Mistanásia: Um Olhar Sobre a Dignidade da Pessoa Humana no Sistema Único de Saúde

MISTANASIA: A LOOK AT THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON IN THE SINGLE HEALTH SYSTEM

 

Layze Castro Moraes [1]

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Fábio Barbosa Chaves[2]

 

RESUMO

A Mistanásia exige uma abordagem sobre mortes provocadas pela conduta omissiva da estrutura hospitalar. O direito à saúde, o direito à liberdade de pensamento, a garantia do exercício da sua auto deliberação, são abordagens necessárias para o enfrentamento entre o paciente acometido de mal relacionado à saúde, impossível de reversão considerando os recursos disponíveis naquele determinado momento. O juízo de ponderação, adotado pelo direito brasileiro a partir de uma nova leitura do texto constitucional e das demais normas que formam o sistema jurídico, se torna necessário a partir de um contexto de conflito, aparente ou não. Os aspectos culturais e históricos não necessários para compreensão da abordagem, distantes de julgamentos pré-estabelecidos da sociedade, e alinhados àquilo que o Poder Judiciário entende  como sendo o método pós-positivista de interpretação da norma. A realidade brasileira, no que pertine ao sistema único de saúde, deve necessariamente ser abordada.

Palavras-chave: Mistanásia. Dignidade da pessoa humana. Sistema único de saúde.

 

ABSTRACT

Mistanasia requires an approach on deaths caused by the omissive conduct of the hospital structure. The right to health, the right to freedom of thought, and the guarantee of the exercise of self-determination are necessary approaches for coping with the patient suffering from health-related illness, which can not be reversed considering the resources available at that particular moment. The weighing judgment, adopted by Brazilian law based on a new reading of the constitutional text and other norms that form the legal system, becomes necessary from a context of conflict, apparent or not. The cultural and historical aspects not necessary to understand the approach, far from pre-established judgments of society, and aligned with what the Judiciary understands as the post-positivist method of interpretation of the norm. The Brazilian reality, as it pertains to the single health system, must necessarily be addressed.

Keywords: Mistanásia. Dignity of human person. Health Unic System.

 

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3. A Saúde e o Sistema Único de Saúde. 4. Morrer Com Dignidade: Diferença Entre Eutanásia, Ortotanásia, Distanásia e Mistanásia. 5. A Mistanásia, o SUS e a Desigualdade Social. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.

 

 INTRODUÇÃO

A origem da palavra mistanásia pode ser retirada do grego, mis que significa infeliz, e thanatos que quer dizer morte, podendo ser compreendido como “uma morte infeliz”. Esse termo é utilizado quando referido  à morte de pessoas que quando excluídas socialmente[3], morrem em razão da falta de tratamento de saúde adequado.

As vítimas da mistanásia são aquelas pessoas que não dispõem de condição financeira para custearem cuidados com a própria saúde e ficam à mercê do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Há em todos os estados da federação, inúmeras demandas judiciais que visam compelir o Estado a prestar uma saúde digna, tanto no âmbito da prestação dos serviços quanto ao fornecimento de medicamentos indispensáveis à manutenção da vida.

Dessa forma, o presente artigo visa apontar os fatores que contribuem para essa banalização da vida provocada pela falta de efetividade das políticas públicas concernentes à saúde, com foco principal no princípio da dignidade da pessoa humana e sua violação.

 

  1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948, traz em seu artigo 1º que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, logo, de acordo com esse pacto, todos os homens são titulares de direitos fundamentais.

Para ROCHA (2004, p.17), se comparado o texto ao da nossa Constituição de 1988, que optou por “todos são iguais perante a lei […]”, verifica-se que a diferença se encontra na expressão “todos”. No texto da ONU o significado está entendido como:“… significa cada um e todos os humanos do planeta, os quais haverão que ser considerados em sua condição de seres que já nascem dotados de liberdade e igualdade em dignidade e direitos.

De Acordo com CHAVES CAMARGO (1994, p. 27,28), pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser.

Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, vieram os princípios fundamentais, harmonizando e servindo de coerência e consistência ao complexo normativo da Lei Maior, além de estabelecer as bases e os fundamentos da nova ordem constitucional.

É indiscutível a importância desses princípios constitucionais na função ordenadora do Estado, por expressarem o conjunto de valores que inspirou o Constituinte na elaboração da Constituição, orientando ainda as suas decisões políticas fundamentais.

Importante mencionar que são os princípios constitucionais que orientam a ação dos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário), estabelecendo seus limites e sua atuação (aplicação da lei). Sua função hermenêutica representa um limite protetivo contra a arbitrariedade, como também vem para dirimir dúvidas interpretativas no sentido de determinada disposição de norma ou ainda integrativa ou supletiva, preenchendo lacunas deixadas pelas normas constitucionais.

A CRFB/88 apresenta como característica a clareza no que tange seu compromisso com a dignidade humana, em consequência de um histórico recente da história brasileira tendo em vista que a carta foi elaborada num contexto de pós-ditadura e de abertura política, aliados ao profundo sentimento da necessidade de solidariedade entre os povos. Dessa maneira, iniciou-se um novo tempo de garantias individuais, fruto  de muita luta contra abusos, até então ser promulgado esse texto.

Os direitos advindos da dignidade humana aderem à pessoa, independentemente de qualquer reconhecimento pela ordem jurídica; por isso podem ser oponíveis tanto ao Estado como à comunidade internacional e, ainda, aos demais indivíduos do grupo social.

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Na visão de NOBRE JÚNIOR (2000, p. 04), respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida; c) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições sub humanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares.

Nesse diapasão, podemos trazer o pensamento de SARLET (2001, p.03),  segundo o qual a Constituinte de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.

 

  1. A SAÚDE E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

De acordo com a CRFB/88, em seu art. 196, a “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Dessa forma, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país.

Conforme dados do portal do Ministério da Saúde (BRASIL, 2018), no período anterior a CRFB/88, o sistema público de saúde prestava assistência apenas aos trabalhadores vinculados à Previdência Social, aproximadamente 30 milhões de pessoas com acesso aos serviços hospitalares, cabendo o atendimento aos demais cidadãos às entidades filantrópicas.

A criação do SUS proporcionou o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção integral à saúde, e não somente os cuidados assistenciais, passou a ser um direito de todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida (BRASIL,2018).

Após a CRFB/88 e com o advento da  Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 199, Lei Orgânica da Saúde, intensificam debates já existes acerca do conceito. Nesse contexto, entende-se que saúde não se limita apenas a ausência de doença, considerando, sobretudo, como qualidade de vida, decorrente de outras políticas públicas que promovam a redução de desigualdades regionais e promovam desenvolvimentos econômico e social.

Dessa maneira, o SUS, em conjunto com as demais políticas, deve atuar na promoção da saúde, prevenção de ocorrência de agravos e recuperação dos doentes.  A gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes da Federação: a União, os Estados e os Municípios.

A rede que compõem o SUS é ampla e abrange tanto ações, como serviços de saúde. Ela engloba a atenção básica, média e alta complexidades, os serviços urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica.

De acordo com dados constantes no portal do Ministério da saúde, ad princípios doutrinários dos sus referem-se aos ideais do Sistema Único de Saúde e é  a partir deles que as estratégias de ação são pensadas. Assim, os princípios doutrinários são:

Universalidade: o Estado deve garantir que todos os cidadãos tenham acesso aos serviços de saúde oferecidos, independente de quaisquer características sociais ou pessoais – gênero, raça, profissão, entre outras.

Equidade: busca diminuir as desigualdades no atendimento e, ao contrário do que parece, significa o respeito às diferenças e às distintas necessidades dos pacientes. Seria “tratar desigualmente os desiguais”, focando esforços especiais onde há maior carência. Um exemplo disso é o direito ao atendimento preferencial de idosos acima dos 60 anos, devido à fragilidade de sua saúde;

Integralidade: políticas públicas, tais como educação e preservação ambiental, para assegurar a garantia de qualidade de vida à população.

