Resumo: O presente trabalho analisa a relação entre a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2007) e o Direito brasileiro, especialmente após a legiferação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de 2015), que faz referência específica ao tratado internacional, internalizado no Brasil com status de Emenda Constitucional. Estudam-se os meios pelos quais o legislador brasileiro efetivou direitos e princípios previstos na Convenção, realizados os ajustes à realidade brasileira. Faz-se apreciação crítica sobre avanços e sobre aspectos a serem melhorados. Destaca-se a questão da capacidade civil das pessoas com deficiência, que passa por mudanças significativas. Sugere-se interpretação jurisprudencial nos casos de curatela. Sugerem-se políticas públicas capazes de reduzir barreiras à plena inserção de pessoas que padeçam de condições impeditivas.
Palavras-chave: pessoa com deficiência; estatuto da pessoa com deficiência; direitos humanos das pessoas com deficiência; capacidade civil; direito internacional.
Abstract: This essay analyzes the relationship between the Convention on the Rights of Persons with Disabilities (New York, 2007) and Brazilian Law, specifically after the entry into force of Law 13.146/2015, the Statute on Persons with Disabilities, also known as Brazil’s Disability Inclusion Act. This law makes reference to the aforementioned international treaty, incorporated in Brazil with constitutional status. The means by which the Brazilian Congress adapted the Convention to the national reality are studied. Bearing in mind advancements and aspects yet to be improved, critical appraisals are made. The capacity of natural persons with disabilities is emphasized, since it has been through significant changes. Legal interpretations regarding guardianship are suggested. Public policies that aim at reducing barriers to the plentiful inclusion of persons with disabilities are proposed.
Keywords: persons with disabilities; statute on persons with disabilities; human rights of persons with disabilities; capacity of natural persons; international law.
Sumário: Introdução. 1. Os Direitos Fundamentais nos Ordenamentos Internos. 1.1. Direitos Fundamentais das Pessoas com Deficiência. 2. O Conceito de Pessoa com Deficiência e Terminologias Alternativas. 3. A Convenção Internacional de Nova Iorque e Influxos sobre o Ordenamento Civil Brasileiro. 3.1. Consagração do Conceito Interacional de Deficiência. 3.2. Impactos sobre a Capacidade Civil no Brasil. 3.2.1. Modificações sobre Incapacidade Civil. 3.2.2. Decisão Apoiada. 3.2.3. Curatela de Pessoas com Deficiência. 3.2.3.1. A Curatela e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. 3.3. Sugestões para Políticas Públicas. 3.3.1. O Desenho Universal. 3.3.2. Adaptações Razoáveis. 3.3.3. Estruturas Especiais. 3.3.4. Base de Dados. 4. Críticas ao Estatuto da Pessoa com Deficiência: Perspectivas. 4.1. Casos Complexos de Curatela. 4.1.1. Conflito sobre a Necessidade de Curatela. 4.1.2. Consentimento Suprido. 4.2. Ônus Financeiro do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, modifica substancialmente a disciplina jurídica brasileira sobre o tema, especialmente no que diz respeito ao Direito Civil.
Inspirada na Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o Estatuto apresenta inovações jurídicas condizentes com o tratado internacional, que, internalizado ao ordenamento interno brasileiro, tem status de Emenda Constitucional[1].
O presente artigo analisa a influência da Convenção de Nova Iorque sobre o Direito brasileiro. Com base nessa comparação, logra-se melhor interpretação para casos complexos, bem como entende-se a principiologia que deve guiar políticas públicas e privadas de inclusão.
O método proposto é a revisão bibliográfica sobre o tema. Analisam-se a Convenção de Nova Iorque, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o Código Civil, o Código de Processo Civil, artigos doutrinários e jurisprudência recente.
Inicialmente, faz-se breve análise da questão dos Direitos Fundamentais nos ordenamentos internos.
Em seguida, estudam-se o conceito de deficiência e a terminologia empregada para denominar pessoas que sofrem com alguma deficiência.
A terceira seção expõe os dispositivos internacionais que foram adaptados ao ordenamento interno brasileiro, com ênfase nos dispositivos cíveis do Estatuto. As mudanças operadas sobre a disciplina da capacidade recebem destaque, bem como os conceitos que passam a informar políticas públicas e empresariais.
Por fim, apontamentos críticos são apresentados. Casos complexos são ressaltados. Pesquisam-se propostas alternativas.
1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS ORDENAMENTOS INTERNOS
São direitos essenciais, necessários à manutenção da dignidade humana, denominados “direitos humanos” na seara do Direito Internacional Público. Rol bastante extenso, embora não exaustivo, consta do Bill of Human Rights, composto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelos Pactos de Direitos Humanos de 1966 (ONU).
Desde meados da década de 80, o Brasil envida esforços para internalizar os principais diplomas de direitos humanos, uma vez que “Los derechos humanos son estándares para las instituciones domésticas cuya satisfacción es un asunto de preocupación internacional” (BEITZ, 2012, p.161).
A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes foi firmada em 1985 e ratificada em 1989.
A Convenção sobre os Direitos da Criança é internalizada em 1990.
