Justiça Penal Consensual e o Processo Penal Brasileiro

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Consensual Criminal Justice and the Brazilian Criminal Procedure

Laíze Rodrigues do Nascimento[1]

Marco Antonio Delfino de Almeida[2]

Resumo: O presente trabalho objetiva estabelecer uma relação de como o atual modelo de justiça criminal influenciou no agravamento da situação carcerária do país que se tornou um ambiente com constantes violações a direitos mínimos para uma existência digna. Partindo então desse ponto para uma análise dos benefícios em empregar o consenso na justiça criminal e ainda o surgimento de novos instrumentos de política criminal como alternativa às ferramentas tradicionalmente usadas a fim de permitir uma resposta mais eficiente para a sociedade e à vítima e ao mesmo tempo conferir maior proteção aos direitos humanos, bem como proporcionar uma visão crítica sob o processo penal brasileiro. No caminhar para estabelecimento do consenso no processo penal surge o acordo de não persecução penal, inicialmente regulamentado pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e depois normatizado pela Lei 13.964/2019.

Palavras-chave: Justiça Consensual. Acordo de Não Persecução Penal. Processo Penal.

 

Abstract: The present work aims to establish a relationship of how the current model of criminal justice has influenced the worsening of the country’s prison situation that has become an environment with constant violations of minimum rights for a dignified existence. Starting from this point is an analysis of the benefits of employing consensus in criminal justice and the emergence of new criminal policy instruments as an alternative to the traditional tools used to enable a more efficient response to society and the victim at the same time. Give greater protection to human rights, as well as provide a critical view of the Brazilian criminal process. In the process of establishing consensus in the criminal process, the non-criminal prosecution agreement arises, initially regulated by Resolution 181/2017 of the National Council of the Public Prosecutor’s Office and later standardized by Law 13.964 / 2019.

Keywords: Consensual Justice. Non-Persecution Agreement. Criminal proceedings.

 

Sumário: Introdução. 1Bloco de Constitucionalidade (Direitos Humanos e o STF). 2 Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas Para Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio). 3 Encarceramento e a Crise no Sistema Prisional; 4 Justiça Penal Consensual; 4.1Contextualização Histórica. 4.2 Consenso no Processo Penal. 5Acordo de Não Persecução Penal. 5.1 O Acordo de Não Persecução Penal na Lei 13.964/19. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Com o objetivo de assegurar que os horrores recentemente experimentados na Segunda Guerra Mundial e munidos da ânsia de que as atrocidades vividas naquele período não mais se repetissem surgem as Nações Unidas. Durante a Conferência sobre Organização Internacional, realizada em São Francisco, entre abril e junho de 1945 foi elaborada a Carta das Nações Unidas documento que cria oficialmente a organização internacional conhecida como Nações Unidas. Forjadas sob o propósito de atuar na manutenção da paz e da segurança internacionais, no desenvolvimento de relações amistosas fundadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, a formação de uma cooperação internacional para resolução de problemas internacionais bem como estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais e por fim ser um centro para harmonização de ações das nações para a consecução dos objetivos comuns.

A compreensão sobre Direitos humanos decorre de um longo processo histórico de evolução e afirmação, a doutrina comumente os divide em gerações ou dimensões. As gerações se sucedem no tempo e a existência de uma não anula a outra.

 

A primeira geração está relacionada aos direitos civis são aqueles relacionados a não intervenção do Estado na liberdade do indivíduo, é a garantia da liberdade de crença, de expressão, liberdade de propriedade. Conforme preceitua Ingo Wolfgang Sarlet são em sua essência direitos negativos, representam uma abstenção do Estado (SARLET, 2012, p. 32).

 

A dita segunda geração está relacionada aos direitos políticos são aqueles que permitem a participação do povo na condução do Estado, na tomada de decisões, na participação do processo político. Diferente da primeira geração, aqui o Estado passa a realizar prestações positivas.

Na terceira geração a principal característica é que se volta à proteção da coletividade, há a preocupação em garantir um meio ambiente equilibrado, insculpida na solidariedade e fraternidade. Os direitos humanos de quarta geração surgem com vistas a acompanhar as mudanças sociais havidas com a globalização.

Os Direitos Humanos apesar de inerentes ao ser humano são conquistas da sociedade de determinadas épocas, refletem os anseios e necessidades daqueles indivíduos, que após longos processos conseguiram estabelecer garantias mínimas. São direitos históricos que, como bem colocado por Noberto Bobbio em “A era dos Direitos”:

 

“(…) não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. (BOBBIO, 2004, p. 9)”

 

O fato de ser fruto de uma evolução histórica não significa que o surgimento de novas necessidades excluem os direitos já garantidos, em relação aos direitos humanos não é possível retroagir, apenas avançar, muito comum o uso da expressão efeito cliquet usada por alpinistas para definir o efeito que só permite que subam, impedindo-os de descer. No Brasil esse efeito é conhecido como princípio da vedação ao retrocesso, segundo o qual é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336).

