O parcelamento como causa de extinção da punibilidade quando a conduta do agente tenha se realizado ao tempo em que vigente a Lei nº 9.249/95

Sumário: Introdução; 1. Evolução Legislativa; 1.1. A Lei nº 4.729/65; 1.2. O Decreto-Lei nº 157/67; 1.3. Lei nº 8.137/90 e a Lei nº 8.383/91; 1.4. Lei nº 9.249/95 e a Colocação do Problema; 2. Elementos que Norteiam a Necessidade de Decretação da Extinção da Punibilidade; Conclusões.


INTRODUÇÃO


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No presente trabalho, o que propomos é uma breve investigação acerca dos aspectos que envolvem a realização do parcelamento do débito tributário como fator que extingue a punibilidade nos crimes contra a ordem tributária.


Ressalte-se que o estudo aqui desenvolvido tem como pressuposto fático-temporal que a realização da conduta delitiva prevista em lei, tenha ocorrido quando vigente a Lei nº 9.249/95, encarando-se a questão intertemporal como determinante para a definição da norma penal aplicável, especialmente em vista do disposto na cabeça do art. 144 do Código Tributário Nacional[1], bem como no inciso XL, do art. 5º da Constituição Federal de 1988[2].


A aplicação prática da análise que nos propomos a desenvolver mostra-se importante, uma vez que, para todos os créditos tributários originados de fatos geradores ocorridos na vigência da Lei nº 9.664, de 10 de abril de 2000, e objeto de parcelamento administrativo anteriormente ao recebimento da denúncia, deve-se observar, a nosso ver, a extinção da punibilidade, e não a simples suspensão da pretensão punitiva (como posteriormente passou a ser previsto nas alterações legislativas posteriores).


Para tanto, faremos breve análise acerca da evolução legislativa que envolve os crimes contra a ordem tributária e a extinção da punibilidade para tais crimes, passando-se às questões de direito intertemporal que envolvem a aplicação da lei tributária e penal em casos como tais.


1. A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA


1.1. A LEI Nº 4.729/65


A Lei nº 4.729/65, de 14 de julho de 1965, que instituiu o crime de sonegação fiscal, disse extinguir-se a punibilidade “quando o agente promover o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria”[3].


Veja-se que havia perfeita coerência entre o referido dispositivo legal e o art. 138 do Código Tributário Nacional, que nesse sentido determinava que a denúncia espontânea da infração extinguia a responsabilidade pela infração. Tal ocorria porque, uma vez realizado o pagamento do tributo não se podia cogitar de penalidades administrativas.


Por outro lado, iniciada a ação fiscal, o pagamento do tributo já não era mais possível sem as penalidades administrativas , porque não  extinguia a responsabilidade pela infração, de tal modo que, nesse caso, já não mais se cogitava da extinção da punibilidade, no âmbito criminal, embora pudesse ser configurado uma forma de arrependimento, da qual decorreria a redução da pena.


1.2. O DECRETO-LEI Nº 157/67


O Decreto-lei nº 157, de 10 de fevereiro de 1967, estabeleceu que o pagamento (acrescido das multas devidas), mesmo depois de iniciada a ação fiscal, extinguia a punibilidade.


Nesse caso, vale ressaltar que desde que ainda não julgado o respectivo processo, nem seria necessário o pagamento; bastava o depósito, desde que o débito fosse pago depois da decisão de primeira instância, e, obviamente com a renúncia ao recurso administrativo.


1.3. LEI Nº 8.137/90 E A LEI Nº 8.383/91


 A referida lei, de 27 de dezembro de 1990, definiu os crimes contra a ordem tributária, em seus arts. 1º a 3º, consignando em seu art. 14 que somente a reparação integral dos prejuízos decorrentes do cometimento delituoso, antes do recebimento da denúncia, é que tinha o condão de determinar a extinção da punibilidade. O referido dispositivo – que tratava da extinção da punibilidade pelo pagamento- teve existência breve vigorando apenas até o final de 1991.


Com a edição da Lei nº 8.3838, de 30 de dezembro de 1991, restaram revogados tanto o art. 2º da Lei nº 4.729/65, quanto o art. 14 da Lei nº 8.137/90. Não demorou muito, contudo, e voltou a prevalecer o bom senso do legislador, que no art. 3º da Lei nº 8.696, de 26 de agosto de 1993, restabeleceu o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade. Tal dispositivo, todavia, não contou com o mesmo bom senso do Poder Executivo que acabou por veta-lo.


Era a preconização do chamado terrorismo fiscal[4], com a utilização da ameaça de ação penal como forma de intimidação, que certamente acreditava capaz de resolver o problema da sonegação fiscal. Pouco mais de dois anos depois, voltava a prevalecer o bom senso e com ele a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.


1.4. LEI Nº 9.249/95 E A COLOCAÇÃO DO PROBLEMA


Com a entrada em vigor dessa referida lei, foi restabelecida a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, desde que efetuado antes do recebimento da denúncia.


