Resumo: O presente estudo analisa o instituto da coisa julgada, traçando um breve histórico de seu desenvolvimento, e investigando suas relações com o Direito, a jurisdição e a Constituição. Busca-se evidenciar que a coisa julgada não é propriamente inerente nem ao fenômeno jurídico nem ao exercício da atividade jurisdicional em si. Ao final, sob a análise de que a coisa julgada, no nosso ordenamento, foi erigida ao status de princípio constitucional, elucida-se que tal se dá em nome da segurança jurídica, e é daí, a rigor, que o instituto deriva sua prevalência quando em eventual conflito com outros princípios da Lei Maior, não se revestindo, portanto, da condição de dogma incontrastável.
Abstract: The present study analyzes the institute of res judicata, tracing a historical briefing of its development, as well as investigating its relations with Law, jurisdiction and Constitution. We make it clear that the res judicata is not properly inherent nor to the legal phenomenon nor to the exercise of judicial activity in itself. At the end, under the analysis that the res judicata, in our land, received the status of constitutional principle, we clarify that it is on behalf of the legal certainty, and it is whereof, strictly speaking, it derives its prevalence when eventually in conflict with other principles of Law, not flaunting, therefore, the condition of unquestionable dogma.
Palavras–chave: Coisa julgada. Segurança jurídica. Direito. Jurisdição. Constituição.
Keywords: Res Judicata. Legal certainty. Law. Jurisdiction. Constitution.
Sumário: Introdução. 1. Noções Gerais. 2. Coisa julgada e Direito. 3. Coisa julgada e Jurisdição. 4. Coisa julgada como garantia constitucional. Conclusão. Referências.
Introdução
“La cosa juzgada es una de tantas concesiones que la justicia hace a la seguridad jurídica para la mejor obtención del bien común” (GUASP, 1956, p. 595-598)[1].
Trataremos no presente estudo da tarefa de conceituar o instituto da coisa julgada, proposta que, a despeito de sugerir singeleza – porquanto estabelecer definições sempre se afigura como exórdio de qualquer investigação científica –, é das mais complexas, o que exsurge claramente dos intensos debates jurídicos que a matéria já suscitou ao longo dos séculos.
Analisaremos ainda quais os fundamentos de existência da coisa julgada em um dado ordenamento – se esta é inerente à jurisdição, ou mesmo se decorre do Direito em si, como seu pressuposto direto. Por fim abordaremos a relação do instituto com o princípio da segurança jurídica e sua relevância para o Estado Democrático de Direito.
1. Noções gerais
“Assistimos à lenta e progressiva transformação no modo de entender a eficácia, inerente à sentença do juiz, que designamos sob o nome de autoridade da coisa julgada” (CHIOVENDA, 1993, p. 399)[2].
Fiel ao sentido gramatical da expressão latina res iudicata – que literalmente significa “bem julgado”, e em que bem assume a acepção de utilidade, vantagem ou proveito jurídico –, Chiovenda perfilha-se à noção romanística do instituto, asseverando que “o bem da vida que o autor deduziu em juízo (res in iudicium deducta) com a afirmação de que uma vontade concreta de lei o garante a seu favor ou nega ao réu, depois que o juiz o reconheceu ou desconheceu com a sentença de recebimento ou de rejeição da demanda, converte-se em coisa julgada (res iudicata)” (2002, p. 446). Sob essa concepção, adere o mestre italiano – a despeito de delinear em sua obra alguns vislumbres de abandono de tal visão – à ideia tradicional de que a coisa julgada é “efeito comum da sentença de mérito” (2002, p. 247 – grifo nosso).
Decompondo esta acepção, advinda do direito romano, Liebman sintetiza:
“Para os clássicos era a res iudicata verdadeiramente o único e exclusivo efeito do iudicatum (…) para eles, mais do que para quaisquer outros, seria errôneo falar a respeito da coisa julgada numa ficção ou presunção de verdade, visto que era ela o que de mais concreto e real se podia dar, enquanto a sentença não declarava a existência ou inexistência dum direito, mas criava antes um direito novo” (1981, p. 4).
