Cidadania e processo: Passos reconstrutivos para uma adequada compreensão da cidadania

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Resumo: O presente artigo tem por desiderato reconstruir a discussão acerca da cidadania, com o propósito de lançar luzes à compreensão do conceito de cidadania pressuposto na Ação Popular, regulada pela Lei 4.717 de 1965. Para tanto, foi importante resgatar a essência do conceito de cidadania que vigorou na Antigüidade Clássica e em Roma, a fim desafiar e de afastar os discursos doutrinários que trabalham a cidadania no Brasil. Pretendemos, nesse sentido, assentar a discussão da cidadania em bases procedimentais, à luz do paradigma de Estado Democrático de Direito e do discurso, como descrito por Jürgen Habermas.


Palavras-chave: Cidadania – Democracia – Processo – Teoria do Discurso


Sumário: 1. Introdução; 2. As bases reconstrutivas para um novo estudo da cidadania: considerações introdutórias; 3. A cidadania na antigüidade clássica e em Roma; 4. A necessidade de superação do modelo descrito por Marshall; 5. A atualidade da cidadania; Conclusão; Referências Bibliográficas.


1. Introdução


O presente artigo pretende assentar as bases para uma adequada leitura da cidadania enquanto conceito afeto às garantias processuais. Para tanto, pretendemos resgatar a essência do conceito de cidadania que vigorou na Antigüidade Clássica e em Roma, a fim de compreender o real alcance das ações de natureza popular, já que era somente o cidadão, como participante e efetivo defensor das coisas públicas, o legitimado para proteger os direitos da coletividade.


Importante ressaltar, demais disso, a necessidade de desafiar e de afastar os discursos doutrinários que trabalham a cidadania no Brasil, buscando demonstrar a premência de se reconstruir modelos como o descrito por Marshal. Pretendemos, nesse sentido, assentar a discussão da cidadania em outras bases, agora, procedimentais, à luz do paradigma de Estado Democrático de Direito e do discurso, como descrito por Jürgen Habermas.


2. As bases reconstrutivas para um novo estudo da Cidadania: considerações introdutórias


Como nos ensina José Alfredo de Oliveira Baracho (1995, p. 1), “O conceito de cidadão e cidadania vem adquirindo particularidades, que não se esgotam na compreensão de ser cidadão aquele que participa dos negócios da cidade”.


Entretanto, percebemos que as expressões cidadão e cidadania têm sido rotineiramente empregadas nos discursos de justificação de validade normativa sem maiores reflexões, destituídas de uma teorização adequada, capaz de permitir uma compreensão dos limites e do real sentido do princípio que as envolve.


Esse é o caso, por exemplo, do nosso ordenamento jurídico, quando concede legitimidade a qualquer cidadão para propor ação popular contra ato lesivo ao patrimônio público.


Na atualidade, a banalização do termo cidadania pode ser melhor evidenciada nas palavras de José Murilo de Carvalho:


“O esforço de reconstrução, melhor dito, de construção da democracia no Brasil ganhou ímpeto após o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforço é a voga que assumiu a palavra cidadania. Políticos, jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples cidadãos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política. Não se diz mais, “o povo quer isso ou aquilo”, diz-se “a cidadania quer”. Cidadania virou gente. No auge do entusiasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Constituição Cidadã” (CARVALHO, 2003, p. 7).


Retomar a discussão da cidadania na atualidade, portanto, é preencher um conceito esvaziado pelo uso indevido.


É importante relembrar, da mesma feita, que à luz do direito processual constitucional “A cidadania para sua efetivação plena, demanda múltiplas incursões sobre o conceito de garantia e dos princípios constitucionais do processo” (BARACHO, 1995, p. 9), o que nos impulsiona a refletir sobre a concepção de cidadão inserida na lei que regulamentou o instituto da ação popular, Lei 4.717 de 1965.


Por esta razão, no presente trabalho, o tema será enfrentado com a necessária seriedade, à luz das indagações acerca da interpretação hodierna de cidadania e em que paradigma este princípio deve ser construído.


Para tal, colocamos a seguinte pergunta: o que é ser cidadão?


Apesar de não existir, até hoje, uma teoria da cidadania, encontramos importantes estudos que esclarecem as razões da atualidade do tema neste início de século.


Podemos afirmar, de antemão, que o conceito de cidadania tem sido objeto de debate desde a era das revoluções burguesas. A discussão permaneceu, porém, durante muito tempo, quase que exclusivamente restrita à seara da teoria política e da filosofia política.


No campo da sociologia, o conceito somente recebeu tratamento sistemático no final da década de 1940, a partir dos estudos de T. H. Marshall, uma vez que suas formulações trouxeram valiosa contribuição para o estudo do tema.


Para o autor, uma adequada análise do termo cidadania deve, antes de mais nada, perpassar três perspectivas analiticamente distintas: a civil, a política e a social (SILVA, 2000, p. 127).


Na esteira da teoria desenvolvida por Marshall, Jaime Pinsky (2003, p. 10) esclarece que ser cidadão é o mesmo que possuir direito à vida, à liberdade e à igualdade perante a lei, em outras palavras, é ter direitos civis.


Além de ter direitos civis, não podemos nos esquecer que o conceito de cidadania também invade a esfera dos direitos políticos. Assim, a idéia de cidadania pode estar associada à participação no destino da sociedade, ou seja, ao ato de votar e de ser votado.


Contudo, como é cediço, os direitos civis e o direitos políticos por si só não são suficientes para assegurar a democracia. É preciso levar em consideração a perspectiva social do termo cidadania, traduzida na garantia de participação do indivíduo na riqueza coletiva: no direito à educação, ao trabalho, à saúde e a uma velhice digna.


Em síntese, exercer a cidadania plena é ter a garantia do cumprimento e do gozo de direitos civis, políticos e sociais.


Cabe advertir que cidadania não é um conceito estanque, mas uma definição histórica, o que significa dizer que seu sentido varia no tempo e no espaço.


Como assevera BARACHO, a aquisição da cidadania é um fenômeno que se concretiza paulatinamente na história. Nesse sentido, o autor escreve que:


“Os homens passaram da situação de sujeitos para a de cidadãos, sendo que, na França, somente em 1830 a palavra “sujeito” desapareceu dos documentos oficiais. O cidadão […] introduziu com ele a democracia; não há cidadãos sem democracia ou democracia sem cidadãos. O cidadão não aparece de um momento para outro nos Estados Unidos, em 1776, ou em Paris, em 1789. Em séculos precedentes, em determinadas sociedades, as pessoas adquirem progressivamente os componentes de certo estatuto, que limita o posicionamento do poder: os do diálogo, os de participação e sobretudo os da proteção ao arbítrio. Consolidam-se, em certas ocasiões, os processos concretos por meio dos quais o cidadão participa do poder” (BARACHO, 1995, p. 9).


Nesse diapasão, como afirma Jaime Pinsky (2003, p. 10), não se pode pensar em uma seqüência única ou determinista para a evolução da cidadania em todos os países. Como conceito histórico, ser cidadão no Brasil não é o mesmo que ser cidadão na Alemanha ou nos Estados Unidos. Isso porque são diferentes não somente as regras que definem quem é ou não titular da cidadania, se por territorialidade ou por laços de sangue, “[…] mas também pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais contemporâneos”.


A própria prática da cidadania dentro de cada Estado-Nação, nos últimos duzentos ou trezentos anos, nos traz dados importantes sobre sua evolução. Isso ocorre, por exemplo, quando se analisa uma maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania, o que conseqüentemente nos revela uma abertura maior ou menor do status da cidadania para a comunidade. Da mesma feita, colhemos informações preciosas quando analisamos o grau de participação política de diferentes grupos, como a mulher e o analfabeto. Além, é claro, da análise dos direitos sociais assegurados pelos Estados, que inclui segurança, bem-estar econômico e o direito de compartilhar da riqueza socialmente produzida.