 

No pós Segunda Guerra Mundial houve uma acentuada preocupação em garantir direitos mínimos para assegurar que todos os cidadãos do mundo possam viver livres e com dignidade, a partir da proclamação da DUDH todos os países signatários devem convergir para cumprir com o estabelecido nos 30 artigos da declaração bem como dos tratados sobre direitos humanos editados após o surgimento das Nações Unidas.

 

1 Bloco De Constitucionalidade (Direitos Humanos e o STF)

A Constituição de 1988, nascida após o término do regime militar, foi elaborada com vistas a retratar uma sociedade em processo de redemocratização. A nova Carta, conhecida como Constituição Cidadã, ampliou as liberdades civis e os direitos e garantias individuais. Claramente voltada à proteção dos direitos humanos a Constituição da República permaneceu silente quanto à recepção de tratados internacionais e seus efeitos, de modo que antes de 1988 o STF tinha jurisprudência firmada no sentido que os tratados internacionais possuíam a mesma hierarquia de leis ordinárias, podendo ser revogado ou deixar de ser aplicado em favor de lei específica, entendimento este que permaneceu após a promulgação da CF/88.

Um marco que motivou a mudança de posicionamento do STF em relação ao status dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos foi a Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004. Esta emenda promoveu uma reforma no Poder Judiciário, entre as mudanças aprovadas estão algumas diretamente ligadas aos direitos humanos, tais como: constitucionalização de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos (art. 5º, § 3º, CF/88), submissão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (art. 5º, §4º, CF/88) e o deslocamento de competência para a Justiça Federal nos casos de grave violação de direitos humanos (art. 109, §5º, CF/88). As mudanças aprovadas pela EC n º 45 reforçaram o compromisso do Estado brasileiro na proteção aos direitos humanos.

Em 2008, por oportunidade do julgamento do RE nº 466.343-1, o STF firmou jurisprudência reconhecendo que os tratados internacionais de direitos humanos ocupam posição especial em nosso ordenamento jurídico, possuindo um status supralegal, uma vez que estão abaixo da constituição, mas acima das demais leis. Em seu voto o Ministro Gilmar Mendes destacou que:

 

“O caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. (voto vogal Recurso Extraordinário 466.343-1 São Paulo, p. 61)”

 

O RE nº 466.343-1 debateu a possibilidade da prisão civil do depositário infiel, visto que a prisão do depositário infiel ia de encontro ao disposto no art. 7 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, que veda a prisão civil por dívida, salvo aquela decorrente do inadimplemento de obrigação alimentar. Segundo o entendimento do STF anterior a 2008 a CADH possuía a mesma hierarquia das demais leis do ordenamento jurídico pátrio e por ser uma norma geral não poderia ser aplicada em desfavor de norma específica. Até então os tratados internacionais sobre direitos humanos possuíam a mesma hierarquia das leis ordinárias, no julgamento do RE nº 466.343-1 a divergência levantada girava em torno da tese a ser adotada em relação ao status desses tratados, seriam eles materialmente constitucionais, defendida pela minoria representada pelo voto do Ministro Celso de Mello, ou supralegais, vindo a ser firmada a segunda tese.

A EC nº 45 e as discussões originadas a partir dela firmaram o posicionamento do STF no sentido de entender que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos servem como parâmetro para a interpretação da Constituição e para o controle de constitucionalidade, tanto que sobre a prisão do depositário infiel o STF editou a Súmula Vinculante nº 25 que dispõe expressamente que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”.

Nesse sentido merece destaque o termo usado pelo Ministro Celso de Mello em seu voto no referido RE 466.343-1, ao colocar que os tratados ratificados pelo Brasil que versam sobre direitos humanos constituem um bloco de constitucionalidade:

“Os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando, ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC nº 45/2004, como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade.”

O bloco de constitucionalidade representa um conjunto normativo que é adicionado à Constituição  em função dos valores e princípios nela apresentados, assim o bloco de constitucionalidade tem a mesma força normativa da Constituição.

O termo bloco de constitucionalidade tem origem no direito francês, cunhada pelo constitucionalista Louis Favoreu. Quando da edição da Constituição de 1958, o Conselho Constitucional da França incluiu no Preâmbulo da Constituição o respeito à Declaração do Homem e do Cidadão de 1789 e também ao Preâmbulo da Constituição de 1946 o qual continha declaração de direitos econômicos e sociais. A decisão do Conselho tem relevado peso, pois firmou o valor jurídico do preâmbulo e ainda expandiu a conceituação de Constituição. Assim, uma Constituição não é apenas o texto elaborado pelo constituinte originário, ela é formada também por outras normas e princípios que irão nortear sua interpretação.

