Direitos humanos e federalismo – Análise do incidente de deslocamento de competência

Resumo: O escopo do presente trabalho foi o de investigar sobre a constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, adequando-o ao ordenamento jurídico pátrio através dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, trazendo à tona algumas lições sobre os mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos e analogias à federalização através de casos concretos, como os incidentes suscitados até hoje.[1]

Palavras-chave: Incidente. Deslocamento de competência. Direitos humanos. Federalismo. Princípios constitucionais. Cláusulas Pétreas. Proporcionalidade.

Abstract: The scope of this paper was to investigate the constitutionality of the incident displacement of competence, adapting it to the national laws foresee through the principles of reasonableness and proportionality, bringing out some lessons about the international mechanisms for protecting human rights and analogies with the federalization of concrete cases, such incidents raised to date.

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Keywords: Incident. Displacement of competence. Human rights. Federalism. Constitutional principles. Immutable clauses. Proportionality.

Sumário: Introdução. 1. Direitos Humanos. 1.1 Dimensões dos direitos humanos. 1.2 O sistema internacional de proteção dos direitos humanos. 1.3 O Estado brasileiro e a proteção internacional dos direitos humanos. 2 A federalização dos crimes graves contra os direitos humanos. 2.1 Histórico da Emenda Constitucional nº. 45/04. 2.2. Conceito e Finalidade. 2.3. Pressupostos e requisitos para a federalização. 2.3.1 Existência de grave violação aos direitos humanos. 2.3.2 Assegurar o cumprimento de obrigações internacionais de direitos humanos. 2.3.3 Inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico. 3 Argumentos contrários à constitucionalidade do incidente. 3.1 Pacto Federativo. 3.2. Contraditório e ampla defesa. 3.3. Juiz natural. 4. Argumentos favoráveis à constitucionalidade do incidente. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional nº 45/04, também chamada de a reforma do judiciário introduziu no ordenamento jurídico pátrio, dentre tantas novidades, o Incidente de Deslocamento de Competência, representado pela sigla IDC.

O dispositivo legal em comento prevê a federalização dos crimes contra os direitos humanos, que consiste na possibilidade de deslocamento de competência da Justiça Comum para a Justiça Federal nas hipóteses em que houver configurada a grave e clara violação de direitos humanos.Desde seu nascimento, tal norma fora alvo de severas críticas dentro das acaloradas discussões jurídicas.

O presente estudo tem por escopo analisar a compatibilidade do Incidente de Deslocamento de Competência com a Constituição Federal, e por conseqüência, com o ordenamento jurídico pátrio. O propósito não é esgotar as concepções teóricas acerca dos direitos humanos e/ou constitucionais, mas analisar o instituto da federalização dos crimes contra os direitos humanos, abordando os aspectos materiais e os conceitos substantivos, apresentando uma noção sobre os direitos humanos. O primeiro capítulo introduzirá sucintamente o tema, situando os principais objetivos em cotejo.

O segundo capítulo versará acerca dos Direitos Humanos, trazendo à baila alguns apontamentos sobre as dimensões destes direitos, sobre os mecanismos internacionais de proteção e ainda, acerca do papel do Estado brasileiro na defesa e realização dos mesmos.

No terceiro capítulo a federalização será analisada como um todo, partindo de seus conceitos, sua finalidade, analisando ainda, os pressupostos para o deslocamento de competência.

O quarto capítulo se fundamentará nos argumentos contrários à federalização, reunindo os principais motivos que levariam a uma possível inconstitucionalidade do incidente de deslocamento de competência.

No quinto capítulo serão analisados os sustentáculos da federalização, reiterando os argumentos favoráveis à sua existência, pontuando os avanços que esse instrumento jurídico propiciou no ordenamento jurídico pátrio.

O sexto e derradeiro capítulo concluirá o trabalho, de maneira a compatibilizar totalmente o incidente de deslocamento de competência com a Constituição Federal.

1. DIREITOS HUMANOS

Para uma eficaz compreensão do tema objeto deste estudo é imprescindível conhecer um pouco acerca dos direitos humanos, tendo em vista que sua violação ou grave ameaça é um dos requisitos para o deslocamento de competência.

Pode-se afirmar que os direitos humanos são direitos tidos como fundamentais ao ser humano, os quais fazem parte das necessidades básicas de sobrevivência. Sem a garantia de tais direitos, a vida em sociedade tornar-se-ia inviável ou ficaria prejudicada.

O ser humano enquanto sujeito da história, a constrói ao longo dos anos, trazendo consigo traços inerentes à sua personalidade. Neste diapasão Hanna Arendt (1979) afirma que os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução[2].

Por oportuno, ressalta-se que os direitos humanos não são considerados tão somente naturais. Seu aparecimento é gradual ao longo da história a partir do momento em que o Estado deixa de ser o detentor de todos os direitos universais, transferindo ao homem garantias inerentes à sua personalidade humana, as quais, nem o Estado poderá suprimir.

Ressalta-se que tais direitos são construídos ao longo do tempo, evoluindo ao lado da própria sociedade, na constante busca por meios que garantam uma sobrevivência digna a cada ser humano.

Nesta esteira, importante o ensinamento de Dalmo de Abreu Dallari:

“Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condições mínimas necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também, devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos.”[3]

Infere-se, portanto, que existem características comuns a todos os seres humanos, independente de quaisquer outras distinções sociais, como raça, naturalidade, religião etc. No plano objetivo, todos são seres humanos, e como tanto, possuem direitos inerentes a tal condição, os quais garantem a sobrevivência digna entre seus pares.

Não obstante, é patente a multiplicidade de sentidos e significados atribuídos à expressão “direitos humanos”, todavia, não se pode olvidar que são direitos do ser humano, fruto da história e adquiridos ao passar dos anos, sendo ampliados e adaptados à realidade social dentro de uma visão global.

Um importante ensinamento relativo aos direitos humanos está no fato de que não deve existir qualquer segregamento, qualquer divisão sobre quem possua ou não tal tais direitos, pois a simples existência enquanto seres humanos os colocam como sujeitos destes direitos.

Reconhecida a existência dos direitos humanos surge a discussão da necessidade de afirmação desses direitos no plano teórico-normativo de um lado e sua efetividade e aplicação fática de outro. O binômio da teoria do direito e da sua aplicação na realidade é um dos principais problemas que assolam a democracia contemporânea. Isto é, a existência dos direitos humanos pode ser facilmente comprovada, entretanto, sua aplicação fática e garantia por parte do Estado Democrático de Direito nem sempre se concretizam.

Somente há democracia com a preservação e aplicação dos direitos humanos, consoante o ensinamento de Norberto Bobbio:

“Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.”[4]

Em um primeiro cenário histórico nem todo ser humano era detentor destes direitos supracitados. Foi através de revoluções, guerras e revoltas, que se concederam direitos a uma camada maior da população, abrangendo classes até então esquecidas, em um lento processo de evolução.

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Coadunando com tal posicionamento, atesta Norberto Bobbio:

“Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[5]

O ilustre doutrinador José Joaquim Gomes Canotilho corrobora com tal posicionamento:

“A colocação do problema – boa ou má deixa claramente intuir que o filão do discurso subseqüente – destino da razão republicana em torno dos direitos fundamentais – se localiza no terreno da história política, isto é, no locus globalizante onde se procuram captar as idéias, as mentalidades, o imaginário, a ideologia dominante a consciência coletiva, a ordem simbólica e a cultura política.”[6]

Insta salientar que os direitos humanos possuem uma característica peculiar que lhes permite ter aspecto formal, tendo em vista que são consolidados por leis, através de tratados internacionais, incorporando as Constituições contemporâneas.

Nesta esteira, Flávia Piovesan (2006) afirma que a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, introduziu-se o conceito hodierno de direitos humanos, cujas características marcantes são: a universalidade, indivisibilidade e a interdependência. Segue o magistério mencionado:

“Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais”.[7]

Através da universalidade e da indivisibilidade é possível garantir tais direitos dentro de qualquer ordenamento jurídico contemporâneo, primando pelo Estado Democrático de Direito. Souza Cruz (2001) ensina que o quadro dos Direitos Humanos se integra ao modelo de qualquer constituição democrática, haja vista que são elementos indissociáveis, tais quais os órgãos vitais são para o corpo humano.[8]

A Constituição Federal se encarrega de ditar os parâmetros gerais dos direitos humanos, ficando a cargo do legislador infraconstitucional estabelecer os caminhos que deverão ser seguidos para a concretização destes direitos.

1.1. Dimensões dos direitos humanos

A princípio, importante anotar que tecnicamente, os termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são diferentes, apesar de serem comumente usados como sinônimos. Ingo Wolfgang Sarlet elucida tal diferenciação:

“A expressão direitos humanos guarda relação com os documentos de direito internacional, vez que se refere às posições jurídicas que reconhecem o ser humano como tal, sem vinculação à determinada ordem constitucional de um Estado, sendo assim, válidos universalmente e tendo caráter supranacional. Já os direitos fundamentais significam os direitos do ser humano reconhecidos e positivados em esfera constitucional de um Estado determinado.”[9]

Infere-se que os direitos fundamentais são nada mais do que os direitos humanos positivados na Constituição Federal. Entrementes, só fora possível a concretização destes direitos humanos na Constituição de 1988 através de um processo de evolução histórica, o qual, fora dividido em gerações ou dimensões. Ressalta-se que dado a indivisibilidade destes direitos, faz-se necessário falar em dimensão, pois uma categoria não exclui a outra, já que os mesmos coabitam sua escolha.

Ademais, mesmo que existam no mundo, não são todos Estados que reconhecem os direitos humanos da dimensão atual, tampouco direitos fundamentais de outras dimensões, como o direito ao voto universal, por exemplo.

Sobre a teoria dimensional, ensina Ingo Wolfgang Sarlet:

“A teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos.”[10]

Nesta esteira, as “gerações” de direitos, aqui entendidas como “dimensões”, não possuem o condão de substituir aquela que a precedeu, pelo contrário, com ela interage. Afasta-se, então, o pensamento de sucessão “geracional” de direitos, optando pela idéia de expansão, cumulação e fortalecimento destes direitos.

Seguindo o pensamento da doutrina majoritária, adotar-se-á no presente estudo, a classificação dos direitos fundamentais em quatro dimensões, sendo elas: direitos civis e políticos; direitos sociais, econômicos e culturais; direitos de solidariedade e fraternidade; direitos decorrentes dos avanços tecnológicos.

A primeira dimensão afirma os direitos ditos como de liberdade, ou seja, direitos individuais, erga omnes. Ao Estado não é possível interferir nesta esfera individual, tal qual uma abstenção estatal, e aos outros indivíduos não é permitido que infrinjam as liberdades alheias. Sobre esta primeira dimensão, ensina Leite Sampaio:

“Os direitos de defesa ou de liberdade foram os primeiros que surgiram. Centrados numa idéia de Estado Liberal, neutro, “guarda-noturno”, limitado a garantir a segurança exterior do grupo ou a ordem interior do Estado, criavam situações jurídicas oponíveis a esse Estado, merecendo o nome de “liberdade-resistência” ou “liberdade-barreira”. Sob as feições utilitaristas, paternalistas ou parasitárias contentavam-se apenas com a sua conformação jurídica, formal, atrelada ao principio da igualdade perante a lei, suficiente para abrir o caminho da autodeterminação individual ou do livre desenvolvimento de sua personalidade, daí também o nome de “liberdades-possibilidades” ou “liberdades-virtualidades”.[11]

A primeira dimensão compreende os direitos civis e políticos como direito à vida, à propriedade, às liberdades de expressão, de imprensa, de manifestação, de reunir-se e de associar-se. Nesta esteira, Alexandre Sturion de Paula (2006) afirma que é nesta dimensão “que o ser humano passa a exigir do Estado seu espaço próprio, individual e livre, como sujeito do estamento social”.[12]

Nesta esteira, muito embora se possa questionar que o Liberalismo, na defesa da propriedade privada, não tinha nada de neutro, o mesmo punia e pune severamente os crimes contra o patrimônio.

Frise-se que os direitos de primeira dimensão surgiram na história após as revoluções burguesas, industrial e francesa, repercutindo principalmente no campo dos direitos políticos, garantindo o direito, ainda falho, de votar e ser votado.

Porém, tal dimensão não bastou para atender as demandas sociais, abrindo as portas para a reinvidicação de mais direitos, os quais não satisfaziam apenas o indivíduo, mas toda coletividade, através principalmente das lutas sociais do século XIX. Ao contrário da primeira dimensão, onde o Estado era eminentemente liberal, a segunda dimensão é composta por direitos de cunho prestacional, ou seja, cabe ao Estado garantir um bem estar mínimo aos indivíduos.

Está incluído no rol de direitos de segunda dimensão, o princípio da igualdade, porém, tal igualdade não é meramente formal, ela se caracteriza em se conceder, por parte do Estado ao hipossuficiente, condições jurídicas de se resguardar contra aqueles que já as possuam, seja por sua posição social ou capacidade financeira, tratando desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. [13]

Tais direitos são tidos como sociais ou positivos, uma vez que exigem uma atuação do Estado na sociedade, visando atingir as coletividades, como mulheres, idosos, crianças, trabalhadores acidentados ou adoentados no regime da previdência social etc. Assim, tais coletividades passam a ter seus direitos proclamados por diplomas legais específicos, principalmente por tratados internacionais, que posteriormente serão adotados pelos Estados.

Paulo Bonavides afirma que:

“Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos de liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional de solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude”.[14]

Outrossim, os direitos de segunda dimensão encontram-se pautados no conceito de Estado de Bem-Estar Social, onde o Estado possui por obrigação garantir a efetividade dos direitos sociais, trabalhistas e coletivos, os quais, passam a ser normatizados. Há, contudo, uma restrição de direitos individuais em prol da coletividade, ensejando a máxima de que o direito de um indivíduo começa onde termina o de outrem.

A terceira dimensão de direitos traz consigo a idéia de universalidade do indivíduo independente de onde ele esteja, possuindo como sustentáculo as noções de fraternidade e solidariedade. Cumpre anotar que, historicamente, tais direitos surgem através das profundas mudanças na comunidade internacional, acarretadas pelos avanços tecnológico e científico. Assim, a preocupação com a preservação ambiental e a proteção dos consumidores de serviços e bens aparece como nova problemática mundial. Nesta dimensão, também se enquadram os direitos inerentes à paz mundial, sem a qual, tornar-se-ia inviável a concretização de qualquer outro direito fundamental.

