A visão hegeliana de estado e a primazia do direito internacional sobre o direito interno

Resumo: Tendo em vista a seara dos Direitos Humanos, bem como da Dignidade da Pessoa Humana, o presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o conceito de Estado para Hegel sob a luz da recepcionalidade, pelos Estados, dos acordos e tratados internacionais que visam a proteger os direitos humanos, bem como promover a dignidade da pessoa humana. Hegel continuava a tradição do jusnaturalismo moderno iniciada por Hobbes, ao considerar o Estado como o momento positivo do desenvolvimento histórico da humanidade, ou seja, o Estado como sujeito da história universal, para além do qual não existe outra condição, senão a do estado de natureza. O ser humano é sujeito tanto do direito interno quanto do direito internacional. Ou seja, os indivíduos têm direitos internacionais próprios e a titularidade destes os constitui em sujeitos de direito no mesmo nível em que os Estados e Organizações Internacionais.[1]

Palavras Chave: Direito, Dignidade, Humano, Hegel, Estado.

Abstract: In vista della raccolta dei diritti dell'uomo e della dignità della persona umana, il presente articolo si propone di discutere il concetto di Stato per Hegel alla luce di recepcionalidade da parte degli Stati di trattati e accordi internazionali volti a proteggere i diritti umani e promuovere la dignità umana. Hegel ha continuato la tradizione del diritto naturale moderno iniziata da Hobbes, considerando lo stato come il momento positivo di sviluppo dell'umanità storica, vale a dire, lo Stato come soggetto della storia del mondo, oltre il quale non vi è alcuna altra condizione che lo stato la natura. L'essere umano è il soggetto sia delle leggi nazionali, come il diritto internazionale. Cioè, gli individui hanno i loro diritti internazionali e la proprietà di questi costituiscono i soggetti di diritto allo stesso livello nelle organizzazioni membri e internazionali.

Parole chiave: legge, dignità, umana, Hegel Stato.

Sumário: Introdução; 1 – A Filosofia de Hegel; 2 Hegel e o Jusnaturalismo; 3 O Estado Racional; 4 O Estado e o sujeito de direito; 4.1 A Constituição; 4.2 A liberdade subjetiva; 4.3 A soberania do Estado; 5 O Direito Interno e as Relações Internacionais; Considerações Finais; Referências.

Introdução

A importância do pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), nesta pesquisa, provém não de suas concepções jurídico-filosóficas tomadas isoladamente, porém como parte de seu consagrado sistema filosófico já que para compreender a Filosofia do Direito do filósofo em epígrafe deve-se conhecer, previamente, a sua doutrina de uma maneira geral.

Em Hegel, o mais renomado filósofo alemão, a ideia absoluta, anterior ao mundo, transformara-se no reino da natureza, voltando a si posteriormente sendo, inicialmente, a ideia em si, ou seja, antes da criação do mundo. Em seguida, a ideia fora de si, transfundindo-se em natureza, e, por fim, a ideia em si e por si, quando se converte e se torna espírito. Enquanto o pensamento kantiano afirmava que os homens possuem aptidão para conhecer apenas o fenômeno e não a coisa em si, em Hegel, o conhecimento humano era ilimitado. Nesse sentido, declarou no prefácio de Filosofia do Direito que “tudo o que é real é racional, tudo o que é racional é real”. O ser e o pensar, nessa ótica, são iguais, não havendo divergência entre o ser e o dever ser. Para Hegel, não existe fora do pensamento. A justificação racional e o real sempre são interligados, nada existe que não tenha justificação racional, como também não há posição racional que de algum modo ou em algum momento não se realize, sendo, portanto, fenômeno da razão absoluta. A ideia, não inerte, desenvolvia-se historicamente por meio da dialética havendo sempre o processo triádico composto pela tese, antítese e síntese. A tese trata-se da situação fática, a realidade, com suas características propícias para germinar a contradição, ou seja, a antítese. Tal processo evolutivo culminaria na síntese, e tal síntese, por sua vez, seria tese para um novo processo evolutivo. Tal método dialético triádico seria aplicável em todos os setores da realidade humana.

O espírito, segundo Hegel, é a ideia em si e por si, e se manifesta de três formas: espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto. O espírito subjetivo refere-se à alma, à consciência e à razão. O espírito objetivo envolve o Direito, a Moralidade e o Costume. O espírito absoluto, por sua vez, a Arte, a Religião e a Filosofia, sendo, portanto, uma síntese do espírito subjetivo e objetivo. A Arte registra a intuição da ideia do absoluto, a Religião representa a ideia do absoluto, já a Filosofia expressa o absoluto. Quanto ao espírito objetivo, que abarca o Direito, seria a existência da liberdade do querer, ou seja, a liberdade externa que, em sua imperfeição, leva à Moralidade.

O pensamento hegeliano nos auxilia na compreensão das relações internacionais, já que o direito internacional advém como instrumento capaz de estabelecer o consenso entre os diversos ordenamentos internos. Os Estados, cada vez mais diversos, optam, por abrir mão da sua soberania absoluta e ilimitada para pôr fim aos conflitos de interesses.