No caso brasileiro, normas formalmente infraconstitucionais que versam sobre direitos humanos passam a ser dotadas de natureza materialmente constitucional. Importante salientar que esse tratamento é dado a ampliar o rol de direitos e garantias fundamentais de modo a reverenciar a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade. O bloco de constitucionalidade é instrumento para a interpretação constitucional, uma vez que diante de situações concretas que representem ameaças a direitos fundamentais não apenas o texto central da Constituição deverá ser observado e sim todo o conjunto de normas que visam proteger esses direitos.

Apesar de a aplicação do bloco de constitucionalidade ser destinada principalmente ao judiciário, uma vez que em regra será usado como vetor para o controle de constitucionalidade, e dentro do sistema adotado pelo Brasil é o Poder Judiciário o responsável pela referida função, não é de uso exclusivo de esse poder e há um movimento, ainda que de forma tímida, da sua utilização pelo Poder Legislativo na elaboração de algumas leis. Com efeito, em março de 2016 e abril de 2017 o Congresso Nacional editou leis que alteraram artigos do Código de Processo Penal, Lei 13.257/2016 e  13.434/2017.

Ambas as alterações buscavam promover uma aproximação do processo penal ao estabelecido nas Regras de Bangkok, que representa um conjunto de regras para o tratamento de mulheres presas e a aplicação de medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A Regra 58 que tem por base da regra 2.3 das Regras de Tóquio dispõe que “mulheres infratoras não deverão ser separadas de suas famílias e comunidades sem a devida atenção ao seu contexto e laços familiares”, tal regra visa proteger não apenas a gestante como também o nascituro, trata-se de uma forma de evitar que a pena seja mais gravosa ou ainda que ultrapasse a pessoa do condenado, prática proibida no nosso ordenamento (CF, art. 5º, XLV). Nesse sentido, no século XVIII, Francesco Carrara pontuou:

 

“Aqui, el principio jurídico no se deriva de consideraciones a la condenada, sino de la obligación de no hacer aberrante la pena al darle muerte a la inocente criatura que esa mujer llevava en sus entranhas. Esta costumbre de suspender la ejecución capital contra la mujer encinta, se remonta hasta tiempos antiquíssimos (CARRARA, 2000, p. 128).”

 

São medidas com claro objetivo de promover uma pena mais humana. Contudo, mesmo diante dos esforços de provocar mudanças de paradigmas reiterados são os pedidos de habeas corpus concedidos pelo STF com fundamento na inobservância do art. 318 do Código de Processo Penal.

Em sua decisão no HC 134734 / SP o Ministro Celso de Mello pondera:

 

“O fato inquestionável, portanto, é um só: o objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de proteção integral aos direitos da criança, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se tiver presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser (necessariamente) implementado mediante adoção de políticas públicas consequentes e responsáveis (p. 08) .”

 

Há um movimento crescente na mudança da percepção do papel da pena restritiva de liberdade e na proteção de pessoas encarceradas. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressou com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 347-DF) objetivando que fosse reconhecida a figura do “estado de coisas inconstitucional” haja vista a constante violação de direitos fundamentais dos presos. Em verdade, essas mudanças são consequência da característica histórica dos Direitos Humanos que refletem e acompanham as necessidades da realidade social da época. Restando ao STF, e ao Poder Judiciário como um todo, acompanhar essas inovações e trazê-las ao plano constitucional como vetor de controle e interpretação das demais normas constitucionais.

 

2 Regras Mínimas Padrão Das Nações Unidas Para Elaboração De Medidas Não Privativas De Liberdade (Regras De Tóquio)

Segundo informações do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias até 2016 a população carcerária brasileira ultrapassou as 700 mil pessoas, das quais 40% estariam presas sem condenação. As Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio) refletem uma preocupação em humanizar a justiça criminal, com uma série de princípios para promover, sempre que possível,  de medidas não privativas de liberdade e ainda com a proposta de incluir a coletividade na participação do processo penal para a resolução de conflitos.

As Regras de Tóquio constituem uma série de princípios básicos que devem ser aplicados a partir da realidade política, econômica, social e cultural de cada país, sem deixar de observar os objetivos do sistema de justiça criminal e com vista a promover um equilíbrio entre os direitos de todas as partes do processo infrator, vítima e sociedade.  Referidas regras embora não detenham força de lei, iram operar como parâmetro normativo quando da edição de leis ou promoção de políticas públicas.

Regras como essas vão de encontro com a cultura punitivista incorporada na sociedade atual em que o infrator é visto como um inimigo :

 

“O inimigo não é pessoa: o indivíduo que não admite ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. O inimigo, por conseguinte, é uma não-pessoa. Como não-pessoa não é um sujeito processual, logo não pode contar com direitos processuais (…). (GOMES, 2007, p. 45)”

 

Investir em políticas que ofereçam alternativas ao encarceramento não é uma prioridade do Estado e o discurso reiterado é para penas mais rígidas e segundo a lógica adotada é que aumentar a punição diminui a criminalidade, algo que a realidade mostra não funcionar.