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Neste diapasão, leciona Paulo Bonavides:

“Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Datados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.[15]

Convém ressaltar que os direitos de terceira dimensão ainda constituem uma categoria muito ampla, até vaga, impedindo maiores dissertações sobre os mesmos. Entretanto, o carro chefe desta dimensão está na fraternidade, na busca pelo respeito à dignidade humana, respeitando as diferenças existentes.

Finalmente, a quarta dimensão, defendida por autores como Paulo Bonavides, Norberto Bobbio e Ingo Sarlet, engloba os direitos ao pluralismo, à informação e conseqüentemente, à democracia, sem esquecer dos direitos decorrentes do avanço no ramo da engenharia genética, através da manipulação do patrimônio genético do indivíduo.

Paulo Bonavides (2010) prevê nos direitos de quarta dimensão, os “direitos da sociedade aberta ao futuro”.[16] Em constante evolução e construção, esses direitos surgem a partir dos efeitos obtidos com a manipulação genética. Nos dizeres de Norberto Bobbio os direitos de quarta geração se referem aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.[17]

É necessário, portanto, que todos os direitos supramencionados possuam um mecanismo de proteção internacional garantidor de sua eficácia e até mesmo de sua existência no plano prático. Neste sentido, bem ensina Fábio Konder Comparato:

“A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, À visa ta ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos e as explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos.”[18]

Assim, será explanado adiante um pouco sobre o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o qual, parte das reflexões deixadas pelos abusos cometidos contra os direitos básicos do homem, visando sua proteção futura, punindo seus violadores e coibindo eventuais abusos.

1.2.O sistema internacional de proteção dos direitos humanos

É patente que os direitos humanos vêm se projetando na história, demonstrando um crescente interesse por parte da comunidade internacional. Tal movimento de internacionalização dos direitos humanos pode ser considerado recente na história, tendo e vista que surgiu após a 2ª Guerra Mundial, como resposta às atrocidades cometidas durante o período de guerra.

Como bem afirma Antônio Augusto Cançado Trindade (1991), se a segunda guerra significou uma ruptura com os direitos humanos, a pós-guerra significa sua reconstrução[19]. É neste cenário desolado pelo infortúnio da guerra que deve-se reconstruir as noções dos direitos humanos, servindo como referencial ético para a ordem internacional contemporânea.

Como resultado da internacionalização dos direitos humanos, a proteção destes direitos não deve ficar reservada apenas aos Estados, apenas à competência nacional exclusiva, pois tais valores representam uma problemática mundial e não mais local. Tal concepção, tida como inovadora, enseja algumas consequências, conforme ensinamento de Flávia Piovesan:

“A revisão da noção de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; permitem-se formas de monitoramento e responsabilização internacionais, quando os direitos humanos forem violados; a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito”.[20]

Assim, se destaca a concepção de que o povo não é somente um problema de jurisdição nacional, sendo resguardado por direitos que transcendem a esfera local, garantidos na esfera internacional. Embasada nestas ideias, em 1948 é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, representando o conjunto normativo de valores e princípios universais que devem ser respeitados pelo Estado.

Conforme já visto, é neste momento que surge a concepção de universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, onde a liberdade individual é tão importante quanto a igualdade. Não obstante, a universalidade destes direitos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção, o qual, é integrado por diversos tratados internacionais que refletem a consciência ética e pluralista partilhada pelos Estados na medida em que possuem um consenso acerca dos valores a serem protegidos.

Coadunando com tal pensamento, ilustra Flávia Piovesan:

“A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o direito internacional dos direitos humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.”[21]

Assim, nasce o sistema normativo global de proteção aos Direitos Humanos, citando como exemplos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção contra a Tortura; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher; a Convenção sobre os Direitos da Criança. Ao lado do sistema normativo global coexistem os sistemas regionais de proteção, cuja principal finalidade é aplicar os valores protegidos internacionalmente na seara regional, servindo tal qual uma ponte entre o local e o global. Sobre os sistemas globais e regionais, bem ensina Flávia Piovesan:

“Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nessa ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma que, no caso concreto, melhor proteja a vítima. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e a principiologia próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos”.[22]

Tendo em vista o sábio magistério de Flávia Piovesan, importante mencionar que os principais sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos são: sistema global, representado pela Organização das Nações Unidas (ONU); sistema Interamericano, representado pela Organização dos Estados Americanos (OEA); sistema Europeu, representado pela Comunidade Européia. A partir destes sistemas protecionistas, diversas negociações entre os Estados são deflagradas, ensejando a propositura de tratados internacionais.

De acordo com Nelson Camatta Moreira (2003) os tratados internacionais representam a fonte principal do Direito Internacional, constituindo uma terminologia genérica e abrangente que inclui acordos, protocolos, convenções e documentos internacionais de consenso entre Estados em geral. Nesta esteira, o referido autor segue a linha de raciocínio de que o processo de formação dos tratados internacionais, que se originam nos atos de negociação, conclusão e assinatura, é de competência do órgão do Poder Executivo. Após a assinatura, o documento é submetido à apreciação do Poder Legislativo e, por fim, o tratado é ratificado pelo Executivo, o que confere obrigatoriedade do cumprimento de suas cláusulas.[23]

No que tange ao caráter obrigatório dos tratados internacionais, Cançado Trindade assevera que:

“[…] cabe, neste propósito, ter sempre presente que as disposições dos tratados de direitos humanos vinculam não só os governos (como equivocada e comumente se supõe), mas, mais do que isto, os Estados (todos os seus poderes, órgãos e agentes); é chegado o tempo de precisar, por conseguinte, o alcance não só das obrigações executivas, mas também das obrigações legislativas e judiciais, dos Estados Partes nos tratados de direitos humanos”[24].

Não obstante, tendo em vista o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, nasce a obrigação do Estado brasileiro em proteger os bens jurídicos salvaguardados por Tratados Internacionais ratificados.

 1.3.O Estado brasileiro e a proteção internacional dos direitos humanos

Somente a partir do processo de democratização, iniciado em 1985 e com posterior afirmação pela Constituição de 1988, o Estado brasileiro passou a ratificar alguns tratados internacionais de direitos humanos. O pontapé inicial no processo de incorporação dos tratados internacionais pelo Brasil aconteceu em 1989, com a ratificação da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Flávia Piovesan (2003) assevera que “a Constituição de 1988 é o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos e garantias fundamentais. O texto demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático pós-ditadura”.[25]

Sob a tutela da Constituição Federal de 1988 outros tratados internacionais foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, embasando a criação de leis voltadas à proteção dos direitos humanos, destacando-se como exemplo, a Lei nº 7.716/89 que versa sobre os crimes resultantes de preconceito de raça e cor e a Lei nº 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente.

É patente que com a “Constituição Cidadã”, como é conhecida a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro vivencia uma fase que busca a restauração dos direitos humanos embasado no principio da dignidade da pessoa humana. No que diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, valor supremo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, Flávia Piovesan novamente sublinha:

“[…] seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito Constitucional Ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido”[26].

Ademais, a Constituição de 1988 ratificou inúmeros tratados, convenções, pactos, protocolos, de cunho humanístico, os quais, não serão analisados, tendo em vista o principal escopo do presente trabalho. Cumpre salientar também, que em 1998 o Estado brasileiro reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Entrementes, em que pese toda evolução dos Direitos Humanos no Brasil, e considerando o razoável número de tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, ainda há inúmeros casos práticos de desrespeitos gritantes em relação aos Direitos Humanos. Marcos Rolim sabiamente conclui:

“Vivemos, desta forma, um período onde a expressão histórica da luta pelos Direitos Humanos no Brasil encontra-se em cheque por uma mentira que, contrariando um conhecido dito popular, demonstra ter ‘pernas compridas’. E, se Adorno tem razão ao afirmar que ‘a expressão do que é histórico nas coisas nada mais é do que a expressão de um tormento passado’, então estamos em vias de consolidar o esquecimento da própria desolação experimentada por todos aqueles que, antes de nós, experimentaram a violação dos seus direitos mais elementares. Em outras palavras, vivemos uma época onde o mal se banalizou e onde já é possível, por decorrência conviver com ele sem sobressaltos”[27].

Desta feita, mesmo com a existência dos direitos inerentes à personalidade humana, é patente que sua proteção ou até mesmo sua valoração, carecem de atenção prática dos Poderes Legislativo e Judiciário, ensejando a criação de medidas excepcionais tais quais o Incidente de Deslocamento ora analisado, privilegiando os direitos humanos e evitando o descumprimento de Tratados Internacionais dos quais o Brasil seja parte.

2. A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES GRAVES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS

O elevado número de emendas constitucionais propostas até o momento revelam uma ânsia em modificar e reformar a Constituição Federal, na tentativa dos partidos políticos e governos implementarem suas ideias à Constituição, ao invés de se adequarem à mesma. Insta ressaltar que cada governo possui seu próprio programa, seus ideais, buscando modificar a Constituição para atendê-los, mesmo que isso resulte em uma violação do referido diploma legal.

É exatamente nesse contexto que a Emenda Constitucional nº 45/04 fora proposta e ganhou corpo, resultando nas alterações já conhecidas hodiernamente. Buscando entender um dos dispositivos trazidos pela referida Emenda, o incidente de deslocamento de competência faz-se necessário analisar sua evolução, conforme será vislumbrado adiante.

2.1. Histórico da Emenda Constitucional nº 45/04

A previsão de julgamento de crimes em geral pela Justiça Federal, conforme previsto em tratados internacionais, remete-se à Constituição Federal de 1967. Convém relembrar que o regime militar havia recriado a Justiça Federal através do Ato Institucional nº 2, promulgado em 1965. Nesta esteira, o referido regime ditatorial apresentou um projeto para uma nova Constituição, através de um processo constituinte contestável, que resultou na aprovação da Carta Maior de 1967, cuja característica marcante era o controle sobre os atos do governo, atrasando as decisões judiciais em que ainda seriam aplicáveis as normas da Constituição de 1946.[28]

A principal intenção das forças políticas militares era centralizar o poder nas mãos do plano federal, exercendo maior controle e opressão aos movimentos contrários ao regime. Deste modo, o artigo 119 da Constituição de 1967 previa que:

Art. 119 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar, em primeira instância: […]

V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional e os cometidos a bordo de navios, aeronaves, ressalvada, a competência da Justiça Militar.”[29]

Era notório que o regime ditatorial buscava um controle excessivo, no frenesi desenfreado de controlar e oprimir todos aqueles que se opunham ao governo em comento.

Passado uma década, veio a Emenda Constitucional nº 7, data de 13 de abril de 1977, a qual incluía no artigo 125 o seguinte texto: “quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”, conferindo à Justiça Federal a competência das hipóteses que posteriormente seriam previstas na Carta Magna de 1988 antes da Emenda nº 45/04.

Já no ano e 1996, fora editado o primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, sendo então, encaminhado ao Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, a primeira proposta de federalização os crimes contra os direitos humanos, através do Projeto de Emenda Constitucional nº 368-A de 13 de maio do corrente ano, que assim dispunha:

Art. 1º – São acrescentados dois incisos no art. 109 da Constituição, de números XII e XIII, com a seguinte redação:

Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:

XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos;

XIII – as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o procurador-geral da República manifeste interesse.”[30]

Neste contexto, tal proposta fora apensada à Proposta e Emenda Constitucional nº 96/92 que originou a Reforma do Judiciário, anos após. Com muitas discussões acaloradas, no ano de 2000 modificou-se o texto, o qual fora aprovado, ficando com a seguinte redação acerca da federalização dos crimes contra os direitos humanos:

“Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;

§ 5º – nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento e competência para a Justiça Federal”.[31]

Tal texto fora enviado ao Senado Federal, sendo aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, em março de 2002, com o seguinte acréscimo no rol de competências da Justiça Federal (inciso V-B):

“Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;

V-B – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos, nos termos da lei.

§ 5º – nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento e competência para a Justiça Federal”.[32]

Neste diapasão, fora aprovada a última redação pelo Senado, em primeiro turno, na data de 7 de julho de 2004, resultando na aprovação definitiva em plenário no dia 17 de novembro de 2004, sendo promulgada a Emenda Constitucional nº 45/04 na data de 8 de dezembro de 2004 e publicada em 31 de dezembro do mesmo ano, com o seguinte texto:

“Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:

V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo; […]

§ 5º – nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento e competência para a Justiça Federal.”[33]

Outrossim, cumpre anotar que a federalização dos crimes contra os direitos humanos não é única medida que transfere à seara federal uma competência que não lhe é originária. Sem adentrar em maiores discussões, fugindo do escopo principal deste estudo, importante apenas mencionar a Lei nº 10.446/02 que dispõe sobre as infrações penais de repercussão interestadual ou internacional, em atendimento ao artigo 144 da Carta Magna, atribuindo à Polícia Federal a competência para proceder com a investigação, independente da responsabilidade dos órgãos de segurança do Estado, nos termos seguintes:

“Art. 1º – Na forma do inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional eu exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: […]

III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; […]” [34]

O incidente de deslocamento de competência representa apenas uma das medidas de transferência da competência estadual para a federal. Destarte, suas peculiaridades, conceitos e requisitos o diferenciam dos demais instrumentos, conforme será aduzido a seguir.

2.2. Conceito e finalidade

A federalização dos crimes graves contra os direitos humanos é também conhecida por “incidente de deslocamento de competência”, através da sigla IDC, consistindo na possibilidade de deslocar a competência da Justiça comum para a Federal, desde que configurado a grave violação aos direitos humanos.

Tal incidente fora introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela Emenda Constitucional nº. 45/04, estipulando que ao Procurador-Geral da República será cabível suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou do processo, nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o incidente de deslocamento de competência da Justiça estadual para a Justiça Federal, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte.

Em outras palavras, o Procurador-Geral da República poderá arguir perante o Superior Tribunal de Justiça, que determinado crime seja investigado, processado ou julgado pela Justiça Federal, desde que comprovado a grave violação aos direitos humanos. O polêmico conceito acerca do que seriam as “graves violações aos direitos humanos” será abordado em momento oportuno.

Este incidente de deslocamento encontra-se pautado no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da Constituição Federal), corroborando com os princípios da prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Tais princípios encontram fundamento no artigo 4º, incisos II, VIII e IX da Constituição brasileira.

Conforme ensina Pedro Lenza (2011), os direitos da pessoa humana foram erigidos a princípios considerados sensíveis, o que enseja a intervenção federal nos estados que os estejam violando.[35] Nesta esteira, infere-se que a finalidade primordial do incidente de deslocamento de competência é garantir a preservação destes direitos considerados de suma importância.