Vale elencar também os princípios organizativos do SUS, os quais são maneiras de concretizar os ideais do SUS na prática:

Participação Popular: como já vimos, a população teve um papel importante no processo de elaboração do SUS. Justamente por isso, um dos princípios visa a garantir a continuidade dessa participação por meio da criação dos Conselhos e da realização das Conferências de Saúde. Tais espaços são destinados ao controle e avaliação das políticas de saúde, assim como à formulação de novas estratégias.

Descentralização e Comando Único: dispõe sobre a distribuição de poderes e responsabilidades entre os três níveis de governo (municipal, estadual e federal) de modo a oferecer um melhor serviço de saúde. No SUS, essa responsabilidade deve ser descentralizada até o nível municipal, ou seja, o objetivo é que o município – por si só – tenha condições técnicas, gerenciais, administrativas e financeiras para oferecer os devidos serviços. O princípio da descentralização resulta em outro princípio: o do mando único. O mando único permite a soberania de cada esfera do governo para tomar decisões, desde que sejam respeitados os princípios gerais e a participação social.

Regionalização e Hierarquização: é como o princípio da integralidade torna-se real, já que dentro de uma determinada área geográfica os serviços de saúde devem ser organizados conforme níveis crescentes de complexidade. Isso garante a articulação entre os serviços existentes dentro dessa região de forma a cobrir os diferentes graus de necessidade da população.

De acordo com ROCHA ( 1999, p. 43) A conceituação de saúde deve ser entendida como a concretização da sadia qualidade de vida, uma vida com dignidade, a ser continuamente afirmada, diante da profunda miséria por que atravessa a maioria da nossa população. Por conseguinte, a discussão e a compreensão da saúde passa pela afirmação de cidadania plena, e pela aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais na Constituição Federal de 1988.

Em se tratando de direitos sociais, a saúde está inserida na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental, que são intangíveis e irredutíveis e providos da garantia da suprema norma, o que torna inconstitucional qualquer ato que porventura tente restringi-la ou aboli-la.

Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana como um princípio constitucional confere unidade de sentido, condicionando a interpretação das normas junto aos direitos e garantias fundamentais, para o presente estudo, a saúde. Mas o que é certo é que o princípio da dignidade da pessoa humana tem um importante papel a cumprir, principalmente no caso dos direitos fundamentais sociais.” À medida que o princípio da dignidade da pessoa humana determina a proteção da integridade física e moral do ser humano percebe-se que o direito à saúde reflete concretizações diretas a tal princípio” (SILVA, 2014).

 

  1. MORRER COM DIGNIDADE: DIFERENÇA ENTRE EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA, DISTANÁSIA E MISTANÁSIA 

Prediz a Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, que a inviolabilidade da vida é um dos direitos fundamentais do ser humano, pelo que, a todos é garantida a igualdade perante a lei, sem qualquer distinção.

Art. 5º, caput Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 1988)

Logo, sabendo que a vida é o maior bem que o ser humano pode ter, razão pela qual a CRFB ressalta sua inviolabilidade, o ordenamento jurídico brasileiro fixou diversas formas de proteção e garantia à vida desde o momento de sua concepção, tanto âmbito penal com a proibição do aborto, ou mesmo no âmbito civil, garantindo-se ao nascituro os alimentos gravídicos.

De início cabe conceituar a eutanásia que segundo VELOSO (2007, p. 381) “é a conduta de abreviar a morte, em virtude de compaixão, ante um paciente incurável, vítima de intensa dor física ou psíquica e com a iminente certeza de morte”.

Assim, consiste em adiantar a morte de um paciente em estado terminal ou sujeito a dores fortes, sofrimentos psicológicos e físicos que implicam e desejam uma morte suave e sem dor, evitando assim o prolongamento da vida que para esse paciente não faz mais sentido.

