Resumo: O presente trabalho tem como finalidade verificar a existência de pressupostos machistas em se tratando da dissolução da união estável sob o regime de separação de bens, quando um dos parceiros for sexagenário. Por meio da análise discursiva do acórdão do EREsp 1.171.820/PR, é possível compreender como, apesar de avanços dos direitos das mulheres no âmbito do Direito de Família, há evidentes resquícios do patriarcado nos votos de alguns dos ministros. A partir da compreensão da divisão sexual do trabalho e da desvalorização do trabalho feminino, abordamos a dificuldade em se comprovar o “esforço comum” por parte da mulher na construção do patrimônio do casal e como a exigência de tal comprovação pode acabar por limitar os direitos das mulheres.
Palavras-chave: Direito de família; união estável; sexagenário; esforço comum; trabalho doméstico; mulheres
Abstract: This study aims to verify the existence of sexist assumptions in the case of dissolution of the common-law marriage on the regime of separation of property, where one partner is in his sixties. Through the discursive analysis of EREsp 1171820/PR’s judgment, it is possible to understand how, despite advances in women's rights under family law, there are clear traces of patriarchy on the votes of some of the ministers. From the understanding of the sexual division of labor and the devaluation of women's work, we address the difficulty in proving the "common effort" for women in building the assets of the couple and how the requirement of such proof may limit women's rights.
Key-words: Family law; common-law marriage; sexagenarian; common effort; housework; women
Sumário: Introdução. 1. O caso em análise. 2. Institutos jurídicos que permeiam o caso. 3. Divisão sexual do trabalho. 4. Análise do acórdão. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O regime da separação obrigatória de bens na união estável da pessoa idosa é uma questão bastante controversa na jurisprudência. Até mesmo a própria aplicação deste regime de bens à união estável não é uma questão harmônica dentre os tribunais. No entanto, vem se firmando um sólido entendimento entre doutrina e jurisprudência de que este instituto se aplicaria à união estável, com a justificativa de que não fosse tornada mais vantajosa uma união informal em detrimento do casamento, que prevê a restrição da separação patrimonial caso um dos cônjuges seja idoso.
Com isso definido, um novo problema surge: na união estável regida pelo regime da separação obrigatória pode haver a comunicação dos bens adquiridos na constância da convivência? Há na jurisprudência entendimento reiterado e firmado na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal no sentido de que no regime de separação legal de bens, comunicam-se aqueles adquiridos na constância do casamento, os chamados aquestos. Aplicar-se-ia, assim, este enunciado também às uniões informais?
Acórdão recente do Superior Tribunal de Justiça, em sua Segunda Seção, determinou em sede de embargos de divergência que, na dissolução da união estável sob tal regime, é necessária a comprovação do esforço comum na produção do patrimônio para haver a comunicação deste. Ou seja, faz-se necessário provar que os bens adquiridos na constância da convivência são produtos do trabalho e economia de ambos, sob pena de aqueles não serem amealhados.
A tese do relator foi a de que o enunciado da Súmula da Suprema Corte não se aplica isoladamente ao caso, pois isso conduziria à ineficácia do regime de separação obrigatória de bens, transformando-o no regime da comunhão parcial de bens. Condicionar, então, a comunicação dos aquestos à comprovação do esforço comum seria uma forma de sintonizar a Súmula ao sistema legal de regime de bens do Código Civil e prestigiar a legislação.
A comprovação do esforço comum, no entanto, pode ser considerada uma imposição severa. Isso porque é intrínseco à convivência a dedicação mútua na construção e mantença da vida conjugal. Assim, a ideia de esforço comum não deve compreender apenas a contribuição patrimonial para a aquisição de bens, mas todo tipo de contribuição para a gerência da vida em conjunto, como o trabalho doméstico, a educação dos filhos, atividades que podem ser de difícil comprovação.
Além disso, a inerência do esforço comum à convivência é comprovada pela lei que rege a união estável, Lei 9.278 de 10 de maio de 1996, que em seu artigo 5º prevê que os bens adquiridos por um ou por ambos os conviventes na constância da união são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, ressalvadas estipulações em contrário em contrato escrito.
