Renê Beckmann Johann Junior – Defensor Público do Estado de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (2011) e Pós-Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus (2013). E-mail: [email protected]
Resumo: Este trabalho estuda a possibilidade de realização do acordo de não persecução penal em ações penais que já estavam em curso quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime. Especialmente, o estudo foca na aplicação do instituto em processos que já estavam na fase recursal. Para tanto, a monografia traz uma análise dos aspectos gerais das inovações trazidas pela lei com ênfase no acordo de não persecução penal. Utiliza-se método interpretativo para comparar o acordo de não persecução penal com outros institutos despenalizadores, a exemplo da transação penal e da suspensão condicional do processo. O trabalho também enfrenta as divergências doutrinárias sobre a aplicação das leis penais e processuais penais no tempo e traz uma análise da jurisprudência já observada nos primeiros seis meses de vigência da nova lei.
Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal. Pacote Anticrime. Retroatividade.
Abstract: This paper studies the possibility of doing the non-criminal persecution agreement in criminal litigations that were already open when the new law came into force. Especially, the study focuses on the application of the institute in processes that were already in the appeal phase. Therefore, this monograph does an analysis of the general aspects of the innovations brought by Law 13.964/2019, known as the Anti-Crime Package, with a focus on the non-criminal prosecution agreement. An interpretative method is used to compare the non-criminal prosecution agreement with other institutes, such as the criminal transaction and the conditional suspension. The paper also faces doctrinal divergences about the application of criminal and procedural laws over time and brings an analysis of the jurisprudence already observed in the first six months of the new law.
Keywords: Non-criminal Prosecution Agreement. Anticrime Package. Retroactivity.
Sumário: Introdução. 1. Aspectos gerais do acordo de não persecução penal. 2. O momento da realização do acordo de não persecução penal e a possibilidade de celebração em processos já em andamento. 3. O acordo de não persecução penal em fase recursal. Conclusão. Referências.
Introdução
Às vésperas do Natal, no dia 24 de dezembro de 2019, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.964/2019 com o propósito de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, propósito esse já anunciado no artigo 1º do ato normativo.
Trata-se do denominado “Pacote Anticrimes”, largamente divulgado como um dos pilares reformistas prometidos pelo novo Governo Federal que tomava posse no início daquele ano.
Ao longo do processo legislativo, parte das propostas iniciais acabaram sendo destacadas para análise em momento futuro. Outra parte acabou sofrendo modificações através da atividade parlamentar. Também houve diversos vetos presidenciais ao projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional. Por fim, alguns dispositivos também acabaram tendo a vigência suspensa por decisão do Poder Judiciário.
Mesmo com todos esses percalços, é inegável que o ordenamento jurídico brasileiro restou bastante modificado por conta da lei aprovada, o que exige dos operadores do Direito uma reavaliação sobre a forma de se pensar e de se atuar em questões envolvendo o sistema processual penal brasileiro.
Dentre as alterações promovidas, reputa-se como uma das mais significativas a inclusão do artigo 28-A ao Código de Processo Penal, possibilitando a celebração de um acordo de não persecução penal entre o Ministério Público e o acusado, este sob a assistência de seu Advogado ou Defensor Público.
A relevância desse acordo é bastante ampla, até mesmo pelas próprias consequências jurídicas da avença. A título introdutório, pode-se citar a extinção da punibilidade ao agente que cumpre com as condições, sem que permaneça qualquer registro de antecedentes criminais em seu desfavor.
Também a vítima pode ser grande beneficiada do acordo, ao ter o seu prejuízo imediatamente reparado, sem precisar esperar que tramite todo o processo penal e ainda, eventualmente, lhe seja necessário mover uma ação civil posterior.
Contudo, apesar da longa redação do artigo 28-A do Código de Processo Penal, com seus diversos incisos e parágrafos, inúmeras questões não estão de antemão esclarecidas pela nova lei, sendo que o amadurecimento dos entendimentos só ocorrerá após longo período de debate nos casos concretos, formando-se a jurisprudência.
Dentre tantas questões a serem melhor elucidadas, uma delas diz respeito à possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal em outro momento, que não o anterior ao oferecimento da denúncia.
Tal questão é importante porque nem sempre a presença de todos os requisitos para a celebração do acordo estará visível no momento pré-processual. Além disso, inúmeros processos criminais em que os acusados atendem aos requisitos para o benefício estavam já em curso quando do início da vigência da nova lei. Por isso, estabelecer os limites temporais e processuais para a celebração do acordo será de salutar importância, tema esse que será largamente debatido nas instâncias forenses, sobretudo nos primeiros anos posteriores à vigência da Lei 13.964/2019, período em que as questões intertemporais ainda estarão latentes.
Não por outra razão, este trabalho analisa essa questão intertemporal que se relaciona com o acordo de não persecução penal, em especial a possibilidade de sua aplicação já em fase recursal, ou seja, posteriormente à publicação de uma sentença penal condenatória.
Por fim, com o intuito de contribuir não apenas com o debate teórico, mas também de oferecer uma contribuição prática ao trabalho forense, o estudo traz os entendimentos jurisprudenciais que começam a se revelar acerca da questão, especialmente no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
1. Aspectos gerais do acordo de não persecução penal
A ação penal pública no Direito brasileiro sempre teve suas raízes bem sedimentadas no princípio da obrigatoriedade e, por consequência, no princípio da indisponibilidade. Firmava-se na ideia de que a ação penal seria um instrumento inegociável, de iniciativa indispensável e decurso inegociável até o fim.
Sobre a obrigatoriedade, em rápida definição, pode-se estabelecer que os órgãos públicos com atribuição para a persecução penal não podem deixar de atuar, não cabendo juízo de conveniência e oportunidade quanto ao exercício da ação penal. O titular da iniciativa da ação penal apenas faz verificação da legalidade, ou seja, da presença dos pressupostos legais para o exercício da ação.
