera da culpa) e garantindo em escala apreciável o consumidor por proteção penal, cuidou, também, do estabelecimento de um sistema geral de ações coletivas.


Este sistema geral de ações coletivas, pode-se acentuar, coincide  com o sentido teleológico daquele estabelecido pela Lei da Ação Civil Pública, ainda que, nesta lei, originariamente, no que diz respeito ao consumidor, não se possa dizer que este, individualmente, estivesse protegido. Foi mercê da articulação da Lei da Ação Civil Pública com o Código do Consumidor, que este (ou, mais precisa e amplamente [32] as vítimas e sucessores destas), acabaram logrando uma proteção ‘cumulativa’, vale dizer, seja através da utilização das ações coletivas, tais como disciplinadas pelo Código do Consumidor, seja, ainda, pela própria procedência da ação civil pública, tendo-se em vista que o Código do Consumidor atribuiu a essa procedência eficácia suficiente para beneficiar individualmente, também. Não há referência mais extensa a consumidor, nos textos da parte processual do Código do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública (tal como alterada pelo Código do Consumidor), senão que a vítimas (e, aos sucessores desta), com o que se constata que se elegeu um designativo que, englobando a figura do consumidor, é, em verdade, mais amplo do que consumidor.


O que se verifica, portanto, é que para poder-se acorrer na defesa de determinados bens, tais como, o meio ambiente, bens de valor artístico ou estético, etc., da mesma forma que, para se poder lograr defender o consumidor, foi necessária a utilização de ações coletivas.


Sem tais ações coletivas, certamente, tais bens não seriam defendidos, à luz do que reclama a consciência social contemporânea. Muito improvavelmente, alguém — mesmo um cidadão consciente e zeloso — virá defender o meio ambiente, ou então, irá pugnar pela preservação de bens de valor artístico ou estético, sem se considerarem as imensas complicações, ou, a inviabilidade mesma, da legitimidade de um só indivíduo para essa finalidade. Da mesma forma, o consumidor isolado, normalmente, não arcaria com os incômodos, custos e tempo de um processo, para se defender de uma compra feita.


Por isto é que necessário se mostrou atribuir legitimidade também a entidades que, pela sua situação no organograma do Estado, e, bem assim, a entidades particulares, mas vocacionadas para a defesa de tais bens jurídicos, pudessem, agir. E, agindo, que o resultado prático viesse a ser compensatório do ponto de vista quantitativo, ou seja, tendo em vista o grande número de beneficiados.


Estas entidades atuam normas de direito material com outro vigor, porque são normas de ordem pública e porque infundem a consciência de vir a ocorrer efetiva responsabilidade, no que diz respeito à sua infringência.


Por isto é que se pode dizer, com propriedade, que a chamada dogmática clássica, inspirada e construída em função do individualismo jurídico e que resultou no positivismo jurídico, encontra-se superada e, esta situação ocorreu diante dessa não mais poder satisfazer às necessidades contemporâneas, animadas por uma consciência coletiva reivindicante e tendo em vista os reclamos de que todas estas situações viessem a ser protegidas. Em obra de nossa autoria e, em seqüência a outras, justificamos o nosso ponto de vista.[33]


5 – A vocação coletiva do processo contemporâneo – O contraste desse instrumental com a situação cultural brasileira, a indicar um rendimento lento e mesmo precário


O nosso legislador constitucional abriu, já nesse patamar constitucional, inúmeros caminhos à tutela coletiva de direitos. Assim, o mandado de segurança, marcadamente nascido com caráter individualista, passou, à luz do disposto no art. 5º, inciso LXX, a comportar, também, abertura à defesa coletiva.


No que diz respeito ao mandado de injunção, destinado à efetivação de norma constitucional programática, na forma do disposto no art. 5º, inciso LXXI, há que ser ele considerado como um meio relacionado com a efetividade do direito constitucional, podendo comportar tutela coletiva.[34]


No que diz respeito à ação de inconstitucionalidade, sofreu ela modificação operacional, porquanto abriu-se o espectro de legitimados, perante o Supremo Tribunal Federal, somando-se à conhecida modalidade de controle difuso, o da inconstitucionalidade por omissão (Constituição Federal de 1988, art. 102, § 2º); mais ainda, previu-se que os Estados Federados (art. 125, § 2º), hajam de prever o mesmo sistema, para controle das leis estaduais ou municipais, em face dos constituições dos respectivos Estados, “vedada a atribuição para agir a um único órgão”.


A oferta de instrumentos processuais, existentes no direito brasileiro é grande, ao lado da GARANTIA NA LETRA DO TEXTO CONSTITUCIONAL de um imenso rol de direitos. Todavia, não é animadora a situação estrutural do Poder Judiciário, como também, precária é a situação de conscientização de grandes camadas da população.


Pois, na verdade, a agilidade do Poder Judiciário, o que exige o seu aumento físico, bem como uma melhoria significativa da consciência de que existem direitos, constituem dois pressupostos vitais, para uma real e efetiva atuação da ordem jurídica, mesmo que esta, como se disse, seja objetivamente rica, de meios processuais e ainda que as previsões de direito material estejam afinadas com as posturas contemporâneas, que se pretendem sintonizadas com um sentimento hodierno de realização de direitos, em nome da Justiça.


