Crimes tributários. Inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1° da Lei n° 8.137/90


A lei n° 8.137, de 27-12-1990, definiu os crimes contra a ordem tributária, conhecidos na doutrina e na jurisprudência como crimes de sonegação fiscal, denominação adotada pela antiga Lei de n° 4.729/65.


Prescreve o art. 1º dessa lei:


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“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:


I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;


II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;


III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;


IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;


V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.


Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.


Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V”.


Como se depreende do caput o tipo objetivo é suprimir ou reduzir tributo mediante uma ou mais das condutas mencionadas nos incisos I a V.


Não há crime de sonegação fiscal se não houver o resultado. É crime de natureza material exigindo-se o resultado naturalístico.


Pois bem, o parágrafo único sob comento, após descrever a conduta, promove uma equiparação ao crime do inciso V.


Não diz que se aplica as penas previstas no art. 1°, mas, que caracteriza a mesma infração do inciso V, isto é, promove uma equiparação ilegítima. Trata-se de figura equiparada atípica.


Não há como a conduta descrita no parágrafo único – falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 dias ou em questão de horas conforme o caso  – implicar supressão ou redução de tributos.


Por isso, alguns autores, com eco na jurisprudência, sustentam tratar-se de crime autônomo.


Para a hipótese de não atendimento de exigência legal formulada por funcionário público, o Código Penal já prevê em seu art. 330 o crime de desobediência apenado com a detenção de 15 dias a seis meses e multa. Salta aos olhos a falta de razoabilidade pretender apenar a conduta semelhante com a reclusão de dois a cinco anos e multa, a pretexto de caracterizar um  crime autônomo. A razoabilidade é um limite que a Constituição Federal impõe ao legislador.


A conduta sob exame só pode caracterizar mera infração de natureza tributária, ensejando a aplicação da pena pecuniária pela autoridade administrativa competente.


Realmente, a norma do parágrafo único sob exame não se amolda ao princípio da legalidade descrito na Constituição Federal e no Código Penal.


Prescreve o art. 5°, XXXIX da CF:


“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.


No mesmo sentido dispõe o art. 1° do CP:


“Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.


O princípio da legalidade dos delitos e das penas é universal, sendo observado em todos os países que adotam o Estado Democrático de Direito. O princípio “Nullum crimen, nulla poena sine lege” é inafastável no mundo moderno.


Não pode o legislador, de forma arbitrária, incriminar qualquer conduta sem obediência dos princípios de Direito Penal.


Se não há definição de pena, o delito não existe.


Não faz sentido, data vênia, julgados que admitem a configuração do crime do parágrafo único em função da remissão feita ao inciso V, a assegurar a aplicação das penas do art. 1° de Lei n° 8.137/90.


Ora, ou esse crime integra o elenco de condutas que caracterizam o crime de sonegação fiscal, aplicando-se-lhe as penas cominadas a esse título, ou, esse crime é autônomo, não podendo ser aplicada a pena prevista para o crime de sonegação fiscal. Na verdade, a figura do parágrafo único mais se assemelha ao crime do art. 330 do CP do que a do  crime de sonegação fiscal previsto no art. 1° da lei n° 8.137/90.


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O certo é que esse “crime” não está cabalmente definido em lei. Falta-lhe a estipulação da penalidade.


Por isso, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu que não há crime na hipótese mencionada no parágrafo único do art. 1°. Transcrevemos trechos do v. acórdão que é bem elucidativo:


“… 10- O § único do referido dispositivo legal trata de recusa do contribuinte em entregar à autoridade fiscal outros documentos – além da nota fiscal ou equivalente (inciso V) – como livros fiscais e contábeis, guias de recolhimento, etc., para impedir que esta tome conhecimento da ocultação fraudulenta da obrigação tributária. Não abrange, portanto, a recusa em prestar esclarecimentos sobre diferença de valores já apurada pela autoridade fiscal mediante análise dos documentos e livros apresentados pelo próprio contribuinte, caso dos autos.


11- Tampouco o fato descrito na denúncia configura o crime de desobediência (artigo 330, do Código Penal), vez que a Constituição Federal de 1988 consagra o direito de permanecer calado (artigo 5°, inciso LXIII) como manifestação do princípio da ampla defesa, assegurado aos litigantes em processo judicial ou administrativo (inciso LV, da referida norma)…..”  (TRF 3ª Região. Apelação Criminal n° 27.671. Rel. Des. Federal Henrique Herkenhoff, DJF3, 28-5-2009, p. 552).


Em que pese inúmeros julgados em contrário entendemos que o parágrafo único do art. 1º, da Lei nº 8.137/90 é inconstitucional.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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