Direitos e garantias fundamentais do investigado durante a investigação criminal

Autora: Lhuana da Silva Oliveira – Graduanda do Curso Superior de Direito do Centro de Ensino Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA. (E-mail: [email protected])

Orientador: Rubens Alves da Silva. Autor de livros e advogado. Mestre em Direito pelo Instituto Nacional de Ensino Superior e Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM/MG. (E-mail: [email protected])

Resumo: Conforme previsto na Constituição Federal, de 1988, um dos principais direitos do cidadão e, portanto, dever da máquina estatal, é a tutela da segurança pública, a ser promovida por meio de políticas públicas e da prestação adequada, eficiente e eficaz dos serviços que lhes são concernentes. Na prática, esse dever é materializado mediante a obrigatoriedade de o Estado, dada a constatação da ocorrência de um suposto fato delituoso, dar início à persecutio criminis para apurar, processar e, enfim, fazer valer o direito de punir, solucionando as lides e aplicando a lei ao caso concreto. Nesse sentido, considerando que é durante o Inquérito Policial que são obtidas as provas mais importantes, recolhidas nos locais dos crimes, através de interceptações telefônicas e/ou escutas ambientais judicialmente autorizadas, acompanhamentos, buscas e apreensões ou garimpadas em atividades de inteligência policial, é de suma importância que sejam observados os direitos e garantias fundamentais do investigado, com vistas à plena observância do princípio da dignidade humana, enquanto um dos principais fundamentos constitucionais basilares de um Estado Democrático de Direito. Assim, diante do presente exposto, o presente estudo tem por objetivo estudar os limites norteadores desse processo, dada a sua natureza inquisitorial, de modo que os direitos e garantias fundamentais dos investigados não sejam violados pelos representantes do poder estatal, mormente, durante o inquérito policial, com o intuito de equilibrar o dever do Estado de apurar infrações à lei penal, visto que, até que haja sentença transitada em julgado, não há juízo comprobatório da autoria do delito.

Palavras-chave: Direitos. Garantias fundamentais. Investigado. Investigação criminal.

 

Abstract: As provided for in the Federal Constitution of 1988, one of the main rights of the citizen and, therefore, the duty of the state machine, is the protection of public security, to be promoted through public policies and the adequate, efficient and effective provision of services that concern them. In practice, this duty is materialized through the obligation of the State, given the finding of the occurrence of an alleged criminal act, to initiate the persecutio criminis to investigate, prosecute and, finally, assert the right to punish, solving the lawsuits and applying the law to the specific case. In this sense, considering that it is during the Police Inquiry that the most important evidence is obtained, collected at the crime scenes, through telephone interceptions and / or judicially authorized environmental wiretaps, accompaniments, searches and seizures or panned in police intelligence activities, It is of utmost importance that the fundamental rights and guarantees of the investigated are observed, with a view to full observance of the principle of human dignity, as one of the main fundamental constitutional foundations of a Democratic State of Law. Thus, in view of the foregoing, the present study aims to study the guiding limits of this process, given its inquisitorial nature, so that the fundamental rights and guarantees of the investigated are not violated by representatives of state power, especially during the investigation. police, in order to balance the State’s duty to investigate violations of the criminal law, since, until there is a final judgment, there is no corroborating judgment on the offense.

Keywords: Rights. Fundamental guarantees. Under study. Criminal investigation

           

Sumário: Introdução. 1 Do direito à segurança. 1.1 Da segurança pública. 1.2 O processo persecutório e suas fases. 1.3 O inquérito policial. 2 Direitos e garantias fundamentais do investigado. 2.1 Princípio da presunção de inocência. 2.2 Princípio do devido processo legal. 2.3 Princípio da legalidade. 2.4 Direito ao sigilo. Considerações finais. Referências bibliográficas

 

Introdução 

Muito embora não exista no cenário jurídico interno nenhum dispositivo legal que traga a delimitação exata do conceito de investigação criminal, esta pode ser compreendida pela interpretação conjunta de determinações esparsas encontradas na legislação vigente, tais como as contidas na Constituição Federal de 1988, no Código de Processo Penal e na Lei Nº 12.830/13.

Destarte, analisando as disposições legais existentes, a investigação criminal consiste em uma série de procedimentos realizados pela polícia judiciária, com o propósito de verificar a materialidade e os indícios de autoria das infrações penais, no intuito de consubstanciar a atuação do Ministério Público na propositura da ação penal.

Neste sentido, a propositura da ação penal pelo Ministério Público depende, tacitamente, do provimento de elementos mínimos atribuídos à autoria e à materialidade do delito, para subsidiar a opinio delicti do Ministério Público, incluindo-se, ainda, motivação, ou não, da ação penal pública e o embasamento para o recebimento da denúncia e concessão de medidas cautelares pelo juiz, além de também, servir para embasar a queixa-crime da vítima nos crimes de ação privada ou ação penal subsidiária.