Por essa razão se faz imperioso pensar tais discussões dentro de uma perspectiva de gênero. É impossível que se discuta o casamento ou a união estável heterossexual, como é o caso do acórdão mencionado, sem pensar os papéis atribuídos ao homem e à mulher dentro da sociedade conjugal e o peso que se dá a eles na construção do patrimônio.
Dentro deste debate, pode-se cair facilmente em discursos que invisibilizam o trabalho feminino em todas as suas dimensões, valorizando apenas o trabalho de provimento e construção de riquezas, o qual com muita frequência é conferido ao homem.
Outra questão importante é que a necessidade da comprovação do esforço comum por parte da mulher pode, na verdade, demonstrar a desconfiança de que ela poderia estar interessada apenas em enriquecer com o patrimônio do cônjuge, especialmente quando este é idoso.
Diante disso, o presente trabalho pretende analisar as representações de gênero dentro do discurso do julgador da decisão referida, com o objetivo de verificar se esses discursos revelam discriminações da mulher em relação ao homem, bem como identificar, em suas fundamentações, preconceitos do ideário machista. Por meio do estudo do acórdão, refletir-se-á sobre os argumentos utilizados, as expectativas socialmente construídas em relação à sociedade conjugal e as suas formas de oprimir mulheres, em especial a opressão institucionalizada dos discursos judiciais em Direito de Família.
1. O CASO EM ANÁLISE
No presente artigo, abordaremos o EREsp 1.171.820/PR, em que um casal, após viver doze anos em união estável (1990 – 2002), deseja a dissolução da entidade familiar e discutem a divisão dos bens adquiridos durante a mesma. Ponto relevante para a compreensão do caso é que um dos parceiros é sexagenário, ou seja, tem mais de sessenta anos, o que complexifica a discussão acerca de qual o regime de bens ao qual o casal está submetido, em face das possibilidades legais que envolvem o esforço comum na construção do patrimônio do casal.
No julgamento do Recurso Especial, decidiu-se que o esforço comum de ambos na construção de seu patrimônio era presumido, respeitando-se a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Assim, foi dado provimento ao Resp da M.D.E.L.P.S. e negado provimento ao Resp do G.T.N. que, inconformado, opôs embargos de divergência contra tal decisão e acabou obtendo êxito em seu pleito pela não comunicação dos bens em questão.
A controvérsia do caso se dá no questionamento acerca da presunção ou não do esforço comum na construção de patrimônio na união estável quando envolve varão sexagenário. Aqueles que defendem que o esforço comum é presumido, baseiam-se na aplicação da Súmula 377 do STF cuja interpretação seria feita no sentido de que a comunicação de bens ocorreria em qualquer caso, sem requisitos, bem como a aplicação da Lei 9.278/96.
Por outro lado, aqueles que defendem a necessidade de comprovação do esforço comum para que haja a comunicação dos bens do casal fundamentam-se no art. 258, parágrafo único, inciso II do Código Civil de 1916 (equivalente, em parte, ao art. 1641, inciso II do Código Civil de 2002), que prevê o regime obrigatório de separação de bens no casamento dos homens maiores de sessenta anos e das mulheres maiores de cinquenta anos.
Para maior compreensão dos fatores sociais, políticos e históricos que envolvem tal conflito, buscaremos analisar o contexto do surgimento de cada instituto legal que rege a divisão de bens na dissolução da união estável em que uma das partes tem mais de sessenta anos.
2. INSTITUTOS JURÍDICOS QUE PERMEIAM O CASO
Importante se faz, então, que se apresente os institutos que permeiam a questão discutida. Em primeiro lugar, o regime da separação obrigatória de bens é imposto ao casamento nas situações do artigo 1.641 do Código Civil de 2002. É importante lembrar que aqui é adotado o entendimento de que essas imposições também são aplicáveis à união estável.
O caso em questão configura a hipótese do inciso II deste artigo (da pessoa maior de 70 anos), relacionado ao casamento em que um dos cônjuges é idoso. No entanto, há a ressalva de que a união se iniciou quando o companheiro contava com 60 anos, mas durante a vigência do Código Civil de 1916, que previa a separação legal no casamento da pessoa maior de 60 anos (se homem) e 50 anos (se mulher).