Já a indisponibilidade da ação penal, como bem pontuam Távora e Alencar (2011, p. 61), seria decorrência lógica da obrigatoriedade, determinando que aquela ação que obrigatoriamente se iniciou, não pode ser objeto de disposição por parte do titular. Assim, o autor da ação deve levá-la até o fim, ainda que postulando pelo julgamento de improcedência, caso, ao final do processo, esteja convencido da inocência do acusado.
Tais princípios do processo penal são fundamentais para a compreensão estruturante da atividade estatal persecutória. A partir deles é possível assimilar o modo como a persecução penal será conduzida, bem como a forma de atuação do Ministério Público, a quem foi conferida a titularidade da ação penal pública. O autor da ação penal deve exercer tal mister de acordo com os critérios de legalidade, sem grande espaço para conveniências e juízo valorativos.
Porém, essa concepção da intangibilidade da ação penal vem sendo há muito corroída por sucessivos institutos que, pelas mais diversas razões de política criminal, relativizam tanto a obrigatoriedade quanto a indisponibilidade, em nome da consecução de outros objetivos que envolvem o sistema preventivo e repressivo de crimes.
Tanto é assim que a doutrina especializada já vem há tempos conceituando os princípios mencionados chamando-os de princípios mitigados ou relativos. Embora, é certo, se saiba que os princípios, pela própria definição, não sejam absolutos; a adjetivação destes como “mitigados” vem trazer a ideia de que eles vêm sendo excepcionados com importante intensidade.
Institutos que excepcionam a obrigatoriedade e a indisponibilidade da ação penal podem ser encontrados sem grande esforço na legislação penal. Exemplos corriqueiramente lembrados são a transação penal e a suspensão condicional do processo, previstos nos artigos 76 e 89 da Lei 9.099/1995.
O acordo de não persecução penal parece vir nessa mesma linha mitigadora da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal, trazendo margens negociais ao Direito Processual Penal.
Deve-se desde já fazer o registro que, muito embora o acordo de não persecução penal tenha sido introduzido na legislação penal brasileira através da Lei 13.964/2019, já havia regulamentação no Brasil através de Resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), particularmente a Resolução 181/2017, com as alterações dadas pela Resolução 183/2018.
Contudo, apesar do pioneirismo do CNMP ao trazer formalmente para o Brasil uma normatização sobre o acordo, foi com a aprovação do Pacote Anticrime que o acordo de não persecução penal ingressou no ordenamento jurídico brasileiro da forma como prevê a Constitucional Federal, ou seja, a partir do regular processo legislativo e democrático.
Nesse sentido, como bem assinala Sanches Cunha (2020, p. 126), as normativas do CNMP eram alvo de grande irresignação por parte de diversas instituições e setores ligados à persecução penal, justamente por ferir os princípios da reserva legal ao extrapolar o poder regulamentar do CNMP.
Tanto é assim que houve propositura de ações no âmbito do Supremo Tribunal Federal objetivando a declaração de inconstitucionalidade das resoluções. Podem ser citadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5790 e 5793. No entanto, tais ações constitucionais não chegaram a ter o mérito apreciado até a entrada em vigor da Lei 13.964/2019, motivo por que tendem a ser extintas sem julgamento de mérito.
Seja como for, deve-se reconhecer que grande parte dos dispositivos do atual artigo 28-A do Código de Processo Penal foram substancialmente repetidos da normativa do CNMP. Fica perceptível, portanto, que as normativas do órgão de controle ministerial exerceram forte importância no caminho percorrido até que o acordo de não persecução penal fosse legalmente incorporado ao ordenamento jurídico formal.
Acerca da natureza jurídica do acordo de não persecução penal, parece-nos irrefutável que o instituto se apresenta com características que o aproxima de outros que também buscam relativizar a obrigatoriedade e a indisponibilidade da ação penal, a exemplo da suspensão condicional do processo e da transação penal. Pode-se afirmar que todos esses institutos seriam espécies de um mesmo gênero.
Sobre o gênero, é possível identificar traços comuns que revelam medidas abreviadoras dos procedimentos penais, com a renúncia pelo cidadão de parte do direito de resistência à pretensão acusatória e punitiva do Estado, mas sempre em troca de algum benefício de ordem material ou até mesmo processual (SOUZA CUNHA, 2019, p. 98).
Pode-se, portanto, afirmar que o instituto do acordo de não persecução penal se relaciona com uma nova ordem processual penal que permite margem de negociação entre os atores processuais, tornando cada vez mais sólida no direito pátrio a concepção de um Direito Penal consensual e negocial.
Sob tal viés, entendemos que a inserção do acordo de não persecução penal traz possibilidade de vantagem a todos os envolvidos na relação negocial. Esse caráter de benefícios a todas as partes é mais um elemento que caracteriza as relações negociais, já que todos os negociantes podem antever vantagens com a avença.
Ao investigado, um importante benefício é a possibilidade de ter a sua punibilidade extinta após o cumprimento das condições do acordo. Além disso, não permanecerá qualquer mácula externa na sua ficha de antecedentes criminais, conforme determinam os parágrafos 12 e 13 do artigo 28-A do Código Processo Penal. Sabemos que a manutenção de uma ficha criminal limpa traz reflexos incontáveis não só no sistema penal, mas também na vida civil e política.
A vítima, embora não seja parte na celebração do acordo, também foi destinatária de atenção, já que uma das condições a serem cumpridas pelo investigado ao aceitar o acordo é obrigar-se a reparar o dano causado. Assim, também nos parece de grande vantagem que a vítima já tenha o dano reparado logo após a prática do fato, sem precisar esperar todo o curso do processo penal e, eventualmente, ainda precisar manejar uma ação penal ex-delicto.