Ademais, tendo em vista que a Constituição Federal, de 1988 estabelece como um dos principais deveres do Estado direito e responsabilidade de todos os cidadãos, a tutela da segurança pública, a ser exercida visando à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através da ação conjunta da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis, das polícias militares e corpos de bombeiros militares, além da promoção de políticas públicas e da prestação adequada, eficiente e eficaz dos serviços que lhes são concernentes.

A Lei Suprema institui, ainda, nos incisos subsequentes ao artigo 144, as competências dos órgãos supracitados, designando, como regra, às Polícias Federal e Civil, a incumbência para a apuração de infrações penais e a execução das funções de polícia judiciária, e delegando às Polícias Militares, o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública.

Assim sendo, o dever de promover a segurança pública é materializado diante da constatação da ocorrência de um suposto fato delituoso, cabendo, ao Estado, dar início à persecutio criminis para apurar, processar e, enfim, fazer valer o direito de punir, solucionando as lides e aplicando a lei ao caso concreto, cabendo, portanto, à Polícia Civil, segundo o disposto na CF/88 e reforçado pelo Código de Processo Penal e na Lei Nº 12.830/13, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais civis, uma vez que as contravenções militares se encontram sob o encargo da Justiça Militar, de acordo com a Lei N° 13.491/2017.

Ainda da leitura do texto constitucional de 1988, induz-se a existência de duas modalidades distintas de polícia: uma administrativa e outra polícia judiciária, onde a primeira tem função preventiva, atuando antes da ocorrência do crime (polícia militar), e a segunda exerce função repressivo-investigativa, atuando após a prática de uma infração penal (polícias civil e federal).

Por sua vez, a persecução criminal, voltada para a apuração das infrações penais e suas respectivas autorias, tem como o principal instrumento estatal legítimo para exercício do poder punitivo, havendo, o poder legislativo, designado órgãos distintos para exercer as funções de investigar e acusar, evitando, assim, a concentração de poderes, unicamente, nas mãos do Ministério Público ou da Polícia Judiciária, no intento de garantia de proteção aos direitos do acusado e, por consequência, a legitimidade de eventual decisão condenatória futura.

No entanto, além de trazer importantes previsões acerca da investigação criminal, a Carta Magna de 1988 dispõe, ainda, ser de suma importância que sejam observados os direitos e garantias fundamentais do investigado, com vistas à plena observância do princípio da dignidade humana, enquanto um dos principais fundamentos constitucionais basilares de um Estado Democrático de Direito, tanto nos seus aspectos burocráticos quanto no âmbito de seus efeitos práticos.

Diante do presente exposto, mostra-se fundamental estudar os limites norteadores desse processo, dada a sua natureza inquisitorial, de modo que os direitos e garantias fundamentais dos investigados não sejam violados pelos representantes do poder estatal, mormente, durante o inquérito policial, com o intuito de equilibrar o dever do Estado de apurar infrações à lei penal frente às garantias do investigado de não ter seus direitos lesados, visto que, até que haja sentença transitada em julgado, não há juízo comprobatório da autoria do delito.

 

1 Do direito à segurança

A Constituição Federal, de 1988, no caput de seu artigo sexto, instituiu a segurança como um direito social, mediante a seguinte redação:

 

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988)

 

Verifica-se, portanto, que a segurança é direito de segunda dimensão, que exige do Poder Público uma atuação positiva, uma forma atuante de Estado na implementação da igualdade social dos hipossuficientes. Ou seja, não é um mero poder de agir – como o são as liberdades públicas -, mas sim poderes de exigir, chamados, também, de direitos de crédito, conforme nos leciona José Afonso da Silva:

 

“Os direitos são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.” (SILVA, 2009, p. 289)

 

Na mesma linha, Fábio Comparato assevera que:

 

“Os direitos sociais se realizam pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir amparo e proteção social aos mais fracos e mais pobres; ou seja, aqueles que não dispõem de recursos próprios para viver dignamente.” (COMPARATO, 2010, p. 77)

 

Desse modo, os direitos sociais são destinados a garantir que os cidadãos possam viver com dignidade, por meio da intervenção estatal, no intuito de garantindo-lhes, assim, a integridade física, psíquica e moral através de todos os mecanismos que estejam ao alcance.

Isso significa dizer que, em um Estado Democrático de Direito, a segurança assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa em vários campos, dependente do adjetivo que a qualifica, consistindo em uma situação de preservação ou restabelecimento dessa convivência social, de modo a permitir que todos gozem de seus direitos e defesa de seus legítimos interesses.