A este caso se obriga um regime de separação absoluta em decorrência de lei por razões que se dizem “de ordem pública” (RIZZARDO, 2006). Porém, muito se discute em relação a esta imposição e a seus motivos, pois parece ser discriminatória com o idoso, violando a sua autonomia e dignidade humana (MADALENO, 2013), bem como se demonstra imbuída de preconceitos contra as intenções do cônjuge mais novo. A justificativa é a de proteção do idoso, pessoa que estaria em situação vulnerável, de aproximações com interesse apenas em seu patrimônio, como ensina Rolf Madaleno (2013):
“Com essa medida a lei procura evitar vinculação conjugal forjada com o espírito materialista, em uma aproximação de mero interesse financeiro, ao ordenar o casamento pelo regime legal da separação de bens, e, no entanto, se adotassem o regime da comunhão parcial, partilhariam exclusivamente os bens amealhados na constância do matrimônio, cujo relacionamento pode muito bem se estabilizar e gerar patrimônio proveniente da mútua participação.”
No entendimento do professor, e de boa parte da doutrina, não parece razoável a ordenação de se adotar o regime da separação de bens pois justamente não parece esta uma questão de ordem pública. Não necessariamente as intenções do cônjuge mais novo será a de enriquecimento às custas do patrimônio do idoso, este é um pressuposto falso. Não deveria a lei generalizar e acabar por punir pessoas que queiram de fato dividir o seu patrimônio, por motivos que não cabe a lei nenhuma questionar. Para Madaleno (2006), a adoção do regime de comunhão parcial, regra para as uniões, já é suficiente para a intencionada proteção dos bens e haveres já contraídos pelas partes, permitindo que estas possam construir novo patrimônio com a mútua colaboração.
Maria Berenice Dias vai além e vê esta “punição” com uma importante perspectiva de gênero e a entende como mais uma forma de discriminação contra a mulher (DIAS, 2004). Não se pode deixar de perceber as leis como fruto de um contexto social e histórico, e um componente cultural importante para a discussão é que muitas vezes o patrimônio é construído e gerido pelo varão, e, assim, concebe-se a mulher como a “interesseira”. Esta questão ainda será tratada em sede da análise mais aprofundada do julgado.
Assim, a vontade do legislador ao formular tal restrição ao casamento da pessoa idosa era a de que não só os bens particulares dos cônjuges não se comuniquem, mas também aqueles que vierem a ser adquiridos durante a vida em comum. Sequer é questionado o esforço comum nessas aquisições. Sendo assim, foram surgindo julgados reiterados no sentido de temperar esta extrema medida, e foi com esta intenção que foi editada a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, com o enunciado “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
A ideia desta proposição é a de que os aquestos se comunicam pelo simples fato de terem sido adquiridos na constância da união, independentemente se resultaram, ou não, do esforço mútuo (DIAS 2015). A comunhão dos esforços é, então, presumida na convivência em comum, pois parte-se do pressuposto que os dois coadunam esforços para manter a união conjugal e se assistem mutuamente. Dessa maneira, a jurisprudência providenciou uma verdadeira alteração do regime de separação obrigatória de bens para aquele da comunhão parcial, assegurando a meação do patrimônio adquirido no período da união e impedindo, também, o enriquecimento ilícito do cônjuge que tenha os bens em seu nome em relação ao outro.
No entanto, persiste na doutrina e jurisprudência divergência quanto a essa presunção do esforço comum. São fortes as vozes que defendem a necessidade de demonstrar esses esforços para haver comunicabilidade dos aquestos, e é este o caso do julgado em questão. Este entendimento insiste numa imposição draconiana de um regime antigo que desvaloriza a atuação de um dos cônjuges e pode causar o locupletamento injusto de um às custas dos esforços invisibilizados do outro. Além disso, provar ações que são tão naturais e intrínsecas ao casamento e união estável mostra-se imposição totalmente desnecessária.
Há que se falar, ainda, de um instituto de grande relevância para a discussão, que é a Lei da União Estável (Lei 9.278/96). No período anterior à sua vigência, o regime de divisão do patrimônio adquirido durante a união estável, caso esta chegasse ao fim, seria de comunhão parcial de bens, desde que comprovado o esforço comum das partes na construção do patrimônio do casal. Todavia, compreendendo a desigualdade dos papéis de gênero dentro da família, surgiu a discussão acerca da dificuldade em se comprovar o esforço da mulher na construção do patrimônio familiar, uma vez que esta era designada aos trabalhos domésticos dentro do lar, que não são remunerados.