À sociedade há o benefício de melhor aproveitamento dos recursos públicos, evitando-se a procrastinação de custosos procedimentos penais, que podem tramitar por longos anos envolvendo dispêndios de diversos órgãos e agentes públicos todos sustentados, se sabe, pela sociedade.
Também ao Ministério Público, como parte autora da ação penal, vislumbra-se vantagem, já que a redução do acervo processual relativo a delitos de pouca gravidade permitirá aos membros do Parquet uma dedicação maior e estratégica aos delitos realmente graves, enfrentando, por exemplo, a criminalidade organizada.
Outra questão bastante importante é que a Lei 13.964/2019 fez incorporar ao Código Penal uma causa impeditiva da prescrição que perdura enquanto não cumprido ou rescindido o acordo de não persecução penal (artigo 116, inciso IV do Código Penal). Por conta disso, as atividades negociais não colocarão em risco a persecução penal caso o acordo não seja efetivamente consumado ou, ainda que consumado, não seja cumprido.
Essa é uma questão importante que diferencia o acordo de não persecução penal previsto pela Lei 13.964/2019 daquele anteriormente estatuído apenas por Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público.
Sem a previsão legal, não haveria como se obstar o transcurso do prazo prescricional. Assim, paralisando-se o transcurso do prazo da prescrição, há menos riscos ao Ministério Público para celebração do acordo, já que não haverá prejuízo à marcha processual posterior, caso o acordo não seja cumprido.
Tanto os requisitos quanto as condições para a celebração do acordo de não persecução penal foram expressamente previstos pela Lei 13.964/2019, inseridos no artigo 28-A do Código Processo Penal, podendo ser identificados tanto no caput quanto nos incisos e parágrafos.
O procedimento para a celebração do acordo, pelo menos nos seus aspectos gerais, também já foi previsto pela lei. Exige-se formalização por escrito, assinada pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu Advogado ou Defensor Público. Além disso, o acordo deve ser homologado em Juízo, em audiência na qual será verificada a voluntariedade da avença.
Um aspecto importante a ser destacado é que a presença da justa causa para ação penal é pressuposto para que o acordo seja oferecido pelo Ministério Público.
Tal compreensão pode ser extraída já da parte inicial do artigo 28-A introduzido no Código de Processo Penal, quando o legislador afirma a possibilidade de realização do acordo em “não sendo o caso de arquivamento”.
Resta claro que, antes de pensar em propor o acordo, o membro do Ministério Público deve avaliar se a propositura da ação penal seria viável, ou seja, se há provas da materialidade delitiva e indícios da autoria que justificaria o oferecimento da denúncia.
Caso contrário, não havendo justa causa para ação penal, deve o membro do Ministério Público propor o arquivamento do inquérito policial ou, se ainda existem dúvidas sobre a materialidade e indícios de autoria, pode o membro do Parquet requisitar novas diligências a fim de angariar elementos para formação da opinio delicti.
A presença da justa causa para que sejam iniciadas as tratativas ao acordo de não persecução penal parece requisito de fundamental importância. O escopo, ao que nos parece, é evitar que acordos de não persecução penal sejam realizados em casos em que nem haveria oferecimento de denúncia.
Objetiva-se com a acordo evitar uma persecução penal que seria viável, ou seja, o investigado confessa e cumpre as condições ofertadas para não ser processado criminalmente. Logo, é pressuposto para tanto que, no caso concreto, exista uma ação penal factível.
A realização desse filtro pelo membro do Ministério Público é salutar, sob pena de se gerar uma banalização do instituto do acordo de não persecução penal, oferecendo-o indistintamente aos sujeitos investigados por crimes menos graves, ainda que tais investigações sejam infundadas e sem elementos mínimos de autoria e materialidade.
Tais premissas fundamentais acerca do novel instituto do acordo de não persecução são suficientes, a nosso sentir, para a formação da base necessária âmago do objeto de estudo do presente trabalho.
Com isso, avançamos para tentar identificar em que momento processual ou pré-processual as tratativas para o acordo devem ser realizadas e, principalmente, se haveria possibilidade de celebração da avença na fase recursal.
2. O momento da realização do acordo de não persecução penal e a possibilidade de celebração em processos já em andamento
Firmados os eixos conceituais sobre o acordo de não persecução, a importância agora está em se debruçar sobre o momento processual em que tal acordo pode ou deve ser oferecido e sobre as consequências jurídicas da realização do acordo em cada momento.
Pela leitura do artigo 28-A do Código de Processo Penal, aliada à própria natureza jurídica do novo instituto, pode-se extrair que o momento ordinário para as tratativas do acordo de não persecução penal é aquele imediatamente posterior à conclusão da investigação criminal e imediatamente anterior ao oferecimento da denúncia.
Imediatamente posterior à conclusão da investigação criminal porque o oferecimento do acordo exige que o membro do Ministério Público esteja convicto de que não é o caso de arquivamento do inquérito policial.
Para tanto, o(a) Promotor(a) de Justiça precisa contar com um material investigativo já capaz de expressar a justa causa para a ação penal, para que assim possa avaliar que realmente não seria o caso de ordenar o arquivamento do inquérito, encaminhando-o à instância revisional do próprio Ministério Público[1].
Imediatamente anterior ao oferecimento da denúncia porque uma vez presentes a prova da materialidade e os indícios da autoria, por força do princípio da obrigatoriedade, seria dever do membro do Ministério Público realizar a propositura da ação penal, não podendo dela dispor.
O acordo de não persecução penal, como registrado no capítulo preliminar deste texto, vem a excepcionar a regra da obrigatoriedade, permitindo que, mesmo presente a justa causa para a ação penal, esta venha a não ser ajuizada, no intuito de se tentar entabular um acordo de não persecução.
