Resumo: Apesar da relevância do mandado de segurança coletivo e das polêmicas que surgiram em torno do referido instrumento após a Constituição Federal de 1988, foi somente com a Lei nº 12.016/2009 que o mandado de segurança coletivo foi regulamentado por lei infraconstitucional. Em que pese parte da doutrina entender que a Lei nº 12.016/2016 contribuiu para a solução das polêmicas, uma parte considerável dos doutrinadores defende que a referida legislação adotou concepções conservadoras e que não resolveram as discussões acerca do tema. Este artigo apresentará e discutirá a problemática envolvendo a possibilidade de defesa dos direitos difusos por meio do mandado de segurança coletivo, bem como a legitimidade do Ministério Público para impetrar o writ coletivo.
Palavras-chave: Mandado de segurança coletivo. Direitos difusos.
Abstract: Despite the relevance of the collective writ of mandamus and the controversies arising from this instrument after the Federal Constitution of 1988, the collective writ of mandamus was regulated by ordinary law only after the enactment of Law 12,016/2009. Although some legal writings hold that Law 12,016/2009 contributed to the resolution of controversies, a considerable part of legal scholars defends that such law adopted conservative approaches which did not solve the discussions on the issue. This article will present and discuss the issue related to the possible defense of diffuse rights by means of collective writ of mandamus, as well as the Public Prosecutor Office standing to file a collective writ.
Keywords: Collective writ of mandamus. Diffuse Rights.
Sumário: Introdução. 1. As disposições da Lei nº 12.016/2009 e a problemática envolvendo os direitos difusos e a legitimidade do ministério público. 2. A defesa dos direitos difusos via mandado de segurança coletivo. 3. A legitimidade do Ministério Público para impetrar o mandado de segurança coletivo. Conclusão. Referências.
Introdução
A Constituição Federal de 1988, mantendo a orientação dos textos constitucionais de 1934, 1946 e 1967, previu como garantia fundamental o mandado de segurança “para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.” (artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal).
Além disso, a Constituição Federal de 1988 trouxe uma grande inovação em seu artigo 5º, inciso LXX, ao prever expressamente a possibilidade de impetração do mandado de segurança coletivo, ampliando o instituto para tutelar direitos pertencentes à coletividade e não somente ao indivíduo. Nesse sentido, confiram-se os ensinamentos de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA[1] e HUMBERTO THEODORO JÚNIOR[2], respectivamente:
“O instituto do mandado de segurança nasceu e vicejou durante muito tempo no contexto do quadro das chamadas garantias individuais. Isso ressaltava não apenas da denominação do capítulo das Constituições, que sucessivamente adotaram a rubrica tradicionalmente concebida nesses termos: ‘Dos direitos e garantias individuais’, senão também, no caso da Constituição de 1967, do próprio teor literal da disposição que cuidava do mandado de segurança, e que continha expresso o adjetivo ‘individual’. Ao passo que agora, embora conservando a sua função de garantia aplicável à defesa de direitos individuais, o mandado de segurança vê ampliada, alargada, sua fisionomia, para abranger também a figura nova do mandado de segurança coletivo, destinado à proteção já não mais de direitos pertencentes a esta ou aquela pessoa, a este ou aquele indivíduo, senão de direitos pertencentes à coletividade.”
“Esse caráter individual do mandamus foi conservado até que a Constituição de 1988, já sob o influxo das ideias coletivizantes da última quadra do século XX, autorizou o emprego do mandado de segurança para a defesa coletiva de direitos (…). Surgia, assim, no direito público brasileiro, o mandado de segurança coletivo, ao lado do tradicional mandado de segurança individual.”
A inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 não apenas consistiu em prever expressamente o mandado de segurança coletivo, como também ampliou a legitimidade ativa para impetração desse instrumento.