Em 1992, foram ratificados os Pactos de Direitos Humanos da ONU de 1966.
Em 1998, o país reconhece a obrigatoriedade jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O Estatuto de Roma, que estabelece o Tribunal Penal Internacional, foi plenamente internalizado em 2002. A Corte é essencial para garantir a punição de altos burocratas responsáveis pelas piores violações de Direitos Humanos.
Para este trabalho, é especialmente relevante a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007), promulgados pelo Brasil em 2009, embora a vigência internacional, para o país, já datasse de 31 de agosto de 2008.
Os direitos fundamentais são conquistas históricas do cidadão perante o Estado e, mais modernamente, nas relações travadas entre particulares, a que se denomina eficácia horizontal dos direitos fundamentais:
“(…) num constitucionalismo que prega a irradiação direta da Constituição Federal em todas as relações jurídicas e que outorga àqueles uma missão de interferência não só nas relações marcadas pela verticalidade (estado-particular), mas também naquelas marcadas pela horizontalidade (particular-particular)” (MATTOS, 2014, p. 254)
A maior parte da doutrina (BONAVIDES, 2010, pp. 560-582) divide esses direitos em gerações ou dimensões, mormente para fins didáticos, uma vez que são indivisíveis. Com efeito, a contraposição entre direitos fundamentais individuais e direitos fundamentais sociais/do “bem-estar comum” é equivocada, uma vez que, faticamente, a realização do bem-estar de todos e de cada um é inter-relacionada e indissociável (CORREAS, 2011, pp. 36-37).
1.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
A democracia, regime político que privilegia o interesse da maioria, exerce importante função na defesa do que se pode denominar interesse geral ou coletivo:
“Amartya SEN, por ejemplo, afirma que las instituciones democráticas son preferidas, en parte, porque ellas posibilitan que las personas actúen eficazmente en la protección de sus intereses más importantes. Para ilustrar el argumento, se refiere a un estudio acerca de las causas de las hambrunas que demuestra que ningún país democrático independiente con una prensa razonablemente libre jamás ha sufrido una hambruna importante” (BEITZ, 2012, p. 208)
Para as pessoas com deficiência, no entanto, os direitos fundamentais são especialmente relevantes por conta de seu caráter contramajoritário. Constitucionais, os direitos fundamentais protegem minorias contra maiorias eventuais, que poderiam restringir ou eliminar interesses de grupos minoritários:
“Nesta linha, a irrevogabilidade dos direitos fundamentais constitui elemento essencial da democracia na medida em que salvaguarda os indivíduos e as minorias” (SERRANO JUNIOR, 2010, p. 40)
Quando minorias organizadas atacam recursos de maioria desorganizada, configura-se problema clássico da Economia Política (GIAMBIAGI ET SCHWARTSMAN, 2014, p. 146), bastante recorrente nos Parlamentos Nacionais, espaço de atuação típica dos lobistas e corporativistas. Pode, no entanto, que ocorra fenômeno inverso, no qual maiorias se unem e legiferam contra interesses essenciais de grupos sem representatividade política. Nas palavras de Jorge Reis Novais, “A maioria no poder (…) pode ameaçar os direitos fundamentais” (SERRANO JUNIOR, 2010, p. 40). Nesse último caso, a inderrogabilidade dos Direitos e Garantias Fundamentais ganha especial importância. Trata-se de “elemento essencial da democracia na medida em que salvaguarda os indivíduos e as minorias” (SERRANO JUNIOR, 2010, p. 40). É exemplo o art. 7º, XXXI, CF, que proíbe discriminação de pessoas com deficiência no que diz respeito a salários ou a critérios de admissão.
Os Direitos Fundamentais são, em seguida, assegurados pelo poder contramajoritário, que é o Poder Judiciário, usualmente composto por corpo técnico-burocrático que não foi recrutado pela via do sufrágio popular. Teoricamente, garante-se a defesa dos direitos essenciais de minorias.
2 O CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TERMINOLOGIAS ALTERNATIVAS
Contemporaneamente, prefere-se a expressão “pessoa com deficiência”, porquanto manifesta, com maior precisão, a condição na qual se encontram esses indivíduos.
Bastante comum na década de 1990 e início dos anos 2000, a expressão “pessoa portadora de deficiência” foi paulatinamente abandonada. A noção de portabilidade transmitia a ideia equivocada de que se poderia abrir mão da deficiência, além de ser expressão excessivamente eufemística.
Excessivamente genérica (SERPA, 2003, p. 48), a expressão “pessoa com necessidades especiais” também vem caindo em desuso.
Ainda, é igualmente inadequado falar em “pessoa deficiente” (SERPA, 2003, p. 40). A deficiência é pontual e se manifesta na relação com o meio externo. Pessoas com deficiência podem apresentar dificuldades para interagir com determinados espaços, mas jamais podem ser adjetivadas como deficientes, uma vez que, para diversas outras habilidades e situações, podem desempenhar competências ordinárias.