A partir das questões ora levantadas, percebe-se a pertinência em analisar a filosofia hegeliana acerca da formação e soberania do Estado e correlacioná-la com as normas internacionais garantidoras de direitos.

1 – A Filosofia de Hegel

Hegel sempre entendeu a filosofia como produto das contradições imanentes ao homem. A formação da história da filosofia nasce da tensão entre espírito e matéria, alma e corpo, fé e entendimento, liberdade e necessidade, e posteriormente, razão e sensibilidade, inteligência e natureza e, de modo geral, entre subjetividade e objetividade.

O conceito das contradições apresentadas já se encontrava em Kant, Crítica da Razão Pura. Hegel conduz a dialética kantiana para uma nova interpretação, a partir da distinção entre razão e entendimento, inaugurando-se seu método filosófico. A distinção entre razão e entendimento se dá do mesmo modo que entre senso comum e pensamento especulativo.

Somente pela razão, por meio da ação consciente do entendimento, pode-se criar a identidade da essência e da existência, desprendendo-se do senso comum e aproximando-se do pensamento especulativo. Tal resultado é alcançado por meio do conhecimento conceitual e não por meio da intuição mística. O conhecimento conceitual examina todo o processo pelo qual cada forma se apresenta. O pensamento especulativo, conceituado nas preliminares do método dialético hegeliano, dá-se pelo entendimento do vir-a-ser, sendo tal ser um produto e ao mesmo tempo um produzir.

Hegel apresenta a primeira norma da razão, desconfiar da autoridade dos fatos. A desconfiança é constituidora do ceticismo legítimo que é elemento de liberdade de toda filosofia autêntica. A realidade preliminar não é a última realidade, já que está envolta a restrições e à servidão. A realidade final se dá quando não se separa o sujeito livre e o mundo objetivo, já que a oposição deve ser resolvida. A partir da solução dos antagonismos, chega-se ao absoluto, que para Hegel, é o contrário da realidade, apreendido pelo senso comum de cada indivíduo e do mesmo modo pelo entendimento. Assim, somente a totalidade de conceitos e conhecimentos representam o absoluto. A razão, portanto, tem função negativa, ou seja, de destruir o fenômeno objetivo aparentemente estável e indiferente do senso comum e do entendimento (PADUANI, 2005, p. 34).

Hegel, pelo desconfiar, nos propõe a tríade como verdadeira forma do pensamento. Sendo uma unidade dinâmica de opostos, compostos por tese, antítese e síntese.

“A primeira configuraria a situação, a realidade, com todas as suas características, a qual conteria o gérmen da contradição e que ensejaria a antítese. Como resultado do processo evolutivo surgiria a síntese, que por sua vez seria a tese para uma nova marcha, em uma sequência infinita” (NADER, 2012, p. 186).

Hegel parte da realidade histórica vivida pela Alemanha. Seus panfletos políticos são escritos após a derrota da Alemanha pela França em guerra travada. A partir daquela realidade quando reinavam contradições universais, o filósofo de Jena viceja sua filosofia, deixando nas entrelinhas a força que conduzia ao isolamento das pessoas, chegando a considerar que a Alemanha não era mais um Estado.

“Cada classe e cada indivíduo, em particular, só tinha como objetivo alcançar seus próprios interesses, marginalizando o todo, defluindo disso, como corolário, a perda de unidade, que reduziu o Reich à impotência total frente aos adversários, notadamente perante a República Francesa’ (PADUANI, 2005, p. 35).

Ante a tais desafios, Hegel defendeu a transformação em uma nova ordem racional, e que tal transformação não poderia se verificar pacificamente.

“[…] Os senhores do Estado mentiam quando defendiam a posição deles em nome do interesse comum. Seus adversários, não eles, representavam o interesse comum, e a ideia que eles defendiam, a ideia de uma nova ordem, não era simplesmente um ideal mas a expressão de uma realidade que não mais tolerava a ordem dominante” (MARCUSE apud PADUANI, 2005, p. 37).

Assim, Hegel propõe a substituição daquela velha ordem por uma autêntica comunidade, ou seja, emanada de forma integradora dos interesses particulares e individuais, adaptando-se ao interesse comum, culminando no Estado autêntico. O filósofo ainda defende que o Estado, deve ao menos assumir “a aparência de uma autêntica comunidade, com vistas a apaziguar o conflito geral” (PADUANI, 2005, p. 39). Por tal viés, Hegel sustenta a radical subordinação do direito ao poder do Estado, sendo o interesse estatal sempre superior à validade do direito.

O processo, ontológico e histórico, de desenvolvimento cultural, dá-se pela relação do homem com o mundo. O homem apreende e domina o mundo adaptando-o às suas necessidades e potencialidades. Com o progresso de desenvolvimento cultural, o homem direciona-se a modos mais autênticos de viver. Hegel se atém mais ao processo ontológico em relação ao histórico.