Como marco das mudanças em tal conceito, Liebman aponta para Justiniano, que passou a distinguir entre efeitos e autoridade da sentença. Asseverando condenada a concepção que vê na coisa julgada o efeito da sentença, culmina com sua célebre lição:
“Ora, essa expressão, assaz abstrata, não pode e não é de referir-se a um efeito autônomo que possa estar de qualquer modo sozinho; indica, pelo contrário, a força, a maneira com que certos efeitos se produzem, isto é, uma qualidade ou modo de ser deles. (…) A linguagem induziu-nos, portanto, inconscientemente, à descoberta desta verdade: que a autoridade da coisa julgada não é o efeito da sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se dos seus efeitos, quaisquer que sejam, vários e diversos, consoante as diferentes categorias das sentenças” (1981, p. 5,6 – grifos nossos).
Tal conceito sofreu aparente crítica por parte de Barbosa Moreira[3] e Ovídio Baptista[4], no famoso debate entre os eminentes juristas acerca da distinção entre efeitos e conteúdo da sentença, e se a imutabilidade deste último, decorrente do trânsito em julgado, seria adstrita apenas às sentenças declaratórias. A questão posta pelos renomados doutrinadores cinge-se a que, diversamente do afirmado por Liebman, a imutabilidade conferida pela coisa julgada não afetaria propriamente os efeitos da sentença, mas, antes, o seu conteúdo[5] – os efeitos do julgado poderiam ser mudados pelas partes, desde que, em sede de direitos disponíveis, agissem diversamente do contido no comando judicial[6], o que jamais ocorreria com o conteúdo da sentença, engessado no ordenamento jurídico por força da res iudicata. Discrepam Barbosa Moreira e Ovídio Batista basicamente no ponto em que, para o segundo, tal efeito de imutabilidade não recairia sobre o conteúdo do julgamento de mérito, indistintamente, mas tão-somente sobre a declaração contida na sentença.
Dizemos que a crítica à teoria de Liebman é apenas “aparente” porque, como reconhece Talamini, “a crítica de Barbosa Moreira é antes um reparo à fórmula sintética de Liebman do que uma oposição”, acrescentando que “o próprio Liebman reconhecia que a relação jurídica que foi objeto da sentença pode ser posteriormente modificada pelas partes, sem que isso afete a coisa julgada” (2005, p. 36). Neste particular, Tesheiner, ao mencionar tal posicionamento, também lembra que o mesmo já fora notado por Liebman[7].
De qualquer maneira, como assevera Araken de Assis, muito embora à formulação de Liebman haja escapado seu “alvo primário, pois os processualistas alemães não se convenceram, permanecendo fiéis à diretriz e Hellwig e de outros, relacionando coisa julgada à indiscutibilidade provocada pela eficácia da declaração gerada pela sentença”, aquela “ricocheteou entre nós: a doutrina brasileira adota, em linhas gerais, a tese de Liebman sobre coisa julgada”[8].
Não é isto que decorre, porém, da definição legal dada ao instituto pelo Código de Processo Civil brasileiro.
Com efeito, o artigo 467 do Código, ao pretender conceituar a coisa julgada, retroage ao Direito Romano, pois se refere a esta como “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Explica Tesheiner que “no anteprojeto [do Código] definia-se a coisa julgada como qualidade da sentença, numa clara adesão à teoria de Liebman. Como no projeto convertido em lei falou-se em eficácia da sentença, entende Egas Moniz de Aragão que o Código a repudiou”. Arremata, porém: “Tenha ou não razão, o certo é que a teoria de Liebman é dominante entre nós, não podendo, pois, ser ignorada” (2001, p. 72).
A verdade é que o conceito legal de coisa julgada falha em mais de um aspecto, rendendo razões de sobejo para que sua discrepância às lições de Liebman não conduza à conclusão de não-adoção do conceito do mestre italiano em nosso Direito.