Por tudo isso, podemos concluir que o momento adequado e ordinário para as tratativas do acordo de não persecução penal encontra-se nesse limite entre a conclusão da investigação e a deflagração da ação penal.
Contudo, como se era de esperar, essa regra possui exceções. Há questões a serem observadas que podem ser capazes de relativizar a ideia de que o momento para celebração do acordo de não persecução penal seja apenas nesse limiar entre o fim da investigação e a propositura da denúncia.
Dentre os motivos que podem ser capazes de excepcionais o momento de realização do acordo de não persecução penal, destacamos dois para serem discorridos no presente estudo. O primeiro motivo diz respeito à ocorrência da desclassificação do fato de um mais grave para outro menos grave, sendo que quanto a este último passariam a estar presentes os requisitos autorizadores da celebração do acordo. O segundo motivo diz respeito aos processos criminais que já estavam em curso quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, podendo gerar a necessidade de verificação do acordo de não persecução penal até mesmo em fase recursal.
Observa-se, portanto, que o primeiro motivo capaz de excepcionar o momento de entabulação do acordo de não persecução penal situa-se na alteração de compreensão quanto ao preenchimento dos requisitos por parte do acusado no processo penal. Quando da formação da opinio delicti, o membro do Ministério Público formara convicção de que o delito a ele imputado não permitia a negociação na forma do artigo 28-A do Código de Processo Penal. É o caso, por exemplo, de o delito imputado ter pena mínima igual ou superior a quatro anos ou, ainda, de o delito imputado ter sido, na compreensão do Órgão Ministerial, praticado com violência ou grave ameaça. Nesses casos, o acordo não teria espaço.
Contudo, é possível que, posteriormente à instrução criminal, a compreensão acerca dessa questão fática se altere. É possível que a instrução demonstre que o delito praticado é menos grave do que o inicialmente imputado, sendo desclassificado para delito com pena mínima inferior a quatro anos ou delito sem violência ou grave ameaça, para seguir os exemplos acima.
Essa nova compreensão classificatória exigirá uma reavaliação quanto ao cabimento do acordo de não persecução penal.
Deve-se perceber, em paralelo, que o Código de Processo Penal já traz essa lógica ao versar sobre a suspensão condicional do processo. O artigo 383, §1º do Código de Processo Penal já estabelece que, na fase da sentença, se o julgador der definição jurídica diversa ao fato e tal desclassificação possibilitar a proposta de suspensão condicional do processo, deve-se proceder de acordo com esse permissivo.
Ademais, acerca da suspensão condicional do processo em caso de desclassificação há até mesmo a súmula 337[2] do Superior Tribunal de Justiça que consolida o entendimento de que na desclassificação e na procedência parcial da denúncia é cabível o benefício despenalizador.
Importante observar que em um dos julgados do Superior Tribunal de Justiça que serviu de precedente para a aprovação desse enunciado sumular houve especificamente o debate quanto à necessidade de relativização do momento adequado para o sursis processual. Na oportunidade, o Tribunal da Cidadania reconheceu que o momento adequado para a aplicação do benefício do artigo 89 da Lei 9.099/95 seria o do recebimento da inicial acusatória. Contudo, a força superveniente da desclassificação ou da procedência parcial da denúncia faria com que fosse necessária uma reanálise do benefício despenalizador, mesmo após prolatada a sentença penal condenatória[3].
A lógica no caso do acordo de não persecução parece ser exatamente a mesma.
Pelo menos até a finalização do presente artigo, não se tinha ainda precedentes firmados nos Tribunais Superiores quanto à aplicação do acordo de não persecução penal posteriormente à sentença condenatória, em casos de desclassificação ou julgamento de procedência parcial da denúncia. Entretanto, sabemos da hermenêutica jurídica que onde impera as mesmas razões deve prevalecer a mesma decisão[4].
É certo que, na hipótese de desclassificação ou julgamento de procedência parcial da denúncia que faça surgir a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal, não poderá o Magistrado, já na sentença, aplicar o benefício despenalizador do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Porém, entende-se que deverá abrir vista ao membro do Ministério Público para que este tenha a possibilidade de oferecer o acordo ou fundamentar a sua recusa, permitindo, neste caso, que a Defesa requeira a revisão da recusa ao órgão revisional do Ministério Público, na forma do artigo 28-A, §14 do mesmo código.
O segundo motivo – que se refere à aplicação do acordo de não persecução penal aos processos em curso – é mais capcioso que o primeiro, exigindo uma explanação um pouco mais ampla.
Sempre que uma nova lei em matéria criminal inova no ordenamento jurídico, uma análise aprofundada sobre a sua aplicação no tempo deve ser feita.
Sob o aspecto normativo, as questões centrais giram em torno do artigo 5º, XL da Constituição Federal, que consagra a retroatividade da lei penal para beneficiar o réu[5], bem como pelo artigo 2º, tanto do Código Penal quanto do Código de Processo Penal, que trazem estipulações da ordem da lei penal e processual penal no tempo[6], dispositivos esses que são geradores de intenso debate doutrinário.
A premissa que deve ser estabelecida sobre o tema, como bem leciona Tourinho Filho (2018, p.89), é de que as leis são feitas objetivando o futuro e não o passado. Este é o princípio geral que rege a ideia de uma nova lei que ingressa no ordenamento jurídico. Quando se produz uma nova norma, está-se entendendo que a anterior já não atende com suficiência aos anseios sociais. Nessa lógica, se a lei é feita para construir o futuro, tem-se o princípio geral da irretroatividade das leis.
Contudo, quando se trata de uma norma penal benéfica ao réu, temos uma garantia fundamental de que ela deve retroagir para alcançar o passado. Tal garantia fundamental de retroatividade da lei penal mais favorável não é apenas uma garantia que se encontra no nosso texto constitucional, pode-se também dizer que se constitui em um verdadeiro princípio ético (TOURINHO FILHO, 2018, p. 90).