2 – Hegel e o Jusnaturalismo

Obviamente Hegel desenvolve todo o sistema filosófico partindo do gérmen, do qual tinha consciência, que é o jusnaturalismo. Partindo dessa consciência, Hegel assume a tarefa de explicitar a filosofia da história e de levá-la às extremas consequências. Destarte,

“[…] a filosofia do direito de Hegel, ao mesmo tempo em que se apresenta como a negação de todos os sistemas de direito natural, é também o último e mais perfeito sistema de direito natural, o qual, enquanto último, representa o fim, e, enquanto mais perfeito, representa a realização do que precedeu” (BOBBIO, 1995, P. 23).

Hegel rejeita a doutrina do direito natural nos moldes de sua época, porque tal doutrina justifica quaisquer tendências perigosas que objetivem subordinar o Estado aos interesses contrários aos da sociedade. E em se tratando de interesses opostos, não há que se falar em teoria do contrato social, uma vez que o interesse comum nunca poderia derivar da vontade de indivíduos competitivos e em situação de conflito. Outrossim, o direito natural se pauta em “uma concepção essencialmente metafísica do homem” (PADUANI, 2005, p. 49), configurando-o como ser abstrato, possuidor de um conjunto arbitrário de atributos.

Embora a problemática do direito natural seja real, é possível admitir que o pensamento de Hegel valoriza tal doutrina, fazendo menção ao Direito abstrato, enquanto expressão da relação da vontade livre em si mesma e de modo excludente, ou seja, a personalidade.

Hegel, conforme afirma López Calera, não apoiava a “supervalorização do conceito de ‘natureza’, nem a sua utilização nas questões éticas e jurídicas” (CALERA apud NADER, 2012, P. 187). No entanto, o direito natural, no pensamento hegeliano, é fundado na ideia de pessoa, com a máxima: “sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas” (HEGEL, 1997, p. 40). Assim, o direito de propriedade seria resultado da vontade em si mesma, já o contrato advém da relação intersubjetiva de vontades. En passant, afirmar, categoricamente, que Hegel elimina de seu sistema as contribuições jusnaturalistas, somente se fundamenta, quando há uma separação de seu pensamento do contexto histórico vivido, ou seja, quando se compreende seu pensamento como evento isolado e completamente inédito. Destarte as críticas quanto aos conceitos fundamentais do direito natural já eram construções realizadas por todas as correntes filosóficas.

A antítese real do jusnaturalismo está na escola histórica, contra qual Hegel debateu, em tempos juvenis, devido às maneiras de tratar cientificamente o direito natural. Diferentemente, Hegel possui como alvo de suas críticas “a aceitação interte do estado de coisas herdado somente porque herdado, a veneração do passado enquanto passado, a confusão entre o que é acidental e o que é essencial no discurso histórico” (BOBBIO, 1995, p. 27). Por isso, Hegel contrapõe-se à Constituição – daquele período pós-guerra, imperial –  afirmando “a Alemanha não é mais um Estado” à Constituição formal. A partir de tal contraposição, percebe-se que o fato de a Constituição ser positivada, não significa ser racional, e, se não é racional, deve ser reformada.

À medida que Hegel avança nos estudos acerca do Estado, vai se aproximando da dissolução do jusnaturalismo que se dá quando o filósofo de Jena declara que “a totalidade ética absoluta não é nada mais do que um povo” (HEGEL apud BOBBIO, 1995, p. 30). Assim, Hegel retoma o já afirmado por Aristóteles: “segundo a natureza, o povo precede o indivíduo” (BOBBIO, 1995, p. 31), o que, na visão jusnaturalista, é incaceitável, já que sua tradição ensina que o indivíduo singular precede ao todo, ou seja, o Estado é um todo resultado de uma construção a partir do indivíduo.

A crítica de Hegel ao contrato social e o que fundamenta a polêmica contra o direito natural se dá na questão do indivíduo na eticidade, ou seja, na totalidade ética o todo não somente precede as partes, mas é superior às partes que o compõem. Hegel justifica seu posicionamento pela ação do indivíduo na eticidade, sendo seu ser empírico e o seu agir universais, ou seja, não é o espírito individual que age, mas sim o espírito universal absoluto que há naquele indivíduo agente.

Hegel não inaugura a crítica ao contrato social, Hume, Bentham, Saint-Simon já haviam levantado tais questões e fundamentado com argumentos satisfatórios. Saint-Simon, por exemplo, dizia que a teoria do contrato social é um dogma semelhante à teoria do direito divino. No entanto, embora Hegel não seja o primeiro a levantar crítica à teoria do contrato social, nele encontram-se argumentos diversos dos até então utilizados. Sua crítica é racional e se pauta no princípio da totalidade ética realizada no povo, uma vez que a vontade precede à vontade dos indivíduos, sendo ainda, absoluta, já que se aplica a eles. A vontade do todo não é a vontade do indivíduo, no entanto, a vontade absolutamente universal é obrigatória para o indivíduo em si e para si.

O conceito de estado de natureza apresentado pelo sistema de direito natural é refutado por Hegel não pelo conceito daquele estado, mas pela errônea interpretação. O estado de natureza não é um estado de inocência, interpretação semeada por Rousseau. Hegel elogia Hobbes por ter interpretado de forma correta o estado de natureza, ou seja, trata-se de estado real, de violência, que se apresenta quando o Estado inexiste, como ocorre nas relações dos Estados entre si, ou em momento que o Estado desaparece por dissolução interna.