Sobre a evolução do conceito de cidadania, na lição de PINSKY, temos que:


“A aceleração do tempo histórico nos últimos séculos e a conseqüente rapidez das mudanças faz com que aquilo que num momento podia ser considerado subversão perigosa da ordem, no seguinte seja algo corriqueiro, “natural” (de fato, não é nada natural, é perfeitamente social). Não há democracia ocidental em que a mulher não tenha, hoje, direito ao voto, mas isso já foi considerado absurdo, até muito pouco tempo atrás, mesmo em países tão desenvolvidos da Europa como a Suíça. Esse mesmo direito ao voto já esteve vinculado à propriedade de bens, à titularidade de cargos ou funções, ao fato de se pertencer ou não a determinada etnia, etc. Ainda há países em que os candidatos a presidente devem pertencer a uma determinada religião (Carlos Menem se converteu ao catolicismo para poder governar a Argentina), outros em que nem filho de imigrante tem direito a voto e por aí afora. A idéia de que o poder público deve garantir um mínimo de renda a todos os cidadãos e o acesso a bens coletivos como saúde, educação e previdência deixa muita gente ainda arrepiada, pois se confunde facilmente o simples assistencialismo com dever do Estado” (PINSKY, 2003, p. 10).


Conquanto não seja possível detectar uma seqüência única e inequívoca para descrever a evolução da cidadania ou, em outros termos, embora não se possa falar em prioridade lógica de uma das perspectivas da cidadania (civil, política e social) em relação às outras, é possível, porém, afirmar que, analiticamente, cada tipo de cidadania pertence a uma etapa do processo de desenvolvimento civilizatório.


Assim, apesar do elemento social da cidadania ser contemporâneo ao civil e ao político, é somente no final do século XIX que se pode entender os direitos sociais como uma categoria diferenciada dos demais direitos.[1]


Ainda inseridos nessa perspectiva histórica, podemos afirmar, também, que a cidadania moderna é fruto das revoluções burguesas, mais precisamente dos processos de luta que culminaram na Independência dos Estados Unidos da América do Norte e na Revolução Francesa. A partir daí, alterou-se o princípio da legitimidade que vigia até então, baseado nos deveres do súdito, que passou a ser regido pela idéia de direitos do cidadão.


Não se deve esquecer, ademais, que a construção do status de cidadão está intimamente relacionada com a transformação do Estado, do início da Era Moderna, em Estado nacional e à formação de uma consciência nacional que surge como uma nova forma de integração social.


Como evidencia Habermas, o grande mérito do Estado nacional foi ter resolvido dois graves problemas: “com base em um novo modelo de legitimação, ele tornou possível uma nova forma de integração social mais abstrata”.


Nessa linha, o autor assevera que:


[…] o problema da legitimação resultou de que se desenvolveu, na seqüência da cisão entre as confissões, um pluralismo de visões de mundo que pouco a pouco privou a autoridade política de sua base religiosa, a “graça divina”. O Estado secularizado precisava legitimar-se a partir de outras fontes. O outro problema da integração social, igualmente simplificado, passou a estar relacionado à urbanização e modernização econômica, com a expansão e aceleramento da circulação de produtos, pessoas e informações. A população foi arrancada dos liames sociais organizados em estamentos, existentes no início da Era Moderna, e viu-se assim, ao mesmo tempo, posta em movimento e individualizada. Aos dois desafios o Estado Moderno respondeu com a mobilização política de seus cidadãos. Pois a consciência nacional emergente tornou possível vincular uma forma abstrata de integração social a estruturas políticas decisórias modificadas. Uma participação política que se impõe passo a passo cria com o status da cidadania uma nova dimensão da solidariedade mediada juridicamente; ao mesmo tempo, ela revela para o Estado uma fonte secularizada de legitimação” (HABERMAS, 2002, p. 127).


HABERMAS ressalta, ainda, que alguns direitos já vinham sendo confiados aos indivíduos, como é o caso dos direitos de nacionalidade, em outras palavras, o direito de integrar o Estado. Contudo, integrar o Estado, no início da Era Moderna, não significava mais que a submissão ao poder estatal, pois é somente com a transformação do Estado Absoluto em Estado Democrático de Direito que:


“Deixa de prevalecer esse caráter de concessão que se faz ao indivíduo, de que ele possa integrar uma organização, para então prevalecer a condição de membro integrante do Estado conquistada agora […] por cidadãos participantes do exercício da autoridade política” (HABERMAS, 2002, p. 129).


Assim, com apoio em Jaime Pinsky (2003, p. 10), pode-se afirmar que, numa perspectiva ampliada, “a cidadania é a expressão concreta do sentido da democracia”. Talvez por essa razão, segundo o supramencionado autor, todos os tipos de luta tenham sido travadas no mundo ocidental, a fim de que a prática e o conceito de cidadania fossem ampliados e estendidos às mulheres, às crianças, às minorias nacionais, étnicas, sexuais e etárias.


Não podemos nos esquecer que, na atualidade, a internacionalização do capital, os avanços tecnológicos recentes e a criação de blocos econômicos e políticos, causam a crise da autonomia dos Estados-nacionais, desafiando a construção de uma cidadania global.


Além das considerações iniciais já empreendidas nessa etapa introdutória, é importante esclarecer que duas compreensões concorrem no estudo da cidadania.


Na primeira concepção, o status de cidadão recebe influência determinante da tradição liberal iniciada com Locke e é visto de forma individualista e instrumental. Para o liberalismo, os indivíduos são vistos como pessoas privadas, externas ao Estado, com interesses pré-políticos.


No segundo modelo, prevalece uma concepção comunitarista oriunda da tradição da filosofia política proveniente de Aristóteles. Para o referido autor, temos, aqui, uma cidadania ativa e não mais passiva como no primeiro caso. Os indivíduos estão integrados em uma comunidade política e sua identidade pessoal é construída em função das tradições e instituições comuns.


HABERMAS (1997, p. 286) assevera, com apoio em Charles Taylor, que se trata, na verdade, de dois modelos de cidadania. Um baseado nos direitos individuais e no tratamento igual; o outro, definido pela participação no governo como essência da liberdade, como componente essencial da cidadania.


Quanto ao desenvolvimento da cidadania no Brasil, podemos adiantar que os caminhos percorridos aqui não foram os mesmos pensados por Marshall. Na realidade, o percurso da cidadania na Inglaterra, como descrito pelo autor, foi apenas um entre tantos. Tanto a Alemanha, quanto a França e os Estados Unidos seguiram seus próprios caminhos. E, nesse caso, o Brasil não será exceção.


Feitas as principais ressalvas sobre o tema em estudo, passaremos agora a analisar as várias manifestações da cidadania ao longo do tempo, fazendo referência, inclusive, aos seus antecedentes na Antigüidade Clássica e em Roma.


3. A Cidadania na Antigüidade Clássica e em Roma


Por que refletir sobre a cidadania na Antigüidade? Norberto Luiz Guarinello preocupou-se em responder essa pergunta.


O autor nos ensina que os primeiros pensadores que se debruçaram sobre o tema cidadania, com certeza, buscaram inspiração em certas realidades do mundo greco-romano.


Assim, em primeiro lugar, é relevante refletir sobre a cidadania na sua fase “pré-histórica”, porque herdamos desse período a idéia de democracia, de participação popular nos destinos da coletividade, de soberania do povo e de liberdade.


Em segundo lugar, como demonstrado no primeiro capítulo deste trabalho, o instituto da ação popular na contemporaneidade encontra fecunda referência no Direito Romano, uma vez que várias eram as ações conferidas aos cidadãos na proteção dos lugares e dos bens de interesse público.


O status de cidadão, como participante e efetivo defensor das coisas públicas, sempre esteve nitidamente vinculado à possibilidade de demandar em face daquele que ofendesse os interesses da coletividade.


Por essa razão, é imprescindível entender qual era a concepção de cidadania naquele momento, para compreender o real alcance do instituto das ações de natureza popular. Em outras palavras, quem, na verdade, estava legitimado a propor as referidas ações.