Nesse contexto, a segurança encontra-se, intimamente ligada à segurança pública, assumindo, conjuntamente, um papel fundamental no ordenamento jurídico pátrio, enquanto um meio de garantir o exercício dos demais direitos e liberdades fundamentais, possibilitando um convívio pacífico e harmonioso em sociedade, não devendo, pois, ser compreendida, erroneamente, como restrição de direitos de liberdade e garantias do cidadão.

 

1.1 Da segurança pública

Nos seus ensinamentos, Antônio Francisco de Souza, conceitua segurança pública da seguinte forma:

“Estado que possibilita (viabiliza) o livre exercício dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição e na Lei. A segurança é, simultaneamente, um bem individual e coletivo, tal como a sociedade pertence a todos e a cada um.” (SOUZA, 2009, p. 300)

 

Por sua vez, para o autor Willion Matheus Poltronieri, a segurança pública recebe a seguinte conotação:

 

“Segurança Pública é a situação de normalidade, é a manutenção da ordem pública interna do Estado, sendo que sua alteração ilegítima ocasiona uma violação de direitos básicos, capaz de produzir eventos de insegurança e criminalidade, sendo o caminho oposto da desordem, do caos e do desequilíbrio social.” (PALTRONIERI, 2016, p. 01)

Outro conceito de segurança pública que merece destaque é o de Matsuda, Graciano e Oliveira (2009, p. 21), enquanto “uma política que deve ser desenvolvida pelos órgãos públicos e pela sociedade, dentro dos limites da lei, garantindo a cidadania de todos”.

A ordem constitucional, de 1988, consagrou a segurança pública em seu artigo 144, por meio da seguinte disposição:

 

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…)” (BRASIL, 1988)

 

A segurança pública é, pois, um dever do Estado e um direito do cidadão, a ser mantido por todos, no intuito de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas, por meio dos órgãos elencados no referido dispositivo, juntamente com suas atribuições.

No parágrafo primeiro do art. 144 da CF/88 estão descritas as à Polícia Federal, encarregada de apurar as infrações penais contrárias aos interesses da União, além de coibir infrações de repercussão interestadual ou internacional, prevenir o tráfico de drogas, exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras, e atuar nas funções da polícia judiciária da União, investigando e recolhendo provas para processos que sejam de competência da Justiça Federal.

Em seguida, dispõe-se acerca da Polícia Rodoviária Federal, encarregada do patrulhamento ostensivo de estradas e vias federais da nação (§2º, art. 144), e da Polícia Ferroviária Federal, também organizada e mantida pela União, ficando responsável pelo patrulhamento ostensivo das ferrovias federais brasileiras, com a prevenção de crimes de qualquer tipo (§3º, art. 144).

O parágrafo quarto, por sua vez, estabelece como competência da Polícia Civil, dirigida por delegados de polícia de carreira, a promoção da segurança pública da comunidade em si, conforme transcrito abaixo:

 

“Art. 144 (…)

  • 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” (BRASIL, 1988)

 

Ficou destinada, portanto, à Polícia Civil, através da atuação dos delegados de polícia de carreira, a prevenção e a investigação de infrações penais civis, excetuando-se as infrações militares ou de competência da Justiça Federal, que são atribuídas a órgãos específicos.

Em seguida, foram instituídas as competências da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, ficando, a primeira, responsável pelo policiamento ostensiva da ordem pública, protegendo o cidadão, a sociedade e os bens públicos (§5º, art. 144) e, o último, a execução de atividades de defesa civil (§5º, art. 144).

Finalmente, após a promulgação da Emenda Constitucional nº 104, de 4 de dezembro de 2019, foi instituído o parágrafo 5º-A, versando acerca das responsabilidades das polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, relacionadas à segurança dos estabelecimentos penais.

Verifica-se, assim, que o Estado exerce seu poder de polícia judiciário, por intermédio da atuação bem delimitada dos órgãos citados no artigo 144 da CF/88, fundamentada na  repressão da atividade criminal através da instrução policial criminal e da captura dos infratores da lei penal, tendo como traço característico o cunho repressivo e ostensivo, aliado à investigação criminal, representada por organismos sociais cuja função, por excelência, é a apuração da materialidade e autoria das infrações penais.

 

1.2  O processo persecutório e suas fases

A Carta Política de 1988 sedimenta a atividade investigativa, no âmbito criminal, nas atuações das instituições que carregam em seu bojo as atividades de polícia judiciária, a Polícia Federal e as Polícias Civis, nas suas respectivas áreas de atuação.

Em contrapartida, em seu art. 129, inciso I, a Carta Magna de 1988, atribui ao Ministério Público, a titularidade da ação penal, de modo que o sistema acusatório se encontra claramente bem definido, através da separação entre as funções de investigar e acusar e a função de julgar, tendo em vistas o investigado porquanto um sujeito de direitos. (TÁVORA, 2014, pág. 107).

