As Relações Das Fases – E Dos Processos – De Conhecimento E Execução Com As Figuras Mitológicas Da Justiça (Diké E Iustitia)

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Daniela Carvalho Guimarães Schwartzman – Especialista em Direito Civil, graduada em Direito pela Universidade de São Paulo – USP – [email protected]

Eduardo Henrique Santin Silveira – Acadêmico de Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – [email protected]

Paulo Schwartzman – Especialista em Direito Civil, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP – [email protected]

Resumo: O presente artigo jurídico tem por finalidade a realização de análise das deusas Diké e Iustitia em face das fases, bem como dos processos, de conhecimento e de execução. Para tal intento será feito o cotejamento dos elementos simbólicos contidos nas figuras deicas, como, por exemplo, a posição da deusa na cena, os objetos, a existência ou não de venda e a maneira como a espada é segurada. Também será realizada breve reflexão introdutória acerca da simbologia e sua relação com o Direito, perpassando, outrossim, pela análise entre direito e moral, direito e justiça, além de abordar a origem da palavra Direito.

Palavras-chave: processo. diké. iustitia. deusas. execução.

 

Abstract: The purpose of this legal article is to carry out an analysis of the goddesses Diké and Iustitia in view of the phases, as well as the processes, of knowledge and execution. For this purpose, the symbolic elements contained in the deic figures will be compared, such as, for example, the position of the goddess in the scene, the objects, the existence or not of blindfold and the way in which the sword is held. There will also be a brief introductory reflection on the symbology and its relation with Law, also going through the analysis between law and morals, law and justice, also addressing the origin of the word Law.

Keywords: process, diké, iustitia, goddesses, execution.

 

Sumário: Introdução. 1. As deusas. 2. O processo (fase) de conhecimento – Iustitia. 3. O processo (fase) de execução – Diké. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O presente trabalho tem por escopo analisar as figuras deicas da justiça nas culturas grega e romana, respectivamente analisando Diké e Iustitia, relacionando-as, também, com o processo de conhecimento e o processo de execução. A mesma lógica aqui empreendida para a análise dos processos de execução e conhecimento poderá ser aplicada sem prejuízo algum às fases de conhecimento e execução advindas do sincretismo processual no Direito Brasileiro (Lei 11.232/05). Ou seja, informa-se ao leitor que por vezes será tão somente anotado processo ou fase, mas se deve interpretar como possível a utilização da referência para o termo que foi olvidado, seja ele fase ou processo, na medida em que a crise judicial que a fase ou o processo buscam dirimir é a mesma, merecendo, pois tratamento igual.

Para este artigo, faz-se necessário abordar o tema do simbolismo, que terá como base a Escola de Psicologia Analítica de Carl Jung para a análise de símbolos externos, esta que muito ajudou na compreensão e valoração destes (JUNG, 2016, p. 137). Aliás, independentemente de se ignorar a força dos conteúdos que percorrem no inconsciente, é sabido que a estes reagimos, ainda que inconscientemente, como já bom pontuou Hendersen (JUNG, 2016, p. 138), aplicando-se a mesma lógica aos símbolos que veiculam esses conteúdos do inconsciente. Logo, vale muito o estudo das implicações simbólicas que as deusas incutem àqueles que com suas figuras têm contato.

No mais, vale também retornar à ideia de existência de um inconsciente coletivo, como pontuada por JUNG em grande parte de sua obra. Para este singelo trabalho adotaremos a premissa de que esse inconsciente é um pedaço da psique que recolhe e repassa o patrimônio psicológico coletivo da humanidade (JUNG, 2016, p. 138). Aliás, vale pontuar que a história do modo de pensar científico advém da dialeticidade entre experiência e abstração, aplicando-se igualmente tal fórmula para o campo jurídico (ALLAND; RIALS, 2012, p. 1657).

Sabe-se, aliás, que o direito é deveras atrelado ao simbolismo, conforme comprova o Velho Testamento (Pentateuco). Nesse sentido, anota-se, por exemplo a circuncisão como símbolo da aliança do homem com D’us (Gênesis 17, 9 e ss), o levantamento da mão como símbolo de juramento (Deuteronômio 32, 40), ambos exemplos retirados de LURKER (2003, p. 206). Ou seja, realmente importante se faz uma análise das possíveis mensagens advindas das figuras gregas e romanas da Justiça, na medida em que dentro do métier jurídico há mais de milênios.