Cabe advertir que o estudo da cidadania, aqui, tem por objetivo trazer contribuições à compreensão das ações populares da época. Nesse sentido, é fundamental distinguir a idéia de cidadania do passado e a concepção de cidadania do presente. Como o estudo deste período perpassa diferentes culturas, povos, hábitos, leis, identidades, ritmos históricos e estruturas sociais ao longo de quase dois milênios, qualquer definição tem de ser, pela força das circunstâncias, parcial e genérica. E, como estamos em busca de uma compreensão mais abrangente do que foi a cidadania no mundo greco-romano, esta será a opção metodológica que seguiremos neste texto. Contudo, estamos conscientes das perdas que este enfoque pode acarretar para o entendimento de cada caso particular.


Segundo GUARINELLO, podemos afirmar que a imagem que temos da cidadania, tanto na Antigüidade quanto em Roma, é falsa e ideali[2]zada. Para o autor, a cidadania, como a entendemos no mundo contemporâneo, é um fenômeno único. Nesse sentido:


“Não podemos falar de continuidade do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. São mundos diferentes, com sociedades distintas, nas quais pertencimento, participação e direitos têm sentidos diversos” (GUARINELLO, 2003, p. 29).


Isto, porque, o palco dos acontecimentos no qual se desenvolveu a noção de cidadania foi a cidade-estado[3] clássica, que em muito se diferencia dos Estados-nacionais contemporâneos.


GUARINELLO (2003, p. 35) afirma que pertencer à comunidade da cidade-estado não era algo fácil, “mas um privilégio guardado com zelo, cuidadosamente vigiado por meio de registros escritos e conferido com rigor”.


Em geral, prevalecia no processo de construção das várias identidades particulares uma tendência ao fechamento, demonstrando que não se pode pensar na formação dessas comunidades somente em termos de inclusão, pois o fechamento da cidade-estado implicava, inevitavelmente, à definição do outro, isto é, à exclusão. Na prática, contudo, as comunidades cidadãs formaram-se de modos bem distintos, o que dificulta encontrar um princípio universal que possa descrever a sua dinâmica. Em Atenas, por exemplo, até o século V a. C., o status de cidadão apenas foi concedido aos filhos de pai e mãe atenienses. Em contrapartida, Roma sempre experimentou uma maior abertura, tanto no plano externo, ao unir as cidades submetidas na Itália a um amplo sistema de alianças e depois à plena cidadania, em 89 a. C., quanto no plano interno, ao integrar no corpo dos cidadãos os escravos libertos por seus senhores.


Embora possamos identificar processos distintos de maior ou menor exclusão e inclusão no espaço público, é certo afirmar que as cidades-estado conviveram sempre com um grande número de excluídos. Estrangeiros domiciliados, grupos subjugados pelo domínio militar e econômico, mulheres, jovens, velhos, camponeses sem terra, artesãos e comerciantes, enfim, muitos eram os que participavam da sociedade com seu trabalho e recursos, mas poucos integravam o conjunto dos cidadãos.


Tal fato ocorria, principalmente, porque a cidadania antiga era transmitida ora por vínculo de sangue, ora como homenagem a uma pessoa importante ou ora como retribuição a um favor prestado à coletividade.


Com efeito, muitas foram as lutas travadas pelos excluídos em busca da cidadania. GUARINELLO sintetiza três casos que bem retratam os embates dos não-cidadãos:


 


“O primeiro é o dos estrangeiros domiciliados, presentes sobretudo nas cidades portuárias e comerciais, como Atenas. Embora integrados à vida econômica e à teia de relações sociais, eles não faziam parte da população cidadã. Outro exemplo eram os grupos submetidos em bloco ao domínio e controle da comunidade cidadã, mormente após uma conquista militar, como os hilotas e periecos de Esparta — situação que se repetia em muitas colônias fundadas pelos gregos, nas quais o trabalho fundamental das terras agrícolas era realizado por comunidades subalternas. Ao contrário dos estrangeiros domiciliados, que se acomodavam com sua situação, essas comunidades foram fonte permanente de conflitos com a cidade-estado dominadora, quase sempre em busca da independência coletiva e às vezes de integração. Havia, por fim, os escravos, cuja situação no seio das cidades-estado era peculiar. Encontravam-se sob o poder de seus donos e eram regidos por regras privadas, sem controle cívico, acesso à esfera pública ou quaisquer direitos. Nas cidades mais ricas, em certos momentos, chegaram a compor um contigente expressivo da população — um terço ou até mais. Ocupavam todo tipo de ofício, agrícolas e artesanais, e monopolizavam os serviços domésticos. Submetidos a um poder sem limites, sem lei, ao arbítrio de seus senhores, os escravos foram, por boa parte da história do mundo antigo, fonte de conflitos intensos — desde lutas domésticas contra seus senhores até grandes sublevações, como a famosa revolta de Espártaco, na Itália romana. Esses conflitos, no entanto, jamais obtiveram sua integração à comunidade cidadã nem tampouco a abolição da escravidão, mas apenas a liberdade individual dos revoltosos” (GUARINELLO, 2003, p. 36).


E continua:


“Todas as cidades-estado, portanto, conviveram ao longo de suas histórias com inimigos internos por vezes formidáveis. O processo inclusivo de constituição das comunidades cidadãs forjou-se simultaneamente a um brutal processo de exclusão interna que se tornou cada vez mais agudo, na medida em que algumas dessas cidades cresceram em poder e complexidade social” (GUARINELLO, 2003, p. 36).


Por outro lado, a cidadania em Roma sempre foi mais aberta se comparada ao modelo de participação na esfera pública desenvolvido em outras cidades-estado. Cabe esclarecer que o império formado a partir de Roma unificou todas as demais cidades-estado e toda a bacia do Mediterrâneo, consolidando a maior aliança que o mundo antigo jamais conheceu. As bases de tal supremacia assentavam-se no esforço militar conjunto e numa política de distribuição eqüitativa dos ganhos com a conquista militar, ou seja, mediante a distribuição das terras subjugadas entre o conjunto dos cidadãos.


Entretanto, o processo de expansão e o crescente afluxo de riquezas intensificaram as tensões no interior da comunidade romana. E o ponto central dos conflitos foi a má distribuição das riquezas conquistadas, o que causava o benefício de poucos em detrimento de muitos. Tais desigualdades reforçaram os fortes conflitos internos nas últimas décadas do século II a. C., movimento que culminou, em 89 a. C., na concessão da cidadania romana a todos os habitantes da cidade da Itália, preservando-se, em contrapartida, a cidadania das comunidades originárias.


Nesse específico momento da história romana, “a cidadania deixou de representar a comunidade dos habitantes de um território circunscrito, para englobar senhores de um império, fossem ricos ou pobres, habitassem em Roma, na Itália, ou nos territórios conquistados” (GUARINELLO, 2003, p. 44).


Contudo, o Principado instaurou nas décadas finais do século II a. C. uma nova era, na qual o conceito de cidadania muda, mais uma vez, de concepção.


Várias foram as causas dessa mudança. Podemos, entretanto, destacar as mais importantes.


Primeiramente, o Principado trouxe uma profunda redução dos espaços de participação política, uma vez que os pólos de poder passaram a ser ocupados pelo imperador, símbolo da unidade do Império, e por seu exército, esteio de sua dominação.


Quanto à aquisição do status de cidadão, percebemos dois significativos movimentos que deram novos contornos à cidadania romana.


O primeiro diz respeito à cidadania enquanto forma de privilégio. Bem se sabe que a cidadania já possuía essa característica no passado. Porém, a forma de sua aquisição se diversificou (podia ser adquirida por hereditariedade, concessão, alforria, individualmente ou coletivamente), vinculando-se, agora, a relações pessoais e não mais públicas, como as que se estabeleciam entre o senhor e o seu escravo ou entre o próprio imperador e os seus súditos.


O segundo ponto a ser destacado atine à concessão da cidadania a todos os habitantes do império. Tal medida foi, ao mesmo tempo, uma conquista e uma perda, pois, com a centralização do poder na figura do imperador, o estatuto de cidadão perdeu sua capacidade de representar, politicamente, uma comunidade de direitos e deveres. Nas palavras de GUARINELLO (2003, p. 44), “as prerrogativas do cidadão romano desapareceram, na medida em que todos se tornaram súditos do imperador”. Nesse diapasão, como o estatuto de cidadão foi paulatinamente perdendo a sua força, o poder passou a ser articulado por grupos de pressão, vinculados à riqueza e influências pessoais, que “passaram a garantir o acesso privilegiado à justiça (que deixava de ser igualitária) e às benesses distribuídas pelo Estado, ao mesmo tempo em que o fosso entre os mais ricos e os mais pobres não cessava de aumentar” (GUARINELLO, 2003, p. 44).