O deslocamento de competência é fruto de uma crescente internacionalização dos direitos humanos, conforme mencionado alhures, ampliando o rol de tratados internacionais aderidos pelo Brasil, corroborando com a constante arguição de ineficácia das justiças estaduais em relação à efetiva proteção dos direitos humanos.

Nos dizeres de Vladimir Aras pode-se conceituar o incidente de deslocamento de competência como:

“Um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos; uma garantia individual, tendo aplicação imediata através do art. 5º, § 1º da Constituição da República;  mecanismo de sucessão ou substituição da atividade da Justiça dos Estados ou do Distrito Federal pela Justiça da União, dentro do esquema de federalismo cooperativo, nos casos de violação a direitos humanos; um instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União; incidente processual que tem em mira a redução da impunidade e a concreta proteção dos direitos humanos”. [36]

Ademais, outra finalidade da federalização dos crimes contra os direitos humanos é a de assegurar o cumprimento das obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais. Embora a União se comprometa externamente com a repressão às violações aos direitos humanos, internamente a responsabilidade desde a apuração até a punição dos referidos crimes é dos estados da federação. Neste diapasão, a criação do incidente de deslocamento de competência possui a finalidade de co-responsabilizar a União face à impunidade e à morosidade comumente vistas hodiernamente.

Sobre a responsabilidade da União, ensina Flávia Piovesan:

“No plano internacional, a responsabilidade do Estado é una e indivisível relativamente às obrigações internacionais em matéria de direitos humanos, que, no livre e pleno exercício de sua soberania, se comprometeu a cumprir. Isto é, a responsabilidade recai exclusivamente na pessoa da União, não cabendo-lhe afastá-la sob o argumento de separação dos poderes ou da cláusula federativa.”[37]

Ainda, corroborando com a importância da federalização para responsabilizar a União em face das afrontas cometidas aos direitos humanos dentro dos estados da federação, leciona Pedro Lenza:

“Outrossim, nos termos do art. 21, I, a União é que se responsabiliza, em nome da República Federativa do Brasil, pelas regras e preceitos fixados nos tratados internacionais. Assim, na hipótese de descumprimento e afronta a direitos humanos no território brasileiro, a única e exclusiva responsável, no plano internacional, será a União, não podendo invocar a cláusula federativa, nem mesmo “lavar as mãos” dizendo ser problema do estado ou do município. Isso não é aceito no âmbito internacional”.[38]

Nesta esteira, Flávia Piovesan novamente pontua:

“A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir”.[39]

Portanto, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, foram criados parâmetros de proteção a estes direitos, nos quais a União assumiu as obrigações por vontade própria, respeitando sua soberania. A federalização ora estudada, leva tais parâmetros internacionais a cada estado da federação, primando pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Analisado o conceito e as finalidades básicas da federalização dos crimes contra os direitos humanos, serão expostos adiante os seus requisitos, tendo em vista o art. 109 da Constituição Federal, bem como seus incisos e parágrafos relativos ao tema.

2.3. Pressupostos e requisitos para a federalização

Pelo que se extraí do artigo 109, § 5º da Constituição Federal, o Procurador-Geral da República poderá suscitar o incidente de deslocamento de competência, entrementes, não caberá ao mesmo decidir acerca do cabimento ou não da medida. Ao Procurador-Geral caberá tão somente a análise dos pressupostos constitucionais que ensejam a propositura do deslocamento de competência.

Neste diapasão, serão analisados adiante os requisitos e pressupostos constitucionais que levam à propositura do incidente de deslocamento de competência.

2.3.1.Existência de grave violação aos direitos humanos

De plano, importante mencionar que não se trata de qualquer violação aos direitos humanos, mas sim, de grave violação. Nesta seara, surge uma acalorada discussão doutrinária do que seria tal violação grave, ou ainda, qual o conteúdo exato da expressão “direitos humanos”, uma vez que o legislador transferiu a responsabilidade de conceituar tais temas para a doutrina e jurisprudência. O presente estudo não busca esgotar tal debate, procurando apenas descrever um cenário tendo em vista o conceito de direitos humanos apresentado no início deste trabalho.

Acerca da gravidade das lesões ou violações, em que pese o silêncio do legislador, é grande a contribuição da doutrina e do direito comparado para que se configure tais violações. Deste modo, o Direito Internacional Público possui o chamado “núcleo duro” de direitos que devem ser preservados pela humanidade. Como mencionado alhures, seriam standarts mínimos que constituem a definição de crimes contra a humanidade, ressaltando dentre eles, a escravidão, a execução sumária, as detenções arbitrárias, as discriminações de toda espécie, a tortura, a violência sexual ou contra a mulher e a violência contra aqueles indivíduos considerados mais frágeis, como crianças e idosos. [40]

Ademais, no ordenamento jurídico brasileiro, a Comissão de Procuradores do Estado argüiu que os crimes de tortura, homicídio por agentes funcionais ou estatais, os crimes contra as comunidades e o patrimônio indígena, os homicídios motivados por preconceito ou de natureza fundiária e a escravidão constituiriam um rol adequado de graves violações aos direitos humanos.

Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Incidente de Deslocamento de Competência IDC-1 julgou adequada a não definição de um rol taxativo do que seriam graves violações, permitindo a flexibilização da norma diante do caso concreto.

“Dada a amplitude e a magnitude da expressão “direitos humanos”, é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir um rol dos crimes que passaram para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstancias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há de se falar em norma de eficácia limitada. Ademais não é próprio de texto constitucional tais definições.”[41]

Pelas palavras do relator, um rol exemplificativo dos crimes considerados como graves violações poderia criar uma banalização do instituto da federalização, fugindo do princípio básico do texto constitucional. Assim, cada caso deve ser analisado sob o prisma dos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.O Superior Tribunal de Justiça ao julgar o “caso Manoel Mattos” [42] (IDC-2) decidiu que é de responsabilidade do referido órgão examinar o caso concreto, observando a razoabilidade e a proporcionalidade da medida, dando efetividade ao deslocamento de competência, superando a subjetividade legislativa do mesmo.[43]

Importante observar que a concepção de direitos humanos ultrapassa a institucionalização da política estatal, impondo certa dimensão jusnaturalista, uma vez que são direitos inerentes à personalidade humana independente de reconhecimento do Estado para que sejam validados.

Nesta toada, para o Ministério da Justiça, a federalização seria um incremento no papel da União diante das graves violações aos direitos humanos, garantindo-lhe formas de resguardar sua imagem e evitar condenações nas instâncias internacionais. Tal posição pode ser encontrada na Exposição de Motivos MJ 204, datada de 15 de dezembro de 2004, que coloca a Emenda Constitucional nº 45/04 como um “pacto de Estado” em favor de um judiciário mais célere e republicano:

“Fruto da plena integração do Brasil nos Sistemas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos, avolumam-se denúncias contra o nosso País em foros competentes para a supervisão dos compromissos contraídos. Merece destaque, a este propósito, as representações oferecidas no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Como decorrência deste Pacto, a primeira tarefa que será implementada é a identificação de todos esses casos em um único banco de dados. Seguir-se-á a estruturação, no âmbito do Poder Judiciário, de sistema de acompanhamento dos inquéritos e ações judiciais relacionados com os casos enfocados, com vistas ao recebimento das informações necessárias à manifestação do Brasil perante as instancias Internacionais. O objetivo de todas essas iniciativas é resolver rapidamente as controvérsias, inclusive com a busca de soluções amistosas, quando for o caso”.[44]

Nesta seara se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do primeiro incidente de deslocamento proposto:

“É imprescindível, todavia, verificar o real significado da expressão “grave violação de direitos humanos”, tendo em vista que todo homicídio doloso, independente da condição pessoal da vítima e/ou repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida.”[45]

Assim, o conceito de “grave violação” guarda enorme intimidade com o caso concreto, o qual será analisado sob a égide da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de impedir a banalização do incidente de deslocamento de competência e o esvaziamento da Justiça comum, estadual. Pode-se arguir que a definição de graves violações aos direitos humanos será uma tarefa imperativa, mas não subjetiva, diante dos inúmeros parâmetros e normas que possuem ligações com o sistema internacional de proteção destes direitos. Há de ser um crime que viole um bem de proteção jurídica elevada no sistema nacional e internacional, em circunstâncias excepcionais ou que representem práticas sistemáticas de violações a grupos vulneráveis. [46]

Para o doutrinador Eugênio Pacelli de Oliveira (2005), a medição de gravidade da violação aos direitos humanos não está na violência do ato em si, mas “ao grau de repercussão a conduta, em relação à efetiva possibilidade de intervenção da Administração e das autoridades federais para a repressão e prevenção de tais delitos”.[47]

Ao definir as graves violações aos direitos humanos, deve-se buscar um elemento diferencial dos outros crimes, das outras violações a bens jurídicos tutelados. Deve haver um ponto de inflexão que demande a excepcional necessidade de alteração de competência, motivo pelo qual, o texto constitucional requer que a grave violação possua características adicionais capazes de atrair o interesse federal para o caso.[48]

Não obstante, Mário Luiz Bonsaglia também consagra uma interpretação mais ampla do conceito de direitos humanos, afirmando que:

“[…] quando se fala em “crimes contra os direitos humanos” naturalmente está a se considerar aquelas infrações mais graves, que atentam contra direitos humanos não apenas garantidos na Constituição e leis federais, mas também, por sua especial relevância, consagrados em instrumentos internacionais, como convenções e tratados, a cuja observância o Brasil encontra-se vinculado”.[49]

Chega-se a um ponto de convergência entre este primeiro requisito e um segundo, o qual será analisado adiante: a garantia de que o Brasil cumpra as obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais seja signatário. Conclui-se que a expressão “grave violação” deve ser analisada em cada caso concreto importando ainda, a responsabilidade do Estado brasileiro diante de tratados internacionais assumidos.

2.3.2. Assegurar o cumprimento de obrigações internacionais de direitos humanos.

A repercussão internacional da já comentada “grave violação” poderá gerar uma responsabilização internacional do Brasil pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais. Ressalta-se que para a concretização do deslocamento, os requisitos aqui mencionados devem coexistir. Ou seja, é pacífico o entendimento de que será hipótese de federalização apenas os descumprimentos de obrigações internacionais que ensejarem a responsabilização do Brasil nas instancias jurisdicionais internacionais de proteção aos direitos humanos.

A Emenda Constitucional nº 45/04 também trouxe ao ordenamento jurídico a “constitucionalização dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo quorum qualificado das emendas constitucionais” [50] conforme o artigo 5º, § 3º da Constituição Federal e ainda, a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, consoante o artigo 5º, § 4º da Carta Maior.

Ademais, o Brasil é signatário de uma série de tratados e convenções internacionais nos quais se compromete a apurar e punir os delitos considerados graves contra os direitos humanos, responsabilizando-se perante cortes e organismos internacionais.

Flávia Piovesan ensina que há vários casos contra o Brasil pendentes de apreciação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde alguns apontam, inclusive, para a responsabilidade direta da União em face da violação dos direitos humanos.[51]

A violação mencionada deve estar arrolada entre as quais a União tem o dever de reprimir em conseqüência da assinatura de algum tratado internacional. A partir do momento em que o Brasil passa a se submeter ao Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cria-se um rol de possibilidades de responsabilização. Nesta esteira, o segundo requisito para o deslocamento de competência reside justamente nesta possibilidade de responsabilização internacional do Brasil perante os tratados internacionais dos quais seja signatário. O Procurador-Geral da República assim se manifestou durante o julgamento do IDC nº 2:

“No que diz com a possibilidade de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais, é de se ressaltar que a República brasileira, signatária dos principais atos internacionais de proteção de direitos humanos, responsabiliza-se pelo efetivo cumprimento de tais obrigações, submetendo-se tanto ao sistema global, quanto ao sistema interamericano de direitos humanos, especialmente diante do reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.”[52]

Novamente, partindo da análise do caso concreto, é necessário avaliar se os fatos narrados configuram o descumprimento de obrigação internacional, indicando aquela que fora desrespeitada.

Ressalta-se, por derradeiro, que não se trata de mera presunção de risco da responsabilidade internacional, mas sim de descumprimento explícito de obrigação anteriormente assumida pelo Estado brasileiro.[53]

Por oportuno, faz-se necessário mencionar o primeiro caso de condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, através do caso “Ximenes Lopes”. Damião Ximenes Lopes faleceu no ano de 1999, com 30 anos de idade. Damião, que possuía problemas mentais diagnosticados, foi sujeito à contenção física, amarrado com as mãos para trás e a necrópsia revelou que seu corpo sofreu diversos golpes, apresentando escoriações localizadas na região nasal, ombro direito, parte anterior dos joelhos e do pé esquerdo, equimoses localizadas na região do olho esquerdo, ombro homolateral e punho. No dia de sua morte, o médico da Casa de Repouso, sem fazer exames físicos em Damião, receitou-lhe alguns remédios e, em seguida, se retirou do hospital, que ficou sem nenhum médico. Duas horas depois, Damião morreu.[54]

Assim, presentes os dois primeiros requisitos contidos na letra da lei, mesmo que de caráter subjetivo, faz-se necessário a existência de um terceiro pressuposto, a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas à grave violação ocorrida.

2.3.3. Inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico

A omissão ou demora injustificada na resolução do crime, na sua apuração ou no seu julgamento, é um requisito implícito ao parágrafo 5º do artigo 109 da Constituição Federal, tendo em vista que não haveria justificativa em deslocar a competência caso o órgão estadual responsável cumprisse adequadamente com seu dever de persecução penal e consequente julgamento. Tal requisito elucida o caráter subsidiário do deslocamento, no qual, a federalização não pode ser entendida como “prima ratio”, ou seja, como primeira medida a ser tomada no caso de grave violação a direitos humanos.

O deslocamento de competência é medida excepcional, de caráter subsidiário tal como as demais medidas constitucionais que dispõem sobre conflitos federativos, pois se não as fosse, o legislador teria atribuído a competência diretamente à Justiça Federal. Sendo assim, a competência do Estado federado resta reafirmada, transferindo para o âmbito federal apenas os casos em que o poder estadual não possuir meios efetivos para reprimir e punir a grave violação aos direitos humanos.[55]

Outrossim, analisando o bojo constitucional voltado à autonomia dos entes federados, a transferência dessa autonomia pela federalização só estará justificada de forma excepcional para preservar um bem maior, nos estritos limites da legalidade.