Aliás, aliado a esta ideia de força dos símbolos é a Teoria da Alegoria, uma das teorias criadas para justificar a existência dos mitos antigos (entendidos aqui como gregos e romanos). Segundo tal teoria os mitos carregariam em si alguma verdade, fosse ela moral, religiosa ou filosófica, podendo até mesmo veicular um fato histórico (BULFINCH, 2006, p.374), e a forma simbólica ajudaria a veicular estes conteúdos tão caros à sociedade da época. Cabe a nós tentarmos compreender as possíveis significações que das deusas derivam, com o fito de “descobrir” esta verdade.

Vale lembrar, nesse ponto, a ideia de evolução do entendimento do mundo desde a cosmogonia (início do cosmos advindo de relações entre as energias vitais), passando pela teogonia (surgimento dos deuses a partir de relações sexuais recíprocas e com mortais, gerando novos deuses, heróis, titãs etc) e por fim à cosmologia, esta última já muito atrelada ao conhecimento racional atrelado a princípios (BITTAR, 2016, p. 75). Vê-se, nesse contexto evolutivo, uma antiga tradição de questionamentos, sejam estes veiculados nos mitos, nos contos e ou nas poesias (BITTAR, 2016, p. 75), tudo a indicar verdadeira necessidade humana de apurar a percepção do mundo fenomênico.

Em relação ao Direito e o simbolismo, convém também aproximar, além daquilo que será falado mais detidamente adiante acerca do “nascimento de diké” na poesia homérica (Ilíada e Odisseia), que o Direito já há muito possui relação com a literatura. Para aprofundar-se nesse assunto, bem como para uma interessante leitura acerca do Direito e sua relação com Os irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiévski, vale a leitura do artigo de Ana M. M. da Silva e Janaína de Azevedo Baladão, contido no livro Linguagem e Direito a partir da página 215 (PINTO, CABRAL; RODRIGUES, 2016). Aliás, cumpre ressaltar que é justamente dentro do contexto judiciário que o simbolismo é ainda mais espetacular, haja visto as tradições e os ritos, sendo tal fato objeto de pesquisas verticalizadas sobre o tema (ALLAND; RIALS, 2012, p. 1656).

Ainda nesse diapasão de Direito e cultura, vale, a título de curiosidade, a informação extraída de (ALLAND; RIALS, 2012, p. 1656) que a relação de Direito e poesia foi assinalada também pelo coautor da Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho dentre tantas outras histórias, o alemão Jacob Grimm. Esse mesmo autor ainda indica que seu livro “As antiguidades jurídicas alemãs” – 1828 faria parte de um tríptico junto com os contos que fizeram a ele e a seu irmão Wilhelm Grimm famosos (Contos da infância e do lar – 1813) e o livro Mitologia Alemã (1835). Ou seja, tudo indica mesmo o quão recheado de simbolismo é o campo jurídico, e o quão profícua pode ser a amálgama executada a partir de uma visão pluralista e interdisciplinar de mundo.

Adentrando na temática da origem da palavra Direito, muitas vezes relacionada ao nome atribuído às deusas, assinala-se a posição contrária de Eduardo Pessôa, este que aponta que em Roma a palavra directus possuía significado diverso daquilo que entendemos como direito hoje em dia, sendo que para tal doutrinador a palavra directus seria limitada a indicar um adjetivo designando o que é conforme uma linha sem curvas, reta (2001, p. 15). Ainda nesse tocante, necessária se faz uma breve digressão para a contribuição da “balança” para o Direito, mais especificamente naquilo que tange à origem etimológica da palavra “direito”. Essa surge como bem aponta Tércio Sampaio Ferraz Júnior da posição em que o fiel da balança alcança em situação de equilíbrio, qual seja: ereto, de pé – ou como se falava na Roma antiga: de+rectum (2011, p. 10 e ss).

Este mesmo autor segue asseverando interessante relação entre as palavras “jus” e “derectum” (ou “rectum”), bem como suas derivações. Para Tércio (2011, p. 10), “rectum” gerou as palavras “rechts” e “right” e congêneres; ao passo em que “derectum” permitiu o surgimento de direito, “derecho”, “diritto”, “droit” dentre outros. O vocábulo jus, por sua vez, teria gerado jurista e jurisprudência, por exemplo.

