Resumo: O trabalho defende que o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, na parte referente aos arts. 976, parágrafo 1o e 985, II do CPC/2015 é materialmente inconstitucional, já que a Constituição Federal não instituiu competência normativa aos Tribunais Regionais Federais e não exercem controle objetivo de constitucionalidade ou de legalidade.
Palavras-chave: Incidente – resolução – demandas – repetitivas – inconstitucionalidade – material
Resúmen: El estudio defende que el Incidente de Resolución de Demandas Repetitivas, en lo que se refiere a los artículos 976, parágrafo 1o. y 985, II de lo Código de Proceso Civil de 2015, son materialmente inconstitucionales, una vez que la Constitución Federal de 1988 no les ha instituído competencia normativa y, además, no ejercen control objetivo de constitucionalid o de legalidad.
Palabras-clave: Incidente – resolución – demandas – repetitivas – inconstitucionalid – material
Sumário: 1. Da inconstitucionalidade material dos arts. 976, parágrafo 1º, e 985 II do CPC/2015. 2. Conclusões. Referências.
1 DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ARTS. 976, PARÁGRAFO 1o e 985, II DO CPC/2015
O Código de Processo Civil de 2015 instituiu o “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas” em seus arts. 976 a 987.
Duas previsões normativas ali contidas são materialmente inconstitucionais: a do art. 976, parágrafo 1o e do a art. 985, II, verbis:
“Art. 976 – É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I – […]
II – […]
Parágrafo 1o – A desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente. […]
Art. 985 – Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada:
I – […]
II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986.”
Apresentada a conclusão, vamos à justificação, no que talvez seja uma inversão de ordem, e que, se assim entendida, talvez não deixe de servir como homenagem à norma do art. 139, VI do CPC.[1]
Uma decisão que produza efeitos para casos outros, que não aquele no qual foi proferida, casos outros esses que poderão ser atuais ou futuros, e que ainda por cima será de observância obrigatória por parte dos juízes, intérpretes e aplicadores do Direito que são[2], será não só um “ato normativo” – entendendo-se como tal aquele que é dotado de “autonomia jurídica da deliberação estatal”, “generalidade abstrata”, “impessoalidade” e “abstração”[3] – e também decisório – já que resolverá questões e produzirá efeitos em processos judiciais concretos –, mas ainda, e principalmente, uma verdadeira norma de decisão, uma “norma revestida de eficácia subordinante de comportamentos estatais ou de condutas individuais” [4].
Na medida em que o ato normativo tem o mesmo conteúdo e abrangência que uma lei, somente poderá ser válido se não inovar o ordenamento jurídico, sob pena de violação do princípio da legalidade, a menos que a Constituição Federal não tenha reservado a matéria à exclusividade da atuação do Poder Legislativo.[5]
Ora, a Constituição Federal não instituiu competência aos Tribunais Regionais Federais para proferirem decisões normativas.
Explicitamente, conferiu essa competência à Justiça do Trabalho em ações judiciais (art. 114).[6]
Implicitamente, pode-se reconhecer competência ao Tribunal Superior Eleitoral para baixar instruções e resoluções dotadas de força normativa, seja sob o argumento de existência de uma situação equiparável a um “estado de necessidade”, dada a precariedade qualitativa histórica da legislação eleitoral[7], seja colimando-se efetivar a força normativa da própria Constituição Federal, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal[8].
Não se pode ignorar, outrossim, a competência de que o Supremo Tribunal Federal se autoinvestiu, no seu papel de “guardião da Constituição”, para produzir decisões com eficácia normativa, inclusive quando inexistente norma constitucional ou legal que a previsse[9], sem falar na competência quase superlegislativa que exerce através das Súmulas Vinculantes[10] – já que o Congresso Nacional não pode legislar sobre as Súmulas Vinculantes aprovadas pelo STF[11] – que podem resultar em inovação do ordenamento jurídico, como é exemplo a Súmula Vinculante no 13.
