Direito Processual Penal enquanto ramo do Direito Público


Necessidade do Direito e significados desta expressão


Onde está o homem travando relações social está, também, o direito. O direito está na sociedade como a enfermidade na cura.[1]


O homem só dispensa o direito no isolamento. O personagem Robison Crusoé, naquela ilha, nada devia e nada podia exigir a quem quer que fosse. Os limites de sua liberdade eram delimitados apenas pelas leis da natureza. Já em sociedade, o direito se apresenta como requisito essencial. Onde há mais de uma pessoa, ocorrem relações. Relações econômicas, sociais, culturais, políticas. Na pluralidade, os indivíduos têm de dividir o trabalho para atingirem objetivos comuns de bem-estar e de desenvolvimento. É imprescindível uma organização com moldes estáveis. Sem estabilidade não há segurança e sem segurança não há bem-estar. Em tempos passados, cumpria à religião assegurar a organização social. Hoje, menos devotos os homens, a função de dar estabilidade à organização pertence a um conjunto de normas impostas e cuja observância é exigida coativamente pelo Estado. Essas normas são o direito.


A palavra direito é proveniente do verbo latino dirigere, que significa dirigir, endireitar. Etimologicamente traduz a idéia de regra, de direção, daquilo que é reto. Na França é droit, na Espanha, derecho, na Itália, diritto e na Alemanha, recht.


O romanos chamavam o direito de jus, e justitia representava uma qualidade do direito[2].


Na linguagem comum, o direito é uma daquelas expressões à qual se concedeu inúmeras utilidades. Se presta para representar o lado do corpo normalmente mais hábil. Para adjetivar o homem e sua conduta. Homem honrado, franco, sincero. Conduta correta.


Entendido como ciência, direito é o conhecimento metódico e sistemático das normas que compõem o ordenamento jurídico.


Direito positivo é expressão utilizada para fazer frente ao direito natural. Foi criada com o advento do jusnaturalismo, para a ele se opor e dele se distinguir[3]. O direito sob o aspecto positivo é o conjunto de normas do ordenamento jurídico e dos direitos subjetivos que delas resultam. Abrange o direito objetivo e o subjetivo.


Direito objetivo é o conjunto de normas que integram o ordenamento jurídico e que brotam das fontes do direito. O direito objetivo, também chamado de direito normativo (norma agendi), visa regular a atividade humana em suas variadas expressões.


Direito subjetivo é um aspecto do direito objetivo. Não há direito subjetivo sem o objetivo, pois que aquele decorre deste. O direito subjetivo é a possibilidade de agir. Nasce quando se verifica no mundo dos fatos a hipótese prevista na norma


Para melhor fixação de conceitos, e utilizando-se para isto do direito penal, pois nele, esses conceitos possuem contornos mais nítidos, vejamos o que significam direito pela ciência, direito penal objetivo e direito penal subjetivo.


O conteúdo do direito penal ciência foi bem descrito pelo penalista Aníbal Bruno:  é aquela área do conhecimento que tem por fim a elaboração sistemática dos princípios que governam as normas penais. Ciência do direito penal é esta dogmática ou sistemática jurídico- penal que não se esgota na pura indagação lógico-formal, mas que se alimenta da realidade social e dos aspectos fenomênicos do crime[4].


Já o direito penal objetivo é aquele complexo de normas que concedem regulamentação ao direito de punir do Estado. Normas deste tipo são as que descrevem crimes, que cominam penas, que fazem previsão de causas extintivas de punibilidade, etc.


Direito penal subjetivo é, ou o direito de punir do Estado, ou o direito de não ser punido do cidadão. Aquele nasce com a prática de crime. Ocorrendo que “A” tire a vida de “B”, sem que sua conduta se dê em concorrência com causa excludente de antijuridicidade ou de culpa, surge para o Estado o direito penal subjetivo de punir “A”.


Por outro lado, o direito penal subjetivo de não ser punido, que sem muito rigor pode ser chamado de direito de liberdade, surge com o nascimento e subsiste enquanto o indivíduo não praticar fato definido como crime na lei penal.


Dando continuidade ao exame das formas pelas quais o direito é entendido, deparamo-nos com o chamado direito natural[5].  A concepção de direito natural é antiga. Os romanos o entendiam como o direito comum a todos, homens e animais. Os escolásticos encontravam sua natureza na razão divina. Atualmente, o direito natural é mais comumente visto como “o conjunto de princípios impostos à legislação dos povos cultos, fundados na razão e na equidade para que regulem e assegurem os direitos individuais, tais como os de vida, liberdade, de honra e de todos os direitos patrimoniais que asseguram a própria existência do homem”.