Afinal, ao referir-se à “eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença” não distingue o legislador entre a sentença de mérito e a que tenha meramente enfrentado aspectos processuais – não sofrendo esta última os efeitos da coisa julgada, na clara dicção do artigo 268 (pois, à exceção do V, permite-se a repropositura da ação em todos os demais incisos do artigo 267)[9]. Peca igualmente a Lei de Introdução ao Código Civil, que, ao fornecer o conceito do instituto, pelo parágrafo 3º de seu artigo 6º, refere-se à “decisão judicial de que já não caiba recurso”, igualmente confundindo coisa julgada com mera preclusão processual[10]. Com efeito, coisa julgada é qualidade própria da “sentença de mérito, transitada em julgado” (art. 485).
Acreditamos, portanto, que o conceito de Liebman é o que melhor traduz o sentido de coisa julgada conforme aceito em nosso ordenamento[11]. Poderíamos assim defini-la como a qualidade que torna imutável o conteúdo da sentença, impedindo que este seja contrariado em futuras demandas que pressuponham o julgado (aspecto negativo), e assegurando à parte vencedora o direito subjetivo à posição jurídica que lhe haja sido reconhecida no processo (aspecto positivo)[12].
2. Coisa julgada e Direito
“La esencia de lo jurídico corresponde a la función de seguridad” (SICHES, 1995, p. 244)[13].
Partindo da acepção tradicional do Direito, pela qual sua finalidade precípua seria a harmonização e estabilização das relações sociais, vinculadas à persecução do bem comum, buscaremos traçar um paralelo entre a coisa julgada e o fenômeno jurídico.
Em primeiro lugar, parece-nos fora de dúvida, com vênia àqueles que se posicionam em sentido diverso, que o instituto da coisa julgada não se presta a assegurar o justo – cujo significado, a propósito, carece da objetividade que o cotejo em tela demandaria[14]. Como bem expressa Ovídio Baptista, “a justiça, não sendo um valor absoluto, pode variar, não apenas no tempo, como também entre pessoas ligadas a diferentes crenças políticas, morais e religiosas, numa sociedade democrática que se vangloria de ser tolerante e ‘pluralista’”. Complementa o eminente processualista: “Suponho desnecessário sustentar que a ‘injustiça da sentença’ nunca foi e, a meu ver, jamais poderá ser, fundamento para afastar o império da coisa julgada” (SILVA, 2003).
Com efeito, não nos parece que o objetivo da coisa julgada seja garantir uma decisão justa, porquanto tal conceito não é objetivo, mas variável segundo critérios de ordem social e jurídica. Antes, aquela tem por finalidade evitar a indefinida perpetuação dos conflitos[15]. Aderimos, neste aspecto, ao pensamento de Barbosa Moreira, para quem “a coisa julgada é instituto de função essencialmente prática que existe para assegurar a estabilidade à tutela jurisdicional”[16]. Também Lino Enrique Palácio discorre sobre “la inutilidad de cualquier teoría que pretenda justificar la institución de la cosa juzgada fuera de un criterio estrictamente axiológico. Y en ese orden de ideas, parece obvio que son valoracione de seguridad y de orden – más que de justicia estricta – las que sustentam su mantenimiento em el orden jurídico” (1998, p. 539).
É inegável, portanto, que o instituto da coisa julgada encontra seu fundamento no princípio da segurança jurídica, sendo instrumento de realização desta.
Teresa Wambier e Garcia Medina destacam que “o valor segurança vem dando lugar, de modo suave e permanente, aos valores justiça e efetividade”. Apontam, como sintomas de tal tendência, a criação, em 1973, do fenômeno do julgamento antecipado da lide, a crescente utilização da teoria da imprevisão, o instituto da antecipação de tutela (art. 273, CPC), bem como o novo regime da execução provisória, com a possibilidade de atos de alienação (2003, p. 12).