Foi nesse contexto que a Lei 9.278/96 foi promulgada, com a finalidade de garantir que a mulher não fosse prejudicada na divisão de bens após a dissolução da união estável. Assim, em seu artigo 5o, caput, a lei estabelece que o esforço comum é presumido, não sendo mais necessária a sua comprovação, da seguinte forma:
“Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.”
Portanto, a partir da citada lei, o esforço comum na aquisição patrimonial passa a ser presumido, o que resulta na comunhão parcial de bens quando da dissolução da união estável. Para melhor compreensão das discussões sobre o trabalho feminino e a dificuldade de se aferir o “esforço” da mulher na construção patrimonial do casal, faz-se necessário a exposição desse tema desde o seu surgimento no âmbito acadêmico.
3. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Ao longo dos séculos, a Europa foi palco de diversos filósofos que pensavam conceitos como liberdade e igualdade nos contextos em que estavam inseridos, bem como a função do Estado e sua relação com a sociedade. Rousseau, Locke e tantos outros buscaram, em suas obras, atribuir significados a esses conceitos de forma distinta, cada um com seus pressupostos filosóficos e políticos. No entanto, todos tinham algo em comum: o fato de serem todos homens, e buscarem compreender o mundo a partir de sua posição dominante.
É a partir dessa percepção que Carole Pateman lança sua obra “O Contrato Sexual” (1993), como uma crítica às teorias políticas que, ao pensar os conceitos de liberdade e igualdade, desconsideravam a desigualdade entre homens e mulheres que, para a autora, é central para se compreender as categorias em questão. Pateman (1993) defende que existe um contrato sexual firmado entre homens e mulheres, em que estas estão subordinadas àqueles, que exercem dominação sobre elas.
A partir dessa ideia, autoras feministas começaram a desenvolver a ideia de “divisão sexual do trabalho”, afirmando que em todas as sociedades há uma divisão das funções laborais competentes aos homens e às mulheres, podendo ser essa divisão efetivada de diferentes maneiras. Nas sociedades ocidentais, percebe-se que a divisão sexual do trabalho é marcada pela desvalorização do trabalho feminino em relação ao masculino, naturalizando-se a associação entre mulheres e trabalhos relacionados ao cuidado – da casa, dos filhos, do marido – reforçando-se o estereótipo de que as mulheres são detentoras de um instinto maternal cuidador.
A desvalorização do trabalho feminino e até mesmo sua invisibilização levam a uma discrepância de remuneração entre homens e mulheres, influenciando, também, sua autonomia, independência e emancipação.
Dentro da discussão trazida pelo acórdão, é fundamental se pensar nessas relações entre gênero e trabalho. Isso porque existem papéis sociais e historicamente atribuídos a cada um dos gêneros que criam relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, bem como uma valorização do trabalho masculino em detrimento do feminino (CYRINO, 2009). Assim, é importante se pensar o trabalho como uma categoria importante para a análise o esforço comum. O que se configura como esforço para os julgadores, e o que não se configura? Afazeres domésticos, educação dos filhos, são estas formas de trabalho suficientes para serem consideradas esforço? Se sim, como comprová-las?
Rafaela Cyrino (2009), que estuda a articulação entre o trabalho assalariado e doméstico, considera que o motivo central pelo qual os homens alcançam maiores riquezas são as inserções desiguais no mercado de trabalho, que se referem justamente à questão da conciliação entre trabalho e vida familiar:
“Na discussão acerca da articulação entre trabalho doméstico e trabalho assalariado houve uma influência considerável de teóricos econômicos que passaram a analisar a questão da temporalidade e a maneira desigual pela qual homens e mulheres percebem e 'alocam' o seu tempo na realização das mais diversas atividades cotidianas. Uma das questões mais evidenciadas no debate econômico acerca das relações de gênero diz respeito justamente à tentativa de redefinição de termos como 'trabalho doméstico' e “trabalho assalariado”, definidos, muitas vezes, em termos econômicos, como trabalho improdutivo e produtivo. ” (CYRINO, 2009)
Em seu estudo, ela mostra as diferenças do tempo reservado pela mulher e pelo homem para os trabalhos domésticos, e como isso se reflete nas presenças desiguais de cada gênero no espaço público para trabalhar, contrair renda, e, consequentemente, construir patrimônio.