O Poder Judiciário não logrou obter, em face da Constituição Federal de 1988, uma verdadeira autonomia financeira. Em longa entrevista publicada o Des. e Prof. Regis Fernandes de Oliveira enfatiza essa realidade, observando que, em seu sentir, a parte do orçamento destinada às justiças — de um modo geral — ficam aquém da metade do que necessário seria.[35]


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6 – O plano do direito positivo, o Estado e a realidade nacional


Se, no plano da ‘promessa da lei’ é grande a oferta, é certo, todavia, que essa ‘oferta’ somente será verdadeira, dependentemente da atividade do Estado, o que inclui o Poder Judiciário, da mesma forma que os demais poderes.


Seria uma profunda inutilidade, um trabalho deste jaez que, se alguma utilidade puder ter, será a de comportar uma ‘leitura iluminada’ — ou, com mais precisão, lamentavelmente ofuscada — pela nossa realidade.


Dissemos que toda a gama de direitos existentes, processuais e materiais, necessitam de um Estado para torná-los existente. Uma pesquisa realizada, na época em que se escreveu este trabalho, todavia, destaca um descrença no papel do Estado. [36]


No dia seguinte à notícia supra referida, noticiam os jornais um plano governamental, com vistas a uma expansão do consumo, mercê de aumento do poder aquisitivo dos salários, com o que se pretende que o comprometimento do acesso à justiça, à segurança e aos serviços básicos, por parte dos pobres, venha a ser superado, com o que se pretende recuperar a cidadania, a muitos segmentos.[37]


É esta uma diretriz correta, ainda que com resultados a muito longo prazo, porquanto o Estado nunca poderá ser forte e acreditado, enquanto não se lograr obter, entre nós, uma razoável ou ponderável homogeneidade social. É, a partir desta, que se poderá, realmente, cogitar com autêntica seriedade, de uma recuperação do perfil do Estado.


Por fim, em todos os campos mas, isto vale de uma forma absoluta e plena para a atividade do Judiciário e para um reequacionamento do direito processual , colocam-se como indispensáveis estatísticas idôneas e outros instrumentos de cognição real da realidade, porquanto, quaisquer reformas ficarão sempre, muito a desejar, na medida em que a realidade indesejada e que se pretende modificar, não esteja corretamente representada perante quem colime reformá-la. O não conhecimento da realidade conduz a reformas baseadas em meras intuições sempre unilaterais, calcadas num empirismo primário, com o risco sério, senão que quase certo de inevitável fracasso, com o que, aquilo que estava imprestável, continuará a não prestar ou não vir a ser bom, como se esperava. É só o pleno e verdadeiro conhecimento da realidade que enseja condições para que se possa reformar para o bom mesmo com a consciência de que não se irá , ao menos a curto prazo, atingir o ideal .


Mas, por outro lado, somente poderá realmente se operar melhoria do Estado, na medida em que haja melhoria das condições de vida da população, ou seja, em função de uma melhoria da Nação.


 


Notas:

[1]. Na verdade, a problemática contemporânea, consiste em tentar equacionar os grandes aspectos referentes, principalmente, àquilo que, há menos de um século, em obra célebre se designou como sendo a ascensão (rebelião) das massas – v. Ortega y Gasset, La Rebelión de las Massas, 30ª ed., capítulo I, p. 49 e em diversas outras obras, deste mesmo autor, dado que essa obra e outras, compõem uma parte central do pensamento do autor espanhol.

[2]. Já se disse, com razão, que nenhum aspecto ou ponto do direito contemporâneo, encontra-se imune a críticas – v. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, Acess to Justice: The Newest Wave in the Worldwide Movement to Make Rights Effective, Buffalo Law Review, vol. 27, número 2 e ‘separata‘, p. 181; este mesmo relatório antecede a obra coordenada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, acess to justice – a world survey, vol. I, p. 1 e separata, Milão, Giuffrè, 1978. Estes temas são retomados na obra de Mauro Cappelletti, The Judicial Process in Comparative Perspective, Oxford, Parte III, II, letra “B”, sob nºs 1/5, pp. 239 e ss., 1989.

[3]. A lei alemã, precedente à vigente (a lei atual é de 01/01/81), aludia, em, relação ao auxílio nas custas, como se constituindo num direito dos pobres. A vigente lei, todavia, alude a uma ajuda para as custas do processo (‘Prozeßkostenhilfe’), com o que se verifica ter banido referência a pobres, e tendo-se de utilizado de uma expressão compatível com o Estado social de Direito. Isto constou, expressamente, do Anteprojeto antecedente a esta lei de 01/01/81 (cf. Birkl, Prozeßkostenhilfe und Beratungshilfe – Kommentar mit Einführung und Gesetzestexten, Munique, 2ª ed., A, 1, b, p. 14; para o direito precedente, v. Bruno Bergfurth, Das Armenrecht, pp. 11, 15 e 17 ss., Munique, 1971. Para uma análise mais ampla e compreensiva deste assunto, v. Mauro Cappelletti, Proceso, Ideologias, Sociedad, Buenos Aires, 1974 (trad. arg. de S. Sentís Melendo e Tomás A. Banzaf), seção 2ª, pp. 131/215 [publicação conjunta das obras Processo e ideologie e Giustizia e società, editadas, respectivamente, em 1969 e 1972].