O autor referido continua sua análise, asseverando que:


“Com o tempo, apenas os escravos permaneceram como estrangeiros dentro do Império, regidos não por normas públicas, mas pelo arbítrio individual de seus senhores. A própria comunidade cidadã acabou por dividir-se em duas classes, juridicamente distintas e com seus direitos diferenciados: os chamados mais honestos, os ricos, e os denominados humildes, os mais pobres, cuja situação econômica e social não os distinguia muito da posição dos escravos” (GUARINELLO, 2003, p. 44).


Pedro Paulo Funari, ao escrever sobre a cidadania entre os romanos, corrobora o entendimento exposto, ao afirmar que:


“No ano de 212, o imperador Caracalla estendeu a cidadania romana a todos os homens livres do mundo romano, prenunciando a generalização dos direitos de cidadania entre milhões de pessoas. Contudo, os poderes imperiais aumentaram e, como vimos, todos se transformaram em súditos do dominus, do imperador patrão que tudo podia. A universalização da cidadania romana levou, também, à sua desvalorização e à criação de novos tipos de diferenciações sociais. Ricos e poderosos passaram a ser designados como honestiores, os outros foram chamados de mais humildes (humiliores)” (FUNARI, 2003, p. 75).


Sem embargo das autorizadas lições acima expendidas, embora a cidadania tenha perdido seu caráter comunitário ao longo de sua caminhada, não podemos esquecer que a história da cidadania antiga somente pode ser compreendida se a considerarmos dentro de um longo evolver histórico, que desemboca no Império Romano. Sendo assim, podemos vislumbrar dois momentos da cidadania nesse processo. Se, no início, vigorava a concepção de cidadania como idéia de pertencimento a uma pequena comunidade agrícola, ainda no interior das cidades-estado, com o correr dos tempos, ela passa a representar uma fonte de reivindicações importante e, ao mesmo tempo, de conflitos, na medida em que diferentes leituras do que fossem os direitos e as obrigações dos cidadãos entravam em tensão. Ademais, a conquista da cidadania esteve, como pudemos brevemente demonstrar, associada às reivindicações de participação no poder, igualdade jurídica, econômica, até que um poder superior, representado pela figura do imperador, se impõe sobre as comunidades fechadas que, até então, se organizavam como cidades-estado. O que se percebe é que, de uma cidadania comunitária, a cidadania acabou por se transformar em uma cidadania amorfa, na fase instituída pelo Império Romano, uma vez que não era mais capaz de ser fonte de reivindicações, em outras palavras, de representar sua essência verdadeiramente participativa.


 Não devemos, da mesma feita, desprezar o complexo conjunto de instituições de cidadania ativa conquistados por mais de dois séculos pela vida política ateniense (de 501 a 338 a. C.) e posteriormente com a fundação da república romana.


É cediço que os povos da Antigüidade clássica presentearam a modernidade com o legado de uma experiência notável de limitação institucional do poder governamental, fundada no princípio de supremacia da lei e na participação ativa do cidadão nas funções de governo.


Fábio Konder Comparato ilustra com precisão os mecanismos de cidadania ativa desenvolvidos por esses povos, relembrando que:


“Basicamente, a democracia ateniense consistiu na atribuição ao povo, em primeiro lugar, do poder de eleger os governantes e de tomar diretamente em assembléia (a Ekkésia) as grandes decisões políticas: adoção de novas leis, declaração de guerra, conclusão de tratados de paz ou de aliança. Os órgãos do que chamamos hoje de Poder Executivo eram, aliás, em Atenas, singularmente fracos: os principais dirigentes políticos, os estratecos, deviam ter suas funções confirmadas, todos os meses, pelo Conselho (Boulê).


O regime de democracia direta fazia, ainda, em Atenas, com que a designação dos juízes se realizasse por sorteio, e o povo tivesse competência originária para julgar os dirigentes políticos e os réus dos principais crimes. Mesmo nos processos que se desenrolaram perante os juízes oficiais, qualquer das partes tinha o direito de recorrer da sentença para um tribunal popular (ephesis).


A soberania popular ativa completava-se com um correspondente sistema de responsabilidades. Era lícito a qualquer cidadão mover uma ação criminal (apogogê) contra os dirigentes políticos, e estes, ao deixarem seus cargos, eram obrigados a prestar contas de sua gestão perante o povo. Pela instituição do grapê paranomôn, os cidadãos tinham o direito de se opor, na reunião da Ekklésia, a uma proposta de lei violadora da constituição (politéia) da cidade, ou, caso tal proposta já tivesse sido convertida em lei, de responsabilizar criminalmente o seu autor.


na república romana, a limitação do poder político foi alcançada, não pela soberania popular ativa, mas graças a instituições de um complexo sistema de controles recíprocos entre os diferentes órgãos políticos. Escrevendo no segundo século antes de Cristo, o historiador grego Políbio não hesitou em atribuir a esse refinado mecanismo de checks and balances a grandeza de Roma, que em menos de cinqüenta e três anos lograra estender a sua dominação “a quase totalidade da terra habitada, fato sem precedentes”.


Três eram as espécies tradicionais de regimes políticos, citados por Platão e Aristóteles: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Para Políbio, o gênio inventivo romano consistiu em combinar esses três requisitos numa mesma constituição, de natureza mista: o poder dos cônsules, segundo ele, seria tipicamente monárquico; o do senado, aristocrático; e o do povo, democrático. Assim é que o processo legislativo ordinário (para a edição das lege latae, também chamadas leges rogatae) era de iniciativa dos cônsules, que redigiam o projeto. O projeto passava em seguida ao exame do Senado, que o aprovava com ou sem emendas, para ser finalmente submetido à votação do povo, reunido nos comícios.


Tanto os cônsules quanto os tribunos nunca exerciam isoladamente as suas funções, mas eram sempre nomeadas duas pessoas para o mesmo cargo. Se um desses altos funcionários não concordava com um ato praticado pelo outro, podia vetá-lo (intercessio). O mesmo poder de veto foi atribuído aos tribunos da plebe, em relação às decisões tomadas pelos cônsules” (COMPARATO, 2003, p. 42).


Com efeito, essa notável experiência democrática vivida por Atenas e pela República Romana, em muito contribuiu para a retomada da noção de cidadania pelos Iluministas do século XVIII.


Com apoio em GUARINELLO, fica, por fim, a imagem da cidadania como processo de inclusão de uma população, de pertencimento a uma comunidade, de sentimento comunitário e que somente se desenvolve em um terreno fértil à construção de uma série de direitos civis, políticos e sociais. É, entretanto, ao mesmo tempo, um processo de exclusão.


Mesmo reconhecendo os caminhos tortuosos trilhados pela cidadania ao longo desses quase dois milênios, podemos afirmar que seu conceito está vinculado à idéia de ser membro de uma determinada comunidade e, como tal, será fonte de obrigações e de direitos. Nesse diapasão, a cidadania poderá constituir-se em um poderoso instrumento, capaz de alterar as relações sociais dentro da comunidade, redefinir seus princípios, sua identidade simbólica e contribuir na redistribuição das riquezas sociais.


Acreditamos que o verdadeiro sentido do conceito de cidadania, além de perpassar a idéia de conjunto de direitos e obrigações, deve andar de mãos dadas com as instituições democráticas.[4]


Mister faz-se lembrar que a cidadania deverá ser sempre considerada como um conceito histórico, variável e que recebe inúmeras influências culturais da comunidade na qual se desenvolve. Por essa razão, voltamos a afirmar que é muito diferente ser cidadão em Atenas, em Roma, no Brasil, nos Estados Unidos ou na Alemanha.