Nesse sentido, apenas haverá deficiência no caso concreto. Por essa razão, a melhor expressão é “pessoa com deficiência”. Conforme exposto adiante, desenhos universais, que possibilitam o pleno uso de espaços, eliminam a deficiência em casos específicos. Significa, portanto, que a pessoa apenas terá deficiência em face do meio externo, em face da dificuldade de se integrar à sociedade (BEVERVANÇO, 2001, p. 5).
As diferenças conceituais determinam dificuldades para determinar quantos são as pessoas com deficiência.
No Censo 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que cerca de 24% dos brasileiros teriam deficiência, o que totalizaria, aproximadamente, 45 milhões de pessoas[2].
Em 2015, porém, afirma-se que apenas 6,2% da população brasileira teria algum tipo de deficiência[3].
A diferença de cifras deriva das disparidades metodológicas e da dificuldade de se determinar o conceito de deficiência.
A Convenção de Nova Iorque (2007), em seu artigo 1, resolveu conceituar “pessoa com deficiência” como:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
A cifra de pessoas com deficiência, segundo esse diploma internacional, será naturalmente variável. A deficiência, por ser interacional, depende não só das condições físicas e mentais de longo prazo, mas das barreiras físicas, sociais e jurídicas que são erigidas.
Não seria desabrido afirmar que toda pessoa tem, potencialmente, algum tipo de deficiência, visto que sempre pode se ver em frente de obstáculo de difícil superação, decorrente de condições pessoais físicas ou mentais confrontadas com obstáculos de natureza diversa. A própria Convenção de Nova Iorque, em seu preâmbulo, reconhece a ampla diversidade das pessoas com deficiência[4].
Tendo em vista que a noção de deficiência é interacional, o dever do Estado e da sociedade civil é eliminar, ao máximo, as barreiras existentes. Dessa forma, reduzir-se-á a quantidade de pessoas com deficiência e preservar-se-ão recursos para pessoas que sofram de impedimentos físicos e mentais intransponíveis, impossíveis de serem superados pela ciência contemporânea.
Por fim, cabe ressaltar que deficiência não se confunde com incapacidade, que diz respeito à impossibilidade de expressão adequada da vontade (BEVERVANÇO, 2001, p. 13).
Tal confusão foi devidamente superada pela Lei 13.146 de 2015, que modifica o Código Civil, conforme exposto adiante.
3 A CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE NOVA IORQUE E INFLUXOS SOBRE O ORDENAMENTO BRASILEIRO
No Artigo 4 da Convenção de Nova Iorque, que estipula Obrigações Gerais, pede-se, no item 1b, que os Estados Partes modifiquem leis e práticas que sejam discriminatórias às pessoas com deficiência.
Sob esse mandato, o Brasil redige a Lei 13.146 de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (CORTIANO JUNIOR, 2016, p. 136).
3.1 CONSAGRAÇÃO DO CONCEITO INTERACIONAL DE DEFICIÊNCIA
O conceito interacional de deficiência foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência. A Lei 13.146 de 2015 dispõe no art. 2º que:
“Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
A aferição da deficiência deriva de instrumentos a serem criados pelo Poder Executivo (art. 2º, §2º, Lei 13.146 de 2015). Poderá lançar mão de ampla avaliação, denominada “biopsicossocial” (art. 2º, §1º, Lei 13.146 de 2015).
Assim, o ordenamento brasileiro atualizou-se e conformou-se com a legislação internacional. Ao mesmo tempo, lança mandato ao Poder Público, que deve buscar diminuir a quantidade de barreiras externas.
3.2 IMPACTOS SOBRE A CAPACIDADE CIVIL NO BRASIL
3.2.1 MODIFICAÇÕES SOBRE INCAPACIDADE CIVIL
A Convenção Internacional de Nova Iorque reconheceu liberdade e autonomia das pessoas com deficiência. No Preâmbulo, afirma que está:
“n) Reconhecendo a importância, para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas”
Ainda, exige Reconhecimento Igual Perante a Lei, conforme Artigo 12, 1-4, Convenção de Nova Iorque:
“1.Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei.
2.Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
3.Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
4.Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.”
Com isso, a Convenção de Nova Iorque estabeleceu mandato para que os Estados signatários consagrassem a diferença entre “apresentar deficiência” e “apresentar incapacidade”.
Mesmo as deficiências cognitivas não redundam necessariamente em incapacidade civil, uma vez que a capacidade depende do exame de autonomia e de discernimento da pessoa (CORTIANO JUNIOR, 2016, p. 135). A incapacidade seria impossibilidade de expressão adequada da vontade (BEVERVANÇO, 2001, p. 13).
Consoante Eroulths Cortiano Junior:
“A personalidade jurídica, a capacidade e o status são os momentos exponenciais do sujeito de direito pessoa física. A capacidade (de agir, de fato ou de exercício), ao mesmo tempo instituto e categoria do direito privado, está ligada à atuação existencial e econômica da pessoa física portadora, fruidora e gestora de interesses de relevância jurídica” (CORTIANO JUNIOR, 2016, p. 135)
O Estatuto da Pessoa com Deficiência concretizou a Convenção de Nova Iorque:
“Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.”