Dentro dessa lógica, a persecução penal é dividida em duas fases bem definidas: a pré-processual, representada, em regra, pelo Inquérito Policial, onde são iniciadas as investigações preliminares, ou seja, os primeiros levantamentos sobre as circunstâncias que ocorreram o crime, investigando e coletando informações sobre a autoria e materialidade delitivas.

Além das previsões constitucionais, a investigação criminal, também, encontra suporte legal, no art. 4º do Código de Processo Penal: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por finalidade a apuração das infrações penais e da sua autoria”. (BRASIL, 1941)

Cabe mencionar, aqui, que não é renegada a existência de outras formas de investigação que coexistem, juntamente com o inquérito policial. Com efeito, o próprio art. 4º, parágrafo único do CPP, estabelece que as atribuições das autoridades policiais não excluirão a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.

Por sua vez, o caput do art. 2º da Lei nº 12.830/2013, atribuiu expressamente e exclusivamente ao Estado, as atribuições da autoridade policial, sendo ela a responsável pela investigação de infrações penais, considerando que, eventualmente, investigações criminais possam culminar em restrições de direitos fundamentais, cabendo ao Estado efetuar sua tutela.

Ademais, durante a investigação criminal são empregados determinados instrumentos investigatórios que podem ser tanto típicos quanto atípicos, segundo Valter Foleto:

 

“Os instrumentos típicos de investigação criminal são policiais e extrapoliciais, conduzidos pelos órgãos de persecução penal (polícia e Ministério Público). Os instrumentos típicos policiais são o Inquérito Policial e o Termo Circunstanciado elaborados pela polícia; os típicos extrapoliciais, por procedimento de investigação realizado pelo Ministério Público”. (SANTIN, 2001, p. 32/33):

 

Nesse sentido, vale mencionar que o inquérito policial, descrito como uma das principais ferramentas investigativas das infrações penais, assim como a investigação criminal em si, ainda são fundamentados nas previsões contidas no Código de Processo Penal, de 1941, razão pela qual deve ser compatibilizado em diversos aspectos com a Constituição Cidadã de 1988.

Assim, ao presidir a investigação policial, o delegado de polícia deve agir com independência funcional e o firme propósito de atuar como um preservador de direitos, assegurando a higidez da chamada devida investigação criminal, função materializada na figura do inquérito policial, definido pelo ilustre professor Henrique Hoffmann:

 

“Processo administrativo apuratório levado a efeito pela polícia judiciária, sob presidência do delegado de polícia natural; em que se busca a produção de elementos informativos e probatórios acerca da materialidade e autoria de infração penal, admitindo que o investigado tenha ciência dos atos investigativos após sua conclusão e se defenda da imputação; indispensável para evitar acusações infundadas, servindo como filtro processual; e que tem a finalidade de buscar a verdade, amparando a acusação ao fornecer substrato mínimo para a ação penal ou auxiliando a própria defesa ao documentar elementos em favor do investigado que possibilitem o arquivamento, sempre resguardando direitos fundamentais dos envolvidos.” (HOFFMANN, 2018, p. 25)

 

Trata-se, portanto, do conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º), enquanto procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado pela autoridade policial

 

1.3 O inquérito policial

O professor Renato Brasileiro conceitua o inquérito policial como “procedimento administrativo inquisitório, presidido pela autoridade policial, o inquérito consiste em um conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa objetivando a identificação de fontes de prova e a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade da infração penal a fim de possibilitar que o titular da ação penal possa ingressar em juízo” (BRASILEIRO, 2013, p. 71).

O inquérito policial, portanto, pode ser considerado como o procedimento destinado a apuração de elementos relacionados com a autoria e a materialidade delitivas, diante da notícia do cometimento de uma infração penal, visando fornecer fundamentos para a propositura ou não da ação penal pelo seu titular, seja o Ministério Público seja o querelante. Nas palavras de Fernando Capez, no seu curso de Processo Penal, o inquérito policial pode ser definido como:

 

“O conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º). Trata-se de procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado pela autoridade policial.” (CAPEZ, 2014, p. 133.)

 

Observa-se, nesse sentido, que a investigação criminal, por seu turno, permeia todo o procedimento de apuração da responsabilidade penal do sujeito praticante de um crime, pois, em um primeiro momento, inicia a busca pelo conhecimento do fato e todas as suas circunstâncias e, posteriormente, possibilita sua análise pelos atores do sistema de justiça criminal, viabilizando a experimentação da verdade provável, com base nos elementos que se obteve nesse processo.