3. A Necessidade de Superação do Modelo Descrito Por Marshall


Segundo Marshall (1967, p. 70), o desenvolvimento da cidadania perpassa três momentos históricos. O primeiro, no século XVIII, culminando com a afirmação dos direitos civis de liberdade; o segundo, no século XIX, consubstanciado pelos direitos ligados à participação no exercício do poder político; e o terceiro, no século XX, quando, então, os direitos sociais foram conquistados.


Marshall analisa a questão da cidadania de maneira não somente cronológica, mas também lógica. Para ele, a cidadania civil foi a responsável pela conquista de um novo status geral de cidadania política. Em outros termos, foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram a ampliação de velhos direitos a novos setores da população, através do direito de voto, antes privilégio de uma classe economicamente forte. Já os direitos sociais, pertencentes ao século XX, teriam surgido em estreita ligação com os direitos políticos, porque uma participação mais ativa das comunidades locais e das associações funcionais (como o Partido dos Trabalhadores) fortaleciam a luta dos que pretendiam romper com o padrão estabelecido de desigualdades.[5]


Contudo, não podemos nos esquecer que o conceito de cidadania desenvolvido por Marshall foi construído em um específico momento histórico, qual seja, na Inglaterra, em meados do século XIX, no bojo do contexto libertário e revolucionário da época moderna, fortemente influenciado pelo projeto de cidadania burguesa do século XVIII.[6]


A cidadania, nessa perspectiva, foi entendida como “uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade” (MARSHALL, 1967, p. 62). Dito de outra forma, a cidadania, proveniente da nova ordem burguesa, foi desenhada pressupondo-se igualdade, liberdade e participação na sociedade. Mais ainda, nas próprias palavras de Marshall (1967, p. 76), como “status, concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade”. Nesse sentido, todos que viessem a possuir o status, deveriam ser considerados iguais em seus direitos e obrigações (MARSHALL, 1967, p. 76).


Ao que parece, não há compatibilidade em se adotar o modelo inglês para explicar o desenvolvimento da cidadania em países como, por exemplo, o Brasil. Isto porque, como evidencia José Murilo de Carvalho (2003, p. 11), o ideal de cidadania, o seu ponto de chegada, pode até ser semelhante, porém, os caminhos trilhados por diferentes países para a conquista da cidadania plena nem sempre foram os mesmos e nem sempre seguiram em linha reta.


No que atine à construção da cidadania no Brasil, podemos destacar pelo menos duas importantes diferenças: a prevalência dos direitos sociais em relação aos direitos civis e políticos e a inversão lógica no processo de concretização desses direitos, pois, aqui, o social precedeu aos demais.


Essa alteração na lógica dos direitos que fazem parte da noção de cidadania plena faz com que a própria compreensão da cidadania no Brasil seja distinta daquela apresentada por Marshall.


Tomemos como exemplo o paradoxo experimentado quando, ao mesmo tempo em que vivenciamos um período de ampliação da cidadania social, via implementação de uma legislação social e trabalhista na Era Vargas, convivemos com um processo de efetiva limitação da cidadania política. Nas palavras de CARVALHO:


“Se o avanço dos direitos políticos após o movimento de 1930 foi limitado e sujeito a sérios recuos, o mesmo não se deu com os direitos sociais. Desde o primeiro momento, a liderança que chegou ao poder em 1930 dedicou grande atenção ao problema trabalhista e social. Vasta legislação foi promulgada, culminando na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1934. A CLT, introduzida em pleno Estado Novo, teve longa duração: resistiu à democratização de 1945 e ainda permaneceu até hoje em vigor com poucas modificações de fundo. O período de 1930 a 1945 foi o grande momento da legislação social. Mas foi uma legislação introduzida em um ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência dos direitos civis. Este pecado de origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa” (CARVALHO, 2003, p. 110).    


Talvez, por isso, alguns autores brasileiros tenham escrito que a cidadania no Brasil caracterizou-se como uma cidadania regulada de cima para baixo,[7] ou seja, uma cidadania passiva e conservadora, a partir “de cima”, pela concessão do Estado, em contraposição a uma cidadania ativa, revolucionária, a partir “de baixo”.


Ao contrário da lógica e da seqüência cronológica descrita por Marshall, aqui o processo de construção da cidadania percorreu um caminho invertido. Primeiro, os direitos sociais, implementados em um período de supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis e, somente mais tarde, de maneira amorfa, os direitos políticos, sendo que muitos dos direitos civis que formam a base da pirâmide de direitos de Marshall continuam inacessíveis a uma grande parcela da população (CARVALHO, 2003, p. 7).


Bem longe de ter percorrido uma linha reta, a cidadania no Brasil vem sendo construída mediante tropeços, desvios e retrocessos, o que nos anima, mais uma vez, a afirmar que ser cidadão no Brasil, não é exatamente a mesma coisa que ser cidadão na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra ou em qualquer outro lugar.


Ademais, outro fator relevante nessa discussão e que vem a corroborar esta idéia central defendida no texto é a importância da educação do povo como pré-requisito para a expansão de outros direitos, em especial, os direitos políticos. Pressupomos, desta feita, que, em países onde a educação popular foi implementada, a cidadania se desenvolveu mais rapidamente.


Não estamos defendendo neste trabalho, é bom frisar, que exista um único caminho para a construção da cidadania. O que pretendemos deixar claro é que, para uma compreensão convincente da cidadania no Brasil, após uma análise detida da evolução e concretização dos direitos que compõem o significado de cidadania, é preciso afastar as leituras românticas, idealizadas ou retóricas acerca dessa palavra.  


É preciso afastar, também, uma leitura reducionista que trata a cidadania como uma conjunção entre nacionalidade e direitos políticos, ou seja, conceber a cidadania sob dois aspectos distintos e que, na visão de alguns, são suficientes: a cidadania reduzida à nacionalidade, como status de poder pertencer à nação, que significa dizer que a cidadania reduz-se ao vínculo jurídico estabelecido com um Estado-nação e a idéia de cidadania reduzida ao efetivo exercício de representação pelo mecanismo do voto.


Igualmente, não estamos rejeitando a evidente relação que se estabelece entre as pessoas, o Estado e a Nação, uma vez que a cidadania, como concretização de direitos sociais, civis e políticos, na modernidade, desenvolveu-se dentro das fronteiras geográficas e políticas do Estado. Como também, não ignoramos que ser cidadão está intimamente ligado à idéia de fazer parte de um Estado e de uma Nação e, conseqüentemente, às concepções de lealdade a um Estado e de identidade nacional.[8]


Contudo, uma visão reducionista do sentido pleno do que seja cidadania pode levar a uma equivocada interpretação de fazer eqüivaler cidadania à dimensão do eleitor nacional.[9]


Todas essas considerações acerca da cidadania no Brasil são relevantes, até mesmo para se promover uma reflexão acerca do instituto da ação popular, pois, como demonstrado, a noção tradicional da cidadania na modernidade foi moldada a partir dos princípios de igualdade e liberdade das revoluções americana e francesa no século XVIII, intimamente ligada às lutas pela conquista dos direitos dos cidadãos modernos. Entretanto, como já salientamos, cidadania não é uma essência ou um conceito fluído, é uma construção histórica.


Como no Brasil não podemos adotar este modelo clássico para compreender a construção de uma cidadania plena, mediante a conquista de direitos civis, políticos e sociais, devidamente estruturados em um processo lógico e cronológico linear, cria-se um impasse. Isto porque a concepção de cidadania brasileira tenta manter-se vinculada ao sentido clássico de direitos e de integração a uma sociedade particular,[10] contudo, busca seu significado em uma outra realidade que, conseqüentemente, faz com que a cidadania seja, muitas vezes, utilizada como figura de pura retórica.[11]


Há uma tentativa de se menosprezar historicamente a construção de uma cidadania amorfa efetivamente vivenciada no Brasil, em prol de um significado objetivo, como se as características de todo o processo experimentado aqui fossem irrelevantes, “engolfados” que estariam pelo significado universal de cidadania. O que nos leva a crer que o uso da teoria da cidadania de Marshall poderia incorrer em uma noção romantizada do passado (ARENDT, 1992, p. 94).