Assim, enquanto estado da violência, o estado de natureza não abarca questões jurídicas, portanto, o homem no estado de natureza, não possui nenhum direito. Para Hegel, o direito, mesmo o direito privado, não é um fato individual, é sempre um produto social, e o estado de natureza não se relaciona, de maneira alguma, à sociedade. Ao considerar o estado de natureza um estado não-jurídico, Hegel destrói outras duas bases do direito natural:

“a doutrina dos direitos do homem, como direitos naturais preexistentes à sociedade, e o sonho de uma república universal como estado jurídico além do Estado, isto é, a possibilidade de conceber um direito pré-social e um direito ultra-estatal, o que comportava o desconhecimento de limites jurídicos tanto internos quanto externos ao Estado” (BOBBIO, 1995, p. 36).

Hegel apresenta uma inovação ainda mais radical que se tratava da vida prática, a dimensão da eticidade. Tal dimensão era inaceitável pelo direito natural. Os jusnaturalistas, em questões de vida prática, admitiam apenas as dimensões do direito e da moral. No entanto, a dimensão direito-moral somente era suficiente enquanto uma vida contraposta por dois momentos, sendo “interno-externo, subjetivo-intersubjetivo, individual-social, privado-público” (BOBBIO, 1995, p. 37). Assim, a partir da compreensão da vida prática de uma totalidade viva e histórica, na qual o sujeito não é mais um ou uma soma de indivíduos, e sim uma coletividade, surge a figura da comunidade popular, composta por um todo orgânico que determinava-se e destacava-se, na vida prática, com a exigência de novos instrumentos conceituais (BOBBIO, 1995, p. 37). Partindo dos costumes como característica de uma comunidade popular, Hegel inaugura o conceito de eticidade visando “compreender e assinalar a nova realidade que se lhe revelava” (BOBBIO, 1995, p. 38), destacando a sublimação do Estado, cuja racionalização passava-se de ideal para real.

3 – O Estado Racional

O Estado, no pensamento hegeliano, “é a realidade em ato da Ideia de moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe” (HEGEL, 1997, p. 216). A existência imediata do Estado se dá no costume, enquanto a existência mediata se dá na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, ao obter sua liberdade substancial, vinculando-se ao Estado como vincula-se à sua própria essência.

O Estado, sendo realidade em ato da vontade substancial que se adquire na consciência particular de si universalizada, é, tal uníssona substância “um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos” que por serem membros do Estado, racional em si e para si, têm o seu mais elevado dever (HEGEL, 1997, p. 217).

No entanto, a relação do Estado para com o indivíduo se dá de forma diversa, sendo ao indivíduo facultativo ser membro de um Estado. Sendo o Estado o espírito objetivo, o indivíduo somente terá objetividade, verdade e moralidade, caso seja membro do Estado, ou seja, participe da vida coletiva. Assim, o agir que se pauta nas leis e nos princípios pensados, ou seja, universais, culminam na ideia do ser universal em si e para si do espírito.

A Filosofia do Direito de Hegel possui como elemento central a seara da liberdade. A liberdade como bem maior passível de partilhar de forma igualitária, devendo ser fruída em sua totalidade, abarcando tudo aquilo que a realiza ou a possibilita como ideia de justiça. Habermas afirma que Hegel inaugura a filosofia da modernidade, porque aborda a temática conforme a lógica da sua própria forma de apresentação, ou seja, a referência a si mesmo, dada pela noção moderna de liberdade. É livre aquilo que permanece no seu próprio elemento, ou seja, ser a atividade determinante de si mesmo. A liberdade consiste em poder transitar em seu próprio âmbito, tendo em si mesmo a razão do agir autônomo não determinado ou limitado por outrem, constituindo a determinação essencial do espírito. O espírito é uma singularidade que se traduz numa relação idêntica e livre a si, uma atividade que constantemente se realiza por meio da exteriorização da sua interioridade, culminando numa livre subjetividade.

Se a liberdade se fundamenta em si mesma, o seu caráter especulativo-histórico exige sua efetividade de fato. Para tanto, necessita-se unir o conceito teórico de liberdade ao ser-aí (Dasein), a fim de que a história universal, sendo a afirmação do Espírito, possa desenvolver o conceito de liberdade no qual o Estado constitui a sua realização temporal (RAMOS, 2001, p. 40).

4 – O Estado e o sujeito de direito.

O Estado, segundo Hegel, constitui uma existência imediata; o Estado individual é um organismo que se refere a si mesmo, é a constituição do Direito político interno; o direito externo em que transita a relação do Estado isolado com outros Estados. O Estado é a ideia universal como gênero e potência absoluta sobre os estados individuais, quer dizer, o espírito que a si mesmo dá a sua realidade no progresso da História Universal (PADUANI, 2005, p. 156).