A prática da eutanásia é considerada no Brasil como homicídio, sendo também expressamente vedada no âmbito do Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.931/2009, conforme abaixo enunciado:

É vedado ao médico:

[…]

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

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Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

A medicina é uma das práticas humanas que colocam o profissional diante de seus mais íntimos conflitos, ou seja, em poucas atividades o indivíduo encontra-se tão incisivamente sujeito às pressões, de várias ordens, e ao desgaste profissional (Machado, 1997).

Ainda de acordo com MACHADO (1997) a peculiar face de agir, na maior parte das vezes, nas condições em que pulula a dor – momento em que se rompe o equilíbrio próprio à saúde –, faz do médico um profissional permanentemente confrontado com as indagações evocadas pelo sofrimento, em suas mais diferentes facetas.

De acordo com NEUKAMP (1937), a abreviação do momento da morte poderia ocorrer de distintas formas, em relação ao ato em si, de acordo com uma distinção já clássica, a saber:

1) eutanásia ativa, ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins humanitários (como no caso da utilização de uma injeção letal);

2) eutanásia passiva, quando a morte ocorre por omissão em se iniciar uma ação médica que garantiria a perpetuação da sobrevida (por exemplo, deixar de se acoplar um paciente em insuficiência respiratória ao ventilador artificial);

3) eutanásia de duplo efeito, quando a morte é acelerada como consequência de ações médicas não visando ao êxito letal, mas sim ao alívio do sofrimento de um paciente (por exemplo, emprego de uma dose de benzodiazepínico para minimizar a ansiedade e a angústia, gerando, secundariamente, depressão respiratória e óbito).

Por sua vez, a distanásia apresenta-se como uma situação inversa da encontrada na ortotanásia, sendo inclusive vedada, pois se caracteriza pelo prolongamento excessivo da vida de pessoas que se encontram em processo de morte, ferindo a dignidade dos pacientes e daqueles que com ele também sofrem, em geral, seus familiares. Nas palavras de Javier Gafo:

O prefixo grego dis teria o sentido de “deformação do processo de morte”, de prolongamento, de dificuldade. Por isso, a palavra distanásia significaria o prolongamento exagerado do processo de morte de um paciente e seria quase uma crueldade terapêutica, porque provocaria uma morte cruel ao doente. […] O prefixo grego orto daria o sentido de “morte digna”. Ortotanásia tem o sentido da morte “a seu tempo”, sem abreviar propositadamente nem prolongar desproporcionalmente o processo de morrer. Essa ortotanásia é diferente da eutanásia – na nova terminologia que propomos -no sentido em que não pretende pôr termo à vida de um paciente.

Já a mistanásia, é o termo que denomina a morte de milhares de pessoas “sem nenhuma assistência, deixadas à própria sorte, em lixões, embaixo de viadutos, pontes, ruas e, principalmente, nos hospitais com corredores lotados, com pacientes moribundos e abandonados pelo Estado e por todos” (ARTIN apud NÒBREGA FILHO, 2016).

O termo foi criado por Martin (1998, p. 174) para destacar a impropriedade do uso corrente da expressão eutanásia social. Para o autor, a eutanásia, tanto em sua origem etimológica como em sua intenção, pretende ser um ato de misericórdia, quer propiciar ao doente que está sofrendo uma morte boa, suave e indolor. As situações a que se referem os termos eutanásia social e mistanásia, porém, não têm nada de boas, suaves, nem indolores.

 

  1. A MISTANÁSIA, O SUS E A DESIGUALDADE SOCIAL

Diariamente, é comum vermos os noticiários divulgando casos em que o cidadão, ao procurar os serviços básicos de saúde, em postos ou hospitais, depara-se com negativas ou mesmo omissão em seu atendimento, essa conduta quando não gera a morte, provoca danos muitas vezes irreversíveis àqueles que buscaram tal serviço.

A CRFB de 88 prevê, em seu art. 196, caput, que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”. Dessa maneira, estabelece, sobretudo que o acesso à saúde deve ser universal e igualitário.