Nessa direção, a Lei 13.146 de 2015 operou modificação dos arts. 3º e 4º do Código Civil brasileiro:
“Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
I – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
II – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
III – (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
IV – os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.” (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
Não mais são considerados absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” nem “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”.
O art. 4º, II, Código Civil, foi modificado para excluir do rol das pessoas relativamente incapazes “os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”. O art. 4º, III, Código Civil foi revogado. Os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo, também deixaram de ser relativamente incapazes.
A redação anterior do Código Civil fatalmente considerava incapaz toda pessoa que apresentasse deficiência mental, uma vez que bastaria o desenvolvimento mental incompleto. A mera desconformidade com parâmetros clínicos usualmente aceitos estabeleceria estigma na vida civil de inúmeras pessoas.
Defensores da redação anterior poderiam afirmar que a incapacidade era relativa, a ser aferida no caso concreto. Sabe-se, entretanto, que o conceito de deficiência é interacional. O desenvolvimento mental incompleto não significa, automaticamente, que haja deficiência ou incapacidade casuística. É plenamente plausível cogitar que pessoa com desenvolvimento mental incompleto não apresente deficiência nenhuma, tampouco apresente incapacidade para qualquer ato da vida civil.
Com a modificação promovida no Código Civil, pode-se afirmar que nunca haverá pessoa absolutamente incapaz, desde que supere os dezoito anos de idade. Ressalvada a extinção da personalidade antes da maioridade, toda pessoa humana será, ao menos, relativamente incapaz.
Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro positiva o seguinte raciocínio: 1) o desenvolvimento físico/mental incompleto não é suficiente para que se fale em deficiência; 2) a existência de deficiência não é suficiente para que se fale em incapacidade civil; 3) por consequência, presume-se que a pessoa com deficiência é plenamente capaz para os atos da vida civil.
Para casos em que as barreiras biopsicossociais são de difícil superação, foi criada a figura jurídica da decisão apoiada. Para os casos excepcionais em que deficiências importam incapacidade civil, aplica-se o instituto da curatela.
3.2.2 DECISÃO APOIADA
Assegurada a capacidade civil das pessoas com deficiência, o legislador não poderia negligenciar particularidades que pudessem viciar o consentimento de pessoas que sofressem com barreiras de difícil transposição.
Se a plena capacidade civil é a regra, uma vez que nem toda deficiência importa em dificuldade para atos da vida civil, existem casos que demandam parecer de outras pessoas.
O art. 1.783-A, com redação conferida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, criou a tomada de decisão apoiada:
“Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 1o Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que devem apoiar. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 2o O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 3o Antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 4o A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 5o Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função em relação ao apoiado. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 6o Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 7o Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público ou ao juiz. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 8o Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 9o A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 10. O apoiador pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz sobre a matéria. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
§ 11. Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições referentes à prestação de contas na curatela.” (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)
À primeira vista, pode-se questionar a existência mesma do instituto. A tomada de decisão apoiada seria claro indício da manutenção da incapacidade, ao menos relativa, das pessoas com deficiência. A percepção é revertida no art. 1.783-A, §2º, Código Civil. A tomada de decisão apoiada apenas ocorrerá sob anuência da pessoa com deficiência, que declara desejar valer-se do instituto jurídico para exercer a capacidade civil.
Logicamente, a decisão última sobre a necessidade de assistência caberá à pessoa com deficiência. O descontentamento com o processo pode culminar, inclusive, no término do acordo, a pedido da pessoa com deficiência (cf. Art. 1.783-A, §9º, CC).
A utilidade do instituto reside precipuamente no art. 1.783-A, §6º, CC. Como a pessoa com deficiência aquiesce com a tomada de decisão apoiada, confere prerrogativa a pessoas de sua confiança para que discordem de decisões fundamentais em negócios jurídicos. Nesses casos, a questão deverá ser judicializada. O Ministério Público oferecerá parecer que subsidiará a decisão do magistrado, quem deve, obviamente, prolatar decisão que melhor beneficie a pessoa com deficiência, ainda que contra a vontade inicial dela. Ressalte-se, mais uma vez, que não se trata de relativização da capacidade civil, uma vez que o processo de tomada de decisão apoiada depende, inicialmente, da provocação da pessoa com deficiência.
3.2.3 CURATELA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
3.2.3.1 A CURATELA E O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Ainda mais particularmente, há pessoas com deficiências tão severas que se veem, de fato, incapacitadas para a vida civil. Para elas, existe o instituto da curatela.
A redação pretérita à Lei 13.146 de 2015 estatuía, no art. 1.767 do CC, que estavam sujeitas à curatela as pessoas que, por enfermidade ou por deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para os atos da vida civil.
A atual redação do Código Civil excluiu referências às pessoas com deficiência:
“Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:
I – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
II – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
III – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
IV – (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
V – os pródigos.”
A princípio, cogita-se a inaplicabilidade do instituto para as pessoas com deficiência. No entanto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência afirma que
“Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1o Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
§ 2o É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
§ 3o A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
§ 4o Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2o A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.
§ 3o No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.”