Não é demais lembrar que os tratados internacionais de Direitos Humanos de que o Brasil é signatário também asseguram a garantia da retroatividade da lei penal mais favorável, destacando-se a previsão da Declaração Americana de Direitos Humanos (art. 9º, terceira parte[7]) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 15,§1º[8]), que reforçam o caráter fundamental da matéria e até mesmo a supraconstitucionalidade da garantia.
A retroatividade da lei penal mais favorável, portanto, é forte, imperativa e indubitável.
Com a norma de conteúdo processual penal, ou seja, normas adjetivas, o tema da (ir)retroatividade enfrenta traços mais complexos. Isso porque o artigo 2º do Código de Processo Penal conduz ao entendimento de que se deve aplicar o princípio do tempus regit actum. A lei processual deve ser imediatamente aplicada, mas sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. Portanto, pelo texto da lei, extrai-se que o foco para a solução dos problemas de sucessão de leis processuais no tempo estaria no momento da prática do ato processual.
Da regra do artigo 2º do Código de Processo Penal, Lima (2011, p. 101) extrai dois efeitos importantes: “a) os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior são considerados válidos; b) as normas processuais têm aplicação imediata, regulando o desenrolar restante do processo”.
Nesse caminhar, pode parecer que a introdução do acordo de não persecução penal pela Lei 13.964/2019 incidiria nos processos em curso gerando os efeitos acima descritos, decorrentes do princípio do tempus regit actum. Por isso, os processos que já estivessem com a denúncia oferecida não permitiriam a celebração do acordo, pois o momento processual já estava ultrapassado e os atos anteriormente produzido seriam mantidos válidos.
Entretanto, a ideia do princípio do tempus regit actum incorporada no artigo 2º do Código de Processo Penal precisa ser analisada à luz da Constitucional Federal para que por ela possa ser recepcionada.
Nesse sentido, oportuna é a ponderação de Tourinho Filho (2018, p.92), de que “se um dos objetivos da Constituição, como dizia o mestre José Afonso da Silva[9], é ‘assegurar os direitos e garantias dos indivíduos’, não teria sentido a aplicação de uma lei processual mais severa a processos que estejam em curso, e, se por acaso for mais branda, também não teria sentido a proibição da sua retroeficácia”
Outrossim, não raras vezes temos o fenômeno das chamadas normas mistas, ou normas processuais-materiais, que são aquelas que enfrentam temáticas que se ligam tanto ao caráter penal-material quanto ao caráter penal-processual.
Nem sempre é tarefa fácil extrair do comando normativo a identificação do caráter da norma, se penal-material ou penal-processual. A doutrina facilita a compreensão ao trazer elementos de cada uma das situações.
“Normas penais são aquelas que cuidam do crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da condenação e do direito de punir do Estado (v.g., causas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais são aquelas que versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade” (LIMA, 2011, p. 101).
O certo é que, ao se identificar um caráter penal-material na nova norma que seja benéfico ao cidadão, a sua aplicação retroativa deve decorrer da garantia individual prevista no artigo 5º, XL da Constituição Federal, assegurando-se a aplicação de direito fundamental.
Ao tratar da problemática da retroatividade das normas mistas (materiais e processuais), Calegari (2013, 390) concluiu: “Questão que denota importância é quando a nova lei possui caráter misto, ou seja, processual e penal. Nesses casos, o conteúdo que impera é o penal em detrimento do processual penal, aplicando-se, portanto, os princípios da retroatividade da lei”
A nosso entender, destarte, a identificação na nova lei de um conteúdo penal-material mais favorável ao cidadão torna inafastável a retroatividade da lei, sob pena de se negar reconhecimento a direito fundamental previsto tanto no rol do artigo 5º da Constituição Federal, quanto em tratados de Direitos Humanos com caráter supraconstitucional.
Volvendo à Lei 13.964/2019, a despeito de a novatio legis possuir inegável conteúdo processual, há um dispositivo, em especial, que merece atenção. O §12 do artigo 28-A introduzido no Código de Processo Penal traz previsão de que o cumprimento integral do acordo de não persecução penal resulta a extinção da punibilidade do agente.
Essa possibilidade de que ocorra a extinção da punibilidade faz com que não se possa negar, também, que haja um conteúdo material no novo comando normativo, já que trará consequências à punibilidade do agente, extinguindo-a. Mais do que isso, também conseguimos extrair entendimento de que a nova norma possui aspectos materiais favoráveis ao acusado, ou seja, favoráveis à liberdade, evitando-se a imposição dos efeitos da pena, como a mancha no histórico pessoal pela aposição de um registro de antecedentes criminais.
Nessa linha, opera-se claramente a garantia fundamental de retroatividade da lei penal quando mais benéfica ao agente, na linha da fundamentação garantista acima desenvolvida.
Não é a primeira vez que nos defrontamos com novas leis que possuem caracteres híbridos de direito penal e de direito processual penal, razão pela qual podemos extrair valiosas lições com base nas conclusões que foram adotadas à época daquelas novas leis.
Em destaque, citamos o icônico exemplo do artigo 90 da Lei 9.099/95 que expressamente pretendeu definir a eficácia da nova lei no tempo prevendo que “as disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada”. Percebe-se que o legislador pretendeu definir que se já houvesse instrução processual iniciada, a Lei 9.099/95 não teria aplicação.
Ocorre que a Lei 9.099/95 incorporou ao ordenamento jurídicos diversos institutos que produzem efeitos relacionados ao direito de punir, sobretudo efeitos que são mais favoráveis à liberdade, como a transação penal, a composição civil de danos e até mesmo a exigência de representação como condicionante da ação penal de alguns delitos. Nesse sentido, pareceu que a previsão do artigo 90 da Lei 9.099/95 acabaria por esbarrar no princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benigna, como acima detalhado.