Após a Constituição Federal de 1988, um dos primeiros questionamentos relacionados ao mandado de segurança coletivo envolveu a discussão sobre a criação de uma ação constitucional diferente do tradicional mandado de segurança. É importante que fique claro, desde já, que o mandado de segurança coletivo não é um instrumento totalmente novo e diverso do mandado de segurança previsto no artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal.
Tanto é assim que, para sua impetração, também deve existir a lesão ou a ameaça de violação de um direito líquido e certo por ato ilegal ou arbitrário cometido por autoridade pública ou por agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Assim, como destacado por EDUARDO ARRUDA ALVIM[3], a Constituição Federal de 1988 trouxe uma inovação ao mandado de segurança “apenas quanto à legitimidade”, trazendo, nas palavras de GEORGES ABBOUD[4], “hipótese de legitimação coletiva para a causa.”.
Fato é que, apesar da relevância do mandado de segurança coletivo e das polêmicas que surgiram em torno do referido instrumento após a Constituição Federal de 1988, foi somente com a Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, que o mandado de segurança coletivo foi regulamentado por lei infraconstitucional.
Em que pese parte da doutrina entender que a Lei nº 12.016/2016 contribuiu para a solução das polêmicas “ou pelo menos para revelar uma tomada de posição do legislador a seu respeito, ainda que não tenha sido a melhor ou a ideal” [5], uma boa parte dos doutrinadores defende que a referida legislação adotou concepções conservadoras e que não resolveram as discussões acerca do tema. Atente-se:
“O exame dos dispositivos da Lei 12.016/2009 que tratam do instituto (arts. 21 e 22), todavia, revela múltiplos aspectos decepcionantes. Em primeiro lugar, o legislador parece ter resolvido adotar todas as concepções mais conservadoras que existiam sobre o tema. Não contemplou a proteção de direitos difusos pela via mandamental, limitou os efeitos da coisa julgada apenas aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante e nem mesmo fez referência à possibilidade de dispensa judicial do requisito de pré-constituição das associações.(…)
Teria sido melhor que a Lei 12.016/2009 nada dispusesse sobre o tema, que seria regulado mais adequadamente em lei específica sobre as ações coletivas, hipótese em que se poderia inclusive estabelecer parâmetros para a aplicação subsidiária das normas sobre processos coletivos à tutela pela via mandamental. De todo modo, assim não foi feito, restando apenas trabalhar com as normas ora destacadas da melhor forma possível para preservar o relevante papel destinado ao instituto pela Constituição.” [6]
Entre as diversas polêmicas envolvendo o mandado de segurança coletivo e a Lei nº 12.016/2009[7], este artigo tratará da problemática acerca dos direitos difusos e da legitimidade do Ministério Público para impetrar o mandado de segurança coletivo.
1.As disposições da Lei nº 12.016/2009 e a problemática envolvendo os direitos difusos e a legitimidade do ministério público
Primeiramente, destaca-se que o artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal de 1988 prevê que será concedido mandado de segurança para proteger direito líquido certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando a ilegalidade ou abuso de poder for cometido por autoridade pública.
Assim, de acordo com o texto constitucional, basta que exista direito líquido e certo violado por autoridade pública, não amparado por habeas corpus ou habeas data, para que seja cabível o mandado de segurança. Como se percebe, o referido dispositivo constitucional não traz em sua redação qualquer limitação quanto aos direitos que podem ser protegidos pelo mandado de segurança, bastando, para tanto, que sejam líquidos e certos, ou seja, que independam de dilação probatória.
Porém, o parágrafo único do artigo 21 da Lei nº 12.016/2009 estabeleceu que os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo poderiam ser os coletivos e os individuais homogêneos, não trazendo qualquer disposição acerca dos direitos difusos. Confira-se:
“Art. 21. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial.
Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser:
I – coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica;
II – individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.”
Antes mesmo do advento da Lei nº 12.016/2009, a doutrina e a jurisprudência já discutiam o cabimento ou não do mandado de segurança para assegurar direitos difusos, existindo orientação em ambos os sentidos.