Ao citar Sebastião Cruz, Tércio ressalta também interessante ponto de como a palavra “jus”, do latim clássico, tornou-se praticamente sinônimo de “derectum” (2011, p. 11 e 12). Nota-se, do quanto exposto pelo autor, que a substituição de uma palavra pela outra se deu muito mais por uma intervenção cristã na tentativa de moralizar a Justiça do que efetivamente um significado técnico.

Ainda numa análise da etimologia e conceito de direito, bom se faz anotar uma posição dissonante. Nesse sentido, em leitura contraposta à ideia de universalidade conceitual de direito, vale anotar a posição sustentada por Rouland, que expõe de maneira contundente que não há equivalência direta em número significativo de línguas (ALLAND; RIALS, 2012, p .74).

Tal doutrinador (Sebastião Cruz) continua, ao explicar a relação de direito e de moral apontando que, a despeito da moral e do direito não se confundirem, buscou-se, na realidade, dar um novo sentido ao o que é jurídico – ou o que deveria ser (1971). Logo, o direito, sob essa releitura, deve ser o “caminho reto” a ser seguido por todos, em uma concepção divina de tal caminho, com intuito de repreender e suprimir as atitudes que desviassem do caminho (cor)reto da moral.

Sabe-se, também, que como já asseverado por Kelsen, não há que se confundir direito e justiça (KELSEN, 2011, p. 67). Nesse sentido tal doutrinador aponta que a norma de justiça é que deve indicar qual deve ser o direito posto quanto ao conteúdo que este expressará (KELSEN, 2011, p. 67), sendo o direito em si o mero veículo da norma, coadunando-se para a ideia sustentada por tal doutrinador de que a justiça seria a bem da verdade uma questão de cumprimento da legalidade.

Não há de se olvidar que diversas são as representações simbólicas da justiça, com diferentes nuances e características. Da mesma maneira, diversas vezes as deusas Diké e Iustitia são consideradas como a mesma figura, sendo até mesmo igualadas à figura da deusa Themis. Assim, pontuamos que entendemos a existência de diversas maneiras de representação da justiça criadas ao longo da história, apenas realizando nosso recorte de análise, bem como voltando nosso foco, para a deusa grega e a deusa romana da forma que representadas mais usualmente, devido à sua grande importância, sendo estas as mais clássicas.

 

  1. As Deusas

Inicialmente, necessário se faz explicar o porquê de termos escolhido a deusa Diké em vez de escolher Themis para o intento desse trabalho. O primeiro motivo é aquele decorrente da diferença entre esferas, porque aquela se afigura como mais aproximada da ideia de justiça dos homens, em comparação com Themis, sendo que esta última é mais relacionada com as respostas vindas do cosmos (KOSTLER apud KELLY, 2010, p.9). Outrossim, pode-se também distinguir ambas figuras gregas no sentido de justiça legal e justiça do caso concreto, sendo a Diké a justiça do caso concreto, como definida pelo aplicador do direito (juiz), na medida em que o vocábulo diké poderia mesmo ser interpretado como uma “decisão judicial”, nos termos apontados por BITTAR (2016, p. 80) ao ratificar o posicionamento de Tércio Sampaio Ferraz Jr. e também de Giorgio Del Vecchio; restando, pois, à deusa Themis o papel de justiça como lei.

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Do acima narrado afigura-se a deusa Diké como mais própria para o sentido que se pretende atribuir a esse trabalho, sendo certo que é uma forma de norma que passa a existir advinda do intelecto do magistrado, com enfoque no caso sob análise (KOSTLER apud KELLY, 2010, p.9). Não bastasse o já pontuado, cumpre-nos ainda ressaltar que, como já acentuava BITTAR (2016, p. 79), desde os pré-socráticos o vocábulo “diké” era mais utilizado para significar a ideia de justiça, em detrimento ao de “themis”, em grande parte devido ao trabalho de Hesíodo.

Pontua-se aqui que Diké (também conhecida como Dice ou Díke, por vezes chamada até mesmo de Astreia – que no nosso entender configura uma deusa autônoma), é entendida por alguns doutrinadores como sendo sinônimo da ideia de equidade (LAFER, 2015, p. 176), mas tal não parece ser o mais adequado para os fins a que este trabalho é destinado, na medida em que tal significação está mais calcada no sentido que a palavra derivada “dikaion” expressa para os gregos. “Dikaion” sim, por sua vez, significa equidade, absorvendo tal sentido por ser derivada de algo que é justo.