Entretanto, alerta LAVOR (2018) que em que pese a norma constitucional estabelecer de forma expressa o direito à saúde e a facilitação de seu acesso a todos os indivíduos, não raras vezes, observamos a inauguração de hospitais sem o mínimo de infraestrutura para a demanda exposta, a existência de elevado número de profissionais da saúde mal remunerados e com sobrecarga de trabalho, a ausência de leitos para cidadãos que aguardam atendimento nos nosocômios públicos, além dos incontáveis pleitos de liminares judiciais a fim de que haja uma mínima tutela à vida, exemplos da omissão estatal em uma área fundamental, a saúde.

Ainda segundo LAVOR (2018) as denúncias que emanam de órgãos de fiscalização não param, especialmente dos Conselhos de Medicina, as quais, além de apresentarem a realidade dramática e cruel vivenciada pelas pessoas carentes doentes e o tratamento nada digno que lhes é ofertado pelo Estado, mostram a precariedade dos serviços experimentada pelos profissionais da saúde que laboram junto à rede pública, prestando serviços à exaustão física e psicológica, diante da falta de estrutura dos locais de trabalho.

Esses profissionais diante do quadro de caos de muitos hospitais e postos de saúde do Brasil, chegam ao ponto de se tornarem verdadeiros “juízes” do destino da vida de pessoas, tendo que optar qual vida salvar, infelizmente atribuindo a prevalência de uma vida sobre a outra, situação em que se verifica a mistanásia.

Ainda conforme o entendimento de LAVOR (2018) a mistanásia alcança sobremaneira aqueles que, em virtude de carência de recursos, sequer têm acesso aos serviços médicos básicos, restando sua prática em evidente violação a um dos fundamentos da República, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana por parte do Estado. A morte prematura de pessoas por ausência de um tratamento digno, lamentavelmente, acaba sendo banalizada.

Mesmo diante da pressão da mídia e ao mostrar o descaso por parte dos entes públicos responsáveis pela, além das ações promovidas pelo Ministério Público, Defensoria Pública, bem como das decisões do Poder Judiciário, percebe-se que o Estado  mantendo-se inoperante frente as demandas de pessoas carentes, permanecendo numa postura de “desprezar” os indivíduos que clamam, há décadas, por um tratamento minimamente digno, optando por justificar sua omissão com base na reserva do possível e olvidando do mínimo existencial.

De acordo com HÄRBELE (2003), o mínimo existencial possui, assim, uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social. Essa teoria não pode ser utilizada como forma de justificar, apenas com singelas alegações, a omissão do Estado no cumprimento de seus deveres constitucionais tendo em vista que essa surgiu em um contexto socioeconômico completamente diverso do brasileiro e seu critério norteador jamais foi exclusivamente o econômico, mas a razoabilidade e a proporcionalidade na realização de políticas públicas pleiteadas pela sociedade, razão pela qual é totalmente inaplicável em nossa realidade.

A mistanásia, prática vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, vai muito além de insuficiência financeira do Estado, ela é o resultado de um mau e cruel relacionamento humano, diante de um quadro de banalização da morte, mormente das mais carentes social e financeiramente, atingindo-se um processo de coisificação do indivíduo, em que sua vida não apresenta a devida relevância nem para o Estado, nem para a sociedade.

Dessa maneira, a ineficiência do Estado no âmbito da saúde pública resulta na institucionalização de um processo contínuo de mortes prematuras e desarrazoadas, as quais poderiam ser evitadas com os devidos cuidados médicos LAVOR (2018).

Assim, ainda segundo LAVOR (2018) para justificar as mortes por falta de um tratamento digno, o Estado utiliza-se da suposta impossibilidade financeira de arcar com os custos decorrentes de insumos, pessoal e tratamentos hospitalares.

Contudo, observamos que tal tentativa de repelir sua responsabilidade constitucional se apresenta inverossímil, porquanto notamos que vultuosos valores são alocados em despesas que não possuem prioridade frente a vida humana, como é o caso de gastos com publicidade institucional.