Ocorre que, com a redação do parágrafo único do artigo 21 da Lei nº 12.016/2009, parte da doutrina passou a defender que a lei infraconstitucional teria solucionado tal polêmica ao excluir os direitos difusos do âmbito do mandado de segurança coletivo. Nessa linha, ATHOS GUSMÃO CARNEIRO[8] defende que o writ é “de todo inadmissível relativamente aos chamados ‘direitos difusos’ ou ‘interesses difusos’, para cuja tutela deve ser utilizado remédio jurídico outro a ação civil pública.”.
Nesse mesmo sentido, é o posicionamento de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR[9]:
“Como já visto, a Constituição instituiu o mandado de segurança coletivo cuidando de explicitar apenas os legitimados à sua impetração, sem definir quais os direitos líquidos e certos que por ele seriam tutelados.
Logo se concluiu que, sendo um novo processo coletivo, haveriam de se por ele protegidos os direitos adequados à tutela das ações coletivas. Todos eles, ou apenas algumas categorias entre aquelas que já contavam com a cobertura da ação civil pública e da ação coletiva de defesa dos consumidores? Não se chegava a uma resposta unívoca.
Duas correntes exegéticas se formaram: (i) uma que restringia a segurança coletiva aos direitos coletivos e individuais homogêneos do grupo vinculado à instituição associativa legitimada pela Constituição, excluindo, portanto os direitos difusos; (ii) outra que ampliava sua aplicação a todos os direitos de feitio coletivo, sem discriminar os difusos: (…).
A controvérsia foi enfrentada pela Lei nº 12.016/2009, que, ao regular o regime do mandado de segurança coletivo, previu que os direitos por ele protegidos, mormente quando se trata de associações, são os coletivos e os individuais homogêneos (art. 21, parágrafo único). Ficaram, portanto, fora de seu alcance os direitos difusos, com o que se deu guarida a exegese restritiva. Os direitos difusos, quando violados ou ameaçados, haverão de ser tutelados pela ação civil pública, e não pelo mandado de segurança.”
Como o devido respeito ao posicionamento doutrinário transcrito acima e conforme será melhor abordado no tópico abaixo, existindo um direito difuso líquido e certo violado ou ameaçado por autoridade pública, não me parece razoável, tampouco alinhado com o aparato legislativo já existente para a defesa dos direitos transindividuais, impedir que o mandado de segurança coletivo seja utilizado para a defesa dos direitos difusos, ainda mais considerando o fato de o mandado de segurança coletivo possuir procedimento muito mais célere do que a ação civil pública.
Da mesma forma, em que pese o artigo 21 da Lei nº 12.016/2009 estipular que o mandado de segurança coletivo “pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades”, também não me parece adequado dar a interpretação de que o rol dos legitimados previsto no referido dispositivo legal seria taxativo.
Como será também exposto no tópico abaixo, impedir o manejo do mandado de segurança coletivo pelo Ministério Público representaria um grande retrocesso à tutela dos direitos trasindividuais, já que inviabilizaria ao órgão mais atuante nessa seara a utilização do instrumento processual mais célere para a defesa dos interesses coletivos.
2.A defesa dos direitos difusos via mandado de segurança coletivo
Com relação especificamente à possibilidade de os direitos difusos serem também defendidos por meio da impetração de mandado de segurança coletivo, vale primeiramente ressaltar que a Constituição Federal de 1988 não só previu expressamente o referido instrumento como também incluiu o mandado de segurança individual e coletivo no rol dos direitos e garantias fundamentais.
Essa escolha constitucional de erigir o mandado de segurança ao patamar de direitos e garantias fundamentais confere ao writ a necessidade de que suas regras sejam interpretadas de forma ampliativa, dando efetividade a essa garantia fundamental.
Nesse sentido, NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY[10] esclarecem que, “Como o MS é direito fundamental, regra básica de hermenêutica constitucional determina que sejam interpretadas ampliativamente as normas que regulam o MS.”, não cabendo à Lei nº 12.016/2009 “restringir onde a Constituição não restringe.”.