Percebemos o uso retórico da palavra cidadania quando o legislador pátrio optou por inserir a palavra cidadão no texto da Lei 4.717/65. Acreditamos que, nesse caso, houve a intenção deliberada de restringir o acesso à ação popular, uma vez que o próprio sentido do termo cidadania, naquele momento, era extremamente limitado. A cidadania, naquele contexto, longe de ampliar, favorecer a participação e o controle dos atos da Administração Pública, que viessem a lesar o patrimônio público, foi utilizada como uma restrição. Bastaria apenas a análise do momento histórico no qual se deu a gênese da Lei 4.717, pouco mais de um ano após a chamada “revolução” de 1964, período que inaugurou uma ordem jurídica de cunho nitidamente autoritária, capaz de desprezar os mais fundamentais direitos civis e políticos, para tornar clara a contradição que se aponta.


4. A Atualidade da Cidadania


Como expomos anteriormente, o conceito de cidadania está indissociavelmente ligado à figura do Estado-nação democrático, visto como o mesmo buscou assentar sua base de legitimidade sobre a idéia de cidadania, no sentido de que todos os cidadãos tem os mesmos direitos e deveres, independentemente de raça, religião, grupo étnico, sexo, região de origem e condição social.[12]


Como escreveu HABERMAS (2002, p. 151), o processo de inclusão da população no status de cidadão propiciou ao Estado, ao mesmo tempo, tanto uma fonte secular de legitimação, quanto um novo patamar para uma integração social abstrata, juridicamente mediada.


Contudo, o vínculo estabelecido entre cidadania e Estado nacional começa a enfraquecer-se, como evidencia HABERMAS, o processo de globalização em curso vem desafiando as fundações e os princípios políticos dos Estados nacionais. Nas palavras do autor:


“A globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da transferência de tecnologia e de poderio bélico, em especial dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via habitual dos Estados soberanos. Salvo melhor juízo, tudo indica que continuará avançando o esvaziamento da soberania dos Estados nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e ampliação das capacidades de ação política em um plano supranacional que, conforme já vínhamos observando, ainda está em fase incipiente. Na Europa, na América do Norte e na Ásia, estão se constituindo formas de organização supra-estatal para “regimes” continentais, que poderiam até mesmo ceder a infra-estrutura necessária às Nações Unidas, ainda muito ineficientes” (HABERMAS, 2002, p. 123).


Nesse diapasão, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que a cidadania na atualidade está envolvida em duas discussões centrais. A primeira, que diz respeito à mudança do papel do Estado moderno em face de sua fragilidade no tratamento de questões transnacionais e, a segunda, que se refere à relação problemática entre cidadania e identidade nacional.


Assim, se, por um lado, a cidadania nacional vem recebendo ameaças provenientes do processo de globalização, que culminou na criação de instituições supranacionais, como é o caso da União Européia, por outro, vem sofrendo pressões internas, provenientes de um nacionalismo exacerbado e separatista, fruto de um sentimento de identidade nacional ameaçada.


No magistério de HABERMAS, o tema “cidadania e identidade nacional” ganhou um renovado interesse a partir de três acontecimentos históricos recentes[13] que deflagraram o enfraquecimento do Estado nacional e a irrupção de identidades nacionais sob a forma de movimentos reivindicatórios, envolvendo questões étnicas, divisões territoriais, guerras civis e genocídios.


Ao que parece, a idéia de “nação do povo” que, nos séculos XVIII e XIX, converteu-se em motor para a consolidação de uma nova auto-identificação coletiva[14], assumiu conotações do seu irmão gêmeo mais antigo e anterior à política, conformando-se em um conceito de “nação” como ascendência e procedência. Este outro sentido de nação transformou-se, na contemporaneidade, em um “[…] eficiente mecanismo de defesa contra tudo que fosse estrangeiro, mecanismo de desapreço de outras nações e de exclusão de minorias nacionais, étnicas e religiosas (…)” (HABERMAS, 2002, p. 127).


HABERMAS (1997, p. 283) descreve bem esse movimento: o nacionalismo, como complexo psicológico-social que promoveu o surgimento do republicanismo, fundando uma identidade coletiva propícia ao papel do cidadão a partir da Revolução Francesa e o nacionalismo, como expressão de uma comunidade pré-política, integrada por meio da descendência, da linguagem e tradições comuns.


Num primeiro momento, a apropriação e a transformação desse nacionalismo pré-político em um nacionalismo adquirido foi importante para a formação da identidade política dos sujeitos de uma comunidade democrática. Contudo, como afirma Habermas:


“A identidade da nação de cidadãos não reside em características étnico-culturais comuns, porém na prática de pessoas que exercitam ativamente seus direitos democráticos de participação e comunicação. Aqui, a componente republicano da cidadania desliga-se completamente da pertença a uma comunidade pré-política, integrada através da descendência, da linguagem comum e de tradições comuns. Visto por este ângulo, o entrelaçamento inicial entre consciência nacional e modo de sentir e pensar republicano teve apenas uma função catalisadora” (HABERMAS, 1997, p. 283).


O mérito dessa concepção nacionalista do século XVIII foi promover a identificação do indivíduo com um papel que exigia uma grande dose de engajamento pessoal e que poderia culminar, inclusive, com o sacrifício de si mesmo. Nas palavras de Habermas, “o serviço militar obrigatório para todos construiu apenas a outra face dos direitos dos cidadãos! Na disposição em lutar e morrer pela pátria comprovaram-se, ao mesmo tempo, a consciência nacional e o modo de pensar e de sentir republicano”.


Por outro lado, já no plano internacional, as mudanças no panorama mundial trouxeram à lume um novo debate acerca do estudo da cidadania.


O problema surge quando percebemos que, tradicionalmente, somente são cidadãos os nacionais de um determinado país. Ademais, com o enfraquecimento do próprio Estado nacional, em virtude da pressão exercida pelo processo de globalização, enfraqueceram-se tanto os laços territoriais que ligavam o indivíduo ao Estado, que passaram a estar vinculados a realidades pós-nacionais, quanto a força do Estado na defesa de direitos, visto que não há, ainda, instrumentos institucionais suficientes na comunidade internacional para garantir a defesa dos direitos humanos.


Além da criação de instituições supranacionais, o problema entrecorta-se, também, com a possibilidade de múltiplas filiações e de identidades decorrentes do deslocamento da população.


Todos esses fatores foram decisivos para se repensar a cidadania em outros termos, afastando-a do seu sentido tradicional de cidadania limitada a um espaço territorial qualquer e dissociando-a da idéia de nacionalidade.


Para tal, várias propostas foram pensadas objetivando responder aos desafios de construção de uma cidadania pós-nacional. Entre elas, descortinam-se visões liberais e comunitaristas.


O próprio conceito do que seja “cidadão do Estado” assume sentidos diversos e, até mesmo, contrapostos, se analisados à luz das compreensões liberal e republicana de política. Como magistralmente nos ensina CATTONI DE OLIVEIRA:


“O status de cidadão, para o liberalismo, é fundamentalmente determinado por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos. Como titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal à medida que buscam realizar seus interesses privados nos limites estabelecidos pela lei, e isso inclui proteção contra intervenções estatais. Direitos políticos, como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquanto direitos civis que fornecem um espaço no qual questões pragmáticas, através de um agir estratégico funcionalmente regulado, tornam-se livres de coerção externa, fundando um processo político moldado no funcionamento do mercado” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 63).


Como pontifica HABERMAS:


“De acordo com a concepção republicana, o status dos cidadãos não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que eles podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de cidadania, direitos de participação e comunicação política são, em primeira linha, direitos positivos. Eles não garantem liberdade em relação à coação externa, mas sim a participação em uma praxis comum, por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam o que tencionam ser — sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Em tal medida, o processo político serve apenas ao controle da ação estatal por meio de cidadãos que, ao exercerem seus direitos e as liberdades que antecedem a própria política, tratam de adquirir uma autonomia já existente” (HABERMAS, 2002, p. 272).


Em síntese, na visão liberal, enfatiza-se o indivíduo acima do grupo e da identidade coletiva. Pela ótica liberal, a formação da identidade será construída independentemente da cultura e da sociedade, pois pressupõe-se anterior à vida social.