O artigo 5 das Regras de Tóquio apontam para medidas que podem ser adotadas pelo Estado antes do processo e dispõe que sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas.

No que diz respeito à atuação policial existe instrumento que permite que diante de situações em que não existam elementos mínimos para instauração (VPI) de inquérito policial poderá ser realizada uma verificação de procedência de investigação, um procedimento por meio do qual serão levantadas informações preliminares sobre o fundamento da notitia criminis e somente após decidirá pela instauração ou não do inquérito policial. A verificação de procedência de informações está prevista no art. 5º, § 3º do Código de Processo Penal e  no art. 2º, § 1º da Lei 12.830/2013 e representa um filtro que evita a instauração temerária de inquéritos policiais. Ainda que ao fim da verificação o delegado de polícia decida pela não instauração do inquérito isto não afastará a possibilidade de ser instaurado futuramente caso apareçam novos indícios e não afasta a possibilidade de controle interno pela Corregedoria, controle externo realizado pelo Ministério Público e o controle judicial.

Considerando o disposto nas Regras de Tóquio, além de outros fundamentos, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução 181/2017 alterada pela Resolução 183/2018 que dispôs sobre a possibilidade de em determinadas circunstâncias o membro do Ministério Público propor a celebração de acordo de não persecução penal, assunto que será abordado adiante, um instrumento de política criminal que se propõe a promover a celeridade na resolução de casos mais simples e a redução dos efeitos danosos de uma sentença condenatória criminal.

Mostra-se a clara preocupação de permitir que outros atores participem na efetivação de medidas menos gravosas. Apontando para a possibilidade de que tais medidas possam ser usadas em momentos distintos, como é o caso do artigo 5 que apresenta medidas anteriores ao processo de modo a possibilitar uma redução nos efeitos prejudiciais da pena que são sentidos tanto pelo condenado quanto pela sociedade e ainda permitindo desafogar o sistema prisional. São alternativas para uma justiça criminal mais simétrica em que a pena cumpra as finalidades que a lei estabelece de modo a preservar a democracia e os princípios constitucionais.

 

3 Encarceramento E A Crise No Sistema Prisional

A situação carcerária no país demonstra sinais de falência há algum tempo. Na história recente alguns acontecimentos evidenciam a falta de controle do Estado nas prisões espalhadas pelo território nacional, onde em verdade o domínio está com as facções criminosas que ditam as regras dentro do cárcere.

Inúmeros casos reforçam o argumento de que o sistema penitenciário brasileiro enfrenta uma grave crise estrutural, episódios como o massacre na Casa de Detenção Carandiru (1992), as dezenas de detentos mortos em confrontos no presídio Doutor José Mário Alves da  Silva (2002) ou no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (2019) e é um problema que se estende no tempo. O ponto comum desses episódios está na origem em confrontos entre facções o que permite a constatação de que em 27 anos não houve mudanças consideráveis no sistema carcerário no Brasil.

A Constituição Federal no seu art. 5º, inciso XLVII, assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, estabelece que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes e toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. Contudo o real cenário do sistema carcerário mostra-se em colapso, segundo dados do Sistema Prisional em Números o Brasil tem uma taxa de  superlotação de 169%, são 739 mil presos quando a quantidade de vagas é 437 mil vagas.

Há, no entanto críticas quanto a esses números, em artigo publicado na edição de 05 de setembro de 2017 do jornal Estado de S. Paulo o Promotor de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Bruno Amorim Carpes afirma haver um inflacionamento intencional dos dados apresentados devido ao fato de os órgãos considerarem o número global de detentos, sem fazer diferença entre os tipos de regime de cumprimento de pena, a justificativa para isso acontecer seria o interesse dos estados membros nos repasses do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN). Outro erro apontado pelo promotor seria considerar no cálculo os presos provisórios, contrapondo tal argumento o Defensor Público do estado do Paraná André Giamberardino afirma que:

“A hipótese de não se levar em conta presos provisórios na estatística prisional por causa da suposta precariedade e brevidade da prisão é um descomunal absurdo e indica, com clareza, a ausência de uma perspectiva sistêmica capaz de compreender que, independentemente da sorte de fulano ou beltrano, o que interessa é a ocupação da vaga por alguém, seja a mesma pessoa de ontem ou não. Mais uma vez: para a análise do problema da ausência de vagas e do crescimento desenfreado da população carcerária, o dado que interessa é exclusivamente o (des)equilíbrio entre entradas e saídas em um período determinado, independentemente se as mesmas ou diferentes pessoas estão sendo presas e soltas.”