Tanto foi assim que o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.719-9, aplicou a técnica da interpretação conforme para excluir da abrangência do artigo 90 da Lei dos Juizados Especiais as normas de Direito Penal que fossem mais favoráveis à liberdade.
Do voto do Ministro-Relator é possível extrair exatamente essa conclusão de que, nas leis híbridas, a parte de natureza penal que é mais favorável à liberdade precisa retroagir por determinação constitucional, transcreve-se:
“É importante observar, contudo, que a Lei 9.099/1995 tem natureza mista: é composta por normas de natureza processual e por normas de conteúdo material de direito penal. Portanto, para a concreta aplicação do princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica (art. 5º, XL, da CF/88), não poderia o legislador conferir o mesmo tratamento para todas as normas inseridas na lei dos juizados especiais. Como se sabe, as normas de cunho eminentemente de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL, da Constituição Federal […].”[10]
Dito tudo isso, entendemos plausível a construção das seguintes premissas: (a) a Lei 13.964/2019 é uma nova lei de conteúdo misto, ou seja, conteúdo penal e processual penal; e (b) na parte do conteúdo material-penal, há identificação de instituto mais favorável à liberdade, já que a celebração do acordo de não persecução penal possibilita a extinção da punibilidade.
Com essas premissas, conclui-se que ainda que no tempo da entrada em vigor da Lei 13.964/2019 já houvesse passado o momento ordinário de se realizar o acordo de não persecução penal, tal acordo ainda pode ser realizado, se preenchidos os requisitos legais. Isso porque não se trata apenas de uma questão procedimental, mas sim de uma inovação que atinge aspectos penais-materiais que são mais favoráveis à liberdade e, por isso, retroativos.
3. O acordo de não persecução penal em fase recursal
Conforme já evoluímos até aqui, verifica-se que o momento ordinário para as tratativas sobre o acordo de não persecução penal seria imediatamente após a investigação e imediatamente antes do oferecimento da denúncia. Analisamos também que, apesar de o momento ordinário ser esse, é possível que o acordo seja realizado em outra ocasião, a exemplo da desclassificação do fato ocorrida em sentença, bem como em caso de aplicação retroativa da Lei 13.964/2019 aos processos criminais já em curso quando da entrada em vigor da novatio legis.
O que nos resta apreciar é se, mesmo já tendo sentença penal condenatória proferida, ainda haveria possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal.
Adianta-se que o nosso entender – baseado nas assertivas construídas desde o capítulo anterior – é de que haveria, sim, possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal na fase recursal. Isso na hipótese de, quando da entrada em vigor do Pacote Anticrimes, o processo criminal já estar com sentença penal condenatória proferida.
Isso porque não se consegue identificar no Direito Pátrio a existência de algum limitador ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica capaz de gerar a conclusão de que tal princípio limite a retroatividade apenas até a prolação da sentença penal condenatória recorrível.
A Constituição Federal não traz essa limitação temporal, da mesma forma as leis não trazem, se é que poderiam. Tampouco se tem conhecimento de decisão do Supremo Tribunal Federal, realizando algum cotejo com outros princípios fundamentais, que tenha reconhecido algum limitador processual para que se opere a retroatividade das leis penais mais favoráveis à liberdade.
Em sentido contrário, poder-se-ia argumentar que o limitador temporal estaria marcado pelo fato de o artigo 28-A do Código de Processo Penal prever o direito ao acordo de não persecução penal ao “investigado”, nada falando sobre “acusado” ou até mesmo para “condenado” em uma sentença penal recorrível.
Contudo, entendemos que o termo “investigado”, por isso só, não é capaz de obstar a retroatividade da aplicação da lei mais favorável. O termo foi corretamente empregado pelo fato de que, como já afirmado, o momento ordinário de celebração do acordo de não persecução penal é realmente anterior à denúncia. Assim, há acerto na expressão “investigado”. Porém, isso de modo algum é capaz de impedir a aplicação da nova lei aos processos em curso, ainda que o status do cidadão já tenha evoluído de “investigado”, para “acusado” ou até mesmo “condenado” em primeira instância.
Conforme já sustentando anteriormente neste trabalho, verifica-se importante similitude estrutural entre o novel instituto do acordo de não persecução penal e os já conhecidos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, todos integrantes do que se está convencionando definir como direito penal consensual.
Por isso, as lições doutrinárias e jurisprudenciais que ajudaram a assentar o entendimento daqueles institutos da Lei 9.099/95 muito ajudam a prever as possíveis definições quanto ao acordo de não persecução penal.
Nesse intuito, transcreve-se importante trecho do trabalho doutrinário de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes acerca dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais:
“Diverso, porém, é o regime intertemporal das normas de caráter penal contidas na lei. É que, a esse propósito, vige o princípio constitucional (e legal) da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, inc. XL, CF, e art. 2º, parágrafo único, CP). […] Esses dispositivos, por beneficiarem o acusado, aplicam-se retroativamente, devendo o juiz de primeiro grau rever os processos em andamento, para que eles incidam as normas supra-indicadas, ainda que já iniciada a instrução. […]” (GRINOVER et. Al., 1997, P.92).
Sobre a possibilidade de aplicação dos benefícios no caso de processos que já estivessem em fase recursal quando da entrada em vigor da Lei 9099/95, concluem os autores que seria possível a aplicação, sendo tarefa do Tribunal “ baixar o processo, para que o juiz de primeiro grau tome as providências cabíveis à eventual concretização das medidas despenalizadoras, após a manifestação do Promotor de Justiça, cabendo também à primeira instância a homologação do acordo e providências correlatas[11]”
DOTTI (2018, p. 396), ao comentar a necessidade de representação do ofendido nos crimes de lesões corporais leves e culposas, exigência essa trazida pela Lei 9.099/95, foi categórico ao registrar que “essa nova norma, de conteúdo penal-processual, foi aplicada aos processos em curso, independente da fase em que se encontravam”, o que reforça o argumento de que, em institutos penais paralelos, não se verifica a sentença penal condenatória como um marco temporal a impedir a aplicação retroativa do benefício.