É fundamental que se reconheça o trabalho doméstico como uma atividade não só válida para a economia do lar, como imprescindível para que o parceiro possa sair de casa e auferir riquezas. O trabalho doméstico é sim uma forma de contribuição econômica em várias dimensões invisibilizada pela sociedade e pelas instituições. Neste sentido ensina a pesquisadora.
“Revelar, portanto, o trabalho doméstico, evidenciando que este se compõe não apenas de uma multiplicidade de tarefas como limpeza, arrumação, vestuário, mas inclui a socialização das crianças e a manutenção dos laços familiares, é parte desse processo de desvelamento de uma realidade pouco visível à sociedade, de uma maneira geral.” (CYRINO, 2009)
Assim, parece desarrazoado, para dizer o mínimo, cogitar a possibilidade de que não haja comunhão de esforços numa convivência em união estável.
Coaduna-se com este pensamento a professora Maria Berenice Dias (2004), que também condena tais entendimentos:
“O só fato de determinados bens constarem em nome de um ou de outro cônjuge não significa ausência da participação do outro na sua aquisição. Como por um componente cultural e razões históricas ainda o patrimônio é gerido e está na administração do varão, nitidamente a regra impõe injustificável prejuízo às mulheres, que, na maioria das vezes, são as grandes artífices da consolidação do patrimônio do casal. Não ser permitida a comunhão de aquestos gera possibilidade de enriquecimento sem causa, com a qual não convive a justiça.” (DIAS, 2004)
Assim, a necessidade de comprovação do esforço comum para a divisão igualitária dos bens contraídos ao longo da sociedade manifesta-se como mais uma forma de violência contra as mulheres, uma vez que se coloca em dúvida os seus trabalhos diários e esforços na união, desvaloriza-se a sua contribuição, assim como suspeita-se das suas intenções ao se relacionar. Dentro de um paradigma em que as mulheres ainda se ocupam predominantemente dos afazeres domésticos, esta parece uma imposição verdadeiramente perversa.
4.ANÁLISE DO ACÓRDÃO
O acórdão escolhido para análise foi julgado em sede de embargos de divergência e é assim ementado:
“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). DISSOLUÇÃO. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. PARTILHA. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORÇO COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. 1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. 2. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha. 3. Embargos de divergência conhecidos e providos para negar seguimento ao recurso especial. ”
A decisão embargada, do Recurso Especial interposto pela ex-companheira, se firmou no sentido de que o regime de separação obrigatória dos bens seria temperado pela Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, e a comunhão de esforços para contrair os bens seria presumida em razão do artigo 5º da Lei 9.278/97. Assim, os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável deveriam ser divididos igualmente, independente da comprovação do esforço comum, vez que este é presumido.
Ainda que no acórdão do tribunal de origem, qual seja, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, tenha sido decidido pela inexistência do esforço comum por parte da convivente mulher, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão embargado, teria afastado esta tese, porque, em suas palavras:
“Ora, se a hipótese é de presunção do esforço comum, é irrelevante a declaração contida no acórdão impugnado de que inexistente a colaboração mútua. Se essa contribuição é legalmente presumida, não há necessidade de ser perquirida a sua existência. Afinal, a questão jurídica posta a desate é exatamente a de se a hipótese é de presunção ou de comprovação do esforço comum. Aderindo-se ao posicionamento de que o esforço é presumido, afasta-se, por decorrência lógica, a necessidade de sua comprovação ou, ainda, de sua ausência, ou qualquer declaração a esse respeito contida no acórdão recorrido.”
Para a relatora, o esforço comum seria inerente à vida conjugal, sendo impossível se pensar em uma união em que nada faça um dos cônjuges para manter, gerir o lar conjugal. Ainda que nos traços do caso concreto possa ser comprovado que não houve uma contribuição econômica da companheira em adquirir os bens, o esforço comum iria além disso e deveria abarcar o trabalho em casa, o cuidado com os filhos, dentre outras atividades que são tradicionalmente atribuídos à mulher, e por isso deve ser aquele presumido.