[4]. As chamadas Cortes Menores, se não podem ser consideradas, inteira e propriamente, como ‘formas alternativas plenas de realização da justiça, entre nós, tem inseridos elementos caracterizadores de modalidades ou formas alternativas de realização da Justiça. Assim é que os Juizados de Pequenas Causas, regulados pela Lei Federal nº 7.244, de 07/11/84, ao lado da sumariedade, do informalismo e da oralidade, assentam-se na conciliação e, se frustrada, no juízo arbitral;  se, somente inócuos se evidenciarem estes meios, e, assim superados, ‘estes dois estágios sucessivos é que se deverá passar à atividade jurisdicional, intrinsecamente estatal  (cf. Lei nº 7.244, cit., arts. 6º e 7º). Diga-se mais que, no âmbito do possível juízo arbitral, há autorização da lei (art. 26) para inobservância da legalidade estrita, pois que se admite a decisão com lastro na eqüidade. Acrescente-se, ainda, a previsão da Constituição Federal de 1988, no seu art. 24, inciso X, em que a competência concorrente, da União e dos Estados, está estabelecida para a “criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas”. Isto significa que, em função dessa previsão, e submissão da distribuição dessa competência, às regras dos §§ 1º a 4º, do mesmo art. 24, é possível que os Estados- federados (e, o Distrito Federal) flexibilizem as suas justiças, adaptando-as às suas peculiaridades locais; ou seja, isto viabiliza que venham a ter maior rendimento. Em obra nossa (cf. Tratado de Direito Processual Civil, vol. I, pp. 257/260/265, São Paulo, 1990, procuramos distinguir o que são processo, normas procedimentais gerais e normas procedimentais particulares ou não gerais, e, em princípio, o que estiver intimamente relacionado com o direito material é processo (v. g., o direito de ação, capacidade e legitimidade das partes, as provas [retrato do pretendido direito material], a sentença). Por ângulo inverso de abordagem, o que diz respeito ao local, tempo e forma dos atos do processo, pode ser objeto de legislação não federal.

[5]. Ademais, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 98, inciso I, estabelece ‘obrigatoriamente’ (pois no caput se diz ‘criarão’ ) a criação, pela União, Distrito Federal, pelos Territórios e pelos Estados a criação de juizados especiais. Estes envolvem a possibilidade de participação de leigos, também. Assentar-se-ão, pelo texto constitucional num tripé de predicados, recomendados porque se mostraram operacionais, como os únicos possíveis caminhos conjugados, para a solução dos problemas da justiça de massa. Ou seja, devem contar com os seguintes elementos: 1) observância da oralidade; 2) o procedimento haverá de ser sumaríssimo; 3) ainda, o julgamento dos recursos haverá de ser feito “por turmas de juízes de primeiro grau”, o que quer significar que a criação destes juizados especiais não virá sobrecarregar os Tribunais. Alude-se no art. 98, I, à conciliação e, ainda, à transação, uma e outra, nesta conjuntura, formas alternativas de realização da Justiça, no sentido de que prescindem de uma decisão judicial, propriamente dita. A transação compreenderá, inclusive, matéria penal.

[6]. Já se acentou que estas ‘Cortes menores’ devem ser consideradas tão dignas quanto as que compõem o que se pode chamar de justiça institucionalizada clássica, pois que, aquelas, são, justamente, uma expressão do Estado social de direito (cf. Roberto Omar Berizonce, Efectivo aceso a la Justicia, p. 118, La Plata, 1987).

[7]. Para uma visão ampla, por juristas argentinos, v. La Justicia entre dos épocas, La Plata, 1980, de autoria de Augusto M. Morelo, Roberto Omar Berizonce e outros.

[8]. Trata-se da obra de v. Mauro Cappelletti e J. A. Jolowics, Public Interest Parties and the Active Role of the Judge in Civil Litigation, Milão, Giuffrè, 1975.

[9]. Trata-se da obra de autoria de Mauro Cappelleti, intitulada The Judicial Process in Comparative Perspective, Oxford, 1989. Aí se estudam a crise dos Governos (dos ‘Governos que procuraram estabelecer o ‘bem estar social’), com imensa proliferação legislativa, com a hipertrofia dos Poderes Executivos (p. 16 ss). Entre nós, conquanto a intenção dos constituintes não fosse essa, a realidade é que se mantém inalterada a tendência, provocadora de tensões, no campo político, da vontade e necessidade do Executivo exercer atividades regulatórias da vida social (v. nota 2, supra e fine). A aspiração a um estado de ‘bem estar social’ conduziu, nos países que já realizaram esse bem estar , em escala apreciável, a problemas no campo do processo (v. a este respeito, Mauro Cappelletti, Acess to Justice and the welfare State, 1981, edição do Instituto da Universidade Européia). Uma síntese desse pensamento encontra-se publicada na Revista de Processo [REPRO], vol. 61 (janeiro-março 1991), com o título O Acesso à Justiça e a função do Jurista em nossa época (pp. 144/160), trabalho de Mauro Cappelletti.

[10]. Por exemplo, nos Estados Unidos, já no final da década de 40, passou -se a disciplinar acuradamente nas Federal Rules as class actions, tendo cabida duas observações: 1ª) esse instrumento não era estranho à tradição do direito norte-americano, que o recebeu do direito inglês; 2ª) e, de outra parte, vieram essas class actions a assumir um papel transcendental, podendo, em realidade, ser apontado como o aspecto mais importante do direito processual contemporâneo desse país. Uma notícia ampla do tema é dada pelo Prof. Adolf Homburger in Klagen Privater im öffentlichen Interesse, Frankfurt, 1975, no seu relatório apresentado em Hamburgo, em 1973, com vistas a fornecer subsídios de direito comparado e intitulado, esse trabalho Private suits in the public interest in the United States of America, onde se evidenciam as peculiaridades das class actions e o caráter privado que as inspira, mas com vistas a litígios marcados pelo interesse público.

As class actions, todavia, não são objeto de louvor generalizado e, principalmente, sem fronteiras, havendo , à luz de tal critério,quem as critique (cf. Mary Kay Kane, Civil Procedure,capítulo VIII, pp. 253 ss., St. Paul., Minn., 1985).