Importante mencionar que a necessidade de esgotamento dos recursos internos é uma regra geral para que se chegue às cortes internacionais, e desse modo, não poderia ser diferente com o deslocamento de competência ora estudado.

Vladimir Aras leciona sobre este requisito:

“A omissão ou demora injustificada na elucidação do crime é pressuposto implícito à norma em comento, porquanto não haveria razão para o deslocamento se os órgãos estaduais estivessem cumprindo adequadamente seu dever na persecução penal.”[56]

O posicionamento acima encontra-se pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, através dos dois julgamentos de incidentes de deslocamento de competência propostos até o presente momento. Faz-se necessário, portanto, a inércia das autoridades responsáveis ou a incapacidade das mesmas diante do caso concreto. É o que fora apresentado pelo relator do IDC-1, caso Dorothy Stang [57]:

“Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos”.[58]

Na mesma toada, no julgamento do IDC-2 fora reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça o apelo feito pelas autoridades locais no sentido de serem incapazes de promover a eficiente apuração dos fatos tendo em vista a magnitude da infiltração do crime organizado nas instâncias oficiais.

“É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; o Governador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; a Ordem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais”.[59]

Assim, a proteção dos direitos básicos não se esgota e nem poderia se esgotar apenas com a atuação dos estados-membros. A intervenção federal no âmbito estadual afigura-se como um reflexo, uma manifestação ou particularização da própria noção de soberania, tendo em mente que o Estado também é expressão de poder interno, possuindo supremacia no âmbito internacional. Por estes motivos, faz-se necessário que a intervenção em comento seja utilizada apenas em última análise, quando não restarem mais alternativas ao estado-membro, ou o mesmo se mostrar ineficaz na persecução que se fizer necessária.

Fica caracterizado, por derradeiro, que o incidente de deslocamento de competência é medida excepcional de caráter subsidiário, após a comprovação da incapacidade das autoridades locais em combater a grave violência aos direitos humanos.

3. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE

Antes da aprovação da Emenda Constitucional nº45/04, a constitucionalidade da norma que insere a federalização das causas relativas aos direitos humanos já era alvo de importantes debates no meio jurídico e político. Conforme já evidenciado neste estudo várias tentativas de alteração da redação original foram efetuadas, com o escopo de evitar sua posterior inaplicabilidade sob o argumento de inconstitucionalidade.

Neste diapasão, o debate acerca da constitucionalidade da referida emenda fora reaberto logo após sua promulgação, sendo que após a suscitação do primeiro incidente perante o Superior Tribunal de Justiça, foram interpostas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra o inciso V-A e o § 5º do artigo 109 da Constituição Federal. Tais ações foram propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais. São o reflexo da ampla insatisfação que a emenda provocou nas classes dos magistrados estaduais e alguns membros do Ministério Público estadual. Do ponto de vista da fundamentação jurídica, as ADINs argumentam que o incidente de deslocamento de competência não possui auto-aplicabilidade, sendo contrário a princípios constitucionais.

É patente que a norma em comento provocou grande insatisfação nos magistrados em geral e membros do Ministério Público estadual, os quais entendiam que a federalização afrontava às instituições estaduais, que estariam sendo consideradas incapazes de reprimir os crimes contra os direitos humanos. Os defensores da inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, principalmente a AMB, a CONAMP e a ANAMAGES, afirmam que o mesmo é plenamente desnecessário, tendo em vista os instrumentos processuais já existentes, como o desaforamento do júri, a intervenção federal e a possibilidade da policia federal conduzir as investigações criminais. [60]

Outro argumento levantado pelos opositores à federalização está no fato de que se criaria, em tese, uma chefia do Procurador-Geral da República sobre os Procuradores-Gerais de Justiça, levando a uma centralização exacerbada das decisões nas mãos dos entes federais.

Sem o intuito de esgotar a análise das duas ações diretas de inconstitucionalidade propostas, do ponto de vista jurídico, elas possuem fundamentações semelhantes. Afirma-se que o deslocamento fere as garantias constitucionais do juiz natural, do devido processo legal, do pacto federativo e da proporcionalidade. Sendo estas garantias cláusulas pétreas, as mesmas seriam intocáveis. Outro ponto levantado pelas ações de inconstitucionalidade reside no fato de que a norma não possuiria auto-aplicabilidade sendo, portanto, de eficácia limitada.

Antonio Scarance Fernandes (2010) afirma que o juiz natural estaria sendo duplamente violado, em face do artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Carta Magna, pois só são órgãos do judiciário aqueles instituídos pela Constituição, reforçando que ninguém pode ser julgado por órgão constituído após o fato e entre os órgãos pré-constituídos, vigora uma ordem taxativa e hierárquica de competências.[61]

Nesta seara, o incidente de deslocamento de competência feriria a proibição dos tribunais ex post facto, uma vez que a modificação da competência se daria após o crime, sendo que tal incidente poderia ou não ser suscitado pelo Procurador-Geral da República, ensejando maiores objetividades sobre quais delitos serão considerados de grave violação aos direitos humanos. Outrossim, a reforma do judiciário estaria violando o princípio da segurança jurídica, tendo em vista que o infrator não saberia ao certo qual juízo será competente para julgar seu caso. Ressalta-se que todos os aspectos relacionados à existência do crime, bem como à persecução e à condenação penal devem ser previamente fixados em lei.

Entrementes, os mesmos ferrenhos defensores da inconstitucionalidade do deslocamento de competência, tal qual Ingo Wolfgang Sarlet, Leonardo Furian e Tiago Fensterseifer, afirmam que sua inconstitucionalidade poderia ser sanada se o dispositivo legal fosse entendido como uma norma de eficácia limitada, ou seja, necessitaria de uma lei regulamentadora que fixasse critérios objetivos para sua existência. [62]

Ademais, a federalização dos crimes atingiria o principio constitucional do devido processo legal, ignorando a ampla defesa, tendo em vista que o acusado encontraria grande dificuldade na produção de provas em razão da distancia às Varas Federais.

A associação nacional dos membros do ministério público (CONAMP) elenca uma série de argumentos contrários à constitucionalidade do artigo 109, § 5º da Constituição Federal de 1988, alguns, já mencionados neste trabalho, quais sejam: a violação da cláusula pétrea do juiz natural, já que o mesmo será estabelecido por critério subjetivo, onde não há o exato conceito de “violação de direitos humanos”; a violação do pacto federativo, entendendo que haverá uma livre intervenção federal nos estados; a volta da avocação por parte do Procurador-Geral da República; a criação de uma descriminação para com as instituições judiciárias estaduais; a existência de instrumentos já consagrados para a repressão dos crimes contra os direitos humanos; a criação de “tribunais de exceções”, vedados pela Carta Magna; a violação do contraditório por parte do Procurador-Geral do estado que deverá simplesmente obedecer ao Procurador-Geral da República; a quebra da razoável duração do processo, tendo em vista que a demora será maior no âmbito federal, levando até a prescrição de alguns crimes.

Nesta linha de raciocínio, Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Maira Cristina Vidotte Blanco Tárrega comentam:

“A primeira matéria que cumpre discutir é o reconhecimento expresso pelo reformador de uma maior dignidade e importância da Justiça Federal em relação à Justiça Estadual. Aquela antiga preocupação do constituinte originário de relacionar a matéria da competência às atividades objetivas desenvolvidas, preservando-se uma idêntica importância institucional, já não existe mais. Fica reconhecida a indignidade da Justiça Estadual e sua incapacidade em “assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais”. O critério utilizado é muito claro: quando a violação dos direitos humanos for leve, a competência é da Justiça Estadual. Quando a violação for grave, a competência é da Justiça Federal.”[63]

Como se pode observar, os referidos autores elencam o pré-conceito que se formaria em face da justiça estadual, ao colocá-la como inapta para processar e julgar graves violações aos direitos humanos. Lílian Mendes Haber, Carolina Ormanes Massoud e Ibrain José das Mercês Rocha (2005) afirmam que seria fato “menos danoso, se a EC nº. 45/04, pretendendo prestigiar a federalização dos crimes contra os direitos humanos, sem desmerecer o Ministério Público e a Justiça Estadual, tivesse atribuído competência expressa à Justiça Federal, pura e simplesmente”.[64]

Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Maira Cristina Vidotte Blanco Tárrega (2005) asseveram ainda:

“Mais grave, entretanto, é a fixação de um critério de competência condicional e fundado na pura subjetividade de uma única autoridade. Ora, o art. 5º, LIII, da CF/88 assegura que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. É inerente ao princípio do devido processo legal que a regra de competência seja objetivamente fixada antes do ajuizamento da lide. Assim foi durante grande parte da história brasileira. Ocorre que, a partir da reforma, a competência para as ações relativas à violação de direitos humanos não pode ais ser fixada no momento da propositura da ação, as depende de uma condição extrínseca às próprias partes litigantes, qual seja o oferecimento de pedido de “deslocamento de competência” formulado pelo Procurador-Geral da República.”[65]

Pelos argumentos elencados acima, o deslocamento de competência alteraria a competência das ações relativas à violação de direitos humanos após o momento oportuno, violando o devido processo legal. Corroborando com tal entendimento, André Ramos Tavares (2005) rememora que “a competência para sua apreciação pode, por critérios vagos e imprecisos, ser alterada quanto ao órgão que procederá ao julgamento da causa”.[66]

Analisado sucintamente os argumentos contrários à constitucionalidade do deslocamento de competência, passar-se-á ao estudo dos alegados confrontos da norma com princípios e valores constitucionais, a saber, o pacto federativo, o contraditório, a ampla defesa e o juiz natural.

3.1. Pacto federativo

Em que pese os argumentos elencados, acerca da dissonância da federalização com o pacto federativo, entende-se que tal princípio não se encontra violado no caso em tela. José Frederico Marques (2000) lembra que não existe mais o federalismo dual, reiterando que se fosse para seguir à risca o pacto federativo, os juízes estaduais deveriam aplicar apenas as leis estaduais.[67]

Cumpre anotar que a distribuição da competência entre União e os estados varia de acordo com condições históricas, relembrando que no Brasil, os estados-membros jamais gozaram de autonomia absoluta. Com o saber de quem ajudou a construir o sistema federativo brasileiro, Rui Barbosa bem situa a origem unitária da federação:

“Senhores, não somos hoje uma federação de povos até ontem separados, e reunidos de ontem para hoje, Pelo contrário, é da união que partimos. Na união nascemos. Na união se geraram e fecharam os olhos nossos pais. Na união ainda não cessamos de estar. Para que a união seja a herança de nossa descendência, todos os sacrifícios serão poucos.”[68]

A advertência de ontem há de ser o farol de hoje, pois o Brasil não é um país de tradição cujos estados-membros são fortes individualmente. O papel central da União na manutenção da cidadania é uma realidade que não se pode olvidar. [69]

O deslocamento de competência está inserido em um sistema de federalismo considerado cooperativo, nascido a partir da crise do Estado Liberal clássico, onde a União foi adquirindo ainda mais competências, repassando algumas aos seus estados-membros. A cooperação de competências jurisdicionais é necessária sempre que determinado ente da federação não possuir condições para cumprir as prescrições constitucionais, seja por negligência, por inércia, ou por falta de vontade dos governantes. Reitera-se que quando o poder local não conseguir desempenhar suas tarefas, caberá à União, subsidiariamente, assumi-las. [70]

É justamente embasado nessa substituição de tarefas que o legislador constitucional previu a possibilidade de intervenção federal, consoante o artigo 34 da Constituição Federal. Ademais, tal medida possui caráter mais drástico, possuindo como um dos fundamentos, a proteção dos direitos humanos, conforme alínea b, inciso VII do artigo em comento. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2005), analisando o instituto da intervenção federal, dissertam que “o Estado Federal deve conter um dispositivo de segurança, necessário à sua sobrevivência. Esse dispositivo constitui, na realidade, uma forma de mantença do federalismo diante de graves ameaças” [71].  Ora, se é possível tal medida drástica para assegurar os direitos da pessoa humana, não há de se falar em inconstitucionalidade em realizar uma intervenção considerada pontual, apenas em relação à determinado caso concreto.

Como mencionado alhures, a União poderá ser responsabilizada internacionalmente pelo descumprimento de obrigações adquiridas em tratados e convenções internacionais das quais seja signatária. Nesta esteira, a Emenda Constitucional nº 45/04 tornou expresso o interesse da União na apuração e repressão destes delitos. Rodrigo Arteiro (2005) relembra que o rol de atribuições da Justiça Federal já continha a previsão de interferência nos casos de infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, assim, não se pode negar que há interesse nacional em razão da apuração e punição dos crimes, ensejando um comprometimento perante os tratados internacionais.[72]

Pode-se aferir, com base no rol de atribuições dos juízes federais, contidos no artigo 109 da Constituição Federal, que a Justiça Federal de primeiro grau é considerada como o juízo natural dos casos que constituam graves violações aos direitos humanos protegidos por tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Ressalta-se que o incidente de deslocamento de competência pode ser visto sob a ótica de um mero instrumento a garantir o que já estava disposto no artigo 109, IV, dispondo sobre a competência dos juizes federais para processar e julgar infrações penais praticados em detrimento bens, serviços ou interesse da União.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3.367, que colocava em debate a constitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça, assim se manifestou acerca do pacto federativo:

“O pacto federativo não se desenha nem expressa, em relação ao Poder Judiciário, de forma normativa idêntica à que atua sobre os demais Poderes da República. Porque a jurisdição, enquanto manifestação a unidade do poder soberano do Estado, tampouco pode deixar de ser uma e indivisível, é doutrina assente que o Poder Judiciário tem caráter nacional, não existindo, senão por metáforas e metonímias, “Judiciários Estaduais” ao lado de um “Judiciário Federal”.”[73]

Portanto, a federalização dos crimes surge como alternativa óbvia ao atribuir à Justiça Federal a competência para processar e julgar os conflitos decorrentes das graves violações aos direitos humanos internacionalmente tutelados, tendo em vista que se trata de interesse claro da União diante dos tratados e convenções assumidos internacionalmente.

Por derradeiro, partindo do princípio epistemológico do deslocamento de competência, não há qualquer conflito com o pacto federativo, uma vez que o instrumento constitucional em análise se baseia em três princípios, quais sejam: o Devido Processo Legal; a Dignidade da Pessoa Humana e a prevalência dos Direitos Humanos. Assim, o incidente de deslocamento de competência caracteriza-se por ser uma garantia constitucional útil à realização da dignidade da pessoa humana. Deste modo, é patente que o princípio da dignidade da pessoa humana não viola o pacto federal.