E por fim, desse modo, torna-se imperiosa a mudança de postura gerencial de recursos públicos pelo Estado, a fim de que as pessoas que recorrem ao Sistema Único de Saúde não sejam vítimas da mistanásia, sobretudo por entender que, além de afetar a dignidade dos pacientes, atinge severamente os próprios profissionais da saúde em sua dignidade pessoal e profissional, já que  submetidos a ambientes laborais com alto nível de estresse, bem como compelidos a optar por qual vida salvar, ante a ausência da estrutura material necessária.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível constatar a partir desse estudo que a mistanásia, como o fenômeno social perverso que é, corrói o delicado liame entre a dignidade humana, a cidadania e o respeito aos direitos fundamentais. Consiste num terrível e extemporâneo contraponto aos ideais históricos da humanidade, de liberdade, de igualdade e de fraternidade.

Por outro lado, o problema da mistanásia é como se fosse a ponta de um iceberg, ou seja, é a parte visível de problemas estruturais muito maiores, é a consequência deles. A Magna Carta positivou os direitos e garantias fundamentais, consagrando a dignidade da pessoa humana como fio condutor de todo o ordenamento jurídico.

A legislação infraconstitucional segue o mesmo norte, compatibilizando-se com a doutrina moderna, fruto de um longo processo sócio-histórico e alicerçada nas longas e árduas lutas da humanidade em defesa do reconhecimento de seus direitos. Mas a letra da lei não promove, por si só, a transformação da realidade social. Peca por sua ineficácia.

Por triste ironia, a Constituição cidadã não garante a formação de cidadãos. Urge uma reforma política do Estado que priorize a participação efetiva do povo na construção de uma democracia efetiva. Um Estado democrático realmente de direito, em que floresça uma cultura de intolerância à corrupção, aos desvios de verbas e à malversação dos recursos públicos.

É urgente a proposição e adoção de políticas públicas adequadas e consistentes, que promovam e garantam condições dignas de saúde, moradia, previdência e bem estar social. Urge o resgate da confiança dos cidadãos e a garantia de acesso de toda a população a uma justiça ágil, efetiva, eficiente e eficaz, gratuita ou, ao menos, não excludente.

 

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARTIN, Leonard M. apud NÓBREGA FILHO, Francisco Seráphico Ferraz da. Eutanásia e dignidade da pessoa humana: uma abordagem jurídico-penal. Disponível em:<http://www.ccj.ufpb.br/pos/contents/pdf/ bibliovirtual/dissertacoes-2008 /eutanasia-e-dignidade-da-pessoa-humana-uma-abordagem-juridico-penal.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-b-ab. Acesso em 01/10/2018.

CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994.

GAFO, Javier. apud  SANTOS, Jozabed Ribeiro dos; DUARTE, Hugo Garcez. Eutanásia: o direito de morrer à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 148, maio 2016. Disponível em: <http://ambitojuridico. com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17150&revista_caderno=27>. Acesso em 29/09/2018.

Häberle, Peter. El Estado Constitucional. Tradução de Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003..

MENDONÇA, Márcia Helena; SILVA, Marco Antônio Monteiro da. Vida, dignidade e morte: cidadania e mistanásia. Disponível em: <file:///C:/Users/chelp/Downloads/150-633-1-SM.pdf>. Acesso em: 30/09/2018.

NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Juris Síntese, 2000.

ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito de Saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e  coletivos.São Paulo: Ltr, 1999.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e CiênciaIn: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (coord.). O Direito à Vida Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004,

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

[1] Acadêmica do 10 período do Curso de Direito da Católica do Tocantins. E-mail [email protected]

[2] Doutor em Direito Privado pela PUC MINAS. Mestre em Direito e Relações Internacionais pela PUC GOIÁS. Especialista em Direito Processual pela UNAMA. MBA em Gestão Pública pela UNITINS. E-mail: [email protected]

[3] Por falta de um remédio; por falta de leitos em um hospital; por falta de uma máquina de realizar exames de tomografia, por exemplo.

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