Não só a doutrina, mas a própria jurisprudência dos Tribunais Superior traz o reconhecimento de aplicação dos institutos despenalizadores mesmo que o processo já esteja em fase recursal, na hipótese de que a entrada em vigor da nova lei mais benéfica atinja processos em curso que já estejam nessa fase. Em sede de Recurso Especial, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a possibilidade de aplicação da transação penal e da suspensão condicional do processo e determinou a baixa dos autos ao primeiro grau para adoção dos procedimentos para tanto[12].
Como reforço argumentativo de bastante peso, houve recentemente a aprovação de um enunciado sumular pelo Ministério Público Federal, através de sua 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (2CCR), firmando o entendimento para orientar os Procuradores da República no sentido de que o oferecimento do acordo de não persecução penal é cabível até o trânsito em julgado. Transcreve-se o Enunciado nº 98 editado pelo Órgão:
“Enunciado nº 98: É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A da Lei n° 13.964/19,quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei 13964/2019, conforme precedentes[13]”
O posicionamento sumular emitido pelo órgão revisional do Ministério Público Federal robustece sobremaneira o entendimento de que é possível a aplicação do acordo de não persecução penal nos processos que já estejam em fase recursal.
Como sabemos, no caso de recusa do membro do Ministério Público com atuação local em oferecer o acordo de não persecução, o novo artigo 28-A, §14 do Código de Processo Penal permite à Defesa que requeira a remessa ao órgão superior do Ministério Público. Assim, pelo menos nos processos de competência federal, a tendência é que tal entendimento do Ministério Público Federal venha a pacificar a divergência quanto à possibilidade de aplicação do acordo na fase recursal.
Isso porque, mesmo que um membro local do Ministério Público Federal, no exercício de sua prerrogativa constitucional de independência funcional, venha a se manifestar contrariamente à aplicação do benefício na fase recursal, bastará à Defesa a realização do requerimento para remessa ao órgão superior do Ministério Público, onde o posicionamento do Procurador da República com atuação local poderá ser revisado.
Deve-se ressaltar que ainda é cedo para conclusões definitivas sobre o tema, já que o acordo de não persecução é novidade na legislação brasileira e está em vigor há pouco mais de 6 (seis) meses, razão pela qual os Tribunais locais ainda estão enfrentando os primeiros julgados sobre o assunto. Por certo, muitas teses ainda chegarão ao debate no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e, certamente, também ao Supremo Tribunal Federal.
Contudo, em breve pesquisa realizada nesses primeiros meses de vigência da nova lei, já é possível encontrar julgados de ações penais por crimes federais em que foi reconhecida a possibilidade de aplicação do instituto em fase recursal.
A título de exemplo, citam-se: TRF4, ACR 5008397-27.2018.4.04.7002, Oitava Turma, Relator Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, juntado aos autos em 21/05/2020; TRF4, ACR 5000515-05.2018.4.04.7005, Oitava Turma, Relator Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, decisão em 13/05/2020, juntado aos autos em 13/05/2020; TRF4, ACR 5002533-34.2016.4.04.7016, Oitava Turma, Relator para Acórdão João Pedro Gebran Neto, decisão em 13/05/2020, juntado aos autos em 15/05/2020; TRF4, ACR 5004135-89.2018.4.04.7016, Oitava Turma, Relator João Pedro Gebran Neto, decisão em 13/05/2020, juntado aos autos em 14/05/2020; TRF4, ACR 5002937-33.2017.4.04.7119, Oitava Turma, Relator João Pedro Gebran Neto, decisão em 20/05/2020, juntado aos autos em 21/05/2020.
No âmbito estadual, diante do elevado número de Estados-Federados, por certo o entendimento ainda não está unificado. Porém, em pesquisa feita no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina já encontramos recentes decisões que agasalham o entendimento aqui trabalhado.
Nessa linha: TJSC, Apelação Criminal n. 0001339-31.2015.8.24.0064, de Balneário Camboriú, rel. Des. Sérgio Rizelo, Segunda Câmara Criminal, j. 30-06-2020; TJSC, Apelação Criminal n. 0001433-37.2017.8.24.0022, de Curitibanos, rel. Des. Salete Silva Sommariva, Segunda Câmara Criminal, j. 05-05-2020; TJSC, Apelação Criminal n. 0000029-44.2019.8.24.0033, de Itajaí, rel. Des. Salete Silva Sommariva, Segunda Câmara Criminal, j. 05-05-2020; TJSC, Apelação Criminal n. 0900063-26.2018.8.24.0066, de São Lourenço do Oeste, rel. Des. Norival Acácio Engel, Segunda Câmara Criminal, j. 05-05-2020; TJSC, Apelação Criminal n. 0005029-46.2015.8.24.0039, de Lages, rel. Des. Salete Silva Sommariva, Segunda Câmara Criminal, j. 05-05-2020; TJSC, Apelação Criminal n. 0004432-48.2013.8.24.0039, de Lages, rel. Des. Getúlio Corrêa, Terceira Câmara Criminal, j. 22-04-2020.
Deve-se informar que também há pertinentes posicionamentos contrários à aplicação do acordo de não persecução penal, o que precisa ser levado em consideração pelo operador do Direito. Como exemplo de julgados contrários: TJSC, Embargos de Declaração n. 0000629-05.2017.8.24.0011, de Brusque, rel. Des. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, Quinta Câmara Criminal, j. 02-07-2020; TJSC, Apelação Criminal n. 0900040-36.2018.8.24.0016, de Capinzal, rel. Des. Luiz Antônio Zanini Fornerolli, Quarta Câmara Criminal, j. 12-03-2020.