Talamini, de sua vez, situa sob diferente ótica a análise da relevância da segurança ante o fenômeno jurídico. Analisa o autor que “princípios como o da constitucionalidade, legalidade, certeza e segurança foram concebidos pelo liberalismo do século XIX como instrumentos de limitação do poder estatal em face dos particulares”. Nada obstante, fatores inerentes à atual realidade socioeconômica teriam alterado as feições e funções do Estado, de modo a esvaziar a operacionalidade daqueles princípios, passando a exigir um “processo decisório mais ágil, flexível e abrangente, incapaz de ser efetivamente controlado por modelos jurídicos rígidos e fechados”[17], passando a legitimidade da ação estatal a depender mais da efetividade do que da “simples compatibilidade formal com parâmetros preestabelecidos”. Ante tal cenário é que teriam surgido mecanismos processuais como o das tutelas de urgência – “seu crescente emprego no processo moderno é reflexo da preocupação com resultados rápidos e eficientes, em detrimento de outros valores”, ao passo que “no âmbito dos pronunciamentos urgentes a segurança jurídica cede espaço à ‘efetividade’”. Como arrazoa o autor, “não parece possível enquadrar as recentes propostas de ‘relativização da coisa julgada’ propriamente nesse contexto”. Afinal, “os princípios normalmente invocados para fundamentar as diversas teorias de ‘relativização’ – constitucionalidade, legalidade e isonomia formal – também estariam, eles mesmos, em xeque, a valer o cenário acima descrito” (TALAMINI, 2005, p. 62-66).
Prossegue Talamini por situar a coisa julgada como “instituto que se coaduna com o discurso de eficiência de resultados”, exsurgindo daí sua importância perante o Direito. Pontua que
“há que se considerar o relevo estritamente lógico-jurídico de que também se reveste a segurança. Em outras palavras, independentemente do direito positivo, das condições sócio-econômicas que repercutem sobre a ordem jurídica, do regime político que prevaleça – enfim, independentemente de todas as condições que implicam variações jurídico-positivas ou axiológicas de um lugar para outro, de uma época para outra – a segurança é elemento fundamental para a própria configuração do fenômeno jurídico” (2005, p. 62-66).
Culmina por minudenciar as lições de Recaséns Siches em seu Tratado General, para quem a segurança seria a “razão de ser”, o “valor fundamental” do Direito:
“O Direito deve também expressar outros valores, até mais importantes, tais como a justiça e o bem comum. Porém, o Direito não os contém em seu conceito: pode haver Direito injusto ou Direito que não atenda ao interesse comum; todavia, sem a segurança e certeza de sua impositividade, não há Direito, nem bom nem mau” (2005, p. 62-66 – grifos do original).
É de se concluir que, sob o aspecto ontológico, a segurança jurídica[18] é essencial ao Direito, e, sob tal perspectiva, sobrepuja em importância a própria justiça – esta de caráter jurídico-positivo, e aquela, lógico-jurídico. Nesse panorama, a coisa julgada não é propriamente inerente ao fenômeno jurídico, mas, como instrumento de atuação da segurança, emprestará desta sua relevância quando em confronto com outros bens jurídicos.
3. Coisa julgada e jurisdição
“A coisa julgada não é inerente à atividade jurisdicional, mas a atividade jurisdicional é a única compatível com a coisa julgada” (TALAMINI, 2005, p. 48).
Teresa Wambier alia-se àqueles para quem a coisa julgada constitui característica distintiva da função jurisdicional, quando em confronto com as demais atribuições do Poder Público[19].
De fato o é, em nosso ordenamento.
Tal não induz, porém, à conclusão de que não possa existir jurisdição sem coisa julgada, como se fossem institutos indissociáveis.
Veja-se que nossa Carta fundamental acolhe como garantia fundamental o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), além de pôr a coisa julgada a salvo de ingerências por parte dos outros Poderes da República, expressamente vedando que “a lei” a prejudique (art. 5º, XXXVI, CF). E é justamente de comandos tais que muitos têm colhido o pano de fundo para situar a coisa julgada como inerente à atividade típica do Poder Judiciário.
A verdade, porém, é que mencionados preceitos não advêm da atividade jurisdicional em si, mas, antes, do Estado Democrático de Direito, do qual a concepção de jurisdição vigente em nosso ordenamento é consequência, e não causa.