Também a esse respeito, SÉRGIO FERRAZ[11] destaca que, sendo o mandado de segurança uma garantia fundamental, “hão de ser mínimos os impedimentos e empecilhos à sua à sua utilização; na dúvida quanto ao seu cabimento há que preponderar o entendimento que se inclina em seu favor; nas questões polemicas que seu estudo suscite, há de prevalecer a corrente que se revele produtora da maior amplitude de suas hipóteses de incidência e de espectro de atuação”.
Dessa forma, o simples exercício interpretativo de acordo com a hermenêutica constitucional já permite concluir que, não tendo a Constituição Federal limitado o mandado de segurança coletivo à defesa de direitos específicos, o writ será admitido para defender todo e qualquer direito líquido e certo que esteja sendo violado ou ameaçado por autoridade pública, desde que não seja cabível habeas corpus ou habeas data. Nesse sentido, citem-se, uma vez mais, os esclarecedores ensinamento de NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY[12] a respeito desse tema:
“O direito transindividual, ou seja, o difuso, o coletivo e o individual homogêneo (CDC 81 par. ún. I a III), é o direito material protegido pelo MS coletivo (rectius: ação coletiva de MS). O direito líquido e certo ameaçado ou violado por ato ilegal ou abusivo da autoridade, objeto de proteção constitucional pelo MS, é o direito tout court, isto é, no geral, porquanto o texto constitucional que prevê o regulamento do direito material à segurança não restringe o alcance desse direito fundamental a qualquer espécie de direito, donde é lícito concluir que quando a lei não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo. Nem teria sentido a proteção dos direitos metaindividuais, tendo em vista sua magnitude, ser dada pela CF de modo ‘inferior’ à proteção dos direitos das pessoas físicas e jurídicas prevista na legislação infraconstitucional.”
Não bastasse o fato de ser defeso à legislação infraconstitucional prever restrições à direitos e garantias fundamentais amplamente assegurados pela Constituição Federal, certo é que o parágrafo único do artigo 21 da Lei nº 12.016/2009 não adotou linguagem restritiva ou taxativa em sua redação. Houve, na verdade, apenas a menção de que “podem ser” protegidos pelo mandado de segurança coletivo os direitos coletivos e os individuais homogêneos, não tendo o legislador incluído no dispositivo palavras ou expressões indicativas de restrição ou taxatividade, como, por exemplo, apenas e somente.
Tal constatação, a meu ver, já fragiliza o posicionamento de que a Lei nº 12.016/2009 teria “assentado, de forma definitiva, que os direitos difusos podem ser protegidos pela ação civil pública, mas não pelo mandado de segurança coletivo.” [13].
Muito embora o quanto exposto acima já demonstre que a interpretação mais adequada da legislação vigente é aquela que abarca os direitos difusos como sendo tuteláveis pelo mandado de segurança coletivo, mostra-se importante, para fins deste estudo, afastar os demais argumentos levantados pela parcela da doutrina que defende que os direitos difusos não podem ser protegidos pela via do mandado de segurança coletivo.
Nesse ponto, um dos principais argumentos utilizados pelos defensores do posicionamento restritivo é o de que os direitos difusos seriam incompatíveis com a exigência constitucional de existir prova pré-constituída do direito líquido e certo violado. Atente-se:
“A Lei n. 12.016, ao definir o mandado de segurança coletivo, limitou o seu objeto à proteção apenas dos direitos coletivos. Não o estendeu aos direitos difusos. Certamente o fez por entender que, sem uma relação jurídica básica bem definida a unir a coletividade à autoridade coatora, seria sempre muito difícil submeter os direitos difusos à exigência constitucional de liquidez e certeza de que se deve obrigatoriamente revestir o direito subjetivo tutelado pelo mandado de segurança. Com efeito, nascendo de puras circunstâncias de fato, sem uma predeterminada e específica relação jurídica a unir os sujeitos ativos e passivos, seria sempre muito difícil à entidade impetrante do mandado de segurança coletivo apresentar a prova documental pré-constituída indispensável à propositura das ações mandamentais. É bom de ver que a liquidez e certeza do direito violado – repita-se – é uma imposição que figura na própria definição constitucional do mandado de segurança.” [14]
Data vênia ao entendimento exemplificado no trecho transcrito acima, entendo ser questionável o pressuposto adotado de que os direitos difusos, em razão de sua indivisibilidade e indeterminação de sujeitos, não permitiriam a demonstração da liquidez e certeza do direito violado por meio de uma prova pré-constituída, tratando-se, na verdade, de “meros” interesses fluídos, que não se confundiriam com direitos.