Entretanto, uma norma jurídica só será tida como válida na medida em que respeite e proteja um direito fundamental previsto constitucionalmente, uma vez que o Estado não somente está correlacionado com os direitos fundamentais do povo como também é responsável pela proteção e efetivação de tais direitos, como revela Norberto Bobbio (2002, p. 9-10):

 

“[…] modelo ideal do Estado de Direito, entendido não apenas como Estado Liberal, protetor dos direitos de liberdade, mas como Estado social, chamado a proteger também os direitos sociais; […] uma teoria do direito que propõe um juspositivismo crítico, contraposto ao juspositivismo dogmático; e […] como uma filosofia política, que funda o Estado sobre os direitos fundamentais do cidadão e que, precisamente, do reconhecimento e da efetiva proteção (não basta o reconhecimento!) destes direitos extrai sua legitimidade e também a capacidade de se renovar, sem recorrer à violência subversiva.”  (BOBBIO, 2002, p. 9-10)

 

Assim, após a promulgação da Constituição de 1988, o autor do fato a que se imputa prática de infração penal não deve mais ser entendido como um mero objeto de investigação, de acordo com a visão tradicional, sendo, pois, um sujeito de direitos, de modo que,  o desrespeito às garantias que lhes são concernentes como pessoa humana informam o procedimento persecutório extrajudicial, no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais consagrados, sobretudo, no art. 5º, gerando, ainda, o corolário indiscutível de que se conflitar o CPP ou qualquer outra norma com tais direitos e garantias, devem ser rechaçados do sistema.

No modelo de investigação garantista, o investigado é tratado como sujeito da investigação e não apenas como objeto, como era tido nos procedimentos penais de raiz inquisitiva. Portanto, uma investigação criminal, bem como um processo penal, deve ter todos os seus princípios atentos aos direitos fundamentais, pois é bem verdade que todo processo penal de modelo acusatório deve estar preocupado com as garantias e direitos fundamentais das partes do procedimento.

É importante ressaltar, ainda, que, quando se fala em direitos e garantias fundamentais na investigação, não está apenas se referindo ao acusado, apesar deste ser o principal sujeito, mas de todo e qualquer sujeito envolvido nas fases do aludido procedimento.

 

2 Direitos e garantias fundamentais do investigado

Em virtude das garantias dos direitos fundamentais dos investigados no âmbito processual, houve uma releitura do inquérito policial dentro do processo penal, onde essa nova direção de mudanças teve de se reorganizar aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Dessa forma, a característica da inquisitoriedade deste procedimento administrativo foi relativizada para encaixar-se ao modelo proposto pela Constituição Cidadã, que elencou vários princípios processuais penais, alguns aplicáveis no âmbito da investigação criminal.

Tais princípios são derivados do princípio maior da nossa Constituição, o princípio da dignidade da pessoa humana, que se apresenta como uma orientação para aplicação dos demais princípios insertos na Constituição Federal, conforme previsto em seu artigo primeiro, enquanto fundamento constituído no Estado Democrático de Direito. (BRASIL, 1988)

Alexandre de Moraes manifesta que “a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas”, e complementa:

 

“[…] a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (MORAES, 2011, p. 61)

 

Nesse sentido, por estar relacionada com a própria existência humana e exigir que cada ser humano seja visto como um fim em si mesmo, a dignidade é a origem de todos os direitos fundamentais, direcionando todos os Direitos Fundamentais da Constituição Brasileira, pois este se consagra como fonte primária por excelência do Direito.

Por fim, conforme salienta Álvaro Villaça de Azevedo (2010, p.17), a dignidade da pessoa humana insere-se no texto constitucional como uma cláusula geral a que se subordinam todos os outros direitos da personalidade, quer sejam típicos como os previstos expressamente no texto da Constituição, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (artigo 5º, caput), à liberdade de consciência e de crença (artigo 5º, inciso VI), entre outros; quer sejam atípicos não previstos no ordenamento jurídico.

Desse modo, a dignidade da pessoa humana, por ser considerada um princípio máximo, detém uma carga axiológica de caráter compulsório, aplicável a todas as esferas jurídicas, informando, em especial, os direitos de personalidade, previstos no art. 5° da Carta Política de 1988: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. (BRASIL, 1988)

Isso significa que, no âmbito do Direito Penal, a ninguém pode ser imposta pena ofensiva à dignidade da pessoa humana, vedando-se a reprimenda indigna, cruel, desumana ou degradante. Este mandamento guia o Estado na criação, aplicação e execução das leis, de maneira que Direito Penal busca o alcance da paz social e o Processo Penal destina-se à proteção dos acusados da prática das mencionadas infrações, afastando todo e qualquer tipo de arbitrariedades possíveis de cometimento pelas autoridades processantes através de normas que regulamentam os processos instaurados para a apuração dos delitos.