Como se depreende do Estatuto, a curatela é excepcional e abrange apenas direitos patrimoniais, proscrita para vários direitos personalíssimos e indisponíveis. Respeita-se, por exemplo, o Artigo 23 da Convenção de Nova Iorque, que assegura a livre decisão sobre matrimônio e planejamento familiar. No entanto, em análise global, aplicado o instituto, diversos interesses personalíssimos da pessoa com deficiência seriam administrados por terceiro. A título de exemplo, o art. 12, §1º, Lei 13.146 de 2015 sugere que o curador tem a palavra final sobre a necessidade ou desnecessidade de tratamento de saúde, resguardada a máxima participação do curatelado.
De todas as formas, ao persistir o instituto da curatela para pessoas com deficiência, mantém-se cuidado legislativo para casos em que as deficiências efetivamente afetam a capacidade civil:
“A curatela é instituto de proteção aos incapazes por outros motivos que não a idade. Quem exerce é o curador, sobre o curatelado ou interdito” (AMARAL, 2008, p. 269)
A mudança é significativa porque faz transparecer a excepcionalidade do regime. Apenas em casos nos quais a deficiência impeça a expressão da vontade haveria possibilidade de se aplicar curatela.
3.3 SUGESTÕES PARA POLÍTICAS PÚBLICAS
O Estatuto da Pessoa com Deficiência não se limitou a realizar modificações na seara cível. Mandamentos foram estabelecidos para outros ramos do direito.
Com isso, criam-se conceitos que devem inspirar políticas públicas assecuratórias do pleno exercício da vida civil.
Os conceitos de desenho universal e adaptação razoável foram regulados no direito brasileiro. Constam do Artigo 2 da Convenção de Nova Iorque, que inspira a regulamentação no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
3.3.1 O DESENHO UNIVERSAL
Diversamente do que se poderia cogitar num primeiro momento, a multiplicação de adaptações estruturais para satisfazer as necessidades de locomoção e de uso de espaços por pessoas com deficiência não é mandamento a ser seguido.
Não se quer, com essa afirmação, desincentivar os esforços públicos para garantir que barreiras sejam suprimidas. Como ressaltado em seção anterior, o conceito de pessoa com deficiência é cambiante e interacional. Logo, a supressão de barreiras significa reduzir estatisticamente o número de pessoas com deficiência.
Entretanto, políticas públicas deliberadamente voltadas à adaptação de espaços para pessoas com deficiência podem estigmatizar esse segmento de cidadãos. Orçamentos de União, Estados e Municípios destinariam recursos para modificar edificações, meios de transporte ou espaços públicos. Por conseguinte, pessoas com deficiência passariam a ser vistas como causa necessária de dispêndio público adicional.
Ciente dessa possível estigmatização, a Convenção de Nova Iorque positiva conceito especialmente relevante para a Administração Pública dos vários países (Artigo 2, Definições):
“Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.
O desenho universal é esforço pela plena acessibilidade de bens, serviços e espaços. Conceitualmente, dispensa novas modificações, uma vez que qualquer pessoa, independentemente de eventual deficiência de que padecesse, poderia desfrutar da oferta disponibilizada. Em vez de dispender finanças com modificações, entes públicos e privados buscam, já na fase de planejamento, desenho que elimine a barreira ao uso.
Por mais genérica que a ideia possa parecer, tem gerado resultados práticos. Portas automáticas e elevadores são exemplos cotidianos de desenho universal. Trechos destinados a automóveis que não são separados das calçadas por desnivelamentos, mas por cilindros de concreto bem espaçados entre si, permitem que tanto cadeirantes quanto pedestres sem deficiência possam atravessar as ruas nos mesmos lugares. Inexistem rampas; logo, inexiste espaço segregado para pessoas com deficiência.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência exige observância de desenhos universais na construção de hotéis e pousadas:
“Art. 45. Os hotéis, pousadas e similares devem ser construídos observando-se os princípios do desenho universal, além de adotar todos os meios de acessibilidade, conforme legislação em vigor.”
Ressalva-se, obviamente, que o desenho universal nem sempre será opção disponível. A Convenção de Nova Iorque salvaguardou a necessidade de eventuais ajustes técnicas a serem promovidos. Essa salvaguarda consta da definição de Adaptação Razoável (Artigo 2, Definições):
“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
Todavia, as adaptações sempre serão alternativas secundárias. Gestores públicos e empresários devem priorizar o desenho universal, porquanto possibilitam o pleno acesso a bens da vida e a espaços, dispensados novos gastos. Sob qualquer ângulo de análise, o desenho universal merece a ênfase de governos e de setores produtivos. De plano, eliminam barreiras, são econômicos e evitam a estigmatização de pessoas que padeceriam de impedimentos.
3.3.2 ADAPTAÇÕES RAZOÁVEIS
Encontram aplicação em diversos serviços públicos. O transporte coletivo de passageiros costuma oferecer adaptações razoáveis a pessoas com deficiências motoras. Unidades de ônibus apresentam elevadores para que cadeirantes possam acessar o coletivo. Ainda, oferece-se espaço especial para que a cadeira de rodas se posicione dentro do veículo.