Todavia, já se observou que, possivelmente, esse sistema seria o único apto a realizar e a conduzir, economicamente, para uma realização da Justiça (cf. Harold Koch, Kollektiver Rechtsschutz im Zivilprozeß (Die class action des amerikanischen Rechts und deutsche Reformprobleme), Introdução, p. 9, Frankfurt am Main, 1976).

[11]. A repercussão dos efeitos colaterais de um capitalismo sem barreiras  gerou problemas extremamente sérios, mercê dos segmentos imensos da sociedade, que foram injustiçados. A reação se fez produzir, tanto no campo do processo, mas primariamente, através de proteção do direito material. O Prof. Hein Kötz, nos seus comentários sobre as Normas Gerais de Contratação [alemã], observa que essas normas, representadas pela lei de 9 de dezembro de 1976, são uma decorrência da Revolução Industrial – cf. Hein Kötz, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. I, p. 1.616, Munique, 1984. Este mesmo autor, em trabalho intitulado “Public Interest Litigation: a Comparative Survey”, p. 107 ss, in Mauro Cappelletti, Acess to Justice and the Welfare State, observa que, na Alemanha, tenta-se o transporte das  class actions  norte-americana, para o direito alemão, o que tem encontrado  compreensivelmente resistência dos setores industriais.

[12]. V. a respeito, Karl Larenz, Bürgerliches Gesetzbuch, Einführung, antecedendo à 29ª edição do texto da Beck’sche, p. 12 ss., item III, onde, entre outros aspectos, considera a posição do consumidor  (p. 13), em face das emergidas forças do mercado e do poder dos empreendedores, a demandar formas especiais de defesa.  Jacques Ghestin, no seu Traité de DROIT DIVIL, vol. II, pp. 483 ss., Paris, 1980, aborda o tema das cláusulas abusivas, necessárias à proteção dos consumidores; à p. 486, nº 489, dá notícia da evolução paralela do direito europeu, no particular. Jean Carbonnier, mais amplamente, alude a uma ordem pública de direção, consistente numa intervenção na economia (por certo, economia de escala), com vistas à eliminação de contratos, entre particulares, que pudessem contrariar uma economia nacional (cf. Droit Civil, 12ª ed., p. 138, Paris, 1985). Karl Larenz, in Lehrbuch des Schuldrechts, 11ª ed., vol. II – Parte Geral, § 4º, p. 35 ss., Munique,1976, onde ao tratar da liberdade contratual, considera os seus limites; à p. 42, considera as regras de equalização da Justiça ou a defesa dos socialmente mais fracos. Com isto, conquanto seja a base fundamental e regente do direito contratual a chamada liberdade contratual (autonomia da vontade), ou seja a “liberdade na própria configuração do tipo contratual”; casos há em que o “tipo contratual” é imposto por normas de ordem pública (p. 43), donde existirem contratos com conteúdo proibido, contratos com conteúdos predeterminados pela lei. O Prof. Eike von Hippel, em sua obra  Der Schutz des Schwächeren  (A defesa dos fracos), Tubinga, 1982, onde, analisando todas as categorias dos devem ser havidos como fracos, confere lugar de particular destaque à defesa do consumidor (§ 3º, pp. 29 ss.). Não deixa de considerar como relevante, ou essencial, uma forma de defesa coletiva, do consumidor (p. 38), em especial, nos casos de danos. No direito norte-americano diz-se, em comentário à autonomia da vontade que, quando uma parte puder impor à outra, uma contratação, deveria acudir o legislador, para que isso não ocorresse (cf. John D. Calamari e Joseph M. Perillo, Contracts, p. 8, New York, 1987). Se a igualdade que é pressuposta entre os contratantes se constitui na razão de ser da liberdade, tanto a igualdade, quanto a liberdade, no caso de vendas ao consumidor não são havidas como existentes (v. John D. Calamari e Joseph M. Perillo, op. ult. cit., cap. X (“Consumer Protection”). Para uma visão algo mais ampla, v. o nosso Tratado de Direito Processual Civil, São Paulo, 1990, ‘Considerações Propedêticas’, item 6.1.3 (Os interessses difusos, os coletivos e os direitos do consumidor), pp. 127 ss..

[13]. Em conformidade com dados e projeções atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1980, 67,5% de nossa população vivia nas cidades e 32,5%, nos campos [em 1940, aproximadamente 70% vivia no campo]. A projeção do mesmo IBGE, para o fim desta década, é a de que 80%, estará a viver nas cidades. No Estado de São Paulo, já em 1980, 80% da população, habitava as cidades e, no fim da década, a projeção ou estimativa é a de que 96% habitará as cidades (Jornal ‘O Estado de São Paulo’, p. 2, de 30 de novembro de 1991).