Contudo, não obstante possua essa função garantista, de modo a ser propiciada a proteção dos direitos fundamentais do imputado, o Processo Penal apresenta-se, em si mesmo, como a primeira sanção sofrida, sendo, portanto, de suma importância a instauração da investigação criminal, que atuará como um “filtro processual”, averiguando a existência do crime, determinando seus agentes e a responsabilidade destes, assim como descobrindo e angariando provas no âmbito processual, no intuito de reduzir os riscos que possam causar um sofrimento injusto em virtude de possíveis equívocos, além de atuar como instrumento de paz social (inibição da autotutela).

Ademais, destaca-se que, em hipótese alguma, deve ser o ser humano reduzido à qualidade de coisa em virtude da predominância do interesse público sobre o privado, da aplicação estrita da lei ou, até mesmo, em decorrência de arbitrariedades.

A observação das garantias fundamentais no inquérito policial serve para evitar, portanto, que desnecessárias ações penais acabem por constranger pessoas que sabidamente não cometeram delitos ou que o cometeram sob a batuta de alguma causa justificante. E o Delegado de Polícia é autoridade fundamental no resguardo do bom jogo investigatório, agindo como se um juiz fosse na delimitação do que efetivamente ocorreu.

 

2.1 Princípio da presunção de inocência

Um dos direitos fundamentais aplicáveis ao indiciado é o princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade, expressamente previsto na Constituição Federal, de 1988, em seu artigo quinto, inciso LVII, resultado da externalização de norma de intenção protetiva do legislador, por prever que “ninguém deverá ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (BRASIL, 1988)

Leonir Batisti (2009, p.128) conceitua esse princípio:

“A presunção de inocência caracteriza obviamente uma proteção. É uma proteção que implica prioritariamente em não cercear a liberdade em face de uma mera suspeita de envolvimento em crime (conquanto haja exceções previstas para uma suspeita fundamentada, de que se falará) e em não aplicar penas outras de caráter criminal, antes de um processo (ou do trânsito em julgado de uma decisão condenatória).”

 

Trata-se, assim, que princípio basilar do processo penal, processo penal liberal e implica, conforme assevera Aury Lopes Júnior

 

“Diversas consequências no tratamento da parte passiva, inclusive na carga da prova (ônus da acusação) e na obrigatoriedade de que a constatação do delito e a aplicação da pena ocorrerão por meio de um processo com todas as garantias e através de uma sentença.” (LOPES JR., 2013, p. 72/73)

 

Na mesma senda, Nereu Giacomolli enfatiza que:

 

“A regra da presunção de inocência exige justificativa da prática de qualquer ato, processual ou não, que induza antecipação de um juízo de censurabilidade. Por isso, qualquer restrição ao sujeito pauta-se pela sua legalidade e justificação fática e jurídica, com suficiência constitucional e convencional.” (GIACOMOLLI 2015, 109).

 

Além de ser um princípio, a presunção de inocência é consagrada como um direito do Homem, conforme enuncia o artigo 9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (TOURINHO FILHO, 2012, p. 63)

Consiste, assim, o referido princípio no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório) (BRASILEIRO, 2013, pag.8).

Ou seja, qualquer investigado ou acusado no bojo de uma persecução penal deve ser presumido inocente até que sua culpabilidade seja estabelecida para além de dúvida razoável, antes de esgotadas todas as vias recursais aptas a questionar uma sentença condenatória. Em outras palavras, por imperativo desta garantia civilizatória, não há como considerar culpado um imputado como autor de crime, sem que haja certeza consolidada por meio do trânsito em julgado de sua sentença condenatória.

 

2.2 Princípio do devido processo legal

A Constituição Federal, de 1988 estabelece em seu art. 5º, o princípio do devido processo legal, inciso LIV, onde “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 1988), dando, ao cidadão brasileiro, a garantia de não ser privada de sua liberdade ou da propriedade de seus bens sem a tramitação de um devido processo estabelecido nos termos da lei.

Entretanto, uma vez que não há (nem poderia haver), no inquérito policial, a mesma estrutura dialética do processo, marcada fortemente pelo contraditório das partes, em condições de igualdade, as quais dotadas de iniciativa probatória à formação regular do convencimento do julgador, no inquérito, por sua vez, os poderes estão centrados no delegado de polícia, que, após instaurar o procedimento, muitas vezes por iniciativa própria, deverá conduzi-lo de ofício até o final, com a prerrogativa funcional de gestão dos atos instrutórios, restando ao investigado uma participação limitada na produção de informações e, por conseguinte, no convencimento do órgão investigador.