Por outro lado, a visão comunitarista enfatiza a cultura e o grupo social. É a sociedade que irá conferir identidade aos indivíduos atomizados pelas tendências desenraizadas da sociedade liberal. Nessa perspectiva, o indivíduo não será anterior à própria sociedade, nem será capaz de redefinir seus próprios fins, pois será “construído por fins que não escolhe, mas descobre em função de sua vida em contextos culturais compartilhados na sociedade”.


Já à luz de uma terceira visão, discursiva ou deliberativa, a comunidade política não será reduzida aos propósitos individuais ou às metas comunitárias. Na ótica de Habermas, o modelo liberal, que pressupõe uma sociedade econômica de mercado, deve ser substituído pela busca do consenso pelo diálogo, entre participantes de uma ação comunicativa intersubjetiva. Afastando-se, contudo, da “sobrecarga ética” do modelo republicano, que pressupõe “[…] sociedades ou comunidades culturalmente homogêneas, em que uma forte educação cívica possibilitaria a formação de cidadãos conscientes e virtuosos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 75).


O problema da cidadania na atualidade deve ser compreendido, então, em uma perspectiva democrático-discursiva. Nesse desiderato, é a obra de Habermas e a sua Teoria do Discurso, que logram dar uma resposta mais adequada a essa questão, afastando do sentido de cidadania o seu elemento meramente étnico-nacional.


É preciso resgatar, igualmente, que Habermas pressupõe uma situação de pluralismo, tanto individual, quanto de grupo. Para ele, “além da multiplicidade das concepções individuais sobre a vida digna, tem lugar também o fenômeno do multiculturalismo e, conseqüentemente, de pluralidade de concepções culturais […]” (SOUZA NETO, 2002, p. 273).


Em vista disso, somente a partir do Princípio do Discurso, “fundado nas condições simétricas de reconhecimento de formas de vida estruturadas comunicativamente” e dos reflexos da Teoria Discursiva para o Direito e para a Democracia é que poderemos empreender uma releitura do Princípio da Cidadania no paradigma do Estado Democrático de Direito.


Como propugna HABERMAS:


“A teoria do Discurso, que associa ao processo democrático conotações mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, toma elementos de ambos e os articula de uma forma nova e distinta. Coincidindo com o modelo republicano, ela concede um lugar central ao processo político de formação da opinião e da vontade comum, mas sem entender como algo secundário a estruturação em termos de estado de Direito. Em vez disso, a teoria do discurso entende os direitos fundamentais e os Princípios do Estado de Direito como uma resposta conseqüente à questão de como institucionalizar os exigentes pressupostos comunicativos do processo democrático. A teoria do discurso não faz a realização de uma política deliberativa depender de uma cidadania coletivamente capaz de ação, mas sim da institucionalização dos correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos” (HABERMAS, 2002, p. 280). 


Também, para o autor:


“[…] o direito é um médium que permite uma idéia muito mais abstrata acerca da autonomia cidadã. Hoje em dia, a soberania cidadã do povo se retrai para o interior de procedimentos juridicamente institucionalizados e para os processos informais de uma formação da opinião e da vontade mais ou menos discursiva, viabilizada pelos direitos fundamentais. Eu parto da idéia segundo a qual existe um entrelaçamento entre diferentes formas de comunicação, as quais têm que ser organizadas de modo que possamos supor que elas são capazes de ligar a administração pública a premissas racionais e de disciplinar o sistema econômico sob pontos de vista sociais e ecológicos, sem arranhar sua lógica própria. Este seria um modelo de política deliberativa. Não se trata mais do macrosujeito de uma totalidade social, e sim de discursos encadeados anonimamente. Ele coloca o peso principal das expectativas normativas nos processos democráticos e na infra-estrutura de uma esfera pública política que se alimenta em fontes espontâneas. Hoje em dia, para fazer valer os seus direitos de participação política, a massa da população tem que integrar-se num fluxo informal de comunicação pública que brota de uma cultura política libertária e igualitária e tentar influir nele. Ao mesmo tempo, as deliberações, no âmbito das corporações parlamentares, têm que ser permeáveis a temas, valores, contribuições e programas que nascem em esferas públicas políticas não encampadas pelo poder. Nos dias de hoje, o jogo que se estabelece entre a formação institucionalizada da opinião e da vontade e as comunicações públicas informais permite que se veja a cidadania como algo que ultrapassa o nível de uma simples agregação de interesses individuais pré-políticos ou de um gozo de direitos conferidos paternalisticamente” (HABERMAS, 1997, p. 295).


 Desta feita, somente será possível empreender uma adequada releitura da cidadania inseridos em uma perspectiva procedimental e discursiva do Estado Democrático de Direito[15], no qual é possível a livre flutuação de temas e de contribuições, de informações e de argumentos na formação da vontade, a fim de permitir a construção da legitimidade tanto dos procedimentos legislativos, quanto dos jurisdicionais, uma vez que o princípio da democracia fundado no discurso permite que o Estado Democrático de Direito seja compreendido à luz de uma perspectiva procedimental.


Nessa linha de raciocínio, o sentido de cidadania deverá perpassar as conotações processuais de participação no debate público, não só no que tange aos processos legislativos, mas, sobretudo, no que diz respeito aos processos jurisdicionais, que informam e conformam a soberania democrática do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e de seu Direito participativo.


Conclusão


1.  Para uma adequada compreensão do termo cidadania apresentamos um esboço do que teria sido a cidadania na Antigüidade Clássica, em especial em Roma, além da teoria da cidadania desenvolvida por Marshall. Da mesma forma, apontamos a atualidade do tema a partir da perspectiva Liberal e Republicana.


2. Como no Brasil não podemos adotar um modelo clássico para compreender a construção de uma cidadania plena, mediante a conquista de direitos civis, políticos e sociais, devidamente estruturados em um processo lógico e cronológico linear, evidenciamos um impasse. Isto porque a concepção de cidadania brasileira tenta manter-se vinculada ao sentido clássico de direitos e de integração a uma sociedade particular, contudo, busca seu significado em uma outra realidade que, conseqüentemente, faz com que a cidadania seja, muitas vezes, utilizada como figura de pura retórica.


3. Percebemos assim que há uma tentativa de se menosprezar historicamente a construção de uma cidadania amorfa efetivamente vivenciada no Brasil, em prol de um significado objetivo, como se as características de todo o processo experimentado aqui fossem irrelevantes, “engolfados” que estariam pelo significado universal de cidadania.


4. Nesse sentimos, podemos afirmar que no Brasil a palavra cidadão inserida no texto da Lei 4.717/65 obteve interpretação equívoca. Acreditamos que, nesse caso, houve a intenção deliberada de restringir o acesso à ação popular, uma vez que o próprio sentido do termo cidadania, naquele momento, era extremamente limitado. A cidadania, naquele contexto, longe de ampliar, favorecer a participação e o controle dos atos da Administração Pública, que viessem a lesar o patrimônio público, foi utilizada como uma restrição. Bastaria apenas a análise do momento histórico no qual se deu a gênese da Lei 4.717, pouco mais de um ano após a chamada “revolução” de 1964, período que inaugurou uma ordem jurídica de cunho nitidamente autoritária, capaz de desprezar os mais fundamentais direitos civis e políticos, para tornar clara a contradição que se aponta.


5. Por fim, concluímos que somente será possível compreender a cidadania inseridos em uma perspectiva procedimental e discursiva própria do Paradigma do Estado Democrático de Direito, uma vez que somente a livre flutuação de temas e de contribuições, de informações e de argumentos na formação da vontade e, conseqüentemente da cidadania, é que possibilitará a legitimidade tanto dos processos legislativos, administrativos e, sobretudo, jurisdicionais.


 


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TEIXEIRA, João Gabriel Lima Cruz. A construção da cidadania. Brasília: Unb, 1986.

 

Notas:

[1] Para Marshall, os três elementos da cidadania formavam um conjunto indiferenciado de direitos, visto que, na Antigüidade, as próprias instituições sociais estruturavam-se de maneira amalgamada (SILVA, 2000, p. 128). 