Nesse sentido, Liebman aduz insustentável (1) que a coisa julgada se afigure como caráter essencial e necessário da atividade jurisdicional, e (2) que seja impossível imaginar o efeito da sentença de forma independente da coisa julgada. Justifica: “Tanto isso é verdade que há exemplos de processos antigos em que era a sentença indefinidamente recorrível; e ainda hoje, segundo o direito canônico, as sentenças em matéria de estado não logram jamais a autoridade da coisa julgada” (1981, p. 38-39)[20]. Chiovenda, de sua vez, estatui que a conformação da coisa julgada como ficção ou presunção de verdade traduz mera “justificação política” daquela (2002, p. 449).
No mesmo sentido, asseveram Carlos Valder do Nascimento e Lourival Pereira Júnior, numa investigação filosófica do conceito de coisa julgada:
“A coisa julgada não configura uma exigência ontológica do processo, mas, isto sim, uma qualidade do mesmo, sendo-lhe, portanto, acidental. (…) À evidência, não sendo a coisa julgada dotada de substancialidade (…), é razoável admitir-se sua prescindibilidade, em decorrência da função operacional que desempenha no processo” (2006, p. 59-60).
Lição também corroborada por Ibraim Rocha, ao estabelecer que “a coisa julgada é uma especial qualidade que a lei atribui à sentença. Não é uma qualidade própria desta, assim que pelo menos teoricamente é possível existir sentença sem coisa julgada” (2002, p. 178).
De fato. A coisa julgada efetivamente existirá e surtirá efeitos num dado ordenamento nos estritos termos em que o legislador a tenha previsto e delimitado. Cuida-se de escolha política, portanto, e não dado essencial à jurisdição. Assim, ao passo que num Estado Democrático de Direito, como o nosso, mostra-se inconcebível jurisdição sem coisa julgada, o mesmo não se verificará, necessariamente, em outras espécies de conformação política[21]. É o ensinamento de Lino Enrique Palácio:
“La cosa juzgada, sin embargo, no constituye un atributo esencial y necesario de la sentencia, sino una simple creación del ordenamiento jurídico, que puede o no acordar tal autoridad a los pronunciamientos judiciales definitivos sin que con ello quede afectado principio lógico u ontológico alguno. Como dice Imaz, la cosa juzgada no es más que la ‘duración de la vigencia de las sentencias judiciales – em verdad, de cualquier norma jurídica – originada em la prohibición impuesta normativamente a los órganos de la colectividad de derogarlas por medio de otras normas jurídicas posteriores’” (1998, p. 539).
Podemos dizer, desta forma, que o estreito vínculo entre jurisdição e coisa julgada decorre dos valores constitucionais subjacentes naquela, e não diretamente de preceito lógico-jurídico.
Talamini resume tal relação na ideia de “reserva de sentença”, segundo o qual os atos jurisdicionais seriam os únicos não passíveis de revisão pelos outros Poderes. Sintetiza:
“a impossibilidade de os atos serem revistos no âmbito do próprio Poder que o emitiu não se relaciona com a natureza da função desenvolvida: tal traço pode tanto estar ausente na esfera jurisdicional, como presente nas demais. A diferença não vai ser encontrada, portanto, na possibilidade ou não dessa ‘revisão interna’. O elemento distintivo diz respeito à ‘revisão externa’ (2005, p. 47-49). ”
Para o autor, “a ‘reserva de sentença’ guarda relação com o atributo da ‘substitutividade’, que qualifica substancialmente a jurisdição, sendo “constituída de dois diferentes aspectos: (1) os atos de outra natureza são revisáveis pela jurisdição; (2) os atos jurisdicionais não são passíveis de revisão pelas outras funções estatais”. Completa assim que “somente o ato jurisdicional (e não o administrativo nem o normativo) pode, em certas condições, tornar-se absolutamente irrevisável”, reconhecendo, porém, que se trata de “afirmação que tem valia jurídico-positiva, e não lógico-jurídica” (TALAMINI, 2005, p. 47-49).
A conclusão tem importantes consequências.