Isso não significa, contudo, que não haja qualquer dimensão de contraditório ou de defesa na investigação. A questão, por aqui, é de grau ou de nível quanto a esses direitos fundamentais (e inerentes) à garantia (maior) do devido procedimento legal (artigo 5º, LIV, da CRFB), que também vincula o inquérito policial num Estado de Direito. Nas palavras de Luigi Ferrajoli:

 

“Para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes: em primeiro lugar, que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação; em segundo lugar, que o seu papel contraditor seja admitido em todo Estado e grau de procedimento e em relação a cada ato probatório singular, das averiguações judiciárias e das perícias ao interrogatório do imputado, dos reconhecimentos aos testemunhos e às acareações. (grifos do autor).” (FERRAJOLI, 2010, p. 564)

 

Infere-se, assim, nitidamente, que o contraditório e a ampla defesa devem ser intrínsecos a qualquer procedimento relacionado com os direitos fundamentais, principalmente, o da dignidade da pessoa humana e o devido processo legal. Neste contexto, surge a Lei N° 13.245/16, a qual contribui para a defesa da aplicabilidade dos aludidos princípios na investigação criminal.

A Lei N°13.245/16 ampliou o rol de direitos do advogado, dispostos no Estatuto da Advocacia, inserindo, sobretudo, direitos advocatícios exercidos em favor dos clientes investigados durante a apuração de infrações, conforme redação a seguir:

 

“Art. 7.º São direitos do advogado:

(…)

XXI – assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:

  1. a) apresentar razões e quesitos.” (BRASIL, 2016)

 

Assim sendo, foi concedida permissão ao advogado para apresentar motivos e quesitos, durante a apuração de infrações, demonstrando evidente a possibilidade de ampla defesa e do contraditório na fase persecutória penal, reforçada pela nulidade absoluta existente nas oitivas realizadas com o cerceamento da participação do advogado.

 

2.3 Princípio da legalidade

O princípio da legalidade constitucional emerge como delimitador da atuação da autoridade policial, exercendo um controle na atuação dos agentes públicos que atuação na investigação criminal — Autoridade Policial e Ministério Público— determinando o curso da investigação criminal e limitando o arbítrio discricionário estatal, de modo que o investigado tenha seus direitos e garantias assegurados e respeitados no curso da investigação.

Tal princípio se justifica pelo fato de que em um Estado Democrático de Direito toda atuação é limitada pela Constituição e pelas leis infraconstitucionais, para que a legalidade do uso da força estatal seja justa e equânime. (HOFFMANN; 2018)

Nos termos do artigo 240, §2º, do Código de Processo Penal, a diligência só poderá ser efetivada no caso de fundada suspeita. Ocorre que esse conceito é extremamente fluído, cabendo, na maioria dos casos, ao próprio policial, de acordo com a situação e levando-se em conta a sua experiência, verificar a necessidade da busca, sempre de maneira impessoal e objetiva.

Além disso, não basta que os meios de obtenção de provas adotados pela polícia judiciária estejam previstos em lei ou tenham sido autorizados judicialmente. No desempenhar desses procedimentos, é preciso respeitar os limites impostos pelo ordenamento jurídico, sendo que, para tanto, é essencial a atuação do delegado de polícia como autoridade com formação jurídica. Toda busca e apreensão, por exemplo, deve resultar na elaboração de um auto circunstanciado da diligência, assim como ocorre com a interceptação telefônica. Aliás, o simples cumprimento de um mandado de prisão deve se concretizar com base nos preceitos legais, não havendo espaço para flexibilizações nessa seara.

Assim, o princípio da legalidade estabelece um padrão para o exercício da atividade de polícia judiciária, não podendo o policial afastar-se em momento algum das premissas fixadas pelo ordenamento jurídico, sob pena de enveredarmos para uma seara totalitarista e um Estado policialesco, onde os direitos fundamentais são relegados a um segundo plano com o pretexto de se promover a segurança pública.

 

2.4 Direito ao sigilo

Nos termos do artigo 20 do Código de Processo Penal, o inquérito policial será sigiloso, não devendo ser repassado, à sociedade num geral, informações sobre as diligências que serão realizadas a fim de se desvendar a verdade, ou acompanhar as investigações realizadas por policiais, com o intuito de não viciar os atos investigatórios, conforme o jurista Fernando da Costa Tourinho Filho afirma então:

“Embora não se trate de regra absoluta, como se entrevê da leitura do artigo 20, deve a autoridade policial empreender as investigações sem alarde, em absoluto sigilo, para evitar que a divulgação do fato criminoso possa levar desassossego à comunidade. E assim deve proceder para que a investigação não seja prejudicada. Outras vezes o sigilo é mantido visando amparar e resguardar a sociedade, vale dizer, a paz social.” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 49)

 

Assim, o sigilo do inquérito policial, também, busca salvaguardar a intimidade do investigado, resguardando-se, assim, seu estado de inocência, uma vez que o direito à inviolabilidade da intimidade, honra e imagem daquele que está sendo indiciado são aspectos pessoais de sua vida, conforme art. 5, X da CF/88.