Em um sentido extremamente lato, e com enorme boa vontade, pode-se até entender que em um certo sentido o Superior Tribunal de Justiça também possui competência normativa, semelhante à do Supremo Tribunal Federal, quando de decisões proferidas em recursos especiais com efeito repetitivo, quase se podendo visualizar alguma espécie de “controle objetivo de legalidade”, na medida em que é sua competência constitucional a uniformização da aplicação das normas infraconstitucionais em âmbito nacional.[12]
Mesmo quanto aos Tribunais de Justiça, no exercício da competência para julgamento de Representações de Inconstitucionalidade, naquilo que não extrapolasse o âmbito do “direito local”, e naquele sentido mais que amplo, quase “ativístico”, seria possível defender-se a existência de “competência normativa”.
Mas, quanto aos Tribunais Regionais Federais, não há como.
A Constituição Federal não lhes instituiu qualquer competência decisória capaz de produzir efeitos “ultra partes” e “erga omnes” de modo a inovar o ordenamento jurídico – ou seja, “competência decisória normativa” – ainda que limitada territorialmente.
Aquilo que já é temerário, quando considerados os Tribunais Superiores e os Tribunais de Justiça, chega a mostrar-se perigoso, em se tratando de Tribunais Regionais Federais.
É que, ao contrário do que se dá nos Tribunais Superiores e nos Tribunais de Justiça – estes, torno a lembrar, quando de Representações de Inconstitucionalidade – os Tribunais Regionais Federais são tribunais de revisão plena – dentro dos limites do que recorrido –, inclusive devendo examinar as questões de fato, não só as de direito.[13] O perigo está em que os Tribunais Regionais Federais passem a impor a aplicação de “teses jurídicas” às primeiras instâncias, e que se deixe de atentar para as circunstâncias fáticas que, aliás, fazem parte das vidas das pessoas e formam o ambiente no qual tomam suas decisões[14].
Se a instituição do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é inconstitucional – e é – qual a razão que a levou a ser instituída?
A resposta provavelmente está ligada à ideia de uniformização da jurisprudência a partir das decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, com finalidade de atribuição de efeito de repercussão geral, e no Superior Tribunal de Justiça, com efeito de recurso repetitivo. Até abril de 2016, havia 657.964 casos provenientes dos cinco TRFS sobrestados no STF e, no STJ, 102.770.[15]
Não há lógica nisso.
Se o problema é o sistema de encanamento (infraestrutura) que está entupindo o terceiro andar do edifício (recursal), não será concentrando o fluxo de água no segundo andar (TRFs) que o encanamento deixará de entupir. É fácil intuir que o resultado será que o segundo andar, sobrecarregado, entupirá (mais ainda).
E nada sugere que, mesmo deslocando-se o fluxo de água para o segundo andar, o terceiro não sofrerá outros entupimentos – a qualidade (do sistema) não foi resolvida, as causas que fizeram com que as Justiças Federais (para ficar só nelas) de 7.888.176 processos em tramitação em 2011 passassem a ter 9.019.764 em agosto de 2016 [16] não foram estudadas e enfrentadas.
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é o anúncio de mais uma reforma processual fracassada.
2 CONCLUSÕES
Os arts. 976, parágrafo 1o e 985, II do CPC/2015 são materialmente inconstitucionais.
A Constituição Federal, em seu art. 114, explicitamente instituiu competência normativa às decisões da Justiça do Trabalho.
O Supremo Tribunal Federal, no papel de “guardião da Constituição”, auto-investiu-se dessa competência.
Historicamente, reconhece-se ao Tribunal Superior Eleitoral implícita atribuição constitucional dessa competência.
É possível admiti-la também quanto aos Tribunais de Justiça, nas Representações de Inconstitucionalidade, e ao Superior Tribunal de Justiça, em interpretação extremamente ampla.
Mas não é possível admiti-la quanto aos Tribunais Regionais Federais, por absoluta ausência de previsão constitucional neste sentido, e por se tratarem de tribunais de revisão, não de controle objetivo de constitucionalidade ou de legalidade.
Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/3099310/ministros-do-stf-questionam-pec-que-limita-poderes-da-corte. Acesso em: 03.11.2016.
Informações Sobre o Autor
Alberto Nogueira Júnior
Juiz Federal do Rio de Janeiro; Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense – UFF/Niterói; Doutor Mestre e Especialista em Direito