Pois bem, agora com a novel disciplina instituída pela Lei nº 10.684/2003, a extinção da punibilidade opera-se pelo pagamento do tributo realizado a qualquer tempo, mesmo depois de transitada em julgado a sentença penal condenatória.


Toda essa digressão acerca do tratamento dado à questão da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo se fez necessária diante da controvérsia que, daqui por diante, passaremos a enfrentar.


É que, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, ainda discrepam sobre os efeitos decorrentes do parcelamento (se extintivo ou suspensivo da pretensão punitiva do Estado).


Nosso propósito, no entanto, é focarmos nosso estudo para nos casos em que o fato gerador, do qual resultou o crédito tributário, tenha ocorrido sob a égide da Lei nº 9.249/95, de modo que a denúncia tenha sido oferecida com fundamento no referido crédito.


De fato, essa controvérsia ainda suscita dúvidas por parte de vários operadores do direito, o que comprova a importância do desenvolvimento da presente pesquisa, especialmente para que se evite submeter contribuintes nessa situação aos desagradáveis e constrangedores interrogatórios, poupando-os do desgaste e do desnecessário gasto com honorários advocatícios, quando é certo que o juiz deve rejeitar a denúncia quando já extinta a punibilidade (art. 43, II, do Código de Processo Penal).[5]


A questão foi muito bem resumida no voto proferido quando do julgamento do histórico Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 11.598/SC, cuja relatoria pertenceu ao Ministro Gilson Dipp[6], que pela precisão com que delineia o problema, passamos  a transcrever:


“[…] Sr. Presidente, a 5ª Turma decidiu afetar o presente Recurso de Habeas Corpus à Seção para pronunciamento em razão da relevância da questão e para prevenir divergências entre as Turmas desta Seção nos termos do art.14, inciso II, do Regimento Interno, e art. 34, inciso XII.


Trata-se da extinção da punibilidade em crimes de sonegação fiscal ou de omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias, em que houve divergência na 5ª Turma; parece-me que as decisões da 6ª Turma são em sentido contrário, no sentido de o acordo, entre o ente autárquico ou o estado e o devedor, ter sido efetivado antes do recebimento da denúncia, que extingue a punibilidade.


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Examinei a jurisprudência da Casa e, na 5ª Turma, com a composição anterior, em que constava o Sr. Ministro Edson Vidigal, e nas oportunidades em que a composição da Turma não era integral, nos julgamentos de recurso de habeas corpus , acontecia de as decisões serem divergentes da decisão nas oportunidades em que a Turma estava com sua composição integral. Na 6ª Turma, verifiquei em alguns acórdãos da lavra dos Srs. Ministros Hamilton Carvalhido, Fernando Gonçalves e Paulo Gallotti, que a composição discrepava da 5ª Turma no sentido de que o acordo de parcelamento do débito era causa de extinção da punibilidade.


Este recurso de habeas corpus diz respeito a delito de sonegação fiscal, em que foi efetivado o acordo de parcelamento do débito antes do recebimento da denúncia. O Tribunal de Santa Catarina não acatou a tese do paciente e o recurso de habeas corpus chegou à Turma.”


É com base nessa situação que passaremos à análise dos elementos que permitem a adoção da tese de que efetuado o parcelamento do débito, sob a égide da Lei nº 9.249/95, há que ser decretada a extinção da punibilidade.


2. ELEMENTOS QUE NORTEIAM A NECESSIDADE DE DECRETAÇAO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE


Em verdade, o que pretendemos é a sustentação da tese de que a extinção da punibilidade, nos termos do art. 34 da Lei n.º 9.249/95, se dá em razão do parcelamento da dívida com o Estado antes do oferecimento da denúncia.


O cerne da questão diz respeito ao parcelamento do débito antes do recebimento da denúncia, e se o mesmo enseja, ou não, a extinção da punibilidade do réu.


Ora, a manifestação concreta no sentido de saldar a dívida – como no caso de parcelamento do débito junto ao Estado – em momento anterior ao recebimento da exordial acusatória, afasta a justa causa para a ação penal, ainda que restando eventual discussão extra-penal dos valores.


Com efeito, o parcelamento do débito deve ser entendido como equivalente à promoção do pagamento. Aliás, o próprio art. 14 da Lei nº 8.137/90 não fazia distinção se o promover seria integral ou parcelado, razão pela qual se tem como suficiente o ato de saldar a dívida – o que sobressai do próprio parcelamento.


De outro lado, o parcelamento cria nova obrigação, extinguindo a anterior, pois, na realidade, verifica-se uma novação da dívida – o que faz a equivalência ao art. 14 da Lei n.º 8.137/90, para o fim de extinguir a punibilidade do autor do crime.


Desta maneira, o instituto – parcelamento – envolve transação entre as partes credora e devedora, alterando a natureza da relação jurídica e retirando dela o conteúdo criminal para lhe atribuir caráter de ilícito civil lato sensu.


Não obstante, o Estado credor dispõe de mecanismos próprios e rigorosos para satisfazer devidamente os seus créditos, pois a própria negociação realizada envolve previsões de sanção para a inadimplência.