Orlando Gomes[6], em sua obra Introdução ao Direito Civil, empresta ao direito natural algumas poucas linhas para dizer que ele se encontra fora das fronteiras do direito. Considera o direito natural, quando muito, um capítulo da Moral.


Interessam, ainda, em sumárias noções sobre a expressão direito, algumas considerações sobre as qualidades do direito, quais sejam, sua validade, vigência e exeqüibilidade[7].


Direito válido é aquele que se encontra estabelecido legalmente. Ou seja, aquele que foi elaborado conforme as normas que regulamentam sua produção.


Vigência do direito é sua existência jurídica. A vigência é o tempo em que a norma se mantém produzindo efeitos jurídicos. Cessam a eficácia e a vigência da norma com a revogação.


Exeqüibilidade do direito é a possibilidade de colocá-lo em prática. Algumas pessoas enumeradas taxativamente em lei extravagante têm direito à prisão especial enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. Não existem em algumas regiões do Brasil as características desta prisão como elas estão descritas e exigidas em lei. Ela é inexeqüível. Algumas decisões a substituem pela prisão domiciliar. Sobre o tema já dizia Montaigne que quando as leis não podem obter o que têm direito de exigir, mais vale que exijam somente o que podem obter[8].


Direito Público e Privado. Finalidade da distinção


O direito é dividido em dois grandes ramos: o público e o privado. Alguns autores, como Gustavo Radbruch, entendem que estas categorias são apriorísticas do direito. Outros, que modernamente constituem a maioria, sustentam que a divisão é aceitável, apenas, em razão do aspecto técnico e didático[9].


A importância da distinção, do ponto de vista técnico, está em que os princípios que inspiram um ramo são diversos dos que integram o outro. Necessário determinar se a norma é de direito público ou privado para que se possa na sua interpretação e aplicação complementá-la com os princípios que lhe são apropriados.


Critérios de distinção


A doutrina é praticamente pacífica quando nega a possibilidade da identificação de um critério válido capaz de distinguir com certeza um ramo do outro. Por conta dessa dificuldade, Tornagui anota que há quem negue valor à classificação e quem desautorize qualquer diferença entre os dois ramos do direito.


Em linhas gerais, estes são os critérios de distinção comumente propostos:


1o. – o do interesse;


2o. – o da natureza da relação;


3o. – o do poder da vontade das partes sobre a norma.


Critério do interesse


A divisão do direito em público e privado pelo critério do interesse provém dos romanos. É de Ulpiano e encontra-se expressa nas Institutas de Justiniano: “Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat; privatum quod ad singulorum utilitatum[10]. É um critério teológico. O público tem por finalidade regular a organização da república romana ou da coisa romana, e o privado, a utilidade dos particulares.


Pelo critério do interesse, o direito público é formado pelas normas de interesse público, pelas que têm por escopo regular o interesse da coletividade; e o direito privado, pelas normas que interessam aos particulares.


Um dos estudiosos que se preocupou em definir interesse público foi Paulo Dourado de Gusmão. Advertindo que a questão é de difícil solução, propôs algumas definições: é o interesse do Estado e das pessoas jurídicas de direito público, bem como o interesse de todos sem ser de nenhum em particular. É o interesse do Estado e das citadas pessoas, desde que ligado às funções, especificadas por lei, aos mesmos atribuídas pela legislação; do Estado como fisco; do Estado como garantidor da ordem pública; do Estado como organização, como promotor do bem de todos e do desfrute por todos dos bens comuns, enfim – prossegue Gusmão – o vinculado às funções, aos poderes e à competência estatais, previstos em lei, que, por lei, podem ser transferidos a outras pessoas jurídicas de direito público[11].


Como os outros critérios, o do interesse não está isento de críticas[12]. A primeira que se faz é que a distinção é vaga porque vago é o conceito de interesse público. A segunda é que é inegável a existência de interesse público em todas as normas que compõem o ordenamento jurídico. No momento em que a norma é estatuída e assegurada pelo Estado, é porque há nela interesse público. Objetando o valor do critério do interesse, Garcia Maynez, com muita perspicácia, comenta que o mais grave da teoria se deve a esta propor um critério que pretende valor objetivo utilizando-se de uma noção essencialmente subjetiva. Ter interesse em algo – escreve o professor – significa atribuir valor ou importância à sua realização e disto resulta o interesse em elemento subjetivo.