Não sendo a coisa julgada inerente à jurisdição – quer no que tange ao seu alcance, quer à sua própria existência em dado ordenamento – decorrendo antes de escolha política, variável para cada sistema, tem-se também que a relação daquela com outros valores eleitos como relevantes num dado contexto político será ditada por critérios de proporcionalidade e razoabilidade, não se cogitando de uma supremacia essencial, conceitual, da coisa julgada perante outros princípios, tal qual aquela fosse fundamental à estruturação jurídica e estes não. E tal “escolha política”, num Estado Democrático de Direito como o nosso (“Estado Constitucional”, valendo-nos de expressão modernamente utilizada no Direito Alemão) é expressa pelo Constituinte, cabendo-nos analisar, portanto, em que posição se situa a coisa julgada perante a Lei Maior. É do que trataremos no próximo tópico.
4. Coisa julgada como garantia constitucional
Para Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, a coisa julgada não teria propriamente o enfoque de garantia constitucional. Apegados à literalidade do inciso XXXVI do artigo 5º de nossa Lei Maior, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, asseveram que tal preceito dirigir-se-ia “apenas ao legislador ordinário”, e constituiria mera regra de “direito intertemporal”. Defendem tais autores que:
“a inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional, traz como consectário a ideia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional” (2005, p. 88 e 90).
Também Talamini reconhece que “em seus termos literais, o enfoque principal desse dispositivo [CF, art. 5º, XXXVI] parece residir na garantia da irretroatividade das leis, e não tanto nos institutos nele mencionados” (2005, p. 50 – grifo nosso). Arrazoa, porém, mais adiante:
“Não há como deixar de conferir relevância constitucional à coisa julgada, estando ela – como está – tutelada em dispositivo constitucional. É impossível dar ao inciso XXXVI do art. 5º estrito significado de mecanismo meramente instrumental à garantia de irretroatividade das leis. Mesmo se fosse possível dizer que o teor literal do dispositivo se restringe a isso (e não se restringe – como se vê adiante), haveria de se aplicar a máxima de hermenêutica pela qual as normas sobre direitos e garantias fundamentais merecem interpretação extensiva. Além disso, basta comparar a disposição com outras contidas no próprio art. 5º da Constituição: o inciso XXXV prevê apenas que a ‘lei não excluirá’ o acesso à justiça – e no entanto ninguém duvida que a garantia ali consagrada vai muito além disso, impondo a qualquer aplicador do direito o respeito a todas as derivações extraíveis da inafastabilidade da tutela jurisdicional; o caput do art. 5º refere-se apenas à igualdade ‘perante a lei’, mas reconhece-se facilmente a incidência do princípio da isonomia em todo e qualquer momento de aplicação do direito. Tal como nesses casos, a coisa julgada não é mencionada como simples limite, baliza, da atividade legislativa. A referência no texto da Constituição implica outras consequências.
A afirmação de que não é dado à lei suprimir a coisa julgada que já se tenha formado implica também o princípio geral de que o aplicador da lei não pode, ele mesmo, desrespeitar a coisa julgada. (…) Não faria sentido limitar a atividade do legislador para o fim de proteger a coisa julgada e, ao mesmo tempo, deixar o aplicador da lei livre para agir como bem entendesse. (…) Assim, fica definitivamente afastada a ideia de que o inciso XXXVI do art. 5º estaria tratando unicamente de irretroatividade das leis. Ainda que não mediante fórmula explícita, o dispositivo consagra como garantia constitucional o próprio instituto da coisa julgada” (TALAMINI, 2005, p. 50-51 – grifos do original).
Na mesma linha, Marciano Seabra de Godoy atesta que “a garantia da coisa julgada, além de ser uma decorrência natural de qualquer sistema racional e eficaz de resolução de conflitos intersubjetivos, tem íntima relação com a garantia constitucional do devido processo legal”. Prossegue por afirmar que, ao passo que “o legislador ordinário tem relativa liberdade para configurar as hipóteses em que caberá a rescisão da coisa julgada, e o prazo para tanto”, haveria “um núcleo mínimo de garantia da coisa julgada estreitamente vinculado à noção de devido processo legal”, o qual decorreria “diretamente da Constituição, e não do Código de Processo” (2006, p. 310).