A questão de eventual inadimplência poderá ainda ser resolvida no Juízo apropriado, pois na esfera criminal só restará a declaração da extinção da punibilidade.


Tal conclusão, faz com que se torne efetivamente irrelevante saber se foram pagas poucas ou muitas parcelas, pois o que interessa é que o acordo de parcelamento foi celebrado antes do recebimento da denúncia, possuindo efeito jurídico igual ao pagamento.


Para efeitos penais, o parcelamento extingue a dívida, criando outra obrigação, razão pela qual se deve ter como efetuado o pagamento, para este fim.


Não se desconhece que o Supremo Tribunal Federal não tem manifestado esse entendimento. Mas sendo a questão relativa à interpretação de disposição legal (a Lei nº 9.249/95 é lei federal) é ao Superior Tribunal de Justiça que, ao nosso ver caberá a decisão final acerca da matéria, nos termos do artigo 105, III, “a”, da CF/88, mesmo porque entendemos não haver ofensa direta à Constituição Federal, a ensejar, em hipóteses como a que aqui nos atemos a analisar, a apreciação da questão pelo Supremo Tribunal Federal.


Não há porque o Direito Penal preocupar-se com atos que não sejam relevantemente anti-sociais, a justificar o desencadeamento da proteção punitiva Estatal – como, aliás, apregoam os modernos doutrinadores penalistas. Aliás, interpretação rigorosa dos preceitos da lei pena, não concorre para melhorar as condições de vida da sociedade brasileira. O encarceramento de empresários, pela perpetração de crimes fiscais, deve ser reservado para situações excepcionalíssimas, pois pode provocar até o desaparecimento de algumas empresas, aumentando o intolerável nível de desemprego existente na atualidade.


De que adiantaria mandar para as cadeias, já abarrotadas de delinqüentes violentos; pessoas que, mesmo cometendo ilícitos tributários, exercem atividades comerciais lícitas e produtivas, absorvendo mão de obra em suas empresas? Tal providência não se justifica, nem atende aos reclamos de uma política criminal construtiva.


Notadamente, se os responsáveis pela infração procuram se compor com o Fisco, providenciando, ainda que de forma parcelada, a quitação das exações devidas.


Com isso, tem-se que parcelado o débito antes do recebimento da denúncia, que, para fins penais, equivale ao pagamento, e aplicando-se a lex mitior, (Lei nº 9.249/95) aos eventos delitivos ocorridos quando da vigência da referida lei, ou mesmo aplicando-a de forma retroativa, temos certo que correta é a declaração da extinção da punibilidade daqueles eventualmente processados por crimes dessa natureza.




CONCLUSÕES


Por tudo o quanto foi exposto é que nos posicionamos, nos casos em que a ocorrência do fato delitivo tenha se dado quando vigorava a Lei nº 9.249/95, pelo reconhecimento da extinção da punibilidade haja vista que: (i) o parcelamento do débito antes do recebimento da denúncia, para fins penais, equivale ao pagamento, nos termos do que dispõe a Lei nº 9.249/95, uma vez que ali não cuidou o legislador de fazer qualquer previsão expressa em sentido contrário; e (ii) em reverência ao que dispõe o inciso XL da CF/88, deve-se aplicar retroativamente a lex mitior (Lei nº 9.249/95) aos eventos delitivos ocorridos quando da vigência da referida lei.


 


Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

CONRADO, Paulo Cesar. “O Pagamento como Causa da Extinção da Punibilidade nos Crimes contra a Ordem Tributária (Inconstitucionalidade do Limitador Temporal, posto pelo Artigo 34 da Lei nº 9.249/95)”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 30, p.85/99.

DENARI. Zelmo. “Crimes contra a Ordem Tributária – Extinção da Punibilidade – Aspectos Temporais”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, p.86/92.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 1º volume, 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

MACHADO, Hugo de Brito. “Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 48, p.73/86

_______. “Efeitos do Parcelamento e do Pagamento do Tributo no Crime contra a Ordem Tributária: Hipótese de Aplicação da Lei Penal por Analogia”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 121, p.80/88.

MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Adiministrativo e judicial). 2ªed. São Paulo : Dialética, 2003.

MIRABETE, Júlio Fabbrinni. Manual de Direito Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

_______. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo : Atlas, 2006.

MORAES, ALEXANDRE. Direito Constitucional, 9ª ed. São Paulo : editora Atlas, 2001.

NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado, 8ª ed., São Paulo : RT, 2004, p. 1156.

 

Notas:

[1] “Art. 144.  O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”.

[2] “Art. 5º. […]

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”

[3] Lei nº 4.729/68, art. 2º.

[4] MACHADO, Hugo de Brito. “Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo”, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 48, p.73/86. 

[5] “Art. 43.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando:[…]

II – já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa;[…]”

[6] STJ – RHC nº 11.598/SC, Rel. Ministro  GILSON DIPP, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08.05.2002, DJ 02.09.2002 p. 145.


Informações Sobre o Autor

Mauro Sérgio de Souza Moreira

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Pós-Graduando latu sensu em Direito Tributário pelo IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Advogado da Área Tributária da PETROBRAS em Salvador/BA


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