Critério da natureza da relação


Mais recente, a teoria da natureza da relação jurídica para distinguir o ramo público do privado. Segundo esta doutrina o direito é público quando regula uma relação de subordinação em que participa obrigatoriamente o Estado como parte. Não que baste a simples presença estatal na relação jurídica, posto que o Estado é parte em relações de direito privado quando se encontra em posição de igualdade com os outros sujeitos da relação. Segundo a tese, para que a relação jurídica seja pública e público o direito que a regula, é preciso que o Estado dela participe como Estado soberano munido de “imperium”.


A deficiência do critério da natureza da relação está em que essa tese não esclarece suficientemente quais os requisitos que devem ser considerados para que se determine se uma relação há ou não participação do Estado. Existe participação do Estado naquelas relações do direito de família em que está presente claramente o interesse público? Outra falha é a falta de um critério que estabeleça se a participação do Estado em uma relação se dá com ou sem soberania.


Critério do poder dispositivo sobre a norma


Há, ainda, os que pretendem diferenciar os dois ramos considerando o poder dispositivo das partes sobre a norma. Segundo estes, as normas de direito privado seriam aquelas que podem ser deixadas de lado na aplicação, quando as partes assim convencionem. As de direito público seriam irrenunciáveis. O defeito desta doutrina é que muitas normas pertencentes ao direito privado não estão à disposição da vontade das partes quando da sua aplicação. E ocorre o mesmo com as de direito público, quando algumas estão à disposição. Desta segunda hipótese é exemplo o instituto do perdão, que afasta a aplicação da lei penal em certos crimes.


Investigação na norma do interesse prevalente


O direito público e o privado são aqueles compostos respectivamente pelas normas de direito público e de direito privado. Quando se identificam normas de direito público no interior do direito de família ou de direito privado no direito processual, o que se observa é que as normas de natureza pública, não raramente, invadem terrenos em que a supremacia é das normas privadas, e vice-versa. Não é a posição da norma nos textos legais que se presta para traçar a sua natureza.


Inobstante as críticas de longa data dirigidas à doutrina do interesse, parece que é ela, ainda, a que se apresenta mais razoável para diferenciar a norma de natureza pública da de natureza privada e, por conseqüência, para estabelecer o que é direito público e o que é direito privado. Sem dúvida que em todas as normas está contido o interesse público. Mas esta circunstância não obsta a distinção dos dois ramos pelo critério do interesse, pois o que se há de investigar na norma é o interesse prevalente.


O direito processual como ramo do direito público


No passado, quando se vislumbrava o processo civil como o direito nele pleiteado em “pé de guerra”, ou seja, quando se entendia o processo como uma exteriorização do direito substancial que é discutido em juízo, pensava-se que o direito processual civil não passava de ramo do direito privado. Quando passou-se a visualizar o processo como uma relação jurídica e a ação como um direito dirigido ao Estado, distinto da relação jurídica material, possibilitou-se a visão do direito processual como ramo do direito público. Modernamente é pacífico que o processo civil é da abrangência do direito público. Com mais razão ainda o direito processual penal é direito público. E por três motivos: 1o – a tarefa de punir os criminosos e garantir a liberdade dos inocentes é do interesse direito do Estado; 2o – na relação jurídica processual atua como entidade soberana o Estado, representado pelo juiz, a quem é conferida a função jurisdicional; 3o – na atividade judiciária processual atuam órgãos públicos.




Notas:


[1] Carnelutti faz essa comparação em relação ao litígio no processo




[2] GUSMÃO, Paulo Dourado de . Introdução à ciência do direito. 7. ed. São Paulo, Forense, 1976, ,p. 71.




[3] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Opus cit. P. 76




[4] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. Tomo I. p. 40




[5] PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 4. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1975. Em Direito Natural




[6] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1977. p. 18




[7] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Opus cit. P. 82 e seg.




[8] MONTAIGNE. Michel de. Ensaios. São Paulo. Abril Cultural., 1972. Livro I, Capítulo XXIII




[9] GOMES, Orlando. Opus cit. p. 23.




[10] CRETELLA JÚNIOR. J. Curso de direito romano. 5. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1973, p. 33




[11] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Opus cit. P. 182.




[12] MAYNEZ. Eduardo Garcia. Introducion al estúdio del derecho. 26. ed. México. Porrúa, 1977, p. 132.




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Flavio Meirelles Medeiros


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