Em primeiro lugar, a dicotomia entre interesses e direitos não se sustenta no ordenamento jurídico brasileiro, já que, como bem expõe MARCOS DE ARAÚJO CAVALCANTI, “como decorrência da aplicação do princípio da unidade de jurisdição, assim como da inafastabilidade da jurisdição, tanto os interesses legítimos quanto os direitos subjetivos são verdadeiros direitos e não podem, por esse motivo, ficar sem a devida tutela jurisdicional.” [15].
Além disso, é possível a demonstração, sem a necessidade de dilação probatória, de violação de um direito difuso. A esse respeito, cite-se, a título de exemplo, um caso de concessão de licença ambiental pelo Poder Público a uma empresa que não cumpre todos os requisitos da legislação vigente. Demonstrando-se por meio de prova pré-constituída que a referida empresa não atende as exigências legais e que ainda assim o Poder Público concedeu a licença, resta evidenciada a violação de um direito difuso líquido e certo pela autoridade pública.
Somado ao já exposto, inadmitir o mandado de segurança nos casos em que é possível a demonstração imediata de violação de um direito difuso colocaria os direitos difusos em um patamar de tutela bastante inferior a todos os demais direitos, o que não parece ter sido a vontade da Constituição Federal de 1988, já que o texto constitucional (i) não excepcionou o mandado de segurança coletivo para os casos envolvendo direitos difusos; e (ii) não contém qualquer disposição que coloque os direitos difusos em patamar inferior aos direitos individuais, individuais homogêneos e coletivos.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que, embora os direitos difusos possam ser tutelados em ação civil pública, tal garantia não elimina ou compensa os prejuízos práticos que a impossibilidade do manejo do mandado de segurança coletivo provoca. Nesse sentido, destaca-se que o mandado de segurança possui um procedimento muito mais célere do que a ação civil pública, tendo inclusive trâmite prioritário, proporcionando uma maior efetividade, celeridade e economia para a proteção dos direitos violados.
Assim, em uma sociedade de consumo massificada, imediatista e tão carente de respostas ágeis do Poder Judiciário, impedir o manejo do mandado de segurança coletivo para defender uma classe tão importante de direitos, como a dos direitos difusos, é um contrassenso absoluto, não se justificando a opção pela ação civil pública quando existe direito difuso líquido e certo violado ou ameaçado por ato do Poder Público que possa ser defendido com a impetração do writ coletivo.
Vale ressaltar, ainda, que a linha de interpretação defendida neste trabalho parece ter sido a adotada pela jurisprudência, já que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que os interesses difusos também podem ser defendidos por meio do mandado de segurança coletivo. Confira-se:
“A carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37 da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microsistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas.” [16]
Por todas as razões expostas acima e com o devido respeito as posições doutrinárias em sentido contrário, entendo que a interpretação mais adequada do parágrafo único do artigo 21 da Lei nº 12.016/2009 é a que reconhece a possibilidade de os direitos difusos, quando existir prova pré-constituída de sua violação por autoridade pública, também ser tutelado pela via do mandado de segurança coletivo.
3.A legitimidade do Ministério Público para impetrar o mandado de segurança coletivo
No tocante à legitimidade do Ministério Público para impetrar o mandado de segurança coletivo, vale mencionar que o artigo 5º, inciso LXX, da Constituição Federal de 1988 dispõem que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional e por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano.