Acertadamente conclui Giamberardino:

 

“Ocorre que a doxa se converte em práticas irresponsáveis: justificar moralmente a superlotação carcerária tem por efeito prático não só a banalização de condições de custódia vergonhosas, mas também o fortalecimento dos mecanismos de articulação de grupos criminosos organizados que foram fundados e organizados dentro do sistema penitenciário nacional, fazendo com que o superencarceramento tenha passado a ser uma de suas principais bases materiais de recrutamento e expansão. Fulmina também as possibilidades de expansão de políticas de trabalho e educação, bem como atinge diretamente as condições de trabalho de agentes penitenciários e outros servidores que atuam no interior do sistema prisional.”

 

A situação da população carcerária foi objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, na qual se buscou que fosse reconhecida a violação de diversos direitos fundamentais dos presos e que fosse determinada a adoção de providências no tratamento da questão prisional do país. Entre os pedidos da ADPF constavam: a) a necessidade de motivação expressa por não aplicar medidas cautelares alternativas à privação de liberdade quando da determinação ou manutenção de prisão provisória; b) implementação das audiências de custódia; c) declaração do “estado de coisas inconstitucional”; d) elaboração de um plano com vistas a superação do quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro, entre outros pedidos.

Em seu voto o relator, Ministro Marco Aurélio, menciona relatório da final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em 2009, o qual concluiu que:

“A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes e degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário.”

Observa o Ministro o desrespeito ao núcleo de direitos fundamentais previstos na Constituição da República, a inobservância de tratados internacionais e bem como a transgressão da legislação interna em relação a falta de garantia de cela individual salubre e com área mínima de seis metros quadrados (Lei nº 7.210/84). Reconheceu uma falha estrutural para a situação, não sendo possível apontar como único responsável o Poder Executivo. O STF reconheceu a existência de um “estado de coisas inconstitucional” ante:

 

“A violação generalizada de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a situação; a superação das transgressões exigir a atuação não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade de autoridades (Corte Constitucional da Colômbia, Sentencia nº SU-559, de 6 de novembro de 1997; Sentencia T-068, de 5 de março de 1998; Sentencia SU – 250, de 26 de maio de 1998; Sentencia T-590, de 20 de outubro de 1998; Sentencia T – 525, de 23 de julho de 1999; Sentencia T-153, de 28 de abril de 1998; Sentencia T – 025, de 22 de janeiro de 2004).”

 

Nota-se a necessidade da atuação conjunta do Executivo, Legislativo e Judiciário para a correção de um problema decorrente de anos de políticas públicas falhas, ou até mesmo inexistente. De tal modo que se possa aventar a possibilidade de a pena ressocializar os condenados.

 

4 Justiça Penal Consensual

4.1 Contextualização Histórica

Antes de abordar o tema da justiça penal consensual é importante ter em vista o panorama da evolução histórica do direito penal para a correta compreensão da forma como se estabeleceu e dos princípios do sistema punitivo contemporâneo. Embora a doutrina dividida em algumas fases a evolução do Direito Penal, não é correto pensar que essas fases foram sucessivas e caminharam de forma linear, será possível notar princípios que se repetem.

O direito penal é forma pela qual se estabelece um meio para punir aqueles que prejudicam o viver em sociedade, as primeiras respostas do direito penal surgem em forma de vingança, sendo esta dividida em três: vingança privada, vingança divina e vingança pública.

A vingança privada a reação ao crime partia da própria vítima, da família ou do próprio grupo a que pertencia. É neste período que surge a conhecida Lei de Talião (jus talionis), de origem do latim cujo significado é castigo na mesma medida da culpa, é o primeiro marco de delimitação de castigo, uma vez que a punição a ser aplicada deveria ser proporcional ao dano por ele causado.

A seguir tem-se a vingança divina, há uma confusão entre direito e religião e o crime é visto como um pecado que atingia a Deus e não diretamente a vítima, assim a pena aplicada era em verdade um castigo divino que era visto como passagem para a purificação e salvação da alma. A vingança divina tem princípios no Código de Manu, Código de Hamurabi e em regiões do Egito, Assíria, Fenícia, Israel e Grécia.

Adiante se tem a vingança pública, ainda com influência religiosa a punição passou a ser aplicada pelo monarca, em nome de Deus. Importa em certa evolução na aplicação das penas que embora as penas aplicadas fossem de rigor excessivo representava um limite à atuação individual.

Posteriormente há período que pode ser delineado é o direito penal dos povos, com destaque no Direito Romano, Direito Germânico e Direito Canônico. A República Romana representa a abolição da vingança privada e passa ao Estado a titularidade do direito penal. É no Direito Romano que importantes características do direito penal surgem como o elemento subjetivo doloso, noções de imputabilidade e culpabilidade, o início da teoria da tentativa.