[3] A cidade-estado não equivale ao que hoje entendemos por cidade. O termo se refere a um território agrícola composto por uma ou mais planícies de variada extensão, ocupado e explorado por populações essencialmente camponesas, que assim permaneceram mesmo nos períodos de mais intensa urbanização do mundo antigo.

[4] Para Bobbio, não basta, para a construção de uma definição mínima de democracia, atribuir a um elevado número de cidadãos o direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem bastaria existirem regras de procedimento como as da maioria ou da unanimidade. Para o referido autor, será indispensável uma terceira condição: será necessário “[…] que aqueles que são chamados a decidir sejam colocados diante de alternativas  reais e postos em condição de escolher entre uma e outra. Para que se realize essa condição, é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais nasceu o Estado Liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentre dos limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos ‘invioláveis’ do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democrático” (BOBBIO, 2000, p. 32).

[5] “T. H. Marshall pesquisou a expansão dos direitos e deveres dos cidadãos no contexto da modernização capitalista. A sua divisão dos direitos dos cidadãos em civil rights, political rights e social rights segue uma conhecida classificação jurídica. Segundo essa classificação, os direitos liberais de defesa protegem o sujeito privado contra as intervenções do Estado na liberdade e na propriedade; os direitos de participação política possibilitam ao sujeito privado ativo uma participação no processo democrático da formação da opinião e da vontade; finalmente, os direitos de participação social asseguram ao cliente do Estado de bem-estar social um salário mínimo e segurança social. Marshall defende a tese segundo a qual o status de cidadão foi sucessivamente ampliado e fortalecido nas sociedades modernas. Segundo ele, os direitos democráticos vieram completar os direitos negativos à liberdade; ao passo que os direitos sociais vieram completar os dois tipos clássicos de direitos fundamentais, de tal modo que um número cada vez maior de pessoas adquiriu, passo a passo, direitos plenos à participação como membros” (HABERMAS, 1997, p. 293).

[6] Apesar da inegável contribuição deixada por Marshall, alguns autores acreditam que a sua concepção de cidadania não constituiu uma teoria em sentido pleno. À Marshall é freqüentemente lançada a crítica de ter elaborado uma teoria evolucionária, uma mera descrição histórica, principalmente no que toca aos direitos sociais, sem ter, contudo, destacado o papel das classes e dos movimentos sociais na conquista desses direitos. Em outros termos, para alguns autores, a tipologia de Marshall sugere mais uma evolução gradual e pacífica até a conquista da cidadania plena (SILVA, 2000, p.128).

[7] Sobre o tema, é importante consultar as obras de: TEIXEIRA (1986) e SANTOS (1979).

[8] Quando consideramos que o sentido de cidadania foi, na modernidade, construído levando-se em conta a relação entre as pessoas, o Estado e a Nação, estamos querendo dizer que a maneira como os Estados-nação se formaram condiciona o próprio sentido de cidadania, porquanto que dessa relação que se estabelece derivam os conceitos de lealdade para com o Estado e de identidade nacional. O problema é que nem sempre a lealdade e a identidade irão surgir ao mesmo tempo. Enquanto a formação de uma identidade nacional está associada a uma ascendência em comum, ao menos, por uma língua, cultura e história em comum, a lealdade ao Estado depende do grau de participação na vida política. Daí devemos considerar que a cidadania comportará sentidos diferentes, caso tenha sido construída ora em meio a um processo de difusão de direitos a partir da ação estatal, ora em face da ação dos próprios cidadãos.

[9] Sobre o equívoco de considerar o termo cidadão sinônimo de “nacional eleitor” em sede de ação popular, sugerimos a leitura de MONTE ALEGRE (1992).

[10] Utilizamos propositadamente a expressão integração, uma vez que, como aponta Habermas (2002, p. 128), integrar o Estado não significava mais do que a submissão ao Poder Estatal. É importante lembrar que a mudança do significado do status dos que integram o Estado, e dos que passam a ser cidadãos, só acontece com a transição para o Estado Democrático de Direito. Essa é a nota essencial e que faz toda a diferença quando traçamos um paralelo entre uma concepção de cidadania construída pela luta e conquista de direitos e uma cidadania amorfa, como a que construímos no Brasil. Principalmente porque, quando analisamos textos legislativos que trazem o termo cidadania, temos sempre que ter em mente que estamos trabalhando com a segunda opção.

[11] Como dito anteriormente, a própria obra de Marshall foi criticada por resultar de uma descrição neutra do processo de construção da cidadania. Segundo Habermas (1997, p. 293-294): “Ela não leva em conta o aproveitamento real do status de cidadão ativo, através do qual o indivíduo pode influir na transformação democrática do seu próprio status. Sabemos que somente os direitos políticos de participação podem fundamentar a posição jurídica reflexiva de um cidadão, a qual é referida a si mesma. De outro lado, porém, os direitos negativos à liberdade e os direitos de participação social podem ser concedidos de forma paternalista. O estado de direitos e o Estado do bem-estar social são possíveis, em princípio, sem democracia”.

[12] “Esta formação estatal assegurou condições propícias ao desenvolvimento, em escala mundial, do sistema econômico capitalista. O Estado nacional configurou a infra-estrutura para uma administração disciplinada pelo direito, além de oferecer a garantia para um espaço de ação individual e coletiva, livre do Estado. E, o que nos interessa especialmente, ele criou a base para a homogeneidade cultural e ética, que permitiu, desde o final do século XVIII, a democratização do aparelho do Estado — mesmo que às custas da opressão e da exclusão de minorias nacionais. A democracia e o Estado nacional nasceram como irmãos gêmeos da Revolução Francesa. Por isso, do ponto de vista cultural, eles se encontram à sombra do nacionalismo. Essa consciência nacional constitui manifestação especificamente moderna de integração cultural. A consciência política da pertença nacional surge de uma dinâmica que só atingiu a população a partir do momento em que esta foi mobilizada e individualizada através de processos de modernização econômica e social que a liberaram dos laços sociais corporativos. O nacionalismo pode ser tido como uma formação da consciência que pressupõe a apropriação de tradições culturais, filtrada pela reflexão e pela historiografia. Ele surge entre o público erudito e espalha-se pelos canais da moderna comunicação de massas. Tanto a mediação literária como a propagação pela mídia conferem ao nacionalismo características artificiais, tornando-o presa fácil do abuso e da manipulação através de elites políticas” (HABERMAS, 1997, p. 281).

[13] O primeiro movimento histórico atine ao processo de unificação alemã, a liberação dos Estados da Europa Centro-Oriental e os conflitos de nacionalidade irrompendo em toda a Europa Oriental. O segundo diz respeito à formação histórica da União Européia e o terceiro refere-se aos fluxos migratórios das regiões pobres do sul e leste europeus (HABERMAS, 1997, p. 281).

[14] Habermas explica que no seu conceito original a palavra “nação” significava tão somente as “Comunidades que têm a mesma origem, sendo integradas, do ponto de vista geográfico, através de colônias e da vizinhança, e, do ponto de vista cultural, através da linguagem, dos costumes e de tradições comuns; porém ainda não se encontram integradas politicamente através de uma organização estatal. […] Porém, no início da modernidade, surge um novo uso: a nação como titular da soberania. As corporações representam a ‘nação em face do rei’. E desde meados do século XVIII, ambos os significados, o de ‘nação’, no sentido de comunidade que tem a mesma origem e o de ‘povo de um Estado’, se entrelaçam. Com Sieyès e a Revolução Francesa, a ‘nação’ se transforma na fonte da soberania do Estado. A partir daí, cada nação deve ter o direito à determinação política. O complexo ético cede, pois, o lugar à comunidade democrática intencional” (HABERMAS, 1997, p. 282).

[15] “[…] a teoria do direito, fundada no discurso, entende o estado democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito” (HABERMAS, 1997, p. 310).


Informações Sobre o Autor

Maria Luisa Costa Magalhães

Doutoranda e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Professora no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e na Fundação Pedro Leopoldo. Professora do Curso de Pós-Graduação na Faculdade Pitágoras. Advogada


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