Não se olvida a derivação acima pontuada, (aquela de que a palavra “diké” possivelmente deva ter dado origem a “dikaion” – que de fato significa equidade), mas tão somente se assevera que a figura mitológica da deusa em si não deve ser considerada como sinônima perfeita do ideal de equidade, na medida em que a figura da deusa supera em muito a ideia de equidade, a despeito de parte desta ideia estar contida em seu simbolismo. Ou seja, trata-se aqui da ideia de círculos secantes, uma vez que nem tudo que é equitativo é Diké, e vice-versa, sendo certo também que tem uma zona de contato entre os dois conceitos, esta que, de fato, é muito significativa.

A deusa Iustitia, por sua vez, decorreu da assimilação da deusa Diké à cultura romana, com ênfase mais exacerbada na ideia de aequitas (LURKER, 2003, p. 372). Interessantemente a venda que cobre os olhos de Iustitia acabou por ser mais comum a partir do séc. XVI, em terras germânicas (LURKER, 2003, p. 373), contrariando crenças populares de que: (a) só existe uma deusa da Justiça; e (b) a Justiça sempre é “cega” – está com os olhos vendados.

Um contraponto interessante à ideia de que a venda serviria para gerar imparcialidade, no entanto, é dado pelo fato de que em um primeiro momento esta era vista como símbolo de uma justiça que seria injusta (LURKER, 2003, p. 373), vindo apenas posteriormente a assumir a conotação de imparcialidade tão conhecida atualmente. Seguindo-se nessa lógica, vê-se que a expressão “a justiça é cega” é muito difundida no imaginário popular, especialmente nas letras de músicas com críticas sociais. Nesse sentido, Gabriel O Pensador, na letra de “Mentira do Brasil” afirma que “Certas frases conhecidas são mentiras e ninguém nega/ (por exemplo?) ‘A justiça é cega!’”, assim como a banda Baiana System, em “Sulamericano”: “Um golpe de estado ao som da carabina, um fuzil/ Se a justiça é cega, a gente pega quem fugiu”.

Ou seja, mesmo sem saber propriamente a origem da venda na Justiça, assim como já explicado acima, a cultura popular acerta mais que os acadêmicos ao usar a expressão no sentido de que o sistema jurídico e a justiça por ele aplicado não enxergam a realidade – especialmente no tocante à inexistência de imparcialidade. Vê-se, assim, que tal significação tem suporte nas simbologias da justiça, a despeito de mais atualmente ser entendida a venda como representativa da imparcialidade. Aliás, repisa-se que nem todas as deusas da Justiça possuem vendas, sendo certo que uma das diferenças mais características é a presença ou não da venda sob seus olhos, sendo este um dos elementos diferenciadores mais característicos.

Para os fins desse trabalho, anota-se que a deusa Iustitia será interpretada como: sentada, com a espada repousada no colo ou abaixada, portadora de uma balança e vendada. Por sua vez, a deusa Diké será analisada como: em pé (levantada), com a espada desembainhada e levantada, também portadora de uma balança e sem vendas, com os olhos abertos. Tais escolhas partem daquilo que mais se coaduna com a origem histórico-social das deusas, bem como com representações mais fidedignas daquilo que elas representam. Frisa-se que normalmente uma deusa é confundida pela outra, até mesmo porque ambas representam o ideal de Justiça, bem como que existe forte celeuma na área de representação destas – como já anotado acima.Abaixo, selecionamos imagens que representam as figuras mais acuradas para os fins deste trabalho. Respectivamente, apresentamos imagens que espelham de forma mais acurada as deusas Iustitia e Diké, confira-se:

Captura de Tela 219
Fonte: Foto por Tenerezza Presentes. Disponível em: <https://www.tenerezzapresentes.com.br/JUSTICA-SENTADA–GR-C-BALANCA/266/p.>. Acesso em: 07/07/2020.

 

Captura de Tela 220
Fonte: Foto por Ruicascao. Disponível em: <https://search.creativecommons.org/photos/63478a91-98c2-4e0c-9fa5-b1b71554a92e>. Acesso em 07/07/2020

 

Captura de Tela 221
Fonte: Foto por Bartonjs (redimensionada). Disponível em:<https://search.creativecommons.org/photos/9e155cb6-9dd7-4d13-91ff-67b1d196579a>. Acesso em 07/07/2020

 

Captura de Tela 223
Fonte: Foto por Tim Green (redimensionada). Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/atoach/6904332117>. Acesso em: 07/07/2020.