O próximo período é o humanitário que surgiu durante o século XVIII, influenciado pelos ideais iluministas. Neste cenário o problema punitivo estava desvinculado da religião, o crime se fundava no contrato social infringido e a pena era tida como uma medida preventiva. Neste período destaca-se o pensador Cesare Becaria com sua famosa obra Dos Delitos e das Penas de 1964, que trouxe uma nova concepção sobre a finalidade da punição.

Por fim temos o período contemporâneo com início marcado pela publicação do livro “O homem delinquente” de Cesare Lombroso e com a aparição dos primeiros códigos penais liberais, como decorrência do movimento humanitário.

Nota-se um crescente discurso punitivista ou Direito Penal Máximo, a crítica é que este discurso atende somente a um determinado grupo social, o direito penal é transformado em um instrumento de coação. Nesse sentido há uma produção legislativa intensa a fim de criminalizar um grande número de condutas incorretas, contudo esse movimento dificulta que as infrações sejam devidamente punidas e torna o Direito Penal mais seletivo o que influi diretamente no aumento da chamada cifra negra. Nas palavras de Rogério Greco:

 

“Na verdade, o número excessivo de leis penais, que apregoam a promessa de maior punição para os deliquentes infratores, somente culmina por enfraquecer o próprio Direito Penal, que perde seu prestígio e valor, em razão da certeza, quase absoluta, da impunidade. (GRECO, 2011, p. 17)”

 

Contrapondo o Direito Penal Máximo tem o Direito Penal Mínimo, que representa um ponto mais equilibrado, neste defende-se que o foco deve ser punir infrações grandes que atingem bens mais importantes ao convívio social, não se trata de deixar impune, mas sim de aplicar sanções de natureza diversa como a cível ou a administrativa.

 

4.2 Consenso no processo penal

Ao analisar a evolução histórica do direito penal nota-se a gradativa substituição da vítima/particular pelo Estado, sendo ele o responsável pela punição à conduta criminosa. Nesse sentido o Estado age como representante da vontade social e a fim de evitar o descrédito de sua atuação formou-se um ordenamento jurídico robusto e burocratizado com regras que orientam o processo, ainda o expansionismo punitivo criminalizou muitas condutas aumentando consideravelmente a demanda por resposta do Estado, resultado desse cenário é um sistema judicial demasiadamente lento e pouco efetivo.

Segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o tempo médio de tramitação dos processos criminais baixados na fase de conhecimento do 1º grau tem uma média de 3 anos e 10 meses na Justiça Estadual e 2 ano e 3 meses na Justiça Federal, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a média de duração de um processo criminal é 8 anos e 2 meses. Nas últimas décadas mudanças sociais políticas e econômicas contribuíram para a formação de uma sociedade imediatista, de modo que a justiça penal é vista como incapaz de dar uma resposta adequada à criminalidade.

Nesse contexto surge a Justiça Consensuada, uma forma de resolução de conflitos com a peculiaridade de ao fim o conflito ser resolvido pela concordância entre os envolvidos quanto ao desfecho. A Justiça Consensual é um modelo do qual surgem submodelos, tais como o modelo reparador que tem o objetivo de reparar os danos e pode ser observado na conciliação; o modelo pacificador ou restaurativo é a chamada justiça reparativa, além da reparação do dano o objetivo é a pacificação interpessoal e social do conflito; tem-se ainda o modelo de justiça negociada efetivado pela plea bargaining, tem como base a confissão do delito e a realização de entre a acusação e defesa para definir a penalidade a ser aplicada; por fim o modelo de justiça colaborativa cujo o alvo é obter a colaboração do acusado, materializado pela colaboração premiada.

A justiça consensuada ou negociada nasce no século XX nos Estados Unidos criando um procedimento para permitir a negociação para todo tipo de delito, com destaque para o instituto do plea bargaining. Neste modelo dá-se ciência da acusação ao imputado para que se pronuncie sobre a culpabilidade, se há a confissão opera-se a resposta da defesa e poderá o juiz fixar a sentença ocasião em que será definida a pena, normalmente reduzida ou porque menos grave ou por abranger menos crimes em razão do acordo entre as partes, se que para isso haja a necessidade de um processo; contudo se o acusado não aceitar os termos será dado início ao processo que tramitará normalmente.

Como vantagem pode-se apontar: a) permite o pronto julgamento da maioria dos assuntos penais; b) evita-se os prejuízos causados em virtude da demora do processo; c) aumenta o caráter educativo da pena, proporcionando a reabilitação do infrator; d) com a economia dos recursos materiais e humanos aumenta-se a eficiência no julgamento dos casos. Como desvantagens têm-se: a) o Estado-juiz atua apenas no papel de homologar os acordos; b) basear-se na confissão com risco de haver algum tipo na realização do acordo quando o acusado não é devidamente assistido por defesa técnica.