Destarte, o incidente de deslocamento também não entrará em rota de colisão com o federalismo, partindo do pressuposto já elencado de que o Estado Federal é uma estrutura política destinada, prioritariamente, a garantir a efetiva democracia, baseado nos mais altos valores garantidores da dignidade da pessoa humana.

Neste sentido, leciona Alexandre de Moraes:

“As justiças especializadas no Brasil não podem ser consideradas justiças de exceção, pois são devidamente constituídas e organizadas pela própria Constituição Federal e demais leis de organização judiciária. Portanto, a proibição de existência de tribunais de exceção não abrange a justiça especializada, que é atribuição e divisão da atividade jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário.”[74]

Importante destacar que a federalização dos crimes graves contra os direitos humanos reafirmou a competência dos órgãos estaduais para apuração e julgamento dos mesmos, disponibilizando apenas, um instrumento subsidiário e extraordinário para ser aplicado quando houver incapacidade do órgão estadual em cumprir com as obrigações assumidas internacionalmente pela União. Outrossim, haverá sempre a possibilidade de não haver o deslocamento, desde que a Justiça Estadual atue de forma competente diante da grave violação ocorrida.

3.2. Contraditório e ampla defesa

O legislador reformador determinou que compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar os casos de incidente de deslocamento de competência. Tal opção fora escolhida uma vez que cabe ao referido Tribunal dirimir os eventuais conflitos de competência entre a Justiça comum e a Justiça Federal, consoante o artigo 105, I, d, da Constituição Federal.

Não obstante, a Resolução nº 06 de 2005 da presidência do Superior Tribunal de Justiça determinou que a apreciação do incidente de deslocamento suscitado fosse feita pela 3ª Seção da Corte. A Resolução em comento determina que a autoridade estadual competente seja ouvida quando da suscitação do incidente.

Neste sentido, não merece prosperar o argumento de que o devido processo legal é violado pela norma do artigo 109, § 5º, V-A da Constituição Federal.  O artigo em questão prescreve apenas a legitimidade do Procurador-Geral da República e a competência para julgamento do incidente de deslocamento por parte do Superior Tribunal de Justiça. Não há qualquer menção que viole o contraditório. Destarte, durante o julgamento do incidente de deslocamento nº 01, o então relator, Ministro Arnaldo Esteves Lima, requisitou informações ao Presidente do Tribunal de Justiça do Pará, além de intimar os réus para manifestação sobre o deslocamento de competência. Ademais, o relator recebeu informações por parte do Procurador-Geral de Justiça do estado do Pará e também do assistente de acusação, irmão da vítima.[75]

Nesta toada, Ubiratan Cazetta bem assinala:

“Embora não haja expressa menção ao papel desempenhado pelo requerido na ação cujo deslocamento se pretende, não se descuida de que ele terá interesse legítimo a ser defendido e deverá ser ouvido pelo STJ. É importante, entretanto, deixar claro que o deslocamento de competência não implicará na diminuição da ampla defesa ou dos princípios constitucionais do processo, entre os quais se inclui sua razoável duração. Mesmo não sendo corriqueiro o exemplo, nada impede que se imagine a hipótese em que seja exatamente o requerido que manifeste o interesse em ver deslocada a competência, para livrar-se da demora do Estado-membro na solução da lide.”[76]

A partir do exemplo supracitado, é importante destacar que reiteradas proposituras de ações temerárias ou de investigações contra um indivíduo podem-se converter em meios de violações aos direitos humanos.

Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou no IDC-01 afirmando que a federalização se assemelha com o desaforamento de processos de competência do Tribunal do Júri. Sendo assim, realizando uma analogia entre ambos institutos, infere-se que a oitiva da defesa será sempre necessária antes do deslocamento em si, pela inteligência da orientação proferida pelo Supremo Tribunal Federal em vários julgamentos, como do HC 75.547; HC 75.421; HC 63.807; HC 69.054.

Outrossim, a Constituição Federal não determina normas específicas de contraditório em geral, limitando-se a prescrever que o legislador infraconstitucional observasse o contraditório e a ampla defesa. Do mesmo modo, não entra em conflito com tais princípios constitucionais devido à sua natureza contenciosa e não voluntária.

A utilização de conceitos, ainda que indeterminados, não implica em violação ao principio constitucional da legalidade, porquanto o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa podem ser preconizados pela mediação legislativa ou pela regulamentação do procedimento no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não caracterizando, portanto, medida que afronte aos princípios constitucionais supramencionados.

3.3. Juiz Natural

É cediço que a Constituição Federal veda os denominados “tribunais de exceção” consagrando a garantia do processamento e julgamento da causa pelo juiz competente, segundo as regras de competência previamente delimitadas. Deste modo, só “se considera juiz natural ou autoridade competente no direito brasileiro, o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais”.[77]

Assim, é colocado em pauta se o deslocamento da competência para a Justiça Federal constituiria violação ao princípio do Juiz Natural, como afirmam os defensores da inconstitucionalidade do referido instituto.

Insta ressaltar que conforme já elucidado, o juiz natural nos casos de grave violação aos direitos humanos já estará previamente delimitado, qual seja, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça. Deste modo, existirão dois juízes naturais: o juiz estadual que irá conhecer o feito; e um juízo federal que poderá ser acionado caso os requisitos do deslocamento de competência sejam preenchidas. Há, portanto, a figura de um “juízo em potencial” representado pela possibilidade de federalização do caso em tela. Não há de se falar em juiz de exceção, uma vez que tal competência encontra-se previamente estabelecida na Constituição, não sendo criada para casos ou fatos particulares, o que violaria o princípio do juiz natural. Destarte, segundo o magistério de Nelson Nery Júnior “[…] o tribunal é de exceção quando de encomenda, isto é, criado ex post facto, para julgar num ou noutro sentido, com parcialidade, para prejudicar ou beneficiar alguém, tudo acertado previamente”. [78]

Não obstante, o princípio do juiz natural, conforme já assinalado, traz o elemento essencial para a compreensão das regras de competência e de uma possível alteração, com a dúplice garantia de vedação à criação de tribunal de exceção e a proibição de subtração do juiz constitucionalmente competente.[79] Segundo o Superior Tribunal de Justiça, o objetivo maior do instituto do deslocamento de competência é a realização da justiça em sua plenitude, finalidade última do processo; com isso, não há qualquer violação ao princípio do juiz natural, nem instituição de tribunal de exceção, desde que presentes os pressupostos legais que o autorizem. [80]

Segundo Flávia Piovesan e Renato Stanziola Vieira (2005) a federalização institui uma “salutar concorrência institucional para o combate a impunidade e para a garantia de justiça” [81] em prol da prevalência e defesa dos direitos humanos. Ademais, é patente que o princípio do Juiz Natural não é absoluto tendo em vista o instituto do desaforamento.

Ademais, o Estado brasileiro seria negligente em demasia caso permitisse que as graves violações aos direitos humanos permanecessem impunes, sob a alegação de que o juízo natural dos mesmos é o estadual, ensejando inclusive sua responsabilização perante os órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos.

Vladimir Aras leciona que:

“No que se refere ao princípio do juiz natural, há que se considerar que o objetivo do incidente de deslocamento é proteger direitos fundamentais das vítimas e assegurar o interesse público da persecução criminal, para redução da impunidade. O instituto presta-se também à proteção de autores de delitos, já condenados ou não, e que venham a ter seus direitos individuais gravemente violados pelo Estado. Neste sentido, ainda que se pudesse falar em afastamento do princípio do juiz natural (o que não é efetivamente o caso), a adequada ponderação dos interesses contrapostos permitiria perfeita harmonização do aparente conflito, em favor do reconhecimento da constitucionalidade do deslocamento da competência, já que tudo é feito de forma a ampliar a efetividade da Justiça, reduzir a impunidade e garantir direitos da pessoa humana. Em síntese, o constituinte derivado não reduziu a esfera de proteção dos direitos do cidadão, mas sim a ampliou por meio de um novo instrumento garantista, o incidente de deslocamento de competência”.[82]

No julgamento do IDC-1, fora citado o acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido no Habeas Corpus nº 67851/GO com a seguinte ementa:

“'Habeas corpus'. Júri. Juiz natural. Tribunal de exceção. Desaforamento. Reaforamento. 1. Não e de ser conhecido o 'habeas corpus', no ponto em que se impugna o desaforamento deferido, porque pretensão idêntica já foi repelida por duas vezes pelo supremo tribunal federal. 2. Juiz natural de processo por crimes dolosos contra a vida e o tribunal do júri. Mas o local do julgamento pode variar, conforme as normas processuais, ou seja, conforme ocorra alguma das hipóteses de desaforamento previstas no art. 424 do c.p. penal, que não são incompatíveis com a constituição anterior nem com a atual (de 1988) e também não ensejam a formação de um 'tribunal de exceção'.c.p.constituição. 3. Não se justifica o restabelecimento da competência do foro de origem ('reaforamento'), se permanecem as razoes que ditaram o desaforamento. 'H.c.' conhecido, em parte, e nessa parte, indeferido.”[83]

Consoante a referida ementa, o local do julgamento pode ser distinto, tendo em vista as normas processuais e levando em consideração o desaforamento previsto no artigo 24 do Código de Processo Penal. Nesta esteira, se a mudança do juízo é considerada constitucional para o desaforamento, outra sorte não poderia ter senão a da constitucionalidade para o incidente de deslocamento de competência.

Cumpre assinalar que o contrário também pode ocorrer, ou seja, a mudança da competência federal para a estadual, no julgamento de causas previdenciárias nas localidades onde não existir Vara Federal, conforme preconiza o artigo 109, § 3º da Constituição Federal, sem que tal transferência de foro seja considerada inconstitucional.

Vale ressaltar que a federalização só é passível de arguição para os casos ocorridos a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04, não sendo possível o deslocamento de casos anteriormente ocorridos, dentre os quais, alguns permaneceram impunes pela incapacidade das autoridades locais.

Destarte, não há violação ao principio do juiz natural tendo em vista que a Justiça Federal é parte integrante do Poder Judiciário e a prerrogativa de deslocamento para seu foro faz parte da organização estrutural deste mesmo Poder Judiciário.

4. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE

Os principais argumentos dos defensores da federalização residem justamente em sua função precípua: preservar os direitos consagrados como humanos, coibindo e punindo as graves violações que ensejem uma responsabilidade internacional do Brasil.

Por oportuno, faz-se necessário elucidar que o ato de interpretar o texto constitucional não se caracteriza por uma atividade anódina, sem importância, ou ainda de um ato mecânico. Interpretar implica a busca de um sentido, através da qual, serão resguardados uma série de princípios. Como bem aduz Eros Grau:

“O intérprete produz a norma jurídica não por diletantismo, porem visando a sua aplicação a casos concretos. Interpretamos para aplicar o direito e, ao fazê-lo, não nos limitamos a interpretar os textos normativos, mas também, compreendemos os fatos. A norma jurídica é produzida para ser aplicada a um caso concreto. Essa aplicação se dá mediante a formulação de uma decisão judicial, uma sentença, que expressa a norma da decisão. Aí a distinção entre normas jurídicas e norma de decisão. Esta é definida a partir daquelas.”[84]

De máxima importância para o correto entendimento dos argumentos favoráveis à constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, é de se destacar o pensamento de Luís Roberto Barroso:

“[…] a distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo à sistematização de Ronald Dworkin. Sua elaboração acerca dos diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria.”[85]

Ainda, o referido autor discorre sobre a valoração dos princípios, vejamos:

“Os princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À visa dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação.”[86]

Ainda, em se tratando de interpretação constitucional, José Jesus Cazetta Júnior (2004) afirma que a necessária ponderação é aplicável ao caráter constitucionalismo pós-guerra, onde o modelo tradicional de solucionar conflitos entre regras é inútil, tendo em vista que a Constituição não mais consagra valores homogêneos, mas um amplo conteúdo material de princípios de direitos fundamentais, até mesmo contraditórios. Apenas através da ponderação é possível manter a coexistência e a igualdade abstrata entre as normas ou direitos que refletem valores plurais, próprios de uma sociedade heterogênea, mas que pretende manter-se unida em torno da Constituição. [87]

Essa é a situação a qual se encontra a análise do incidente de deslocamento de competência, tendo em vista as supostas violações aos princípios constitucionais alhures mencionados, em contraposição a outros princípios de efetividade e proteção aos direitos humanos, como a consagração da dignidade da pessoa humana, por exemplo. Essa contradição aparente enriquece o debate e permite uma melhor compreensão dos interesses colocados em pauta, desempenhando papel eminentemente dialético.

Não obstante, é inegável que não existem direitos fundamentais ilimitados, como afirmou o Supremo Tribunal Federal, veja-se:

“[…] os direitos e garantias individuais não tem caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revista de caráter absoluto, mesmo porque razoes de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerando o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”[88]

Em se tratando de conflito entre princípios constitucionais, sobre os quais não se podem aplicar as regras da hierarquia das normas (lei superior prevalece sobre inferior); da cronologia (lei posterior revoga anterior) ou da especialização (lei específica prevalece sobre lei geral), Luís Roberto Barroso ensina:

“[…] a denominada ponderação de valores ou ponderação de interesse é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. O legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional. Seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo. Não há aqui, superioridade formal de nenhum dos princípios em tensão, mas a simples determinação da solução que melhor atende o ideário constitucional na situação apreciada.”[89]

Para a análise da constitucionalidade da federalização em cotejo, interessa analisá-la sob a égide dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Nesta toada, explicitam Barcellos e Barroso:

“O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade […] não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que a norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação) b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso) e c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto”.[90]

É possível reconhecer que a compatibilidade do incidente de deslocamento de competência somente acontecerá se este instituto atender ao princípio da razoabilidade, passando pela adequação ao caso concreto, pela necessidade de utilização deste meio, pela vedação ao excesso e pela proporcionalidade em sentido estrito. Muito embora a comprovação destas adequações esteja diluída pelo trabalho, é possível justificá-los sucintamente adiante.