Trata-se, o Estado, de uma necessidade exterior dotada do mais alto poder ante ao direito privado, da família e da sociedade civil, daí se dá a subordinação – indivíduos – em face do Estado, onde se podem encontrar reunidos direitos e deveres numa mesma relação. O Estado é, então, “uma união e não uma associação, um organismo vivo e não um produto artificial, uma totalidade e não um agregado, um todo superior e anterior a suas partes, e não uma suma de partes independentes entre si” (BOBBIO, 1995, p. 98). Em suma, é um todo organizado, sendo a constituição seu princípio organizador.

4.1 – A Constituição

Hegel, ao apresentar a Constituição como princípio organizador do Estado, não se refere a uma Constituição formalmente elaborada, ou seja, positivada em um conjunto de normas jurídicas. A Constituição hegeliana, Bobbio assim afirma, tem uma concepção institucional, pois, por ela, o povo se torna um Estado. É a forma específica em que as várias partes que compõem um povo são chamadas a cooperar, mesmo que de forma desigual, com o objetivo de alcançar um fim único comum representado pelo desejo do Estado.

O Estado, enquanto espírito de um povo, configura-se como uma lei que envolve a vida, costumes e consciência dos indivíduos que formam aquele povo. Nesse sentido, a Constituição está fortemente relacionada com a natureza e a cultura da consciência de um povo, e é nesse povo que se encontra a liberdade subjetiva do Estado. Logo, a realidade da Constituição.

Hegel valoriza a Constituição que é dada a priori, contrapondo-se àquelas que emanam aos poucos, conforme as necessidades e circunstâncias. Nesse sentido, Karl Marx, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, afirma que a valorização que Hegel atribui à Constituição dada a priori  não condiz com a essência de um verdadeiro Estado. Pois,

“[…] a constituição, que era o produto de uma consciência passada, possa se tornar um pesado entrave para uma consciência mais avançada etc. etc., são, por certo, apenas trivialidades. Disso deveria resultar, antes, a exigência de uma constituição que contivesse em si mesma a determinação e o princípio de avançar com a consciência; de avançar com o homem real, o que só é possível quando se eleva o “homem” a princípio da constituição. Hegel é, aqui, sofista.”

Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma que “boa Constituição é aquela que, mesmo não sendo dada a priori, mesmo não contradizendo ou não forçando o espírito de um povo, se adapta pouco a pouco, ou até imediatamente, se for necessário, ao espírito do tempo” (BOBBIO, 1995, p. 109).

4.2 – A liberdade subjetiva

O princípio basilar da ideia de justiça no Estado moderno exige a igualdade de todos os indivíduos. Constituir uma totalidade a partir do ideal de justiça platônico, eliminando as diferenças naturais não é mais concebível.  Deve-se ater que a pólis grega tinha, por pressupostos, a limitação natural daqueles que se consagravam ao trabalho e à cidadania daqueles que pertenciam à classe social.

Hegel pretende assegurar as diferenças, sem se levar à dispersão atomista do jusnaturalismo, permitindo a desigualdade possível e necessária para o surgimento e funcionamento da sociedade civil, a partir do princípio da liberdade subjetiva. Daí advém a necessidade de assentar a soberania do Estado, diferenciando-o da vida privada, cabendo a peculiaridade de não se aderir indiretamente ao pensamento grego no que tange à desigualdade natural.

A partir da definição hegeliana de Estado, ou seja, o Estado é a “realidade efetiva da liberdade concreta” (HEGEL, §260), atesta-se a superioridade lógica, do Estado, em detrimento à liberdade subjetiva e à sociedade civil. O Estado é “um fim em si mesmo absoluto e imóvel no qual a liberdade alcança seu direito supremo, assim como esse escopo final tem o direito o mais elevado em relação aos indivíduos, cujo supremo dever é ser membro do Estado” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 216).

O Estado, enquanto comunidade formada pela universalidade envolta numa relação ética superior, é a superação e conservação da particularidade, ao encerrar em si a mais absoluta prioridade em detrimento ao indivíduo, “quer como membro da unidade afetiva da família, quer como sujeito privado, subjetividade livre e diferenciada da sociedade civil” (RAMOS, 2001, p. 217). O Estado constitui o momento necessário e precede à liberdade subjetiva, já que o advento e a permanência do Estado não se limitam à contingência de vontades singulares. “É falso dizer que o arbítrio de todos conduz à fundação de um Estado, se deveria dizer antes que é uma necessidade para todo [homem] existir no Estado” (RAMOS, 2001, p. 216).

O Estado não pode ser embasado por elementos do direito privado, nem analisado como um agregado de vontades unidas pelo contrato. Ora, os indivíduos privados são restringidos pelos contratos firmados, tendo como objetivo alcançar uma vontade comum que será sempre privada, ou seja, entre as partes, e nunca pública. A vida pública encerra em si a mais alta dignidade a que o indivíduo pode aspirar. Desse modo, o desejo, o arbítrio e o bem-estar são analisados pela esfera privada já que a realização econômico-social dos sujeitos é mero meio para a vida pública do Estado.