O sigilo pode ser classificado em externo e interno na fase investigativa. O sigilo externo relaciona-se com a ausência de acesso perante toda a sociedade ao inquérito policial, enquanto o sigilo interno diz respeito à impossibilidade de o investigado ter conhecimento do que está ocorrendo na investigação. Neste compasso, ensina Edilson Bonfim:

“Há, entretanto, que se fazer distinção entre: a) sigilo externo e b) sigilo interno. O sigilo externo diz respeito à restrição a publicidade dos atos de investigação com relação às pessoas do povo. Já o sigilo interno constitui impossibilidade de o investigado tomar ciência das diligências realizadas e acompanhar os atos investigatórios a serem realizados.” (BONFIM, 2012, p. 260)

 

Todavia, não se perfaz absoluto tal sigilo, uma vez que a condição da pessoa investigada deve ser respeitada, em todos os seus princípios, e o sigilo total impediria o acesso aos autos pelo advogado, direito assegurado pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, e violaria o direito de defesa.

Partindo dessa premissa, conclui-se que o sigilo deve existir apenas quando for estritamente necessário, devendo assim ser interpretado o artigo 20 do Código de Processo Penal. O sigilo interno pode ser utilizado para localizar um suspeito, garantir a efetividade de uma medida sigilosa, como quebra de sigilo bancário e telefônico, contudo deve haver uma fundamentação essencial, com respeito à proporcionalidade, sendo delimitada a sua extensão e a sua duração, aplicando-se tais premissas à ação controlada.

 

Considerações finais

A despeito de o principal instrumento de investigação brasileiro ter sua disciplina legal prevista em documento proveniente da década de 40, interpretado tradicionalmente como um instrumento arbitrário, que ganhou força durante o regime não democrático, a análise da evolução do sistema normativo, desde o jusnaturalismo até o pós-positivismo refletindo na evolução doutrinária referente aos atos de investigação preliminar tem ficado cada vez mais distante.

No sistema processual penal atual o Inquérito Policial, procedimento preliminar investigatório a cargo da polícia judiciária, é o procedimento administrativo no qual se busca apurar indícios de autoria e materialidade de um fato presumidamente criminoso através de diligências determinadas por uma autoridade policial e realizadas pelos agentes de polícia à sua disposição, na missão de proceder, imediatamente, à coleta de elementos para apuração da infração penal, podendo adotar medidas de urgência a fim de que os vestígios não pereçam.

O inquérito policial tem, portanto, natureza cautelar, já que tem por finalidade preservar eventuais meios ou elementos de prova, sendo empregado, ainda, para reconstruir a narrativa do fato investigado a fim de informar e instruir a autoridade judicial e o acusador, público ou privado, podendo embasar não só um pedido formal de acusação, mas também um eventual requerimento de arquivamento em face da ausência de elementos que apontem a autoria ou que atestem a materialidade delitivas.

Outra função do Inquérito Policial é a de oferecer elementos à autoridade judicial para que decida acerca da necessidade ou não da decretação de medidas que refletem na esfera dos direitos fundamentais do investigado, tais como a decretação de prisões cautelares ou a quebra de seu sigilo bancário ou telefônico, atuando como um referencial ao juízo para tomada de decisões importantes no curso da persecução criminal.

Verifica-se, assim, que a investigação criminal constitucional não se resume aos simples conjuntos de procedimentos a serem observados pelo Delegado de Polícia no curso da investigação, cuja natureza é eminentemente inquisitiva, tampouco a apuração de responsabilidade penal do agente delitivo, sem qualquer observância legal ou constitucional, uma vez que simboliza a observância pela Polícia Judiciária de todo regramento legal ou constitucional, sob pena de maculação da investigação.

Nesse contexto, o princípio da legalidade constitucional exsurge como delimitador da atuação da autoridade policial, exercendo um controle na atuação dos agentes públicos que atuação na investigação criminal, determinando o curso da investigação criminal e limitando o arbítrio discricionário estatal. Isso porque os elementos informativos colhidos no decorrer da investigação sob a ótica constitucional, passam a ser afetados pelos valores constitucionais, de modo que os investigados tenham seus direitos e garantias asseguradas e respeitadas no curso da investigação. Por outro lado, qualquer medida que afronte tais garantias e direitos será eivada de nulidade, de modo que o Delegado de Polícia terá sempre como norte o caminho da legalidade, respeitando aquilo que é assegurado a investigado.

Ademais, a Investigação Criminal deverá ser norteada pelo princípio da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, pautada pelo respeito aos direitos e garantias individuais, visto que o entendimento acerca da necessidade de um procedimento extraprocessual preliminar democrático mostra-se fundamental, mormente em razão da influência dos elementos produzidos em fase extrajudicial para a ação penal.

 

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