Para que se possa identificar a adequação, faz-se necessário aferir qual o fim perseguido e o instrumento que será empregado para tanto. O incidente de deslocamento de competência possui como objetivo a criação de um instrumento que permita uma ampliação qualitativa da proteção dos direitos humanos, agindo como meio eficaz para realizar diretamente a resposta judicial aos casos de grave violação dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Para alcançar tal objetivo, criou-se um instrumento que, respeitando o modelo federal do Estado brasileiro, atribuiu a um tribunal superior, já responsável pela defesa e peã uniformização da ordem infraconstitucional, a missão de identificar os casos concretos em que haja efetiva necessidade de intervenção do ente federal. Concebeu-se, portanto, um mecanismo cuidadoso que envolve a manifestação fundamentada, em processo judicial, e que terá por resultado a redistribuição do feito a um juízo previamente reconhecível, dotado de todas as garantias institucionais típicas do Poder Judiciário e do Ministério Público. [91]

Não pairam dúvidas de que o fim almejado encontra abrigo em uma sociedade que preza pelo princípio da dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos e na prevalência dos direitos humanos. Outrossim, o referido instrumento preserva a entidade federativa, salvaguardando a noção de devido processo legal, garantindo a adequação da federalização.

Ademais, não parece restar questionamentos de que o incidente de deslocamento é uma medida exigível, uma vez que o Estado brasileiro poderá ser responsabilizado internacionalmente pelas obrigações assumidas. Afora outros casos de relevância, basta rememorar que o Brasil já fora condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso “Ximenes Lopes”, além de sofrer medidas provisionais adotadas no caso da Penitenciária “Urso Branco” [92] e do tratamento degradante nas unidades da FEBEM em São Paulo.

Nesta seara, a federalização é medida exigível diante da necessidade da concretização dos direitos humanos, em contraposição a uma realidade muito distante do ideal, com reiteradas situações de desrespeito aos direitos mais fundamentais do ser humano. Implica, por oportuno, averiguar se existe meio menos gravoso ou alternativo ao incidente de deslocamento de competência.

Neste diapasão, Ubiratan Cazzeta (2009) leciona que:

“O IDC não é instrumento redentor, que trará, sozinho, a solução para o problema da violação dos direitos humanos. Todavia, não é, tampouco, um mecanismo autoritário ou abusivo, como se pretendeu configurá-lo nas críticas; aliado a um ampla teia de atuações estatais, poderá, sim, vir a ser um instrumento eficaz para romper situações concretas de desrespeito aos direitos humanos.”[93]

Comparando aos dois outros instrumentos de intervenção federal no âmbito estadual supramencionados, trata-se, portanto, de medida menos gravosa que a intervenção federal prevista no artigo 34, VII, a, da Constituição e mais eficaz do que a autorização de investigação a Policia Federal preconizada pela Lei nº 10.446/02, ao disponibilizar o aparato policial federal sem afastar a autonomia do Estado-membro, viabilizando a solução judicial que o desrespeito aos direitos humanos impõe. Reitera-se que a federalização é medida excepcional, de caráter subsidiário, como já determinado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por derradeiro, no que se refere aos ganhos decorrentes da medida, é patente que se configuram como maiores do que as eventuais perdas de que se pode cogitar, pois o incidente preserva os contornos do federalismo, assegura o juízo natural, sem ofender o devido processo legal, garante a ampla defesa e se configura por importante aparato para manter alerta os estados-membros. Todavia, insta elencar os principais argumentos favoráveis ao instrumento em comento os quais serão pormenorizados adiante.

O primeiro argumento balizador da constitucionalidade do instituto reside no término da conjectura paradoxal onde o Estado brasileiro é responsabilizado pelo descumprimento das obrigações internacionais na pessoa jurídica da União, de forma única e exclusiva, sem que a mesma tivesse a possibilidade de chamar para si tal responsabilidade, investigando, processando ou julgando os crimes que ensejaram sua punição.

Pedro Lenza (2011) ressalta que a previsão estabelecida no artigo 109, V-A e no §5º do mesmo artigo da Constituição Federal fora muito bem vindo e acertado no sentido de adequar o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos, destacando ainda que a União é que será responsabilizada em nome do Estado brasileiro, por aquilo que fora acordado em tratados internacionais. Outrossim, havendo descumprimento ou afronta a direitos resguardados pelos referidos tratados, a União não poderá invocar a cláusula federativa para se eximir das responsabilidades assumidas perante os órgãos internacionais. [94]

Corroborando com tal posicionamento, diversas associações e organizações apóiam o instrumento da federalização, dentre as quais, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação dos Juízes Federais (AJUFE). Para esta última organização a grande importância da federalização é que ela introduz no ordenamento jurídico brasileiro a adoção de um sistema mais abrangente de responsabilização pelos Direitos Humanos, no qual, se uma esfera judicial não for capaz de dar adequada apuração e julgamento ao caso concreto, a responsabilidade passa para outra, no caso a União.

No mesmo sentido, Flávia Piovesan ressalta que a federalização será importante instrumento na concretização e realização dos direitos humanos, quando os mesmos padeçam de graves violações, primando por um Estado Democrático de Direito, consoante o disposto no artigo 1º da Constituição Federal, salientando ainda:

“Se qualquer Estado Democrático pressupõe o respeito dos direitos humanos e requer a eficiente resposta estatal quando de sua violação, a proposta de federalização reflete sobretudo a esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos respeitados.”[95]

Outro argumento que consolida a constitucionalidade do incidente de deslocamento reside na possibilidade de dotar o sistema jurisdicional de melhores instrumentos para enfrentar a impunidade e a afronta à ordem jurídica, em casos quem envolvam as já badaladas graves violações aos direitos humanos, fato que muitas vezes não ocorre nos órgãos estaduais.

Considerando o incidente como um mecanismo conservador da observância dos direitos humanos em nível nacional, Vladimir Aras leciona que:

“Trata-se tão-somente de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Organização dos Estados Americanos e, por via indireta, o Tribunal Penal Internacional) e de efetiva proteção aos direitos humanos em nosso território, em virtude da internacionalização do direito humanitário e das obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo País, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José, 1969), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o recente Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, e as convenções da ONU contra a tortura e para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por exemplo.”[96]

Coadunando com essa corrente doutrinária e trazendo à baila sua experiência defronte as Cortes Internacionais, Francisco Rezek aduz:

“Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações.”[97]

Outrossim, pode-se citar outros casos de federalização através do estudo do direito comparado, como acontece com o crime de narcotráfico nos Estados Unidos da América. [98]

Ademais, é cediço que o estado brasileiro já se mostrou por vezes ineficaz e inoperante na persecução e julgamento de crimes de grande repercussão internacional, como no caso do massacre de Eldorado dos Carajás[99] e a chacina da Candelária[100]. Ressalta-se que ambos os casos foram marcados pela influencia negativa de agentes estatais, incluindo a presença de policiais no banco dos réus.

A então Relatora das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, identificou a Emenda Constitucional 45/2004 como “um passo bem-vindo para combater a impunidade” [101]. O Relator das Nações Unidas para Independência de Juizes e Advogados, Leandro Despouy, afirmou que a referida emenda se apresentava como instrumento adequado e necessário de combate à impunidade:

“A aprovação da reforma é um passo importante na transformação da justiça, na medida em que representa o início de um processo de mudanças destinado a resolver problemas estruturais: morosidade, falta de acesso à justiça, impunidade em algumas áreas (…). Outra medida significante é a proposta de emenda ao artigo 109 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (…). O Procurador Geral da República, para reforçar as obrigações em direitos humanos assumidas pelo Brasil, poderá buscar permissão no Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase da investigação, para transferir o caso para a competência da justiça federal.  É um passo louvável para o combate à impunidade.”[102]

Após a efetiva emenda constitucional, Relatores das Nações Unidas que visitaram o país identificaram a federalização como uma ferramenta positiva, mas que, até o momento, não estaria surtindo o efeito desejado de reduzir a impunidade.

Esta é a avaliação feita pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais, Philip Alston, que esteve no Brasil em 2007, preocupado com a persistência da impunidade, em especial de agentes do Estado, não obstante a previsão da federalização. No mesmo sentido reflete documento elaborado pelas Nações Unidas por ocasião da Revisão Periódica Universal do Brasil:

“O relatório observou que existe a promessa de reformas para permitir que alguns casos que envolvem violações de direitos humanos sejam transferidos de tribunais estaduais para federais (e sejam investigados pela Polícia Federal). No entanto, a tendência geral tem sido de que os casos não sejam transferidos. Um pedido de federalização sobre o assassinato de Manoel Mattos estava ainda pendente de julgamento até a data deste relatório”.[103]

Importante anotar que o referido pedido de julgamento, no caso Manoel Mattos, fora deferido, deslocando a competência para a seara Federal, consoante julgamento do IDC-2.

Um terceiro fundamento da constitucionalidade da federalização reside no interesse nacional na repercussão dos delitos que ensejem a propositura de tal incidente. É inegável que para maior e melhor compreensão do incidente supracitado, faz-se necessário analisá-lo sob a ótica do constitucionalismo moderno, o qual se encontra inserido no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, primando pela internacionalização dos direitos humanos, resultando em uma abordagem constitucional humanística.

Não se pode olvidar, ainda, que a Constituição Federal preza pelos valores da dignidade da pessoa humana, enumerando em seu artigo 5º um extenso rol de direitos e garantias fundamentais que excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados, mesmo que através de tratados internacionais devidamente ratificados.

Paulo Bonavides (2010) atesta que o incidente de deslocamento de competência visa preservar os mais altos valores protegidos pela Constituição Federal, sem que com isso as demais cláusulas pétreas sejam prejudicadas, pois inexiste direito absoluto, que não possa ser relativizado diante do choque com outro direito normatizado e de mesma força hierárquica. Para tanto, faz-se necessário o uso do princípio da proporcionalidade, mais elástico que os demais, protegendo o cidadão contra excessos do Estado e defendendo as liberdades constitucionais. [104]

Não obstante, em regra, tem-se que a Justiça Federal é mais isenta e imparcial, não sendo influenciada pelas injunções políticas ou coorporativas da localidade do crime. Flávia Piovesan e Renato Vieira (2005) corroboram com tal posicionamento, se referindo as vantagens da “competição saudável” entre as policias judiciárias e entre a Justiça Federal e a Estadual:

“Com a federalização dos crimes contra os direitos humanos passa a existir uma salutar concorrência institucional para o combate à impunidade e para a garantia e justiça, expondo-se à sociedade civil os poderes e os limites estatais no cumprimento de seus compromissos internacionais e domésticos. De um lado, encoraja-se a atuação estatal sob o risco de deslocamento de competência em razão da matéria, e de outro se aumenta a responsabilidade das instancias federais para o efetivo combate à impunidade das violações aos direitos humanos.”[105]

Insta ressaltar que a Polícia Federal e o Instituto Nacional de Criminalística são, em geral, mais bem equipados e preparados do que as Polícias Civil dos estados, sendo possível que se investigue melhor o crime em comento. Destarte, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal estão distantes das influencias políticas e econômicas locais, possuindo mais condições de conduzir uma ação penal longe do corporativismo e das querelas locais. [106]

Nas sábias palavras de Flávia Piovesan e Renato Vieira (2005), é de vital importância o fato de os órgãos federais de persecução não serem beneficiados com verbas dos cofres públicos estaduais, conferindo-lhes maior independência na persecução dos crimes praticados, comandados ou acobertados por agentes públicos locais, uma vez que não estarão “subordinados” aos mesmos nem correrão riscos de restrições orçamentárias, por exemplo. [107] Nesta toada, infere-se que a impunidade também diminuirá, principalmente quando se tratar de investigado que ocupe cargo público estadual ou municipal.

O então Ministro da Justiça Nelson Jobim citado por Simone Schreiber e Flávio Dino Castro e Costa, quando da apresentação do Plano Nacional de Direitos Humanos em 1996 afirmou:

“A fórmula consiste na inserção de dois novos incisos no art. 109 da Constituição. Sem dúvida, a Justiça Federal e o Ministério Público da União, no âmbito das suas atribuições, vêm se destacando no cenário nacional como exemplos de isenção e de dedicação no cumprimento dos seus deveres institucionais. Por outro lado, cumpre destacar que a própria natureza dessas duas Instituições, com atuação de abrangência nacional, as tornam mais imunes aos fatores locais de ordem política, social e econômica que, até agora, têm afetado um eficaz resguardo dos direitos humanos.”[108]

Nesta esteira, é patente que os crimes graves contra os direitos humanos deveriam ser submetidos, desde logo, à competência da Justiça Federal, mais isenta de injunções político-corporativas, curiosamente, o oposto do que ocorria durante o regime militar. Segundo Júlio Ricardo de Paula Amaral (2006) “há quem imagine que o novo dispositivo coloca os juízes estaduais na berlinda, como se fossem incompetentes, tendenciosos e mal equipados para solucionar os complexos litígios envolvendo a violação aos direitos humanos” [109]. Todavia, Nelson Jobim rebate tal crítica aduzindo que:

“Assisti, inclusive, em debates no interior do país, a um desembargador dizendo que isso seria uma ofensa brutal à Justiça Estadual. O fato é que ninguém tem direito a competências. Competência se define na perspectiva da eficácia. No caso específico da federalização de direitos humanos, não se falou em ineficácia da Justiça Estadual, mas em ineficácia dos órgãos investigadores dos delitos contra direitos humanos, se na Justiça Estadual se mantivesse. Com a federalização, desloca-se o poder investigatório para a Polícia Federal, que não tem um entravamento em relação às ações que se realizam no Estado. Essa é a razão específica. Outra questão básica é que grande parte desses ilícitos são praticados por órgãos vinculados às autonomias estaduais, ou seja, os estados federados. Além disso, os estados federados não são entidades de direito público internacional. Esqueçamos a disputa interna de competências, se é da Justiça Estadual ou Federal. Não é isso que está em jogo. Está em jogo a questão da eficiência do nosso sistema.”[110]

Flávia Piovesan traz dados estatísticos que demonstram tal situação fática, tendo em vista o 3º Relatório Nacional de Direitos Humanos emitido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2005:

“Das setenta denúncias apresentadas contra o Brasil no Sistema Interamericano, apenas dois casos apontam a responsabilidade direta da União; nos demais, a responsabilidade direta é dos Estados. A União tem responsabilidade no plano internacional, mas não a tem no plano interno. A federalização fortalece a responsabilidade da União em matéria de direitos humanos.”[111]

Assim, a intervenção federal no âmbito estadual, nos ditames da federalização ora estudada, pode ser justificada por três elementos: pertinência, necessidade e proporcionalidade. Para que haja pertinência é necessário que haja respeito ao meio adequado de proposição do incidente, respeitando a norma. A necessidade justifica-se ela proibição de utilização da federalização como primeira medida a ser tomada, suscitando-a apenas quando não restam mais alternativas ao Estado. A proporcionalidade leva à ponderação, ou seja, avaliação do conjunto de interesses envolvidos no caso concreto, servindo sempre como instrumento de efetivação e proteção da liberdade aos direitos fundamentais. [112]

A proporcionalidade em cotejo serve para que o instituto da federalização dos crimes contra os direitos humanos não se torne em medida banalizada, fugindo de seu escopo principal.