Como de costume quando se trata de novos institutos que ingressam no ordenamento jurídico, é preciso tempo para que os entendimentos se acomodem e a jurisprudência unifique a interpretação da lei.
Sobre o procedimento para aplicação do acordo de não persecução penal em fase recursal, pode-se observar dos precedentes citados que tem predominado a determinação de baixa dos autos ao primeiro grau para que, nessa instância, sejam realizados os trâmites para o acordo.
Tal modo de agir parece-nos acertada pelo fato de os Tribunais não contarem, como regra, com a mesma estrutura do Poder Judiciário em primeiro grau para realização de atos procedimentais que dependam de oitiva de pessoas, atos de audiências etc., já que a grande maioria das ações penais tramitam originariamente em primeira instância.
Vencida essa construção sobre a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal em fase recursal, evidentemente surgirá a discussão acerca da possibilidade de aplicação em fase de execução penal, ou seja, posteriormente ao trânsito julgado. Por certo, fortes argumentos existirão para advogar nesse sentido. Todavia, o tema da aplicação do acordo de não persecução penal após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória demanda construção de outras premissas de entendimento, exigindo enfrentamento em estudo apartado.
Conclusão
Como visto, a Lei 13.964/2019, chamada de “Pacote Anticrime”, trouxe importantes alterações ao sistema penal e processual penal brasileiros. Dentre elas, uma de especial relevo é a incorporação do acordo de não persecução penal na legislação formal, através da inserção do instituto no artigo 28-A do Código de Processo Penal.
Embora tal solução consensual das demandas criminais já tivesse previsão em atos infralegais do Conselho Nacional do Ministério Público, somente agora, com a observância do regular processo legislativo constitucional, que o instituto ganha a segurança que um tema dessa grandeza requer.
Dentre inúmeras celeumas envolvendo o novo instituto despenalizador, uma grande questão que vem surgindo nos debates forenses é a possibilidade de aplicação desse instituto em ações penais que já estavam em curso quando a Lei 13.964/2019 entrou em vigor. Mais do que isso, questiona-se também se seria possível realizar o acordo até mesmo em ações penais que já contavam com sentenças penais condenatórias recorríveis.
Com o presente estudo, pôde-se aferir que o instituto do acordo de não persecução penal apresenta bases muito similares a outros institutos já presentes no nosso ordenamento jurídico e que também se enquadram na ideia de um direito penal mais consensual. Em especial, trabalhou-se os pontos em comum do acordo de não persecução penal com os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo.
Através desse comparativo, foi possível sustentar que não há qualquer óbice à realização do acordo de não persecução penal em ações penais em andamento, ainda que já estejam em fase recursal.
Outrossim, também encorou esse posicionamento importantes lições doutrinárias a respeito dos princípios e regras que norteiam os temas da aplicação das leis penais e processuais no tempo. Em especial, as soluções que a doutrina apresenta para tratar dos conflitos no tempo das chamadas leis mistas, ou seja, leis que apresentam tanto aspectos penais quanto aspectos processuais penais.
Todos esses aspectos permitiram apontar para uma possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal mesmo em fase recursal do processo penal.
Por fim, fez-se um estudo dos primeiros precedentes jurisprudenciais que já surgem sobre o tema nesses primeiros seis meses de vigência da nova lei, sobretudo no Tribunal Regional Federal da 4ª Região e Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Com tais precedentes, também se pôde verificar que a tese de celebração do acordo de não persecução penal mesmo em fase recursal vem sendo acolhida pela jurisprudência predominante até então.
É certo que o tema ainda deverá ser objeto de maior amadurecimento tanto pela doutrina quanto pelas Cortes Judiciais. Ainda assim, pelo o estudo que se tem até o presente momento é possível apontar para a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal em fase recursal.
Referências
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[1] Conforme a nova redação do artigo 28 do Código de Processo Penal, dada pela Lei 13.964/2019, o arquivamento do inquérito policial deixa de passar pelo crivo jurisdicional, tramitando apenas internamente no Ministério Público.
[2] Súmula 337, STJ – É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.
[3] REsp 637072 PB, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/08/2004, DJ 30/08/2004
[4] Ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio
[5] XL – A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
[6] CPP – “Art. 2o A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior” e CP “Art. 2º, parágrafo único: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”
[7] “Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado. ”
[8] “1. Ninguém poderá ser condenado por atos omissões que não constituam delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinqüente deverá dela beneficiar-se”
[9] Silva, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 42.
[10] STF, Plenário, ADI 1.1719-9, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 18/06/2007, D.J.e. 02/08/2007
[11] Ibidem, p. 93
[12] STJ, REsp, Sexta Turma, Rel, Ministro Anselmo Santiago, j. 03/02/1998, D.J. 04/05/1998
[13] Alterado na 184ª Sessão Virtual de Coordenação, de 09/06/2020. Precedentes 2ª CCR: Processo: JF-RJ-2015.51.01.509192-3-AP, Sessão de Revisão nº 770, de 25/05/2020, unânime. Processo: 1.29.000.001782/2020-82, Sessão de Revisão nº 770, de 25/05/2020, unânime. Processo: JF/PR/CUR-IANPP-5011021-84.2020.4.04.7000, Sessão de Revisão nº 770, de 25/05/2020, unânime. Processo: JF/PR/LON-5007299-39.2020.4.04.7001, Sessão de Revisão nº 770, de 25/05/2020, unânime. Processo: JFRS/POA-5069978-06.2019.4.04.7100-APN, Sessão de Revisão nº 769, de 11/05/2020, unânime. Disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados , acesso em 2 ago 2020