Aparentemente Hegel aniquila o sujeito em relação ao Estado, no entanto, o empenho hegeliano consiste, justamente, em destacar a singularidade subjetiva que deve se realizar na instância política da substancialidade do Estado. Hegel pretende, portanto, conferir, pelo Estado, realidade objetiva e concreta à liberdade subjetiva, de modo que se configure a presença real do indivíduo no Estado sem, aniquilar a liberdade subjetiva. Sem o Estado, os indivíduos se atomizam e se consomem na exacerbação dos seus fins particulares, e não alcançam o sentido da sua maioridade espiritual numa comunidade ético-política.

A atividade particular dos sujeitos é formada no sentido de abandonar o egoísmo a limitação e a precariedade dos seus fins.

“O Estado é efetivo e sua realidade efetiva consiste em que o interesse do todo se realize nos fins particulares. A realidade efetiva é sempre a unidade da universalidade e da particularidade, o desprendimento da universalidade e da particularidade, o desprendimento da universalidade na particularidade, que aparece como se fosse independente, embora seja sustentada e mantida exclusivamente pelo todo. Se algo não apresenta esta unidade não é efetivamente real, embora tenha que se admitir sua existência […]. Uma mão que se separou do corpo tem, todavia, a aparência de uma mão e existe sem ser efetivamente real” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 225).

Hegel pretende enfatizar a ideia de que a autoridade suprema do Estado não deve ser avaliada pela posição que ele ocupa, mas pela própria natureza ética, pela independência do seu conceito, pela universalidade e idealidade do político, enfim, pela efetivação concreta da Ideia de liberdade que a sociedade moderna consolidou em sua história.

4.3 – A soberania do Estado

Para melhor compreendermos a soberania do Estado, retomaremos algumas características de uma constituição.

Os indivíduos, membros do Estado, buscam nele a efetiva proteção contra a subjetividade arbitrária dos outros e do próprio governo. Para tanto, a constituição, além de “criar” o Estado, deve conter, também, disposições supremas sobre os direitos e as liberdades individuais, sobre a liberdade política e sobre a participação dos indivíduos nos assuntos públicos, sendo expressão viva do “espírito de um povo”.

“O Estado, enquanto espírito de um povo é, ao mesmo tempo, a Lei que penetra todas as relações [da vida deste povo], os costumes e a consciência dos seus indivíduos, assim, a constituição de um determinado povo depende em geral, do modo e da cultura da autoconsciência desse mesmo povo, na qual reside sua liberdade subjetiva e, por conseguinte, a realidade efetiva da constituição” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 232).

Ante aos interesses privados, por vezes conflitantes, o Estado deve se valer de uma força supra, possibilitada pela centralização do poder em face da prevalência do interesse público em detrimento do privado. O Estado, enquanto realização efetiva da ideia de liberdade, ostenta a determinação da idealidade como traço essencial, a qual caracteriza, também, a soberania. Embora se aparente ao monarca pela centralização do poder, a decisão, ou seja, aplicação do poder, é realizada pelo Estado como um todo, de modo que sua determinação fundamental é a “unidade substancial enquanto idealidade dos seus momentos” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 235). Sendo assim, a autoridade se dá na totalidade em função das suas qualidades pessoais destinadas ao serviço público. A soberania confirma que o princípio da idealidade favorece a união das partes, o apaziguando e resolvendo os conflitos oriundos das relações particulares na sociedade civil.

A eleição como forma de se escolher o soberano é rejeitada por Hegel, pois o eleito por meio do sufrágio não deixa de ter para com seus eleitores uma relação contratual, constituindo, o eleito, um funcionário do Estado. O projeto do poder político de Hegel se dá no poder do príncipe, em seu “eu quero”. Entre o poder decisório do príncipe e o poder que vota as leis na sua universalidade, dá-se o poder governamental, formado por funcionários públicos recrutados na “classe média” culta que executa e realiza nos casos particulares, as decisões universais do Estado e do príncipe. É essa elite, em sua cultura, honestidade e inteligência, que se encarrega da administração pública. O serviço que o funcionário público presta é de natureza ético-política, e não combina com os negócios contratuais da sociedade.

“O funcionário não é nomeado para uma prestação singular e contingente do serviço, como o mandatário, mas deposita nesta relação, o interesse principal de sua existência espiritual e particular […]. O que o servidor do Estado tem que fazer é, imediatamente, um valor em si e para si” (HEGEL apud RAMOS, 2001, p. 242).

Nesse sentido, Hegel rejeita a soberania popular desprezando a capacidade política do povo. Também rejeita a democracia como forma de governo mais adequada para o Estado moderno, pois ela é mais apropriada para a antiga Grécia. A dificuldade que Hegel apresenta em relação à democracia resume-se “na crença ingênua da existência de uma consciência política imediata, racional e reta do povo, desconsiderando as instâncias políticas mediadoras presentas na sociedade” (RAMOS, 2001, p. 247).

A soberania, então, revela uma qualidade própria do Estado e de um povo politicamente organizado. O Estado é soberano por si só, em virtude de sua própria potência e idealidade que repercute e se completa nas suas diversidades.