O serviço de transporte privado também foi objeto da Lei 13.146 de 2015, especialmente no art. 52:
“Art. 52. As locadoras de veículos são obrigadas a oferecer 1 (um) veículo adaptado para uso de pessoa com deficiência, a cada conjunto de 20 (vinte) veículos de sua frota.”
O Estatuto da Pessoa com Deficiência consagrou adaptação razoável para espaços destinados a espetáculos:
“Art. 44. Nos teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esporte, locais de espetáculos e de conferências e similares, serão reservados espaços livres e assentos para a pessoa com deficiência, de acordo com a capacidade de lotação da edificação, observado o disposto em regulamento.
§ 3o Os espaços e assentos a que se refere este artigo devem situar-se em locais que garantam a acomodação de, no mínimo, 1 (um) acompanhante da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, resguardado o direito de se acomodar proximamente a grupo familiar e comunitário”.
Vagas de estacionamento dedicadas a pessoas com deficiência também são exemplos de adaptação razoável. Não modificam excessivamente o espaço utilizado e, ao mesmo tempo, garantem facilidade de acesso para pessoas com dificuldades de locomoção. Obviamente, as vagas devem estar próximas a elevadores e rampas. Sobre as vagas especiais, o Estatuto exige que
“Art. 47. Em todas as áreas de estacionamento aberto ao público, de uso público ou privado de uso coletivo e em vias públicas, devem ser reservadas vagas próximas aos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas, para veículos que transportem pessoa com deficiência com comprometimento de mobilidade, desde que devidamente identificados.
§ 1o As vagas a que se refere o caput deste artigo devem equivaler a 2% (dois por cento) do total, garantida, no mínimo, 1 (uma) vaga devidamente sinalizada e com as especificações de desenho e traçado de acordo com as normas técnicas vigentes de acessibilidade.”
Quanto ao acesso à tecnologia, foi criada imposição a telecentros e lanhouses, conforme art. 63, §3º, Lei 13.146 de 2015:
“3o Os telecentros e as lan houses de que trata o § 2o deste artigo devem garantir, no mínimo, 10% (dez por cento) de seus computadores com recursos de acessibilidade para pessoa com deficiência visual, sendo assegurado pelo menos 1 (um) equipamento, quando o resultado percentual for inferior a 1 (um).”
A partir desses exemplos, nota-se a diferença entre 1) o desenho universal, que não demanda modificações posteriores e 2) a adaptação razoável, que pede alterações, embora consideradas módicas ou pouco onerosas.
3.3.3 ESTRUTURAS ESPECIAIS
Por fim, embora não sejam expressamente mencionadas na Convenção de Nova Iorque nem no Estatuto da Pessoa com Deficiência, cogita-se derradeira alternativa para superação de barreiras externas. Seriam estruturas especiais criadas exclusivamente para pessoas com deficiência.
São alternativas mais onerosas, que atenderiam exclusivamente àqueles que padecessem de condições físicas ou mentais específicas.
Por conta do alto custo e do retorno limitado a pequena parcela da população, tendem a receber pouca atenção.
Persistem, no entanto, como alternativa, conquanto terciária, superadas as alternativas primária (desenho universal) e secundária (adaptação razoável). Uma vez implementadas as tecnologias primária e secundária (art. 55, §§1º-2º, Lei 13.146 de 2015), recursos poderiam ser dirigidos a estruturas especiais.
São exemplos os projetos-piloto de casas totalmente adaptadas para suprimir barreiras para indivíduos com condições visuais ou motoras.
3.3.4 BASE DE DADOS
Dentre os instrumentos a serem criados, seria conveniente estabelecer base de dados estatísticos a partir do Disque 100 ou Disque Direitos Humanos[5], que faz parte do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. Com as reclamações de pessoas com deficiência, determinar-se-iam quais são as principais barreiras a serem suprimidas. Desnecessários custos adicionais, forma-se base empírica a direcionar o Executivo das três esferas de governo. A consequência é a gradual redução do número de pessoas com deficiência, o que permitiria direcionar recursos escassos para aqueles cuja situação particular transcenda as barreiras externas.
Os dados do Disque 100 seriam o meio mais simples de viabilizar o Cadastro Nacional da Pessoa com Deficiência (Cadastro-Inclusão), criado pelo art. 92 da Lei 13.146 de 2015 com o intuito de coletar e sistematizar dados sobre barreiras e deficiências no Brasil.
4 CRÍTICAS AO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: PERSPECTIVAS
4.1 CASOS COMPLEXOS DE CURATELA
A persistência da curatela para pessoas com deficiência se impôs como medida necessária, embora excepcional, para indivíduos cujas barreiras tornem impossível o exercício da capacidade civil. Existem, contudo, casos limítrofes que não foram bem delimitados em lei.
Permanece vácuo legislativo sobre 1) casos em que a pessoa com deficiência se recusa a aceitar curatela, embora haja diagnóstico médico que ateste incapacidade; 2) casos de curatela e intervenções fundamentais sobre saúde.
4.1.1 CONFLITO SOBRE A NECESSIDADE DE CURATELA
A Convenção de Nova Iorque e o Estatuto da Pessoa com Deficiência privilegiaram a autonomia das pessoas com deficiência, cuja expressão jurídica é a capacidade civil. Há casos complexos (“hard cases”), contudo, em que a vontade da pessoa com deficiência mental/intelectual pode ser confrontada com a percepção dos legitimados a requerimento de curatela (art. 747, Lei 13.105 de 2015, NCPC). Durante a produção probatória, pode que haja conflito entre laudos periciais apresentados. Conquanto seja praxe seguir os apontamentos da equipe pericial de confiança do juízo, a curatela exige cuidados e a observância de preceito geral em favor da pessoa com deficiência, que poderia ser denominada in dubio pro libertas.
O juízo que se veja confrontado com casos em que a pessoa com deficiência não aceita curatela, embora haja interesse por parte de legitimados calcados em opinião pericial, deve, idealmente:
“1) Promover produção probatória com mais de uma equipe pericial de confiança do juízo;
2) Intimar o curatelando a impugnar o pedido (art. 752, NCPC) e, ao mesmo tempo, questionar-lhe sobre a possibilidade de adotar processo de tomada de decisão apoiada, o qual pode ser oferecido para que se desista da ação;
3) Em caso de laudos periciais conflitantes ou com margens de interpretação, optar pela liberdade e capacidade civil da pessoa com deficiência (in dubio por libertas), em homenagem à principiologia consagrada na Convenção de Nova Iorque e no Estatuto da Pessoa com Deficiência;
4) Caso entenda conclusiva a perícia que pede curatela, intimar o Ministério Público da necessidade de acompanhamento periódico de curto lapso temporal, uma vez que, em casos limítrofes, medidas terapêuticas simples poderiam ser suficientes para cessar a causa de curatela” (art. 756, §1º, NCPC)
Posto que o art. 1.771, CC, tenha sido expressamente revogado pelo Novo Código de Processo Civil, a necessidade de equipe multidisciplinar persiste. O art. 753, §1º, NCPC, afirma que a perícia “pode ser realizada por equipe composta por expertos com formação multidisciplinar”; entretanto, a busca da verdade – processual e real – é princípio mandatório para o juízo. Em casos de reconhecida complexidade, não pode o juízo abrir mão de produção probatória tecnicamente abrangente.
4.1.2 CONSENTIMENTO SUPRIDO
A autonomia da pessoa com deficiência também foi consagrada para procedimentos cirúrgicos e intervenções de saúde. Inclusive, o Estatuto da Pessoa com Deficiência foi incisivo, no art. 85, §1º, ao afirmar que a curatela não abrangeria questões relacionadas ao próprio corpo.
O parágrafo único do art. 11 (Lei 13.146 de 2015), no entanto, afirma que o consentimento da pessoa sob curatela pode ser suprido:
“Art. 11. A pessoa com deficiência não poderá ser obrigada a se submeter a intervenção clínica ou cirúrgica, a tratamento ou a institucionalização forçada.
Parágrafo único. O consentimento da pessoa com deficiência em situação de curatela poderá ser suprido, na forma da lei.”
Trata-se de caso delicado, uma vez que pode haver, novamente, conflito de vontades entre curador e curatelado.
A princípio, nota-se conflito aparente entre os arts. 11 e 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Solução de compromisso entenderia que o art. 11 excepciona o art. 85, desde que a lei regulamentadora prevista no parágrafo único respeite a principiologia da Convenção de Nova Iorque.
Caberia à lei exigir que o tratamento de saúde forçado devesse passar por escrutínio semelhante à concessão da curatela mesma. O rigor do procedimento se voltaria a cuidar da específica questão do tratamento de saúde forçado.
Sugere-se a estipulação de rito que preserve, ao máximo, a autonomia da pessoa com deficiência:
“1) O curador deverá peticionar ao juízo para que se imponha o tratamento de saúde, embasado, desde o princípio, em parecer médico;
2) O curatelado poderá impugnar o pedido. Nele, poderá apresentar assistente pericial. Poderá requerer que a equipe do juízo seja composta de técnicos conhecidos pelo viés pró-liberdade de escolha;
3) O juízo deverá promover prova pericial com equipe de profissionais de saúde;
4) Divergência entre pareceres clínicos deve ser interpretada segundo o princípio do in dubio pro libertas;
5) Asseverada a necessidade de intervenção sobre a saúde do curatelado, o juiz deverá intimar a equipe pericial e os assistentes periciais requerendo-lhes a apresentação de intervenção menos invasiva possível;
6) Determinado o procedimento clínico mais eficaz, o juiz aceitará o consentimento suprido.”
Obviamente, esse rito deve ser empregado para casos cuja gravidade não exija rápida decisão. Nos casos urgentes, a opinião do curador se impõe, ressalvada a extensa discussão doutrinária sobre autonomia individual em casos de vida e morte, que ainda não modificou o viés pró-vida do ordenamento jurídico brasileiro.
4.2 ÔNUS FINANCEIRO DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Criticado recorrentemente pelo setor privado, o Estatuto da Pessoa com Deficiência impôs adoção de medidas inclusivas ao empresariado brasileiro. Trata-se de claro exemplo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, em que o Estado deixa de ser o único garantidor da observância de direitos humanos e fundamentais.
As medidas, especialmente centradas em adaptações razoáveis, impõem modificações de espaços públicos, mas também impõem ônus financeiros a vários segmentos produtivos do país.
Recentemente, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, ofereceu Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o estipulado no art. 28, §1º c/c art. 30, Lei 13.146 de 2015. Alegou que a impossibilidade de cobrança adicional impunha ônus indevido aos estabelecimentos particulares de educação.
Em decisão monocrática, Luiz Edson Fachin nega provimento ao pedido de suspensão liminar da eficácia dos dispositivos acima mencionados:
“Segundo a decisão, não procede a alegação da autora que o dever de garantir a educação a todos compete tão somente ao Estado. Trata-se de obrigação estatal, inexoravelmente. Todavia, o compromisso se estende, também, à iniciativa privada, visto que os direitos fundamentais vinculam entes públicos e privados” (DINIZ, 2016, p.441)
Trata-se de leitura acertada do Direito. Convenções internacionais internalizadas e leis delas derivadas têm eficácia tal qual outros diplomas legais, cuja generalidade abrange entes públicos e privados, ressalvadas diferenciações que devam constar expressamente no articulado.
Conquanto a crítica de setores produtivos seja pertinente e aceitável, a situação de fato das pessoas com deficiência exigia medidas legais de inclusão. Como o setor público se mostra incapaz de, sozinho, cumprir com as metas de inclusão, o legislador demanda medidas dos entes privados. Diante de crise do Estado providencialista, demanda-se corresponsabilidade de Estados, empresariado e sociedade em geral (OLIVEIRA, 2007, p. 318).
Em termos políticos, cria-se mais um incentivo para que pessoas públicas e privadas criem e implementem desenhos universais, solução primária que afasta os ônus presentes nas adaptações razoáveis e nas estruturas especiais.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a maior contribuição da Convenção de Nova Iorque para o ordenamento jurídico brasileiro foi ressaltar a autonomia da pessoa com deficiência, que, por sua vez, expressa-se juridicamente pelo instituto da capacidade civil.
Ainda, a Convenção de Nova Iorque atualiza o jargão e os conceitos utilizados na disciplina da pessoa com deficiência. São introduzidas noções especialmente relevantes na formulação de políticas públicas e empresariais, como o desenho universal e a adaptação razoável.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência modificou o Código Civil brasileiro para distinguir entre deficiência e incapacidade civil. A distinção é necessária, pois a deficiência é relativa – depende da existência de barreiras externas – e nem sempre determina incapacidade civil, seja absoluta, seja relativa.
O Direito Civil brasileiro passou a considerar a pessoa com deficiência, como regra, civilmente capaz para todos os atos da vida quotidiana. A incapacidade da pessoa com deficiência é expressamente excepcional, caso em que a curatela constitui-se em opção a ser observada.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência padece, no entanto, de problemas a serem enfrentados por legisladores, julgadores, advogados e membros do Ministério Público. A curatela, ainda que excepcional, não deveria alcançar direitos personalíssimos, conforme disposto no art. 85 da Lei 13.146 de 2015. Existe, contudo, possibilidade legal de o curador requerer tratamentos impositivos. Nesse caso, cabe aos juízos e às partes observar a principiologia da Convenção de Nova Iorque, que consagra a autonomia das pessoas com deficiência, inclusive as de ordem mental/intelectual. Jurisprudencialmente, deve-se observar ritualística que enfatize a liberdade de escolha, conforme exposto no desenvolvimento deste trabalho.
Quanto a políticas públicas e privadas de inclusão, a criação de base de dados é mandamento do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Para evitar dispêndios inúteis, sugere-se o emprego do serviço telefônico disponibilizado pelo governo federal, o Disque Direitos Humanos. Os mandamentos que exigem adaptações razoáveis dos setores público e privado constituem ônus a ser enfrentado; no entanto, conforme explicitado neste artigo, trata-se de solução secundária, uma vez que desenhos universais e produtos acessíveis a todos evitam gastos voltados exclusivamente a pessoas com deficiência.
De maneira geral, a Lei 13.146 de 2015 obteve êxito na concretização da Convenção de Nova Iorque. Desafios relacionados a casos delicados, como a curatela, deverão ser enfrentados por operadores do Direito, mas soluções de compromisso podem ser criadas. Respeita-se, assim, o acervo normativo internacional que posiciona o Brasil na vanguarda da promoção dos direitos humanos. Essa simbiose da Convenção de Nova Iorque com o Estatuto da Pessoa com Deficiência assegura dignidade a segmento potencialmente desprotegido das sociedades civis, mas depende da compreensão de todos os juristas, a que este artigo espera ter contribuído.
Informações Sobre o Autor
Vinicius Hsu Cleto
Advogado particular e procurador municipal. Pós-graduado lato sensu pela Universidade Positivo. Pós-graduando lato sensu pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. Bacharel em Direito pela UFPR