 

  1. O processo (fase) de conhecimento – Iustitia

No que tange à ideia atrelada ao processo de conhecimento, bom assentar que este tem como função mínima a ideia de declaração de um direito ou situação fática (art. 19 do CPC).  Nesse sentido, vê-se claramente que a eficácia declaratória está presente em toda demanda judiciária, podendo ser a declaração a carga preponderante ou não do pronunciamento judicial.

Tal ocorre porque o processo de conhecimento visa à solução precípua da crise de certeza. Com efeito, até como decorrência do Princípio da Imparcialidade, o juiz quando recebe uma demanda é, em relação a ela, um ignorante quanto aos fatos, até mesmo porque se tivesse tido contato com estes seria considerado impedido, como, por exemplo, na regra em que o juiz é arrolado a depor por ter conhecimento dos fatos (art. 452, I, CPC), sendo que a única hipótese legal de recusa de depoimento é a ignorância fática absoluta (art. 452, II, CPC).

Da mesma ideia exposta acima decorre o ditado latino “da mihi factum dabo tibi ius” (tradução livre: me dê os fatos que te darei o direito), uma vez que as partes precisam apresentar ao juízo a situação fática ocorrida, haja vista o desconhecimento desta por parte do magistrado, e este, após o “iter” processual, com a superação dos momentos de postulação e instrução chegará ao julgamento, momento processual em que se encontra ciente da situação fática ocorrida e apto a aplicar o direito ao caso concreto. Aliás, é nessa toada também o brocardo do “iura novit curia”  (tradução livre: o juiz cuida do direito), no sentido de que o trabalho precípuo da parte e de seus patronos é esclarecer a situação fática ocorrida a fim de que o magistrado possa bem analisar o caso juridicamente.

Ora, a relação com a deusa Iustitia romana é patente com o processo de conhecimento, cabendo a análise de quatro pontos nodais pertinentes: (a) a posição em que a deusa se encontra (sentada); (b) a posição da espada (abaixada ou sob o colo); (c) o fato de a deusa estar vendada; e (d) a balança em sua mão. Vamos a eles.

A deusa Iustitia, pelo menos em grande parte de suas representações, encontra-se sentada, o que indica uma situação de calma, tranquilidade, repouso e até mesmo uma certa passividade. Tal é condizente com a atividade judicante, na medida em que para decidir a lide não poderia a Justiça estar apressada, ou então os pratos da balança não se equilibrariam. Nesse sentido, aliás, vale a transcrição de passagem crítica bem humorada da obra de Franz Kafka – O Processo (2011, p. 198), em que a personagem principal K. não consegue entender o que um pintor está a desenhar e este último o responde:

“– É a Justiça – explicou por fim o pintor.

– Ah, sim! Agora eu a reconheço – exclamou K –; Aqui está a venda sobre os olhos e aqui a balança. Mas, não são asas essas que se vêm nos calcanhares? E não está representada em atitude de corrida?

– Sim – disse o pintor –, encarregaram-me de pintá-la assim. Para dizer a verdade, trata-se da justiça e da deusa da vitória em uma só imagem.

– O que não forma nenhuma boa combinação – observou K., sorrindo. – A justiça tem que estar quieta porque do contrário a balança vacila, com o que se torna impossível um juízo exato. (grifo nosso)

Ou seja, desde há muito já se entendia a necessidade de estabilidade para a reta discriminação do equitativo, sendo certo que a ideia de ter uma figura que simboliza a Justiça sentada contribui para esse contexto de serenidade e prudência no julgamento. Tais atributos são essenciais para o processo de conhecimento, na medida em que se busca aplacar, como já dito, a crise de certeza, a dúvida sobre quem é o possuidor da razão.