Assim, as críticas de Karl Marx ganham importante relevância, pois “se Hegel tivesse partido dos sujeitos reais como das bases do Estado, então não se teria visto obrigado a transformar o Estado em sujeito, de uma maneira mística”. No mesmo sentido de oposição, Marx afirma que, na democracia, o “homem existe não em virtude da lei, mas a lei em virtude do homem; o homem é existência humana, ao passo que nas outras [formas políticas não democráticas] o homem é existência legal”, sendo uma mera abstração, uma vacuidade formal e espiritualista do cidadão classificada pela sua realidade material e econômica. “O homem político tem sua existência particular junto ao homem privado, não político” (MARX, 1843, p. 44).

5 – O Direito Interno e as Relações Internacionais

Hegel afirma a autonomia do Estado em relação aos outros Estados. Sendo a primeira relação internacional, o reconhecimento, ou seja, quando conferem àquele novo Estado. Das relações internacionais, surge o Direito Internacional. A figura do dever ser necessariamente evolve tais relações já que os resultados das relações dependem das vontades soberanas diversas, em geral, regulamentas pela natureza formal dos contratos.

Tendo em vista que as relações internacionais se dão entre Estados soberanos, encontram-se “uns perante os outros num estado de natureza e os seus direitos não consistem numa vontade universal constituída num poder que lhes é superior” (HEGEL, 1997, p. 303), mas tão somente no fato das recíprocas vontades. Nesse diapasão, quando as vontades não são bem firmadas, surgem os conflitos entre os Estados, não tendo outra saída para dirimir tal impasse, senão pela justiça da guerra, com objetivo de retomar ou manter o bem-estar que, por ventura, esteja ameaçado na particularidade de cada Estado.

Ante a visão hegeliana de Estado, bem como sua autonomia nas relações internacionais, ou seja, com outros Estados, há que se questionar qual a saída para o sujeito particular, membro de um determinado Estado, que possui suprimida sua dignidade como pessoa humana por aquele Estado a que pertence? Trata-se de complexo assunto, no entanto, deve-se levantar, apenas a título de provocação, o fato da grande massa de refugiados e migrantes que buscam em solo europeu, neste ano de 2016, condições diversas daquelas vivenciadas em conflitos na Síria, Iraque e Afeganistão.

Por esse viés, é possível compreender a necessidade que se deu e se mantém em nossos dias, a aprovação, bem como a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como ocorreu no dia 10 de dezembro de 1948. A atitude dos 56 países membros da Organização das Nações Unidas foi uma efetiva resposta de repúdio aos horrores e atrocidades provocadas pelas Guerras e pelo Holocausto, com objetivo de volver os olhares dos Estados para os valores humanos. A partir de então, a proteção dos direitos humanos deixa de ser uma obrigação eminentemente nacional e alcança âmbitos maiores, tornando-se uma questão de competência mundial.

As sanções aplicadas pela Organização das Nações Unidas visam a garantir os direitos humanos. No ano de 1990, após invasão do Kuwait, o Conselho de Segurança do Iraque impôs embargo a fim de que permitisse a chegada de material médico e de gêneros alimentícios até àquele Estado, levando em consideração as necessidades humanas.

No ano de 1992, o então Secretário Geral das Nações Unidas assim proferiu:

“Ainda que o respeito pela soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania […]. Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional” (Boutos-Ghali apud JÚNIO; PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 241).

Os tratados internacionais, para que tenham validade jurídica dentro de cada Estado, devem, por ele, ser recepcionados. Para tanto, cada Estado possui, em sua autonomia, meios para que assim ocorra.

No Brasil, a temática dos direitos humanos começa a ganhar espaço a partir do fim do regime ditatorial, período obscuro em nossa história. Em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, o Estado brasileiro recepcionou importantes tratados de direitos humanos, como a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1989), ações muito praticadas no período da ditadura; a Convenção sobre os Direitos da Criança (1990); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1992), também suprimidos, violentamente, durante o regime militar; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992), a Convenção Americana de Direitos Humanos (1992) e outros.

Nesse sentido, não há dúvida quanto ao caráter humanitário rezado por nossa Constituição. No entanto, nossa Lei Maior omitiu quanto à posição hierárquica em nosso ordenamento, quando recepcionados os tratados internacionais. O artigo 102, inciso III, alínea b, de nossa Constituição, leva-nos a perceber que, diferentemente da posição adotada pela Holanda, a qual coloca no topo da “pirâmide normativa” os tratados internacionais, depois de aprovados pelo parlamento, podendo até modificar preceitos constitucionais, o Brasil, tendo assinado o tratado pelo Presidente da República e aprovado pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, recepciona, os tratados ou convenções internacionais, de forma subordinada à autoridade normativa da Constituição Federal. Assim, os tratados que, por ventura, transgredirem o texto constitucional, não terão valor jurídico.