É de se reconhecer que a coisa julgada, a despeito de regulada pelo legislador infraconstitucional, reveste-se sim na qualidade de princípio constitucional, constituindo instrumento da segurança jurídica, da mesma forma que o é, v.g., a efetividade da prestação jurisdicional[22]. Desta maneira, muito embora seja dado ao legislador ordinário definir os contornos e limites específicos do instituto, jamais poderá criar mecanismos que resultem no completo esvaziamento da força estabilizadora da coisa julgada, o que ocorreria, por exemplo, caso se ampliassem as hipóteses de revisão legalmente previstas (CPC, arts. 485 e 741, I e parágrafo único) ao ponto de se transformar a coisa julgada em exceção. E é inconteste que tal raciocínio se aplica de igual maneira ao aplicador do Direito, ao qual, ao perquirir de situações excepcionais, em que quiçá se possa vislumbrar a desconstituição da coisa julgada em casos além dos previstos na lei, não se permitirá a propositura de fórmulas que neguem por completo o instituto, ou lhe subtraiam irrestritamente a eficácia. O equilíbrio é, portanto, fundamental. E tal mister apenas se logrará atingir por meio dos princípios de proporcionalidade, razoabilidade e ponderação, tomando-se por pressuposto que os princípios constitucionais são dotados de “eficácia conglobante”[23], o que implica a inexistência de espaços vazios ou de ausência absoluta deste ou daquele preceito.
Conclusão
A coisa julgada não existe por si só. Tampouco se confunde com a segurança jurídica. É, antes, instrumento de realização desta.
A segurança jurídica, de sua vez, não se efetiva apenas por meio da coisa julgada. Antes, são inúmeros os princípios e valores jurídicos que igualmente se destinam à sua proteção.
O excessivo vigor com que se tem defendido, muitas vezes a qualquer custo, a preservação da coisa julgada, não parece decorrer de desconhecimento de tais premissas notórias.
Na verdade, as reações de repulsa manifestadas já na década de 40 ao artigo 96 da Constituição então vigente, o qual propunha a revisão, pelos outros Poderes, dos atos do Poder Judiciário, sugerem que a razão de tal apego irrestrito à coisa julgada advém de que “se encontra arraigado em nosso pensamento jurídico o princípio que confere à declaração judicial caráter incontrastável” (BITTENCOURT, 1968, p. 139-140). Tal modo de pensar, aliás, não é exclusividade de nosso meio jurídico. Paulo Otero, ilustre jurista lusitano, igualmente observara que “as questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram objeto de um esquecimento quase total, apenas justificado pela persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que pronuncia as palavras da lei’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo’ (Montesquieu)” (1993, p. 9).
O Estado Democrático de Direito, contudo, fundado no sistema de freios e contrapesos dos Poderes da República (arts. 1º e 2º, CF), não reserva espaço para interpretações que se oponham a objetivos excelsos tais como a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, CF), E sendo assim, valendo-nos de célebre expressão outrora talhada por Humberto Theodoro Junior, “não se pode colocar a segurança da coisa julgada acima da justiça e da liberdade, porque um povo sem liberdade e sem justiça é um povo escravo”[24].
Defender-se a coisa julgada mesmo quando esta ponha em xeque a segurança jurídica equivaleria a ‘prestigiarem-se os meios e descartarem-se os fins’. Afinal, a coisa julgada existe pela segurança jurídica, e esta, pelos objetivos da República. Não se autorizam inversões.
Observa-se que, dentre os valores orientados à realização do ideal de segurança, o princípio da supremacia da Constituição, “norma responsável pela articulação de todo o sistema jurídico” (PONTES, 2005, p. 37), ocupa lugar de prestígio, destacando-se ainda a teoria de nulidade da lei inconstitucional, corolário daquele.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Felipe Tojeiro
Procurador Federal especialista em Direito Processual pela Escola Paulista da Magistratura EPM e em Direito Público pela Universidade de Brasília UnB MBA em Direito da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas FGV