Já o caput do artigo 21 da Lei nº 12.016/2009 prevê que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado “por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial.”.
Embora a lei infraconstitucional tenha trazido outros requisitos a serem cumpridos pelos entes legitimados, além daqueles mencionados no artigo 5º, inciso LXX, da Constituição Federal, fato é que nem o dispositivo constitucional e nem a norma infraconstitucional previram expressamente a legitimidade do Ministério Público para impetrar o mandado de segurança coletivo.
Essa omissão na legislação foi utilizada para fundamentar o entendimento de parte da doutrina[17] no sentido de que o Ministério Público não teria legitimidade para impetrar o mandado de segurança coletivo, já que o rol dos entes legitimados previsto nos artigos 5º, inciso LXX, da Constituição Federal e 21 da Lei nº 12.016/2009 seria taxativo, não permitindo a utilização do writ coletivo por outros entes que não os expressamente citados.
Porém, com o devido respeito a esse posicionamento, vale novamente mencionar que tanto a Constituição Federal como a lei infraconstitucional utilizaram a expressão de que o mandado de segurança “pode ser” impetrado pelos entes já mencionados, não incluindo em sua redação as expressões típicas que denotam taxatividade ou restrição (e.g. apenas e somente).
Além disso, como já mencionado no tópico anterior, sendo o mandado de segurança uma garantia constitucional, deve-se interpretar tal instituto de maneira ampliativa, sendo descabida a interpretação de que o rol nos artigos 5º, inciso LXX, da Constituição Federal e 21 da Lei nº 12.016/2009 seria taxativo, posto que, como bem ponderado por NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY[18], (i) “não há na norma nenhum dos advérbios indicadores das hipóteses taxativas (apenas, só, somente etc.), de modo a fazer com que se conclua, desenganadamente, tratar-se de rol exemplificativo.”; e (ii) a “restrição seria inconstitucional por ofender a CF 5.º LXIX, norma na qual se encontra disciplinado o direito material à segurança, sem nenhuma restrição.”.
De mais a mais, a interpretação sistemática dos artigos 127 e 129 da Constituição Federal deixa claro que o Ministério Público tem por função institucional a defesa dos direitos transindividuais, sendo completamente desarrazoado, a meu ver, impedir que o ente legitimado mais atuante nas ações civis públicas não pudesse também fazer uso de uma garantia fundamental mais célere para cumprir seus fins institucionais, como é o caso do mandado de segurança coletivo.
Para corroborar a posição defendida neste trabalho, vale citar que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que o Ministério Público possui legitimidade para impetrar o mandado de segurança coletiva. Nesse sentido, confiram-se trechos do julgado que retratam esse entendimento:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TELEFONIA MÓVEL. CLÁUSULA DE FIDELIZAÇÃO. DIREITO CONSUMERISTA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 81 E 82, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 129, III, DA CF. LEI COMPLEMENTAR N.º 75/93. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO OU QUAISQUER DOS ENTES ELENCADOS NO ARTIGO 109, DA CF/88. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ARTIGO 273, DO CPC. SÚMULA 07/STJ. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535, I e II, DO CPC. NÃO CONFIGURADA. (…)
3. A nova ordem constitucional erigiu um autêntico 'concurso de ações' entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos.
4. O novel art. 129, III, da Constituição Federal habilitou o Ministério Público à promoção de qualquer espécie de ação na defesa de direitos difusos e coletivos não se limitando à ação de reparação de danos.
5. Hodiernamente, após a constatação da importância e dos inconvenientes da legitimação isolada do cidadão, não há mais lugar para o veto da legitimatio ad causam do MP para a Ação Popular, a Ação Civil Pública ou o Mandado de Segurança coletivo.
6. Em conseqüência, legitima-se o Parquet a toda e qualquer demanda que vise à defesa dos interesses difusos e coletivos, sob o ângulo material ou imaterial.