[14]. As sociedades contemporâneas engendraram lesão a determinados bens, em função da necessidade de ‘abastecimento do próprio mercado’. O que se quer dizer é que todas as sociedades contemporâneas, exigem bens de consumo. É evidente que, isto ocorrendo, coloca a todos nós como ‘consumidores necessários’. E, em realidade, não se conhece outra solução. Paradoxalmente, talvez, se pudesse dizer que ser  ‘consumidor’  é encontrar um caminho (ou, ao menos um ’embasamento material’) de realização, o que não deixa de ter, efetivamente, uma dose profunda de verdade. O processo de industrialização, de que depende o mercado, todavia, acabou por lesar outros bens, como, exemplificativamente, o meio ambiente. Se o consumo pode ser reputado um ‘bem’ para a sociedade, e, mesmo que, se assim não for entendido, é, inapelavelmente, uma necessidade, praticamente absoluta; de outra parte, em função do tipo gigantismo dos parques industriais requeridos, para a produção de bens, verifica-se que da mesma realidade, geraram-se dois tipos de problemas: 1º) a figura do consumidor e a percepção de que este haveria de ter mais direitos em face do produtor (e, na verdade, em face da cadeia de produção de bens), pois, os Códigos tradicionais de direito privado (Códigos comerciais) nada lhe outorgavam; e, como os consumidores são toda a sociedade, segue-se que tais direitos somente podiam e podem ser utilmente realizados, sob o ângulo ou mercê de um instrumental de tratamento coletivo; 2º) mas, o próprio sistema econômico instalado, se, de uma parte ‘satisfaz‘,  acaba, de outra banda, por vir a lesar o meio ambiente, o que a seu turno, corporificou outro direito ao meio ambiente ,  o qual, igual e compreensivelmente, deve merecer um tratamento coletivo.

[15]. Na pauta da pregação e da consolidação do liberalismo individualista, podem-se apontar os seguintes pontos: 1) a lei, a que estão submissos Executivo e Justiça, “tem de ser igualmente obrigatória para todos”; 2) pretendia-se que as “leis do Estado correspondessem às leis do mercado:….” (v. Jürgen Habermas, Mudança estrutural da Esfera Pública (Investigações quanto a uma Categoria da sociedade burguesa), pp. 100 e 102, Rio de Janeiro, 1984). Este mesmo autor observa que a transformação sócio-estatal, do Estado liberal de Direito para o Estado social-democrata, conquanto tenha se operado através da continuação do mesmo Estado, necessária se revelou a intervenção do Estado, que pretende realizar a “justiça”, diante do ‘esvaziamento’ da concepção liberal de dois dos seus elementos chaves: a) “a generalidade como garantia da igualdade”; b) “a correção, isto é, a verdade como garantia da justiça”, acrescentando-se que isto ocorreu “a tal ponto que o preenchimento de seus critérios formais não basta mais para uma normatização adequada da matéria” (v. Jürgen Habermas, op. ult. cit., p. 262).

Essa igualdade formal, todavia, não deve subsistir sequer, quando isso não se justificar aos olhos do legislador, vale dizer, quando as situações reais não forem, ou, não puderem ser consideradas iguais, conduzindo esse desequilíbrio, então, à única solução compatível com a própria igualdade; ou seja, a proteção do mais fraco. É o caso, exemplificativamente, da regra do art. 6º, inciso VIII, do Código do Consumidor, em que se admite a inversão do ônus da prova, por decisão do juiz, quando este constatar ser verossímil a alegação,  ou quando o consumidor for hipossuficiente. Esta regra convive com o princípio da igualdade de todos perante a lei, mandamento de raiz constitucional, e, também, explicitamente projetado na regra do art. 125, inciso I, do Código de Processo Civil. Aqui se prescreve que o juiz deve “assegurar às partes igualdade de tratamento”.  Isto porque: a) em face do texto constitucional, justamente porque se trata de igualdade em face da lei,  nesta haver-se-ão de reconhecer situações desiguais, como no caso; e, esse reconhecimento é, em última análise redutível ao princípio da igualdade, pois que, se as partes são desiguais, devem, com tais, ser tratadas, isto é, desigualmente, na medida da desigualdade; b) convive a regra do aludido art. 6º, inciso VIII, pois, com o mandamento do art. 125, inciso I, do Código de Processo Civil, porque o suposto desta igualdade formal é a admissão de uma igualdade substancial . Cada norma terá a sua esfera de aplicação, valendo o mandamento no Código do Consumidor, no âmbito desta lei especial. De resto, a própria igualdade formal, regra geral no sistema do Código de Processo Civil, tem comportado temperamentos. Já a admissão de igualdade substancial, absolutamente refoge das premissas de verdade do Código do Consumidor.  Na hipótese referida [art. 6º, inciso VIII, Código do Consumidor], desde que o juiz constate desigualdade acentuada, tem o dever de inverter o ônus da prova. O requisito de ser  verossímil  a alegação justificará, muitas vezes, o ‘aparente favor’ ao consumidor e o ‘aparente’ desfavor em relação ao fornecer, ou mais precisamente, com referência aos sujeitos que compõem a cadeia da produção. Muitas vezes, por exemplo, um dano causado por fato do produto, envolve, por estar lastreado em alegações altamente plausíveis, mas não definitivamente comprováveis pelo consumidor (ou, por quem por este atue), a necessária inversão do ônus da prova. É compreensível que isto ocorra, porque é o fornecedor (v. g., quando seja o produtor) que conhece intimamente o seu produto, pois que o terá concebido, construído, modificado, pesquisado a respeito, etc. Necessariamente, pois, conhece sempre melhor o produto do que o consumidor, ainda que este seja do ramo. A força do consumidor é sempre menor do que a do produtor (v. a respeito, Eike von Hipel, Der Schutz der Schwächeren, cit., p. 34). Por isto tudo, é que esta aparente discriminação se justifica, precisamente porque não é discriminação ou favorecimento real.

Casos há no Código do Consumidor, todavia, em que a priori  já está determinado o ônus da prova, como não sendo do consumidor , v.g., art. 38 – “O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina”; por outro lado, dispõe o parágrafo único, do art. 36 que “O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem”.

[16]. No Brasil o fenômeno da aglomeração foi verdadeiramente brutal, em torno dos grandes centros. De 1940 a esta época, inverteu-se a proporção que existia. Se em 1940 habitava o campo 70% da população, atualmente, é este percentual (na verdade) maior, o que habita os grandes centros. Vieram em busca de empregos que lhes proporcionassem acesso aos bens da vida e, também, tendo em vista, o descaso, principalmente governamental, pelo campo (v. nota 13, supra).

[17]. Exemplo disto é o art. 6º, do Código de Processo Civil, em que — como regra geral — ninguém pode agir em nome de outrem, salvo se expressamente autorizado por lei.

Esta regra pode ser, realmente, considerada, sistematicamente, no plano do direito infra constitucional, uma regra geral.

Do ponto de vista prático, ou, do ponto de vista quantitativo, possivelmente, será, cada vez mais esvaziada, tanto bastando recordar as regras constitucionais, do art. 5º, incisos XXI, LXX; LXXI [mandado de injunção], que poderá e deverá comportar tratamento coletivo, também; art. 129, inciso III, da Constituição Federal de 1988 [previsão constitucional de titularidade para a propositura da ação civil pública e inquérito civil, pelo Ministério Público, sem a exclusão de outros legitimados art. 129, § 1º, Constituição Federal de 1988]; no que diz respeito a programações de rádio e televisão (que contrariem o art. 221, CF), da mesma forma que, em face da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente, é de se articularem esses textos, com os da Lei nº 8.069/90, art. 201, inciso V.

Isto sem considerar, no próprio plano infra constitucional, a Lei da Ação Civil Pública, o Código do Consumidor, e, ainda, outras leis, que, fundamentalmente, seguem o modelo da Ação Civil Pública, tais como as Leis nºs 7.853/89 (destinada à defesa de pessoas portadoras de deficiência); 7.913/89 (atinente à responsabilidade por danos causados a investidores no mercado de valores mobiliários). Por fim, recordemos a Lei de nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que perfilhou o ‘modelo’ de mais intensa eficácia do processo [possibilidade de tutela específica liminar] e no pertinente às facilidades para o acesso à justiça do Código do Consumidor, e, em certa escala, no que diz respeito à ‘concepção’ das ações coletivas [art. 201, inciso V], tanto bastando, entre outros textos, lembrar os arts. 210 [quanto aos legitimados] ainda que no art. 212, esteja determinada a aplicação do Código de Processo Civil para as ações previstas na lei 8.069]; quanto à tutela específica há coincidência do art. 213, e seu § 1º, da Lei nº 8.069/90 e o Código do Consumidor [art. 84, § 3º, deste último]; quanto ao Fundo, há similaridade, com o Código do Consumidor [v. art. 214, da Lei nº 8.069/90]; similarmente, quanto ao não adiantamento de custas [ art. 219, Lei nº 8.069].

[18]. A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, incisos XVIII/XXI, deixa evidente a maior amplitude do direito processual civil, assentada num autêntico ‘incentivo’ do constituinte, em relação às associações.

[19]. Utilizamo-nos da expressão vendedor para compará-la com a figura do fornecedor (ver para uma análise, desta posição, Carlos Ferreira de Almeida, Os Direitos dos Consumidores, Coimbra, 1982, onde se estudam o princípio da igualdade contratual (=igualdade abstrata) com pertinência ao contrato de compra e venda; o princípio da culpa e a desproteção dos consumidores – capítulo I, pp. 19/20; observa-se que, mesmo em face das lacunas do direito comercial, com a aplicação do direito civil, a situação não se alterava, pois subsistia a posição privilegiada do ‘vendedor’.

Eram o fabricante e o vendedor (aqui compreendidos enquanto albergados, mutatis mutandis, sob o significado de fornecedor), os ‘protegidos’ pelos sistemas clássicos. Atualmente, desde a produção, em todo o seu possível ciclo, a responsabilidade é de índole objetiva, ou pelo risco civil, ou seja, não é uma responsabilidade pautada na teoria da culpa (v. Código do Consumidor, arts. 12 ss. e 18 e ss.). No fundo, poder o consumidor — ou, outrem por ele — atingir, o produtor (ainda que isto fosse possível, mas sempre com lastro na culpa), com supedâneo na responsabilidade objetiva, acaba aproximando os dois elos, mais importantes, quais sejam, a produção e consumo. O ‘menos apenado’ restou sendo o vendedor, justamente porque, pelo menos no que diz respeito ao fato do produto, diretamente nada tem a ver com os danos que um produto ocasione, salvo se insuscetível de identificação o fornecedor. Entre nós, no aludido art. 12, do Código do Consumidor, restou estabelecida a responsabilidade sem culpa; a enumeração, aí constante, é, todavia, taxativa, tendo em vista os fornecedores aí, numerus clausus, nominados. Esta opção foi correta, porque, tratando-se de responsabilidade, independentemente de culpa, a taxatividade, isto é, a indicação do(s) responsável (veis) deve ser inequívoca (v. Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim, James J. Marins de Souza, Código do Consumidor comentado, p. 42, São Paulo, 1990). Já no que diz respeito à responsabilidade decorrente de vício do produto ou do serviço (art. 18, Código do Consumidor), inexiste está indicação subjetiva (op. ult. cit., p. 42). No mesmo sentido, v. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 88, São Paulo, ed. Forense Universitária vários autores, 1991, parte comentada por Zelmo Denari; Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, p. 55, São Paulo, Saraiva, vários autores, 1991, parte que coube a Antonio Hermen de Vasconcellos e Benjamin).

[20]. Autor alemão que escreveu como a defesa dos interesses supra individuais, no processo civil, observa que, inclusive as chances do litigante individual são maiores, em face de leis que fortaleçam a posição destes  (cf. Karl Thiere, Die Wahrung überindividueller Interessen im Zivilprozeß, § 15, II, p. 296, Bielefeld, 1980 [analisando as Normas Gerais de Contratação (alemã)].

[21]. V. Richard A. Posner, Economic Analysis of the Law, § 4.7, p. 80 e ss., Boston e Toronto, 1977, para uma análise e estudo a respeito de não compensarem, para o consumidor, as demandas individuais; v. também, § 4.9, p. 449.

[22]. O que se quer dizer é que na civilização contemporânea encontramo-nos todos, sem exceção, na contingência de termos de ser consumidores. As grandes aglomerações nas cidades engendram outros danos. De outra parte, com o aumento populacional e sua vinda para os grandes centros, isto acarreta a necessidade de produção em massa de bens, até mesmo pela intensificação de um estilo citadino de vida, e, daí, as lesões, mais profundas e permanentes, como, por exemplo, ao meio ambiente, em centros inominavelmente densos.

[23] Isto conduz a que a antiga dicotomia entre direito público e direito privado, historicamente compreensiva do universo jurídico todo, inseriu-se uma terceira categoria, a do direito social, passando-se a visualizar o universo do direito através de três categorias, e, não mais duas.

[24]. A expressão meio ambiente envolve a necessidade de zoneamento ambiental, com planejamento. Compreende a identificação do que seja impacto ambiental. Implica a responsabilidade civil objetiva, com a reparação do dano ecológico. Envolve a vedação de se poluir, tanto a água, como a atmosfera, quanto por resíduos sólidos e por pesticidas. Demanda a proteção de florestas e faunas (v. Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, 1982, passim). A tutela processual fundamental é a prevista na Lei da Ação Civil Pública (art. 1º, I) e é uma tutela de caráter coletivo.

[25]. A situação do consumidor exige toda uma metodologia adequada à sua caracterização como tal e à identificação do rol dos seus direitos (v. amplamente, Eike von Hippel, Verbrauchershutz, 3ª ed., § 1º, III, pp. 25 e ss., Tubinga, 1986). Este perfil, amplo, constante desta obra, evidencia grande coincidência com o que consta do art. 6º, do Código do Consumidor. Como um dos aspectos fundamentais, pode-se apontar a fundamentação da responsabilidade, não na culpa, senão que, num critério objetivo, o que, em vários países, se ensaiou já a partir e no plano do próprio Código Civil (Para uma evolução, no direito italiano, v. Guido Alpa e Mário Bessone, La Responsabilità del Produtore, Milão, 3ª, pp. 113 e ss., 1987; essa foi, também, a tendência do direito alemão, Verbraucherschutz, cit., § 2º, pp. 46 e ss.; atualmente, na Alemanha adotou-se a responsabilidade objetiva – v. Walter Rolland, Produkthaftungsrecht, Munique, 1990, onde está o texto da lei de 15 de dezembro de 1989 – v. § 1º, nº 4, pp. 11 e ss., sendo que, referência ao pensamento de diversos autores, mesmo anteriores a essa lei, aludem a responsabilidade independentemente de culpa (Schmidt-Salzer), ou, a responsabilidade estrita (von Caemmerer), ou, a forma modificada de responsabilidade causal (Brüggemeier); basicamente, no mesmo sentido; na Áustria – cf. Fitz, Purtscheller, Reindl  Produkthaftung,  1988, § 1º, pp. 20 ss., onde se alude à posição objetiva, igualmente, em comentários à lei de 1º de julho de 1988, pp. 20 e ss.; p. 37; da mesma forma; na Espanha, conforme art. 25, do capítulo III, da Lei nº 26 de 1984, in Josep Bujons, Derechos del Consumidor,  Barcelona, s/d, p. 101, a solução é praticamente idêntica. Para uma visão do direito inglês, na mesma linha evolutiva, e em função do Consumer Protection Act 1987 [Parte I] , v. Alistair Clark, Product Liability, Londres, 1989. Para o direito argentino, na mesma linha, cf. Gabriel A. Sitglitz, Protección Jurídica del Consumidor, 2ª ed., capítulo II, pp. 69 e ss., Buenos Aires, 1990, mas sem um sistema inteiramente protetivo.

[26]. Na Itália entende-se que a tutela do ambiente, envolve bens ou aspectos históricos (v. La Tutela dell’ambiente con particolare riferimento ai centri storici – Atti del convegno tenuto a Firenze, 23-31 de outubro de 1976, Giuffrè, 1977, publicada nos ‘Quaderni’della Rivista “impresa ambiente e Pubblica Amministrazione”). Entre nós, a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, art. 1º, III, refere-se, autonomamente, a bens de valor históricos. A publicação contém inúmeras comunicações espanholas, no mesmo sentido.

[27]. Cf. Diritto e ambiente (materiali di dottrina e giurisprudenza), comentados por Mario Almerichi e Guido Alpa, Parte, I – Direito Civil, capítulo terceiro, pp. 179 e ss., Padova, 1984. Observa-se que as relações atinentes ao direito de vizinhança radicam-se, basicamente, numa economia fundada na agricultura (o que, todavia, em nosso sentir, não exaure a questão) [op. ul.t cit., p. 179). Mas é evidente que os problemas relacionados com o meio ambiente, de que ora, especificamente cogitamos, ou com a ecologia, são precipuamente os decorrentes da industrialização. Fala-se, de uma parte, no direito ao meio ambiente como direito da personalidade, e, de outra, que a ofensa ao meio ambiente deve ser unitariamente considerada; ou seja, é esse um bem indivisível (v. Amedeo Postiglione, Il Diritto all’Ambiente, respectivamente, pp. 1/34 e pp. 79 ss., Napoles, 1982. (com referência também ao direito comparado, no mesmo sentido). Isto evidencia tratar-se de um ‘interesse ou direito difuso’, protegível, utilmente, apenas, por tutela coletiva.

[28]. V. a respeito, Mauro Cappelletti, La Oralidad y las Pruebas en el Proceso Civil, estudo sob nºs 4, e 6, p. 119, notas 12, 13, 14 e 15, trad. arg., Buenos Aires, 1972; para a Alemanha, Arwed Blomeyer, Zivilprozeßrecht – Erkenntnisverfahren, 14, II, p. 68, fine, 1963; para Finlândia, v. Tauro Tirkonnen, Das Zivilprozeß Finnlands, cap. IV, p. 16, Helsinki, 1958; entre nós, Barbosa Moreira, Revista de Processo, vols. 11/12, p. 180 (trabalho intitulado ‘O Juiz e a Prova’); para uma notícia sobre o relatório internacional então apresentado, v. Revista de Processo, vols. 11/12 [Congresso Internacional realizado na Bélgica, 1977], p. 117; recentemente, em obra monográfica, na Alemanha, Rolf Stürner, Die Richterliche Aufklärung im Zivilprozeß, II, 3º, p. 11 e notas de roda pé, Tubinga, 1982; entre nós, em sede monográfica, José Roberto dos Santos Bedaque, Poderes Instrutórios do Juiz, nº 3, pp. 54 ss., esp. p. 72, São Paulo, 1991.

[29]. Observa-se que explica, em grande parte, as perplexidades dos juristas contemporâneos, compelidos a encontrar soluções, sem parâmetros ou indicativos prévios, a obra de Theodor Viehweg, Topik und Jurisprudenz, Munique, com 1ª ed. em 1954 e 5ª ed. em 1973, em que, ‘recuperando’ as noções da Tópica de Aristóteles e o pensamento de Cícero (‘De Inventione’], demonstra que, muitíssimas vezes, fica-se na contingência de extrair dos problemas as soluções.

[30]. Saliente-se que, pelas peculiaridades referentes a determinadas situações ou relações jurídicas — tais como as protegíveis pela ação civil pública, pelo Código do Consumidor, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e, outras — que podem ser passageiras, por isso que demandam proteção instantânea, sob pena de perecimento irreversível, criaram-se meios jurisdicionais de caráter cautelar e, até mesmo, da própria possibilidade de tutela liminar do direito (ver o Código do Consumidor, art. 84, § 3º e o Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 213, § 1º, como também, encontra-se enfatizado que a satisfação deve ser específica, ou, se isto for inviável, ainda assim há que se assegurar o resultado equivalente.

[31]. Trata-se da Lei de Ação Civil Pública, Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que sofreu diversas modificações, principalmente, as que lhe advieram da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, quer, melhorando-a, quer, principalmente, articulando-a com o Código de Defesa do Consumidor, de tal forma que os resultados emergentes da procedência de uma ação civil pública pudessem beneficiar o consumidor, enquanto mais amplamente definido como vítima,(ou, os seus sucessores).

[32]. V.g., o Código do Consumidor, no seu art. 103, § 3º, alude, ao disciplinar a procedência, também, da ação civil pública, a vítimas e sucessores.

Isto quer dizer que o significado aí assumido é aquele definido no art. 17, e que diz respeito à disciplina dos arts. 12/16, do mesmo Código. No art. 17 lê-se: “Para os efeitos desta Secão, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”. Não se trata, portanto, exclusivamente,  de consumidor, com o significado do art. 2º, caput, senão que, diz respeito à significação extraível dos arts. 17, e, mais, com a extensão subjetiva indeterminada, do parágrafo segundo, do art. 2º, onde se lê que “Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Este mesmo significado é o que consta do art. 103, inciso III.

[33]. Escrevemos o seguinte: “As construções conceituais do Direito (entenda-se isto como uma expressão de dogmática rígida, de índole predominantemente “dedutiva”, onde era grande a crença na “Justiça” do sistema) , mostraram -se baladas, em largos setores, principalmente, nos setores críticos do Direito (e, são muitíssimos ) – (v. nosso Tratado de Direito Processual Civil, vol. I p. 109, São Paulo, 1990).

[34]. No texto encontra-se exposta opinião diferente da que sustentamos em nosso Tratado de Direito Processual Civil, vol. 1º, São Paulo, 1990 e coincidente com a firmada pelo Supremo Tribunal Federal. Mantemos nosso entendimento, ainda que reconheçamos ser a opinião contrária, apesar de suas variáveis, a que representa a maioria do pensamento doutrinário, ao menos [Para o acórdão do STF, v. a Revista de Direito da Procuradoria Geral – Rio de Janeiro, nº 43, 1991, pp. 219/276].

[35]. Entrevista no Jornal ‘A Folha da Manhã’, de 10 de novembro de 1991, caderno. 4, p. 3.

[36]. Destaca-se uma crença da população de menos de 20% no Exército, no Judiciário, e na Justiça (v. Jornal ‘O Estado de São Paulo’, de 1 de dezembro de 1991, p. 4). Sociólogo que interpretou a pesquisa entendeu que há uma distância da sociedade em relação à nação, a qual, a seu turno, é confundida com o Estado.

[37]. V. Jornal ‘O Estado de São Paulo’, de 2 de dezembro de 1991, Caderno Economia, p. 1.


Informações Sobre o Autor

Arruda Alvim

Advogado em São Paulo — Professor e Coordenador dos Cursos Mestrado e Doutorado (Civil e Processo Civil) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


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