Seguindo na análise, temos o fato de que a espada geralmente está presente, porém esta ou encontra-se abaixada, ou repousa no colo da deusa. Ora, em se entendendo a espada como símbolo da força para executar a decisão, faz todo sentido o simbolismo da figura, pois a possibilidade de execução na fase de conhecimento é prevista no ordenamento, como por exemplo na hipótese de tutela de evidência (art. 311, CPC) ou de urgência (art. 300 e ss, CPC), inclusive com a possibilidade de imposição ampla das medidas que se fizerem necessárias para garantir a eficácia da decisão (art. 139, IV, do CPC). No entanto, e como dito, tal não é a regra, sendo certo que na fase de conhecimento a grande questão que se põe perante o magistrado é a determinação do direito, sendo certo que o ápice de tal fase processual é o sentenciamento, com a solução do impasse colocado (crise de certeza).

Outro ponto interessante é o fato de a deusa Iustitia estar vendada. Nesse tocante, e como dito acima, a despeito de haver o posicionamento histórico de que a venda teria se introduzido durante o medievo como forma de crítica à atuação errônea dos magistrados, a justificativa de que a venda está posta sobre os olhos da deusa para garantir a isonomia no tratamento acabou por ser a mais aceita entre os doutrinadores, sendo, outrossim, assimilada pelo conhecimento popular. Quanto à venda, resta dizer que está de fato atrelada à ideia de imparcialidade do magistrado perante os contendores, na medida em que deve traduzir posicionamento equidistante a estes, sem discriminá-los injustamente.

Por fim, no que se refere à balança nas mãos da deusa Iustitia, tem-se que a balança é o símbolo universal do equilíbrio e da ponderação. Ora, em sendo a deusa da justiça de Roma aquela mais afeta ao processo (ou fase) de conhecimento, nada mais correto que esta de fato porte o símbolo da justa decisão.

Ou seja, de tudo que foi posto neste capítulo foi possível ver-se que há de fato relação sólida entre o simbolismo apresentado pela deusa Iustitia e a fase de conhecimento. Ora, é patente que os elementos nela contidos realmente levam a tal conclusão, cabendo-nos agora a análise da deusa grega Diké.

 

  1. O processo (fase) de execução – Diké

Segundo aponta Robert Graves Diké seria a própria personificação do Direito Natural, o que é curioso, na medida em que esta, nos termos em que colocado pelo mesmo autor, é classificada como uma divindade artificial que teria sido criada pelos primeiros filósofos (2008, p. 150). A deusa grega Diké (ou Dice) filha de Themis com Zeus tem relação com a ideia de coercibilidade. Com efeito, vê-se que em inúmeras de suas representações esta se encontra levantada e com a espada pronta para golpear. Outro ponto de relevo é que os olhos da deusa estão abertos e  desvendados, indicando a superação da ideia afeta ao processo de conhecimento, e que é tão importante para uma decisão justa e imparcial.

Veja-se, não é que propriamente se fale em injustiça na execução, seja juridicamente, como possibilidade de impugnação ao cumprimento de sentença na fase executiva e de oferecimento de embargos à execução no processo executivo, seja simbolicamente, uma vez que a maior parte das representações de Diké a veiculam portando uma balança, que justamente é o símbolo para a equidade e o justo. A questão aqui posta é que as discussões acerca do acerto ou não do título restringem-se a posição lateral, na medida que o que ganha relevo é o cumprimento da obrigação estampada neste.

A fase de execução, dessa maneira, deve ser entendida como os meios necessários para a satisfação do direito. Nesse sentido, tais meios devem necessariamente ser coercitivos, ao passo que somente a imposição de determinadas medidas fará com que a justiça seja materializada, sejam tais medidas de caráter sub-rogatório (execução direta), sejam tais medidas coercitivas (execução indireta).

A relação do processo de execução com a deusa grega Diké é evidente, cabendo a análise dos quatro mesmos pontos analisados na deusa Iustitia, mas de maneira antagônica: (a) a posição em que a deusa se encontra (em pé); (b) a posição da espada (empunhada); (c) a ausência da venda, bem como o fato dos olhos da deusa estarem abertos; e (d) a balança em sua mão. É o que explicaremos mais detidamente nos próximos parágrafos.

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De forma diametralmente oposta à deusa romana, a deusa grega encontra-se levantada, dando a conotação de movimento, de que efetivamente está preparada para tomar uma atitude. Isso tem grande relação com o processo (ou fase) executivo, uma vez que nesse momento processual a preponderância é a atuação ativa, fazendo a decisão dada pelo juiz assumir contornos de eficácia no mundo fenomênico. Não por outra razão a fase executiva busca solver aquilo que cunhou-se de chamar crise de adimplemento.