O convivente homem, não satisfeito, embargou tal decisão, e, na Segunda Seção, o entendimento foi outro. O Ministro Raul Araújo, que decidiu a contenda, determinou que o Recurso Especial da ex-convivente não merecia seguimento, logo, os bens discutidos não seriam divididos pois havia a necessidade de se demonstrar o esforço de ambos na sua aquisição, mas só foi comprovado o esforço do varão, a quem cabia, então, a integridade dos bens.
Para o relator, adotar a tese de que o esforço comum deve ser presumido, por ser a regra na união estável, conduziria à ineficácia do regime estabelecido por lei para as uniões em que um ou ambos os conviventes sejam maiores de 60 anos (na legislação antiga, que é a aplicada no caso). O julgador, então, pretende prestigiar o regime legal.
Contudo, tal orientação não segue os movimentos atuais da doutrina e jurisprudência, que refletem os valores e necessidades vigentes na sociedade. Há muito vem sendo promovido a moderação do regime de separação obrigatória de bens por ser este considerado um regime que fere o princípio da dignidade humana, tendo inclusive sua constitucionalidade questionada por fortes vozes da doutrina. É imperioso que o judiciário atenda às mudanças de valores da coletividade, e não apenas se prendam à aplicação da letra da lei, como parece ser feito na decisão estudada.
Nessa perspectiva, o relator acaba por negar a divisão de patrimônio construído em sede de união estável por não conseguir a mulher provar o seu esforço nessa construção. Ainda assim, insiste na importância desta comprovação:
“ (…) para afastar a presunção, deverá o interessado fazer prova negativa, comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisição onerosa de determinado bem, conquanto tenha sido a coisa adquirida na constância da união. Torna, portanto, praticamente impossível a separação dos aquestos. ”
Dessa maneira, é ignorada a dificuldade de se comprovar o esforço não econômico na construção do patrimônio, ou seja, aquele dos afazeres domésticos e atividades tradicionalmente impostas às mulheres, e declara que, na verdade, é mais difícil a comprovação de que não houve esforço. Assim, o ônus da prova é da mulher em provar a sua efetiva colaboração na união, consubstanciando em uma violência e desvalorização face à sua figura. Nessa mesma linha, o julgador segue:
“Por sua vez, o entendimento de que a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, parece mais consentânea com o sistema legal de regime de bens do casamento, recentemente confirmado no Código Civil de 2002, pois prestigia a eficácia do regime de separação legal de bens. Caberá ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva). ” (Grifo nosso)
O que seria, então, a efetiva e relevante, ainda que não financeira, participação no esforço para a aquisição onerosa de bens, senão a gerência do lar conjugal? E, como tal, como provar positivamente que se cuidou por anos do ambiente doméstico, dando ao companheiro assistência e condições para construir o seu patrimônio? Ainda que o julgador fale de uma participação não financeira, ele parece continuar preso a essa lógica financeira e permanece invisibilizando o trabalho doméstico no restante de seu voto.
Para reforçar a sua tese, o julgador colaciona uma série de julgados paradigmas no mesmo sentido, e inclusive a doutrina de Arnaldo Rizzardo (2011), que em uma de suas passagens defende que “o fator determinante da comunhão dos aquestos está na conjugação de esforços que se verifica durante a sociedade conjugal, ou na affectio societatis própria das pessoas que se unem para uma atividade específica” (RIZZARDO, 2011). Tal entendimento deve ser aplicado a toda sociedade conjugal, e, portanto, desnecessário investigar se houve realmente o esforço comum.
Em outra passagem colacionada no voto do mesmo autor, a lógica econômica do esforço comum é reproduzida:
“A jurisprudência salienta idênticas razões: “Embora o regime dos bens seja o da separação, consideram-se pertencentes a ambos os cônjuges, metade a cada um, os bens adquiridos na constância da sociedade conjugal com o produto do trabalho e da economia de ambos. Não há razão para que tais bens fiquem pertencendo exclusivamente ao marido. Não é de se presumir que só o marido ganhe dinheiro e possa adquirir bens. Nas famílias pobres a mulher trabalha e aufere recursos pecuniários, havendo casais em que só ela sustenta a família…” (Grifo nosso)
Ainda que tal passagem reconheça o trabalho das mulheres nas famílias pobres, ela continua presa à ideia de que a contribuição da mulher deve ser por meio de recursos pecuniários, e a reprodução deste trecho pelo relator reafirma o seu discurso invisibilizador do trabalho não remunerado de cuidar da casa e da família atribuído ao gênero feminino.