A justiça consensual busca assim substituir o modelo de uma solução meramente punitiva para uma solução mais construtiva (reparadora). Esse modelo muito adotado por países do Commom Law demonstra-se útil para certos tipos de infrações bem como para evitar o colapso do sistema de justiça.

No Brasil o marco inicial da justiça consensual foi a criação do instituto da transação penal na Lei 9.099/90. Na transação penal a pretensão punitiva é disposta pelo Ministério Público em troca do cumprimento de obrigações pelo autor dos fatos, mas apenas no âmbito das infrações de menor potencial ofensivo. Uma grande diferença entre a transação penal e o instituto do plea bargaining é que além de não ser admitida para todos os tipos de crime, nela não há o reconhecimento da culpa pelo acusado e a sentença judicial não é condenatória em sentido estrito, tanto que permanecerá o autor do fato como primário e de bons antecedentes.

Além da Lei dos Juizados a Lei 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), ainda que de forma simples aborda  disposições alinhadas com a Justiça Consensual, esta lei contemplou e disciplinou sobre a colaboração premiada.

Por fim, em dezembro de 2019 o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.964, que ficou popularmente conhecida como “pacote anticrime”, a referida lei promoveu alterações ao direito penal e processual penal, ainda prevê a possibilidade de formalização de um acordo de não persecução penal, assunto que será abordado no próximo tópico.

 

5 Acordo De Não Persecução Penal

O acordo de não persecução penal foi introduzido no cenário jurídico nacional em 2017 por meio da Resolução 181, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que definiu as regras norteadoras do procedimento investigatório criminal e dispôs sobre a possibilidade do acordo de não persecução penal. Logo após a publicação da Resolução 181/2017 houve diversas críticas quanto ao conteúdo por ela disposto e com isso o CNMP promoveu alterações a fim de corrigir algumas lacunas e publicou a Resolução 183/2018.

O principal ponto de debate da Resolução era quanto ao disposto em seu artigo 18, que estabelecia os requisitos para a celebração do acordo de não persecução. A referida resolução foi alvo de duras críticas, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ingressaram com duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade de números 5793 e 5790, respectivamente. As ações apontavam, entre outras questões, para a falta de regra exigindo a presença de defesa técnica para formalização do acordo erro esse que foi corrigido com a redação dada pela Resolução 183/2018.

Outra questão levantada pelas ADI’s foi sobre a competência para legislar, conforme disposição do artigo 22 da Constituição Federal compete privativamente à União legislar sobre direito penal e processo penal. Contudo esse ponto pode ser considerado superado com a aprovação da já mencionada Lei 13.964/2019, que formalmente introduziu o acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico pátrio.

 

5.1 O acordo de não persecução penal na Lei 13.964/19

A Lei 13.964/19 definiu os requisitos a serem cumpridos para a celebração do acordo de não persecução penal. O caput do art. 28-A do Código de Processo Penal dispõe que quando não for caso de arquivamento, e tendo o investigado confessado formal e circunstanciadamente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, já consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto (§1º), o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal.

O caput deixa claro que a iniciativa para propor o acordo é do MP, que após realizar o juízo de oportunidade da ação penal oferece ao investigado a opção de celebrar o acordo ou seguir com ação pelo caminho tradicional. A opção pela via negocial apresenta vantagens ao acusado uma vez que não se constitui em um aumento do poder punitivo estatal, visto que não é imputada uma pena e possibilita uma nova chance ao autor do delito ao afastá-lo de experimentar as mazelas do sistema prisional brasileiro.

Dos incisos I ao V o legislador estabelece quais as condições para ser firmado o acordo, tais como reparação do dano à vítima, quando possível; renunciar a bens e direitos indicados pelo MP como instrumentos, produto ou proveito do crime. No que tange às condições não houve grandes mudanças ao que já era observado pela Resolução 181/2017 do CNMP, a principal diferença está nos incisos III e IV que passou para o juízo da execução a competência para indicar entidade pública ou de interesse social para a prestação de serviços ou para pagamento de prestação pecuniária.

Adiante, em especial, nos parágrafos 4º e 5º fica definida como se dará a participação do poder judiciário no desenvolvimento do acordo de não persecução, incumbindo ao magistrado a função de homologar o acordo a fim de verificar a voluntariedade e as condições, podendo devolver os autos ao MP para a readequação da proposta. Verifica-se que a figura do juiz ganhou maior participação, uma vez que via de regra na Justiça Penal Negociada apenas Ministério Público e defesa é que fazem parte da relação, ficando o juiz restrito à análise quanto a voluntariedade e legalidade.

Caso alguma condição estabelecida no acordo seja descumprida o Ministério Público comunicará ao juízo, para rescindir o acordo e posteriormente oferecer a denúncia conforme disposto no §10 do art. 28-A. Ainda, o § 11 estabelece que o descumprimento poderá ser utilizado como justificativa para não oferecimento de suspensão condicional do processo.