Segundo Gilmar Mendes tal proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental em detrimento de outro. O ministro ainda leciona:

“A proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou a um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Há de perquirir-se na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre os dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto)”[113].

Note-se que o incidente de deslocamento de competência não chega a subtrair nenhuma competência originária dos estados, tampouco se apresenta como uma violação ao pacto federativo, tendo em vista sua natureza subsidiária e mediante a comprovação da incapacidade do estado-membro em investigar, processar ou julgar o acontecido.  Neste mesmo sentido, assim se manifestou o Ministro Arnaldo Esteves Lima quando do julgamento do primeiro incidente de deslocamento de competência:

“O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal.”[114]

Trata-se de uma garantia constitucional de eficácia plena, com caráter eminentemente instrumental, possibilitando o deslocamento da competência, de forma horizontal, da Justiça Estadual para a Justiça Federal, pois ambas compõe uma só Justiça, um só sistema judiciário brasileiro. Assim, embora não seja contemporâneo à Emenda Constitucional 45, o ilustre magistério de João Mendes Júnior, datado de 1916 ainda sobrevive ao tempo, servindo como base para o presente estudo:

“O Poder Judiciário, delegação da soberania nacional, implica a idéia de unidade e totalidade da força, que são as notas características da idéia de soberania. O Poder Judiciário, em suma, quer pelos juízes da União, quer pelos juízes dos estados, aplica leis nacionais para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é federal, nem estadual, é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais, quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em superior, quer decidindo em inferior instância.”[115]

Ademais, antes mesmo do incidente estudado já era possível que a Justiça Federal julgasse, investigasse e processasse os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, além dos previstos em tratados internacionais quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ocorrido no exterior ou reciprocamente. Assim, é patente o interesse da União a fim de firmar seus compromissos internacionais adquiridos.

Segundo Cançado Trindade (2006) a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota e nem pode terminar na atuação do Estado, que deve ser entendido como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria, visando a cooperação, onde todos os estados-membros são parcialmente independentes porém iguais juridicamente.[116]

A federalização dos crimes constitui regra de modificação de competência interna com base constitucional e subsidiária, no sentido de complementar a competência residual da justiça estadual e não de suprimi-la. Analisando as competências delimitadas pela Constituição de 1988 há, de modo geral, um favorecimento às competências concorrentes, no sentido de que exista um federalismo cooperativo, com os olhos voltados mais para a colaboração de seus estados-membros do que com a independência total. Segundo Alexandre de Moraes (2002) a intervenção consiste em medida excepcional de supressão temporária a autonomia de determinado ente federativo, fundada em hipóteses taxativamente previstas no texto constitucional e que visa à unidade e preservação da soberania do Estado Federal e das autonomias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. [117]

Não obstante, observa Flávia Piovesan (2005) que os pressupostos do desaforamento, já mencionado, acabam se assemelhando aos do incidente de deslocamento de competência, quais sejam: falta de isenção da Justiça Estadual ou negativa desta, além da excessiva demora no julgamento. Assim, os efeitos destas duas medidas são simétricos, sendo certo de que ambos são constitucionais.[118]

Por oportuno, ressalta-se que o desaforamento existe no Código de Processo Penal há mais de sessenta anos, sem estar revisto na Constituição Federal, e mesmo assim é considerado Constitucional. Ademais, o desaforamento não afasta a possibilidade do incidente de deslocamento de competência, porquanto o desaforamento se restringe aos casos do Tribunal do Júri e a federalização é ampla, com a posterior modificação da competência em razão da matéria.

Embasando a tese de constitucionalidade da federalização, pode-se citar o caso de conexão entre crimes de competência federal e estadual, o qual, encontra-se sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça através do enunciado nº 122: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do Código de Processo Penal”.[119]  Neste diapasão, Vladimir Aras (2005) sustenta que a competência federal prepondera sobre a estadual, uma vez que a primeira está expressa na Constituição e a segunda é residual, mesmo que seja mais ampla.[120]

Ainda no tocante as competências, existem as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos, defesas processuais que ocorrem no curso de processos cíveis e penais além dos casos de remoção por ofício dos magistrados, consoante o artigo 103-B, § 4º, III da Constituição Federal, sem que com isso houvesse violação aos princípios da segurança jurídica e do juiz natural. Vladimir Aras (2005) salienta ainda, que tais instrumentos processuais não são contestados pelos argumentos que balizam as teses de inconstitucionalidade do incidente de deslocamento de competências, fazendo uma analogia ao supramencionado juízo em potencial, dentro dos ditames constitucionais pátrios. [121]

Por derradeiro, insta salientar acerca da decisão do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do IDC-1, onde fora rejeitado as preliminares argüidas pela defesa de inépcia da inicial e de que o dispositivo seria uma norma de eficácia contida, carecendo de um rol definidor e exemplificativo dos crimes considerados graves. Após o julgamento, ficou patente que não há incompatibilidade do incidente de deslocamento de competência com qualquer outro principio constitucional ou com a sistemática processual em vigor[122], restando afastada a tese de inconstitucionalidade da federalização em escopo.

5. CONCLUSÃO

O cenário mundial pós-guerra ensejou o início da reflexão sobre a necessidade de uma proteção internacional mais eficaz aos direitos humanos, consolidando, posteriormente, os inúmeros movimentos de internacionalização destes direitos.

Nesta seara, a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz para si o papel catalisador dos esforços internacionais que se consolidarão em diversos outros mecanismos normativos, gerando um complexo de atos internacionais voltados para o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais, destinados a estabelecer padrões mínimos a serem observados por cada Estado signatário.

Ao assumirem internacionalmente os compromissos em cotejo, os países passam a ser responsáveis pelo cumprimento das referidas promessas, colocando em prática aquilo que se fizer necessário para alcançar os objetivos acordados, dentro de seus limites legais. Como decorrência destas promessas, surgem instâncias internacionais responsáveis por apurar o cumprimento daquilo que fora assinado pelos Estados, responsabilizando-os pelo eventual descumprimento.

Para o Estado brasileiro, se mostra essencial o papel da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, responsáveis por averiguar a responsabilidade do Brasil em decorrência da omissão ou ação de atos por agentes estatais que violem os direitos humanos.

Essa possibilidade de responsabilização, corroborando com a expressa aceitação do Brasil à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, implica em um novo modo de agir em relação aos atos externos, incorporando ao cotidiano nacional o respeito às obrigações internacionalmente assumidas. Submetem a este crivo, os atos dos Três Poderes, não importando na seara internacional, como se organiza o Estado, pois o mesmo é considerado uno e indivisível não podendo utilizar suas dissonâncias para fugir do compromisso assumido internacionalmente.

Destarte, pouco importa se o desrespeito partiu do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário, pouco importando ainda, se o ato está dentro do ordenamento jurídico nacional, pois para a jurisdição internacional só interessa averiguar se os compromissos assumidos espontaneamente estão sendo cumpridos.

Não se pode olvidar que o compromisso externo, de certa forma, reforça o compromisso interno, pois a atuação internacional requer a insuficiência dos meios internos, impondo um esgotamento dos recursos locais de proteção aos direitos humanos. Tal esgotamento representa o reconhecimento de que a instância internacional somente deve atuar após ter dado ao Estado a chance de fazer valer suas regras internas, coibindo e corrigindo as graves violações aos direitos humanos.

As medidas coercitivas impostas pelas instâncias internacionais visam a regularização da situação e a proteção dos direitos que foram violados, podendo citar como exemplo de medidas punitivas, a cessação imediata do ilícito, a satisfação perante o órgão internacional, a indenização e as garantias de não-repetição do ato. Ressalta-se que há uma necessária gradação nas formas de reparação e de indenização.

Neste diapasão, a possibilidade de deslocamento de competência introduzida pela Emenda Constitucional nº 45 recebeu diversas críticas, as quais sustentavam ofensas ao pacto federativo, ao juiz natural, aos princípios da legalidade e do devido processo legal, além de outros argumentos supramencionados. Tais ponderações evocam dois alertas importantes: o primeiro se refere ao excesso de críticas pelo uso de expressões indeterminadas; o segundo alerta se faz necessário pelo suposto entendimento de que os princípios do juiz natural, do pacto federativo e do devido processo legal teriam um grau de proteção tamanho que impossibilitaria uma nova leitura no sistema constitucional, pautada pela razoabilidade e pela proporcionalidade. Ressalta-se que os conceitos indeterminados, por vezes tão criticados, visam garantir que o texto constitucional seja maleável ao avanço social.

Por todo o exposto, é patente que não há violação ao princípio do pacto federativo, uma vez que o federalismo contemporâneo busca um modelo de cooperação entre seus entes, relembrando que a União é que será responsabilizada internamente pelas violações que forem praticadas dentro de seus estados-membros.

Não se verifica, também, qualquer violação ao princípio do juiz natural, eis que não há a criação de um juízo de exceção, mas sim, a possibilidade de deslocamento para um Tribunal previamente conhecido. Ademais, o princípio do juiz natural visa garantir um julgamento imparcial dentro das regras previamente conhecidas. Ora, mesmo com o deslocamento para a Justiça Federal, não há de se falar em julgamento parcial, tampouco em ofensa à legislação pátria em vigor. O que se verifica é apenas uma redistribuição da competência por critérios assumidos previamente pela Constituição Federal.

O uso da expressão “grave violações aos direitos humanos”, considerada por alguns como genérica em demasia, não se diferencia de tantos outros conceitos indeterminados presentes no texto Constitucional. Fato é, que a Constituição Federal empregou um termo cujo conteúdo deverá ser analisado diante do caso concreto, evitando seu uso indiscriminado, mas assegurando a sua utilidade.

O devido processo legal e a ampla defesa do requerido estarão resguardados diante da suscitação do incidente de deslocamento, tendo em vista que o mesmo terá interesse legítimo a ser defendido e deverá ser ouvido pelo Superior Tribunal de Justiça.

O incidente de deslocamento de competência se baseia em três fundamentos basilares, três requisitos: a identificação da grave violação aos direitos humanos; o compromisso internacional assumido; a incapacidade do estado-membro em oferecer resposta oportuna e adequada. Todavia, para o efetivo deslocamento faz-se necessário que esses três requisitos coexistam no mesmo caso concreto.

Pode-se realizar uma comparação do incidente de deslocamento a um sistema de freios e contrapesos, onde o controle recíproco acaba por induzir atuações preventivas, que evitam a ocorrência do ilícito. A mera possibilidade de deslocamento tem o condão de forçar o estado-membro a adotar medidas efetivas, visando evitar a perda da competência.

Analisando a constitucionalidade da federalização, deve-se ater ao seu elemento diferencial, o ponto de inflexão que demande a extraordinária necessidade de alteração de competência. Por este motivo, o texto constitucional deixou de definir o que seriam “graves violações aos direitos humanos”, transmitindo a noção de que o fato por si só já reúne características que ensejem a intervenção da Justiça Federal.

Pelo estudo dos casos em que fora suscitado o incidente, infere-se que tais características derivam da conjugação de várias situações, como o contexto em que atuava a vítima em defesa dos direitos humanos, a vinculação da ofensa a uma reiterada atuação estatal ilícita ou, até mesmo, atos constantes de racismo ou xenofobia.

Todos estes exemplos denotam que o conceito de graves violações representa tão somente aos fatos que se subtraem à normalidade, ao conjunto de situações rotineiras, impedindo que a federalização seja banalizada.

A federalização dos crimes graves contra os direitos humanos não será um instrumento salvacionista de todos os problemas do judiciário brasileiro. Não serão a Justiça Federal, a Policia Federal e o Ministério Público Federal que irão acabar com a crescente impunidade no Brasil. É cediço que os estados-membros possuem plena capacidade para investigarem e julgarem os casos de graves violações aos direitos humanos, sendo inegável que têm juízes capacitados, policiais preparados e promotores atuantes. Entretanto, toda regra possui sua exceção, e a experiência concreta do país demonstra que a transferência para a Justiça Federal é recomendada face à impunidade, à excessiva demora e ao envolvimento de agentes estatais nos crimes.

Por derradeiro, é oportuno que o incidente de deslocamento de competência seja considerado como um instrumento de fortalecimento dos esforços conjuntos dos estados-membros e da União, na busca incessante e essencial para a concretização dos direitos assegurados pela Constituição, tornando realidade o ideal preconizado como dignidade da pessoa humana em seu mais amplo escopo, não permitindo a banalização ou vulgarização o incidente, devendo ser utilizado apenas quando não houver no plano local, meios hábeis ou eficazes para a apuração, persecução e processamento de graves crimes contra os direitos mais básicos do ser humano.