Há, ainda, no voto do relator, na intenção de se afastar a presunção do esforço comum, discursos que reforçam estereótipos de gênero, que, embora sejam corriqueiramente aceitos e reproduzidos pela coletividade, são raciocínios que não se fundam em uma investigada verdade e pode cometer injustiças.
Em realidade, cuidando-se de união estável de pessoa sexagenária, a presunção que emerge da realidade dos fatos é exatamente outra, porque, ordinariamente, nessa faixa etária, o patrimônio já se encontra estabilizado e eventual acréscimo, de regra, é proveniente de esforço próprio em tempos passados ou de sub-rogação de bens já existentes.
Por essa lógica, seria até desnecessário impor a comprovação do esforço do cônjuge mais novo, já que, como regra, eventual acréscimo do patrimônio seria produto do esforço próprio do cônjuge que já possui patrimônio. Tal raciocínio é destituído de qualquer razão, não há como se afirmar que esta é a regra. O que ele faz, em verdade, é a reprodução de preconceitos de que entre uma pessoa idosa e outra mais nova, necessariamente esta pessoa idosa tem rico patrimônio material e aquela mais nova está interessada apenas em enriquecer. Além disso, não se pode ignorar que tal falácia é muito mais difundida para o caso de o cônjuge mais velho ser homem e o mais novo ser mulher.
Entendemos que esses discursos reproduzidos no voto são mais uma face de opressão às mulheres, uma face institucionalizada que descaracteriza os esforços e vivências das mulheres, violando sua dignidade e as impedindo de acessar os seus direitos.
CONCLUSÃO
Vivemos em uma sociedade patriarcal, estruturada pela desigualdade de gênero, que determina papéis e valores diferentes para homens e mulheres. O direito não está fora disso, pelo contrário, muitas vezes acaba por reforçar essa lógica violenta e subalternizante. Ao analisar o acórdão do EREsp 1.171.820/PR, juntamente à elaboração de pesquisas sobre o tema, concluímos que no âmbito do Direito de Família há considerável preocupação com a defesa dos direitos das mulheres, por reconhecer que historicamente esta foi colocada como parte mais vulnerável da relação marital. Nas discussões acerca da divisão de bens, por exemplo, já é consenso no meio jurídico – tanto na doutrina quanto na legislação e jurisprudência – que o trabalho doméstico é de extrema importância na construção do patrimônio da família, mesmo não sendo remunerado.
No entanto, apesar disso, ainda há muitos resquícios de machismo nas decisões judiciais sobre o assunto, como ficou claro com a análise do caso em tela. Mesmo que o trabalho doméstico tenha tido sua importância reconhecida, muitas vezes esta é questionada por alguns ministros, que relativizaram diversas vezes o esforço da mulher na aquisição dos bens do casal.
Dessa forma, compreender que o esforço comum não é presumido é colocar novamente à prova as contribuições femininas por meio de um trabalho historicamente inferiorizado e invisibilizado, qual seja este que é realizado no âmbito privado, o domicílio. Ademais, a delimitação de idade estipulada pelo artigo 1.641, II do Código Civil de 2002 parte de pressupostos patriarcais que naturalizam a imagem da mulher enquanto pessoas que buscam, em uma relação, os bens materiais do parceiro, o que torna necessário que a legislação proteja os idosos contra esse tipo de golpe.
Por fim, concluímos que, apesar dos avanços no tocante aos direitos das mulheres no Direito de Família, é sempre necessário reafirmá-los, uma vez que, por estarmos inseridos em uma sociedade historicamente patriarcal, há sempre brechas para cercear os direitos das mulheres, inferiorizando e desmerecendo suas vivências.
Informações Sobre os Autores
Carlos Tadeu de Carvalho Moreira
Professor de Direito Civil e Prática Jurídica da UNB – Universidade de Brasília
Heloisa Storniolo Adegas
Acadêmica de Direito da UNB – Universidade de Brasília
Natália Ribeiro Levy Boquady
Acadêmica de Direito da UNB – Universidade de Brasília