Uma das vantagens, para o acusado, em celebrar o acordo de não persecução é que ao final, cumprido integralmente, este não constará de certidão de antecedentes criminais e será extinta a punibilidade, conforme expressa disposição dos §§ 12 e 13.

Embora o acordo de não persecução penal já faça parte da realidade do sistema de justiça brasileiro, tendo em vista que já era aplicado por alguns órgãos do Ministério Público por força da então Resolução 181 do CNMP, ele passou a ser obrigatório por imposição legal de modo que diante da recusa do Ministério Público o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior (§14).

A Lei 13.964/2019 foi alvo de quatro ações diretas de inconstitucionalidade, em de alguns dispositivos que alteraram o Código de Processo Penal e do Código Penal. Em 15.01.2020, o Ministro Dias Toffoli concedeu parcialmente as medidas cautelares pleiteadas nas ADIs 6.298, 6.299 e 6.300 e suspendeu a eficácia dos arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, caput, 3º-E e 3º-F do CPP pelo prazo de 180 dias, referidos artigos versam sobre a implementação do juiz das garantias.

Por fim, a ADI 6.305, ajuizada em 20.01.2020 pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, foi distribuída ao Ministro Luiz que proferiu nova decisão suspendendo sine die a eficácia da implantação dos artigos 3º-A a 3º-F; 157, §5º; caput do art. 28 e 310, §4º todos do CPP. Referida ADI questiona ainda os incisos III e IV do art. 28-A, bem como os parágrafos 5º, 7ºe 8º do mesmo artigo, haja vista que confere ao magistrado um controle do acordo de não persecução penal que foge da dimensão homologatória e fiscalizatória quanto a legalidade do mesmo.

Apesar de a decisão não suspender a eficácia do artigo que versa sobre o acordo de não persecução penal, outro ponto sobre o qual vale chamar atenção de que na forma do art. 3º-B, inciso XVII cabe ao juiz das garantias decidir sobre a homologação do acordo.

São questões recentes e que ainda pendem de decisão do Supremo quanto a constitucionalidade dos dispositivos, mas verifica-se que de forma tímida o consenso começa a caminhar no direito pátrio, com vistas a uma justiça criminal mais humanitária e ao mesmo tempo proporcionando ações para garantir a proteção de direitos fundamentais. Imperioso reforçar que não se trata de impunidade e sim de equilíbrio entre o interesse público de punir os acusados de ato ilícito e o interesse destes em evitar uma possível sentença condenatória.

 

Conclusão

Trata-se de tema que demanda amplo debate sobre suas consequências e os possíveis resultados que poderão ser obtidos. A situação do sistema criminal no Brasil aponta que há muito que ser melhorado e os moldes da persecução penal permanecem praticamente inalterados em relação a forma como foi pensada quando da edição do Código de Processo Penal, há quase oitenta anos, com reflexo tem-se um Poder Judiciário desacreditado e a insatisfação com os resultados devolvidos para a sociedade, altos índices de criminalidade e impunidade, além de um sistema penitenciário que tende a retirar a humanidade daqueles que nele ingressam, passando de pessoa para coisa.

O mencionado acordo de não persecução penal é relativamente novo, mas ainda assim tem sido paulatinamente implementado. De acordo com informações da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão no âmbito de atuação do Ministério Público Federal foram propostos 1.199 acordos, dos quais 322 referentes ao crime de contrabando ou descaminho, 188 de estelionato e 136 por uso de documento falso. Na Procuradoria da República no Estado de Mato Grosso do Sul foram propostos 74 acordos, dos quais 12 foram propostos pela Procuradoria da República no Município de Dourados.

A nova legislação ampliou o espaço para o debate sobre o consenso no processo penal. Há pontos frágeis na Lei 13.964/2020 que apenas o tempo permitirá uma análise quanto aos seus efeitos no sistema de justiça criminal, eventuais lacunas e dúvidas quanto a aplicabilidade dos dispositivos serão sanadas pela jurisprudência e doutrina.

É necessário esse trabalho de modernização no sistema de justiça criminal, trabalho esse que deve ir além da mera disposição legal, além do Poder Legislativo os Poderes Executivo e Judiciário deve proporcionar a modernização desse sistema. Nesse contexto a justiça penal consensual mostra-se como interessante alternativa para proporcionar maior resolutividade e celeridade ao processo penal. Assim verifica-se que um processo célere não é benéfico apenas para o acusado, mas para toda a sociedade.

 

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[1] Acadêmica do Curso de Direito no Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN. Email:

[email protected].

[2] Orientador. Especialista em Direito Constitucional, mestre em Antropologia Social e doutorando em História Indígena. Procurador da República. Professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos no UNIGRAN. Email: [email protected]

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