Quando recepcionados em nosso ordenamento, os tratados ou convenções internacionais situar-se-ão em paridade com as leis ordinárias, diferentemente dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos que, à luz do artigo 5º, §1º da Constituição Federal, que terão aplicabilidade imediata. E ainda, conforme § 3º do mesmo dispositivo, quando aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, seguindo o preceito legal, serão equivalentes às emendas constitucionais. Em suma, a incorporação de tais tratados se dá de forma automática em nosso ordenamento jurídico, mesmo quando realizadas ratificações. Deve-se observar, portanto, que havendo conflito entre um tratado internacional e uma lei federal, considerando que ambos encontram-se em mesmo patamar hierárquico, adota-se a regra da “lei posterior derroga a anterior”, ou seja, observará o dispositivo mais recente, de modo que o Estado seja sempre garantidor e propagador da vida de cada indivíduo que o compõe.

Considerações Finais

A filosofia política de Hegel revela-se como marca conciliatória entre duas tendências antagônicas. A primeira, referente ao princípio da liberdade subjetiva da modernidade, tendente a reduzir a vida ética e política à razão individualista segundo o critério da liberdade dos indivíduos; a segunda, relacionada à necessidade da totalidade da comunhão ética intersubjetiva que suprime o indivíduo, a particularidade e a liberdade subjetiva em detrimento de uma totalidade ética. Hegel denuncia o equívoco de cogitar o indivíduo, a sociedade e o Estado na fixação unilateral e antinômica de aspectos que devem ser integrados na realidade social, ao mesmo tempo, defende a integração da realidade na qual a verdade é encontrada na articulação dos elementos e não nos extremos isolados.

Hegel, aparentemente, reavalia o princípio de que os indivíduos devem ser concebidos originalmente como tendo direitos que lhes são imanentes, ou seja, direitos naturais, entre eles a liberdade individual e o Estado como sendo mera sociedade política que assegura juridicamente esses direitos.

Atualmente, a sociedade inclina-se no sentido de solidificar princípios utilitaristas e individualistas, pelos quais a realização das necessidades individuais e sociais se perfaz segundo a vontade individual e de acordo com a sua autossatisfação. A partir de tal cenário, Hegel compreende a racionalidade como princípio da liberdade subjetiva julgado a partir da sua presença histórico-conceitual. Portanto, Hegel recusa tanto o substancialismo que nega a subjetividade como o individualismo, para o qual a totalidade não passa de artifício abstrato, culminado em posições unilaterais para a compreensão da vida moderna.

O Estado, garantidor da autonomia do indivíduo, deve assumir integralmente a própria autorreferencialidade do princípio da modernidade, encontrando, nele mesmo, a garantia, da sua racionalidade ante à necessidade histórica. O Estado hegeliano não almeja uma unidade indiferenciada que regula de forma autoritária e absolutista o agir e a liberdade dos indivíduos.

A liberdade do indivíduo de ser proprietário e sujeito empreendedor exige o distanciamento do Estado, a fim de preservar seu caráter de superioridade da instância política que ele representa. Portanto, os fins comuns são superiores aos fins dos membros individualmente considerados, nesse sentido, é na relação entre indivíduo e Estado, entre a liberdade subjetiva e a liberdade substancial que a filosofia política de Hegel revela sua intenção, qual seja, a de integrar, sem uso de violência ou qualquer meio opressor, o indivíduo ao fazer dele parte da organicidade do Estado, emancipando-o para que compreenda a racionalidade estatal como uma necessidade, sendo, então, capaz de obedecer ao Estado não de uma forma cega, mas de uma forma esclarecida. A partir de tal compreensão, o indivíduo será tomado por um sentimento de amor à pátria considerando a res publica como firme fundamento substancial.

É inegável a pertinência das críticas dirigidas a Hegel, principalmente as de Karl Marx, que, quanto à Filosofia do Direito, sugere “inverter” o sistema hegeliano. No entanto, sendo a Filosofia uma ação, inclusive no pensar, Hegel é considerado um dos mais complexos pensadores, não sendo, ainda, sua filosofia superada. Deve-se buscar no filósofo de Jena a saída para uma verdadeira emancipação da pessoa humana, emancipação essa capaz de elevar a pessoa a um estágio superior de dignidade.

 

Referências:
BOBBIO, N. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil, Estado; tradução Luiz Sério Henriques e Carlos Nelson Coutinho. 2. ed.  São Paulo: Brasiliense, 1995.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.
DOTTI, J. E. et al. Estado e política a filosofia política de Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito; tradução Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
JÚNIOR, A. A; PERRONE-MOISÉS, C. O cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1999.
MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel; tradução Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 2. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2010.
NADER, P. Filosofia do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
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PAGNAN, G; BÜHRING, M. A. A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <http://goo.gl/DFjuNY>. Acesso em: 18 jun 2016.
RAMOS, C. A. Liberdade subjetiva e Estado na filosofia política de Hegel. Curitiba: Editora da UFPR, 2001.
ROSENZWEIG, F. Hegel e o Estado; tradução Ricardo Timm de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2008.
 
Nota
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Ms. Prof. Me. Alessandro Reina


Informações Sobre o Autor

Bismarque Maciel de Oliveira

Advogado; Pós-graduado latu sensu em direito Tributário e em Direito Constitucional; Licenciando em Filosofia


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