 

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Notas:
[1] Trabalho orientado pela Profa. Volneida Costa. Professora universitária em cursos de graduação e pós-graduação na área jurídica. Doutora e Mestre em Direito pela UFMG, graduada em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; (1994) e em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (1993).
[2] ARENDT, Hanna. As origens do Totalitarismo, tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro, 1979, p. 32.
[3] DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e cidadania. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2004, p.12.
[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5.
[5] idem, ibidem p. 6.
[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre os Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.9.
[7] PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o princípio da Dignidade Humana. In: PAULA, Alexandre Sturion de. (Coord.). Ensaios Constitucionais de Direitos Fundamentais. Campinas: Servanda, 2006, p. 216.
[8] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In. SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (coord.) Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.196.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 35.
[10] Idem, Ibidem. p.47.
[11] SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional.Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.673.
[12] PAULA, Alexandre Sturion de. Hermenêutica Constitucional: instrumento de efetivação dos Direitos Fundamentais. In: PAULA, Alexandre Sturion de. (Coord.). Ensaios Constitucionais de Direitos Fundamentais. Campinas: Servanda Editora, 2006, p. 41.
[13] SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p. 37.
[14] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.  10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.519.
[15] Idem, Ibidem. p.523.
[16] Idem, Ibidem. p.525.
[17] BOBBIO, Norberto. op. cit. p. 6
[18] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 37.
[19] CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 317.
[20] PIOVESAN, Flávia; Federalização de crimes contra os direitos humanos. IBCCrim: São Paulo, Revista Brasileira de Criminalística nº 54 – Maio-Junho / 2005. p.179.
[21] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional:  a exigência da federalização.  Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/militantes/flaviapiovesan/flavia88.html>. Acesso em: 18 jul. 2011.
[22] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional:  a exigência da federalização.  Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/militantes/flaviapiovesan/flavia88.html>. Acesso em: 19 jul. 2011.
[23] MOREIRA, Nelson Camatta. Sistema normativo de proteção dos direitos humanos: a interação entre os tratados internacionais de direitos humanos e o ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 3, nº 11, p. 124-137, 2003. p. 127.
[24] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. Justiça e Democracia. São Paulo, nº 4, 2001. p. 133-160.
[25] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o principio da dignidade humana. Revista do Advogado. São Paulo, v. 23, nº 70, p. 34-42, jul 2003, p.39.
[26] Idem. Ibidem. p.41.
[27] ROLIM, Marcos. Atualidade dos Direitos Humanos. Marcos Rolim, Brasília, 1998. Seção Ensaios. Disponível em: <http://www.rolim.com.br/ensaio5.htm.> Acesso em: 20 jun. 2011.
[28] SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit. p. 39.
[29] BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil – Emenda Constitucional nº 1/1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 10 jun. 2011.
[30] BRASIL. Proposta de Emenda Constitucional nº 368-A. Atribui competência à Justiça Federal para julgar os crimes praticados contra os Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=24992>. Acesso em: 10.jun. 2011
[31]BRASIL. Proposta de Emenda Constitucional nº 96/1992. Introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14373>. Acesso em: 12.jun. 2011
[32] BRASIL. Emenda Constitucional nº 45/2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm>. Acesso em: 12.jun. 2011
[33] BONAVIDES, Paulo. op. cit.. p.523.
[34] BRASIL. Lei nº 10.446 de 8 de maio de 2002. Dispõe sobre as infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para os fins do disposto no inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição. Diário Oficial da União, Brasília 09 mai. 2002.
[35] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed.. São Paulo: Saraiva, 2011. p 503.
[36] ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 687, 23 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762>. Acesso em: 02 jun. 2011.
[37] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o principio da dignidade humana. Revista do Advogado. São Paulo, v. 23, nº 70, p. 34-42, jul 2003, p.40.
[38] LENZA, Pedro. op. cit. p.440.
[39] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional:  a exigência da federalização.  Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/militantes/flaviapiovesan/flavia88.html>. Acesso em: 18 jul. 2011.
[40] CAZETTA, Ubiratan. Direitos humanos e federalismo: o incidente de deslocamento de competência. São Paulo: Atlas, 2009, p. 151.
[41] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.   
[42] O defensor de direitos humanos e ex-vereador Manoel Mattos foi executado na noite de 24 de janeiro de 2009, com dois tiros de espingarda calibre 12, no município de Pitimbú, praia de Acaú, litoral sul da Paraíba. Ele foi vereador e denunciava a atuação de grupos de extermínio que teriam assassinado adolescentes, homossexuais e supostos ladrões nos municípios de Pedras de Fogo (PB), Itambé e Timbaúba (PE), na divisa dos dois estados. Quando foi assassinado, Manoel Mattos deveria estar sob proteção policial, conforme entendimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Suspeita-se que mais de duzentas execuções tenham sido cometidas pelos grupos de extermínio enfrentados publicamente por Manoel Mattos. Por se tratar de caso de grave violação a direitos humanos, entendendo que existiam inúmeros processos e inquéritos arquivados sem algum motivo justificável, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o crime contra o ex-vereador Manoel Mattos será julgado pela Justiça Federal. O assassinato ocorreu em janeiro de 2009 e a apuração do episódio e do envolvimento de cinco suspeitos ocorreria na Justiça estadual da Paraíba, caso a Procuradoria-Geral da República (PGR) não tivesse pedido a federalização.
[43] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Deslocamento de Competência nº 2 – DF. Relator a Laurita Vaz. Brasília, 27 out. 2010.  
[44] BRASIL. Proposta de Emenda Constitucional nº 96/1992. Introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário. Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14373>. Acesso em: 12.jun. 2011
[45] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.   
[46] BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.
[47] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal – Incluindo Reforma do Judiciário. 4ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 202.
[48] CAZETTA, Ubiratan. op. cit., p. 151.
[49] BONSAGLIA, Mario Luiz. Intervenção federal e direitos humanos: Dicionário de direitos humanos. Disponível em: <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Federaliza%C3%A7%C3%A3o+dos+crimes+contra+os+direitos+humanos>. Acesso em: 10 mar. 2012.
[50] LENZA, Pedro. op. cit. p. 339.
[51] PIOVESAN, Flávia. VIEIRA, Renato Stanziola. Federalização dos crimes contra os direitos humanos: o que temer? Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 150, p. 8-9, mai. 2005. p.8
[52] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.
[53] idem. ibidem. jun. 2005.
[54] RAMOS, André de Carvalho. Reflexões sobre as vitórias do caso Damião Ximenes. Revista Consultor Jurídico, 8 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2006-set-08/reflexoes_vitorias_damiao_ximenes>. Acesso em: 05 jan. 2012.
[55] CAZETTA, Ubiratan. op. cit. p.159.
[56] ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 687, 23 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762>. Acesso em: 02 jun. 2011.
[57] A freira Dorothy Stang, de setenta e três anos, chegou ao Brasil em 1966 e desde então passou a atuar na questão de conflitos agrários nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, principalmente no que diz respeito ao assentamento de famílias em regiões rurais e na preservação da floresta amazônica. A missionária atuava também em questões sociais, mostrando intensa preocupação na área da educação. Sua atuação foi de encontro aos interesses dos fazendeiros e grileiros da região, o que fez com que por inúmeras vezes a missionária recebesse ameaças de morte. Dentro desta situação, Dorothy Stang procurou a imprensa e as autoridades regionais a fim de pedir proteção, mas não houve qualquer atitude concreta para solucionar o problema, o que acarretou no assassinato da norte-americana em 12 de fevereiro de 2005 no município de Anapu. O Ministério Público do Pará denunciou os envolvidos. São eles: Vitalmiro Bastos Moura, Amair Feijoli , Rayfran Neves Salles e Clodoaldo Batista. O homicídio teve grande repercussão internacional, tendo sido foco da manifestação de diversas organizações não-governamentais, como por exemplo, a ONG Anistia Internacional, que condenou o ocorrido com a missionária norte-americana, afirmando que os governos federal e do Estado do Pará precisam acabar com a violência e com o medo.
[58] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.  
[59] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Deslocamento de Competência nº 2 – DF. Relatora Laurita Vaz. Brasília, 27 out. 2010.
[60] CAZETTA, Ubiratan. op. cit. p. 69.
[61] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2010. p.115.
[62] SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Jurisdição e direitos fundamentais. Porto Alegre: Escola Superior da magistratura. Livraria do Advogado, 2006, p. 51.
[63] FERREIRA, Luiz Alexandre Cruz; TÁRREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco. Reforma do Poder Judiciário e Direitos Humanos. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. et al. (Coord.). Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: RT, 2005. p. 447-466. p. 462.
[64] HABER, Lilian Mendes; MASSOUD, Carolina Ormanes; ROCHA, Ibraim José das Mercês. Federalização dos crimes contra direitos humanos. In: VELOSO, Zeno; SALGADO, Gustavo Vaz (Coord.). Reforma do judiciário comentada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 19-43. p. 27.
[65] FERREIRA, Luiz Alexandre Cruz; TÁRREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco. op. cit. p. 462.
[66] TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a Justiça: comentários completos à EC n. 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 52.
[67] MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Millennium, 2000. p. 67.
[68] BARBOSA, Rui. Organização das finanças republicanas. Sessão de 16 de novembro de 1890. Compilado em: 3 jan. 2003. Disponível em: <http://www.pensadoresbrasileiros.home.comcast.net/RuiBarbosa>. Acesso em: 10 mai. 2012.
[69] CAZETTA, Ubiratan. op. cit. p. 98
[70]  idem, ibidem, p. 65.
[71] ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 254.
[72] ARTEIRO, Rodrigo. O incidente de deslocamento de competência e o federalismo cooperativo na defesa dos direitos humanos. Disponível em: <http://ibccrim.org.br/site/artigos/capa.php?jur_id=7771>. Acesso em: 24 jun. 2011.
[73] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3.367. Relator: Min. Cezar Peluzo. Diário da Justiça. Brasília 22 set. 2006.
[74] MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 109.
[75] CAZETTA, Ubiratan. op. cit., p. 142.
[76] Idem, ibidem, p. 143.
[77] MARQUES, José Frederico. Juiz Natural. Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 46, p. 447. 
[78] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, 6ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 66.
[79] GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em sua unidade, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 39.
[80] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.
[81] PIOVESAN, Flávia. VIEIRA, Renato Stanziola. Federalização dos crimes contra os direitos humanos: o que temer? Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 150, p. 8-9, mai. 2005. p.8
[82] ARAS, Vladimir. Direitos humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Revista Consultor Jurídico, maio 2005. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/34833,1>. Acesso em: 21 jul.2011.
[83] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 67.851/GO. Relator: Min. Sydney Sanches. Diário da Justiça. Brasília 18. mai. 1990.
[84] GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
[85] BARROSO, Luis Roberto. op. cit. p. 30
[86] idem, ibidem. p. 30
[87] CAZETTA JUNIOR, José Jesus. A ineficácia do precedente no sistema brasileiro de jurisdição constitucional. 2004. 203 f. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2004.
[88] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pleno. MS 23.452. Relator Min. Celso de Mello. Diário da Justiça. Brasília, j. 16 set. 1999, publicado 12 mai. 2000, p. 20.
[89] BARROSO, Luis Roberto. op. cit. p. 32
[90] BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 362-363.
[91] CAZETTA, Ubiratan. op. cit. p. 92.
[92] Trata-se da chacina que ocorreu nas dependências da penitenciária Urso Branco, no estado de Rondônia,  após a tentativa de fuga em massa, onde alguns dos 1,3 mil presos teriam assassinados outros 27 detentos. O caso é o maior massacre de presos do país depois do Carandiru, e ganhou repercussão internacional pela brutalidade dos assassinatos, que envolveram até decapitação, choque elétrico, e enforcamento. Em 2004, o Ministério Público ofereceu denúncia contra 44 presos e 6 agentes públicos: o então diretor geral do presídio, o ex-diretor de segurança, o ex-Superintendente de Assuntos Penitenciários e o ex-gerente do sistema penitenciário de Rondônia, além de dois oficiais da Polícia Militar do estado.
[93] idem, ibidem, p. 93-94.
[94] LENZA, Pedro. op. cit. p. 497-498.
[95] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição brasileira de 1988. RT – Revista dos Tribunais, ano 94, v. 833, p. 41-53, mar. 2005. p. 42
[96] ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 687, 23 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762>. Acesso em: 02 jun. 2011.
[97]  REZEK, J. F. Direito internacional Público: curso elementar. 9. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 150.
[98] Idem, ibidem, p. 152.
[99] Trata-se da morte de dezenove sem-terra que ocorreu em 17 de abril de 1996 no município de Eldorado dos Carajás, no sul do Pará. O confronto ocorreu quando aproximadamente 1.500 sem-terra que estavam acampados na região decidiram fazer uma marcha em protesto contra a demora da desapropriação de terras, principalmente as da Fazenda Macaxeira. A Polícia Militar foi encarregada de tirá-los do local, porque estariam obstruindo a rodovia BR-155, que liga a capital do estado Belém ao sul do estado levando ao conflito mencionado.
[100] Na madrugada do dia 23 de julho de 1993, aproximadamente à meia-noite, vários carros pararam em frente à Igreja da Candelária. Logo após, policiais militares abriram fogo contra mais de setenta crianças e adolescentes que estavam dormindo nas proximidades da Igreja. Como resultado da chacina, seis menores e dois maiores morreram e várias crianças e adolescentes ficaram feridos.
[101] GAJOP, Gabinete de Assessoria Jurídica às organizações populares. Direitos Humanos Internacionais: construção de bases para o monitoramento das recomendações da ONU ao Brasil. Recife: dhINTERNACIONAL, 2010. p.28.
[102] idem, ibidem,. p.29.
[103] idem. ibidem. p. 32.
[104] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.  op. cit., p.395.
[105] PIOVESAN, Flávia. VIEIRA, Renato Stanziola. op. cit. p. 9.
[106] Idem, ibidem, p. 8.
[107]  Idem. p. 9
[108] JOBIM, Nelson. apud SCHREIBER, Simone; COSTA, Flávio Dino Castro e. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Boletim dos Procuradores da República, São Paulo, v. 5, nº 53, p. 19-25, set. 2002. p. 20.
[109] AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Princípios de processo civil na Constituição Federal. Disponível em: <http://www.infojus.com.br/area4/julioamaral3.htm>. Acesso em: 21 jul.201.
[110] JOBIM, Nelson. apud SCHREIBER, Simone; COSTA, Flávio Dino Castro e. op. cit. p. 22.
[111] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional:  a exigência da federalização.  Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html>. Acesso em: 18 jul. 2011.
[112] BONAVIDES. op. cit. p. 40.
[113] BRASIL. Supremo Tribunal Fderal, Intervenção Federal nº 2.915-5; SP, Tribunal Pleno, rel. p/ o acórdão min. Gilmar Mendes, j. 03/02/2003 e publicado no DJU de 28/11/2003 apud MALULY, Jorge Assaf. A Federalização da competência para julgamento dos crimes praticados contra os Direitos Humanos. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 12, nº 148, p. 4-6, mar. 2005. p. 6.
[114] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.
[115] MENDES JÚNIOR. João. Reflexão – O Poder Judiciário por João Mendes Júnior. Disponível em: <http://assetj.jusbrasil.com.br/noticias/2991556/reflexao-o-poder-judiciario-por-joao-mendes-jr>. Acesso em: 17 jan. 2012.
[116] CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 58.
[117] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 304.
[118] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional:  a exigência da federalização.  Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html>. Acesso em: 18 jul. 2011.
[119] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 122. D.J. 07 dez 1994.
[120] ARAS, Vladimir. Direitos humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Revista Consultor Jurídico, maio 2005. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/34833,1>. Acesso em: 22 jul.2011.
[121] idem.
[122] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção. IDC nº 01. Ementa: […] Relator: Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 08 jun. 05. DJ de 10.10.05, p. 217.   

Informações Sobre o Autor

José Gabriel Pontes Baeta da Costa

Graduado em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


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