Na mesma toada que a descrita acima é o fato de que a espada encontra-se empunhada. Com efeito, com a espada pronta para golpear a deusa Diké indica que além de ter os meios (como no caso da deusa Iustitia – que possuía a espada, mas esta ficava ou recostada no chão ou descansando em seu colo) para fazer valer as suas decisões. É nesse sentido que BITTAR, ao rememorar o quanto pontuado por Peters, confirma ser a deusa Diké verdadeira “garantia de justiça” (2016, p.79).

Outro ponto que fica evidente quando do cotejamento de ambas as figuras deicas é a ausência de venda nos olhos de Diké, em verdadeira antípoda quando feita a comparação em relação à deusa Iustitia. Tal tem a ver com o fato de que no processo de execução, ou mesmo na fase executiva, o centro das atenções é a garantia da eficácia do direito já declarado no título, seja ele judicial ou extrajudicial. É verdadeiramente dizer que, para além de uma crise de certeza (está já presumidamente resolvida na fase de conhecimento ou pelo cumprimento dos requisitos formais do título exequendo) está-se diante de uma verdadeira crise de adimplemento. Nesse sentido, em já se sabendo quem é o devedor e quem é o credor, não faz mais sentido a Justiça permanecer com os olhos vendados, uma vez que a questão que se coloca não é quem tem o direito, mas sim como fazer com que este seja cumprido.

Por fim, naquilo que tange ao fato de que a deusa Diké também possui uma balança em suas mãos anotamos que tal fato é compatível com a divisão das figuras deicas por momento processual, na medida em que também na fase executiva há atividade decisória acaso surja uma crise de certeza incidentalmente, como por exemplo no caso de impugnação ao cumprimento de sentença (art. 525 e ss, CPC) e embargos à execução (art. 914 e ss, CPC).  Ou seja, o que tem-se aqui é uma carga de preponderância voltada para a execução do direito, visando a solucionar a crise de adimplemento típica desta fase processual, sem, no entanto, fechar-se a porta para a possibilidade de solução de pontuais crises de certeza que surgirem incidentalmente.

Nessa toada, perpassamos todos os pontos que iriam ser abordados em relação à deusa Diké. Cabe agora arrematar o presente artigo com possíveis conclusões advindas deste estudo.

 

Conclusão

Do quanto exposto nos capítulos acima, depreende-se que as figuras míticas das deusas da justiça, tanto de Diké quanto da Iustitia exercem papel simbólico de grande valia. Não passa despercebido também que cada uma das deidades possui mais afeição a solucionar determinada crise processual, seja a de certeza, aclarada pela cega e imparcial Iustitia, seja a de adimplemento, cuja eficácia é carreada pelo golpe da espada bradante de Diké.

Convém ressaltar, também, que o fenômeno da verdadeira e completa Justiça só pode ser alcançado se de algum modo conseguirmos extrair o que de melhor há nesses dois símbolos tão caros ao ideário jurídico atual. Nesse ponto permitimo-nos uma transcrição literal de Rudolf von Ihering, que assim pontuou bem essa indissociabilidade:

A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito.

Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que manejar a balança” (2009, p. 23).

Do quanto foi colocado aqui espera-se que tenha ficado mais clara a relação entre as figuras da Justiça nas culturas grega e romana e as fases do processo. Isso porque apenas ao entendermos na inteireza nosso passado poderemos continuar a desbravar os rumos para um futuro mais justo.

 

Referências

ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane (orgs.). Dicionário da Cultura Jurídica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 1ª ed. São Paulo WMF Martins Fontes, 2012.

 

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 12ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.

 

BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução de Luciano Alves Meira. 5ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2006.

 

CRUZ, Sebastião. Ius, Derectum (Directum) Dereito (Derecho, Diritto, Droit, Direito, Recht, Right, etc.). Coimbra: Coimbra, 1971.

 

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2011.

 

GRAVES, Robert. O grande livro dos mitos gregos. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Ediouro, 2008.

 

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JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. 3ª ed. especial. Rio de Janeiro: Harper Colins Brasil, 2016.

 

KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Torrieri Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

 

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LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. Tradução de Mario Krauss e Vera Barkow. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

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PINTO, Rosalice; CABRAL, Ana Lúcia Tinoco; RODRIGUES, Maria das Graças Soares (orgs.). Linguagem e direito: perspectivas teóricas e práticas. São Paulo: Contexto, 2016.

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