7. Deveras, o Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.(…).”[19]
Diante do exposto, em que pese a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 12.016/2009 não preverem expressamente a legitimidade do Ministério Público para a impetração do mandado de segurança coletivo, o próprio Superior Tribunal de Justiça, considerando a redação do artigo 129 da carta magna, consolidou o entendimento de que o Ministério Público tem legitimidade para promover qualquer espécie de ação que vise proteger direitos difusos e coletivos, incluindo o mandado de segurança coletivo.
Conclusão
Conforme descrito ao longo deste trabalho, apesar da relevância do mandado de segurança coletivo e das polêmicas que surgiram em torno do referido instrumento após a Constituição Federal de 1988, foi somente com a Lei nº 12.016/2009 que o mandado de segurança coletivo foi regulamentado por lei infraconstitucional.
Em que pese parte da doutrina entender que a Lei nº 12.016/2016 contribuiu para a solução das polêmicas, uma boa parte dos doutrinadores defende que a referida legislação adotou concepções conservadoras e que não resolveram as discussões acerca do tema.
Como demonstrado neste artigo, filio-me ao entendimento de que a legislação infraconstitucional perdeu a oportunidade de enfatizar a magnitude do mandado de segurança coletiva, preferindo adotar posições extremamente conservadoras e que restringem a amplitude desse importante instrumento.
Com relação à polêmica envolvendo os direitos difusos, entendo ser possível que o mandado de segurança coletivo seja utilizado para a defesa desses direitos, já que: (i) o exercício interpretativo de acordo com a hermenêutica constitucional permite concluir que, não tendo a Constituição Federal limitado o mandado de segurança coletivo à defesa de direitos específicos, o writ será admitido para defender todo e qualquer direito líquido e certo que esteja sendo violado ou ameaçado por autoridade pública, o que inclui os direitos difusos; (ii) é defeso à legislação infraconstitucional prever restrições à direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal; (iii) o parágrafo único do artigo 21 da Lei nº 12.016/2009 não adotou linguagem restritiva ou taxativa em sua redação; e (iv) o impedimento do manejo do mandado de segurança coletivo para defender uma classe tão importante de direitos é um contrassenso, não se justificando a opção pela ação civil pública quando existe direito difuso líquido e certo violado ou ameaçado por ato do Poder Público que possa ser defendido com a impetração do writ coletivo, o qual, frise-se, é muito mais célere.
No tocante à legitimidade do Ministério Público para impetrar mandado de segurança coletivo, o fato de nem a Constituição Federal e nem a Lei nº 12.016/2009 expressamente preverem essa possibilidade não permite concluir, no meu entendimento, que o rol dos entes legitimados previsto nos dispositivos legais tratados neste trabalho seja taxativo.
Primeiro porque, sendo o mandado de segurança uma garantia constitucional, deve-se interpretar tal instituto de maneira ampliativa. Segundo porque os dispositivos legais não utilizam advérbios indicadores das hipóteses taxativas. Terceiro porque a interpretação sistemática dos artigos 127 e 129 da Constituição Federal deixa claro que o Ministério Público tem por função institucional a defesa dos direitos transindividuais, sendo completamente desarrazoado, a meu ver, impedir que o ente legitimado mais atuante nas ações civis públicas não pudesse também fazer uso de uma garantia fundamental mais célere para cumprir seus fins institucionais, como é o caso do mandado de segurança coletivo.
Assim, estando o posicionamento defendido neste trabalhado embasado em sólida doutrina e jurisprudência, entendo que a interpretação ampliativa das regras do mandado de segurança para permitir a defesa de direitos difusos, bem como a sua impetração pelo Ministério Público, é a que melhor se adequa a sua condição de garantia fundamental assegurada pela Constituição Federal.
Informações Sobre o Autor
Carla Cavalheiro Arantes
Advogada. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-graduada em responsabilidade civil pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos pelo programa de Pós Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo