Felipe Bizinoto Soares de Pádua
Resumo: Os horizontes jurídicos se expandem proporcionalmente ao processo de refinamento social. Quanto mais complexa a sociedade, mais o Direito também tem de ser, sendo que o panorama atual é de hipercomplexidade das relações intersubjetivas. Simultaneamente, o Direito se espalha por diversas relações sociais, públicas e privadas, o tornando hipertrófico, e expressa conteúdos que chegam a ser opacos para seus destinatários. A hipertrofia e opacidade andam em conjunto com a especialização excessiva das áreas jurídicas, o que é combatido pelos juristas atuais com um conhecimento interdisciplinar que estabeleça um diálogo sistêmico entre as categorias jurídicas mais gerais e as mais especiais.
Palavras-chave: Relações intersubjetivas; Hipercomplexidade social; Hipercomplexidade jurídica.
Abstract: The juridical horizons expand in proportion to the process of social refinement. The mor complex the society, more the Law also must be, and the current scenario is one of hipercomplexity of intersubjective relations. Simultaneously, the Law spreads through several social relations, public and private, making it hypertrophic, and expresses contents that become opaque for its recipients. The hypertrophy and opacity go hand with excessive specialization of the juridical areas, which is combated by the actual jurists with an interdisciplinary knowledge that establishes a systemic dialogue between the most general and the most special juridical categories.
Keywords: Intersubjective relationship; Social hypercomplexity; Juridical hypercomplexity.
Sumário: Considerações iniciais. 1. Hipercomplexidade social: os rumos de ubi societas, ibi ius. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Considerações iniciais
Qualquer um que tenha o cuidado de analisar a história vê que tal matéria não serve, necessariamente, para a correção dos erros pretéritos ou a sua não repetição pelos herdeiros cronológicos. O quadro que a história traz aos contemporâneos diz respeito às estruturas materiais e imateriais que regeram os aglomerados sociais de uma determinada época. A partir de tais estruturas é que os que se alcunham modernos desenvolvem perspectivas que tratam ou sobre o tempo deles ou o tempo que passou.
Realizando um corte global epistêmico-temporal, Thomas Marcky (2019, p. 25-30) dispensa algumas linhas sobre a história romana e a associa ao processo de maturação dos institutos jurídicos. Vez que a noção de pessoa jurídica, uma artificialidade da mente humana para facilitar interesses tutelados pelo Direito, e do gênero a que pertencem, os sujeitos de direitos, já constavam no romanismo.
Dos romanos em diante houve um fluxo crescente de novos anseios sociais que redundaram na ou na extinção ou na flexibilização ou na criação de instrumentos jurídicos. O mundo do Direito não pode, segundo Miguel Reale (1994), ignorar os fatos sociais em relação aos quais recaem exigências de juridicização (= tornar jurídico).
Como ensina Thomas S. Kuhn (2003, p. 67 e ss.), as anormalidades que o mundo fenomênico levava resultaram, muitas vezes, na ruína das bases científicas, isto é, o edifício não podia ver sua continuidade em razão de falhas constatadas nas suas fundações. Disso, a comunidade científica (os obreiros) era impelida a buscar novas bases, a fim de construir com maior solidez a ciência.
A digressão de teoria geral da ciência acima recai, também, na ciência jurídica, que sofreu com diversos processos de (re)nascimento. O Direito é, tal qual as ciências, uma fênix que vê na história os constantes processos de inovação e renovação das suas estruturas.
O Direito contemporâneo não é o mesmo dos tempos que antecederam os contemporâneos. Na verdade, traz acurada percepção Ovídio Araújo Baptista da Silva (1997), que deixa evidente a superioridade de algumas instituições jurídicas romanas não absorvidas pelos ordenamentos atuais. Aqui é que se extrai que o primeiro passo metódico não visa ao saudosismo de certas espécies, e sim a uma compreensão do que acontece.
O segundo passo está ligado a um marco temporal-histórico de crescimento do legislador, que vê em um legalismo ‘’raiz’’ a ruptura com um perfil até então volátil, o da vontade do monarca, o senhor de fato e de direito de todos e tudo. Flávio Lopez de Oñate (1953, p. 71 e ss.). Antônio Junqueira de Azevedo (1999) mostram a ascensão e queda de um paradigma jurídico no qual, praticamente, este mundo se confundia com a Lei, o paradigma da lei.
Apesar de superado, muitos dos contributos do paradigma da lei persistem, o que fica claro com a existência da função legislativa e do amparo do Estado de Direito em textos cuja comprovação é objetiva.
Partindo dessa noção de que o legislado não se confunde com o mundo jurídico é que Marcel Edvar Simões (2019, p. 203-204) suscita a compreensão de completude do ordenamento jurídico, que é composto por círculos concêntricos: (i) o núcleo é o ordenamento legal, as Leis (lato sensu) que emanam de autoridades constitucionalmente postas; (ii) o intermediário são as regras e princípios que complementam os vãos do primeiro círculo; e (iii) o maior círculo é aquele que supre os vãos deixados pelos outros dois e mostra a abertura jurídica ao diálogo com outras áreas sociais, p. ex., a economia, a política, a cultura, a religião.
Extrai-se o ordenamento legal, que ganha grandes ênfases no Brasil, ainda mais em tempos de combate à proliferação ao Covid-19, da espécie Coronavírus, que reverbera nas diversas relações sociais e, por conseguinte, afeta o Direito ao abalar uma certa situação de normalidade.
Com a persistência do paradigma da lei é que a Constituição do Brasil considera como atos relacionados ao processo legislativo as emendas à Constituição, leis complementares, ordinárias e delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Por meio desse arcabouço tão plural é que a sociedade brasileira consegue conferir certa segurança aos fatos sociais.
Se referindo às instabilidades causadas pelo Covid-19, a partir de meados de março de 2020, a Presidência da República editou diversas medidas provisórias, que se voltaram, em especial, para as relações de emprego, visto que a interrupção da circulação de produtos e serviços afeta diretamente o patrimônio dos empregadores, o que afeta, por tabela, no setor patrimonial dos empregados. Com relação a essas medidas urgentes trabalhistas, destinam-se a salvaguardar o emprego em detrimento de sacrifícios salariais. O que se vê é uma minimização dos efeitos do vírus na economia, evitando-se o que aconteceu em Portugal durante a crise financeira mundial, o estado de excepção à ordem constitucional.
Saindo da noção de temática especial (o que um vírus causa na economia e o que esta causa no Direito), tanto Karl Larenz (1956) quanto Antônio Junqueira de Azevedo (1999) mostram que a história jurídica é inserta na história social, bem como do passado (nem tão) longínquo para o presente há um progressivo processo de complexidade nas relações intersubjetivas e, por conseguinte, nas relações jurídicas.
Essa hipercomplexidade social é, também, uma hipercomplexidade jurídica, o que impulsiona (ou, ao menos, deveria impulsionar) o legislador a compatibilizar o core do ordenamento com o aspecto sociológico. E mais: não apenas o exercente típico da função legiferante legisla, mas todos as funções judiciária e executiva também o fazem, p. ex., com os regimentos internos, as resoluções, os provimentos, as portarias conjuntas, dentre muitos outros atos administrativos cujo conteúdo remetem a legislação.
Ocorre que esses influxos sofridos pelo fenômeno jurídico resultam em, muitas vezes, um processo de contradição ou incompreensão das normas legais. Como aponta Boaventura de Sousa Santos (2002), o excesso de complexidade resulta em ciência complexa em sua especialização excessiva. A fuga do senso comum e a busca pela especialidade cegaram os cientistas, o que também acontece na ciência jurídica, que mostra uma migração para conhecimentos particularizados e que não se reportam ao todo, p. ex., o Direito Digital, o Direito Desportivo, a Fashion Law.
A segunda passada metódica é, justamente, a de tratar do Direito como um todo, do sistema jurídico diante do processo de crescente complexidade pelo qual passa a sociedade, que exige respostas adequadas daquele ordenado normativo.
A partir das noções de hipercomplexidade, da crescente atuação do ordenamento jurídico e da tendência a uma especialização quase incoerente, as linhas que seguirão mostrarão dois conceitos extraídos das obras de Boaventura de Sousa Santos (2002), Carlos María Cárcova (1998) e Antônio Junqueira de Azevedo (1999), quais sejam, a opacidade e a hipertrofia do Direito.
- Hipercomplexidade, hipertrofia e opacidade: os rumos de ubi societas, ibi ius
Em caráter introdutório, cabe demonstrar que os sistemas jurídicos sempre existiram nas sociedades. Desde os primórdios, nas primeiras interações intersubjetivas, houve por bem estabelecer preceitos voltados à coordenação social para um convívio entre os seres humanos. Alysson Leandro Mascaro (2019, p. 14-15) mostra o fenômeno jurídico como um fenômeno histórico, mostrando até o equívoco dos atuais classificarem o pretérito, muitas vezes como sociedades ajurídicas.
O que há, em suma, é um acréscimo de especificidades no Direito atual em razão, justamente, da atividade inovadora humana. Veja-se, p. ex., a compreensão jurídica antes e após a Revolução Industrial, que efetivamente implementou o capitalismo para o mundo: disputas por direitos sociais se irromperam, interesses de empregados canalizados nos sindicatos, o início dos direitos de segunda geração ou dimensão.
O que se vê, portanto, é a cada dado momento histórico vigorou uma espécie de Direito ou, melhor dizendo, vigorava uma perspectiva histórico-cultural do fenômeno jurídico. A partir de certo período, o legislador (em um sentido amplíssimo de função típica e atípica) ganhou o poder de estabelecer o que seria vigente ou não, sendo que esse modelo ainda persiste: Legislativo, Executivo e Judiciário fazem Leis.
É dentro dessa perspectiva legiferante é que Flávio Lopez de Oñate (1953, p. 146) fala do arbítrio legislativo, que corresponde ao espaço deixado abaixo da Constituição e acima dos atos infralegais, o espaço reservado à conformação legislativa. Dentro desse imenso universo a ser preenchido é que, especialmente, os atos legais são criados e produzem seus efeitos.
Remetendo aos ensinamentos de Antônio Junqueira de Azevedo (1999) e Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 46-50), uma sociedade complexa tende a produzir normas mais complexas, as quais exigem maior refinamento por parte dos operadores do Direito. Acontece que essa complexidade, que tem um sentido de especialização, não pode se desprender nem da realidade nem das bases do sistema.
No fim das contas, a tão desejada autonomia das áreas jurídicas é, na verdade, restrita ao campo acadêmico, posto que as normas de processo civil não estão apenas em uma ou algumas leis processuais, e sim dispersas e conectadas no ordenamento. Apesar de haver uma tendente manifestação do jurídico local, não se deve esquecer que ele deve se reportar a um jurídico global.
Esse movimento é seguido pelas ciências atuais, sendo que a ciência jurídica mostra, ainda de forma muito tímida, a conformidade com essa movimentação geral. Os males da excessiva parcelização jurídica foram tratados por Norberto Bobbio na síntese de que ‘’Cada vez sabemos menos’’. Sabe-se muito de pouco, o que remete à alienação do cientista, e também do jurista, quanto ao seu objeto de estudo.
Fábio Siebeneichler de Andrade (1997, p. 111-143) mostra que dentro dessa parcelização é que despontam os interesses de grupos que buscam uma identidade legislativa própria, muitas vezes beirando ao engrandecimento do ato legislativo por meio do adjetivo Código (Código de Defesa do Consumidor, Código de Propriedade Industrial, Código de Processo Constitucional, Código de Processo Difuso, Código de Processo Coletivo).
A consequência prática desses diversos interessados que batem às portas legislativas é a elaboração de leis especiais: a lei da ação civil pública, a lei do mandado de injunção, a lei do mandado de segurança, o Código de Defesa do Consumidor. Tais leis, apesar do ideário de coerência trazido por Norberto Bobbio (2011, p. 79-114), suscitam inúmeros conflitos entre si (vide, p. ex., questão de fixação e competência na lei de ação popular e na lei de ação civil pública, bem como se a contagem dos prazos são ou não conforme a codificação processual comum).
Em suma, há muitos interesses fragmentados, cada um buscando um espaço ao Sol mediante sua própria lei, o que leva a um assoberbamento legislativo: não apenas o Legislativo, com suas Leis, mas o Judiciário e o Executivo são impulsionados por esses grupos parcelares, o que faz com que tenham de atuar (= realizar atos), inclusive tenham de atuar de forma a legalizar algo (vide, p. ex., a aplicação da lei de crimes raciais às hipóteses de homofobia, o implemento de políticas públicas mediante malhetadas, o Executivo legislador e suas medidas provisórias).
A esse processo de hipercomplexidade que leva a uma fragmentação social que descamba no mundo jurídico é que se dá o nome de hipetrofia jurídica. O Direito infla, especialmente por meio da atividade legiferante, para tentar acobertar, praticamente, toda relação na qual há dois ou mais sujeitos: é isso o que se vê, p. ex., nas relações privadas, com a aplicação direta de preceitos constitucionais (do Direito Público), com a crescente intervenção do Estado na ordem econômica.
Como posto, Miguel Reale (1994) e Alysson Leandro Mascaro (2019, p. 14-15) deixam claro que esse engrandecimento jurídico advém da maior ou menor necessidade – e, por isso, da compreensão – que a sociedade tem quanto à presença dos mecanismos coercitivos.
Atrelado à hipertrofia está a opacidade jurídica, que foi objeto de monografia de Carlos María Cárcova (1998), o qual delineia que as normas jurídicas se voltam a disciplinar determinadas relações sociais, todavia os seus agentes, os operadores do Direito, aplicam os ritos jurídicos sem perceberem seu alcance e significado, o que leva a um maior distanciamento entre fato e norma.
A velocidade com a qual as coisas mudam, bem como o conteúdo nelas expressas fazem com que o jurista – e o próprio leigo – fique inseguro na confecção da resposta mais adequada ao caso concreto. Existe, segundo o autor argentino (CÁRCOVA, 1998), algo interposto entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser, uma barreira que não é transparente (por isso o nome opacidade) e que torna o destinatário inapto para compreender e absorver o conteúdo e os sentidos do Direito.
A hipercomplexidade social descamba, também, em uma incompreensibilidade jurídica, eis que o aparato jurídico é extremamente diversificado e até contraditório, o que evidencia a opacidade do Direito para com o seu operador e com o seu destinatário.
Com a hipertrofia jurídica, inevitável que a sua incompreensão, ou opacidade, seja carregada, ainda mais diante dos avanços decorrentes da proliferação de dados oriunda da aliança entre meios de comunicação e tecnologia. André Karam Trindade e Alexandre Morais da Rosa (2014) se debruçam sobre o tema e mostram que a facilidade da tecnologia atual aponta um argumento de desconhecimento pautado na própria inviabilidade da ordem jurídica.
Conforme Niklas Luhmann (2016, p. 11 e ss.), a base de trabalho do jurista é a linguagem jurídica, que se torna tão complexa quanto a sociedade a que se refere o ordenamento do Direito. Os choques que o plano maior leva ao plano menor incorrem na (re)determinação do conteúdo normativo, e a atual coletividade é de tamanha complexidade que o sistema jurídico também o é. O que se vê atualmente é que as normas jurídicas chegaram a um grau de incompreensão que muitos operadores apenas seguem a liturgia na aplicação sem intermédio de qualquer crivo crítico.
O engrandecimento estrutural e a incompreensibilidade retomam o debate se o Direito é, realmente, uma estrutura normativa organizada hierarquicamente, isto é, a noção base de sistema jurídico está em discussão diante do crescimento do próprio ordenamento, ainda mais diante da facilidade na criação e distribuição informacional que os meios de comunicação possibilitam.
A premissa de que ‘’Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece’’ (art. 3º LINDB) se mostra cada vez mais frágil diante dos inúmeros atos emanados pelas autoridades: não apenas leis ordinárias e complementares, mas as portarias, as resoluções, os provimentos, os decretos e um universo de outros atos do regime de Direito Público que afetam posições jurídicas.
A frágil encruzilhada sobre a qual a própria sociedade pôs para si mostra um lado de anseios complexos que redundam em matérias jurídicas cada vez mais especiais, e do outro lado mostra uma necessidade maior de harmonização de todo o instrumental normativo, a fim de garantir a existência do próprio sistema jurídico.
De duas, uma: como ensina Thomas S. Kuhn (2003), ou as estruturas jurídicas atuais dão sinais de suas ruínas – a partir da noção elementar de sistema – ou elas passam por um processo de choque intenso com a realidade social e consequente busca, pela comunidade jurídica, de uma nova compreensão do paradigma existente.
Mais uma vez remete à perspectiva trazida por Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 46-50), que aponta uma saída adotada pelos juristas, que ampliaram a mente e começaram a desenvolver um conhecimento mais holístico, apto a abraçar as estruturas elementares do Direito e integrá-las com outras áreas do conhecimento, particularmente com a economia.
O conhecimento sai da sua fragmentação e de seu isolamento, e começa a reputar ao todo, ao mesmo tempo o cientista produz um conhecimento global e local. Com essa abertura do ordenamento jurídico é que se percebe uma luz para a própria compreensão escalonada. O paradigma do caso (AZEVEDO, 1999) demonstra essa busca por amplitude dos horizontes para uma melhor compreensão e aplicação das normas jurídicas para os casos.
É inevitável que a sociedade leve ao aprofundamento dos temas propostos à juridicidade e, por conseguinte, exija dos aplicadores jurídicos uma especialidade que atenda ao nível de profundidade. Ocorre que esse nível de profundeza não deve escapar aos aspectos mais amplos e gerais do Direito e das outras áreas cognitivas.
Outrossim, além de recorrerem para as ciências, Thomas S. Kuhn (2003, 67 e ss.) mostra um segundo recurso utilizado pelos operadores do Direito, que buscam em linhas mais gerais na Filosofia, nas indagações sobre o próprio conhecimento a forma como captá-lo, organizá-lo e alastrá-lo no núcleo social.
Ronald Dworkin, Robert Alexy, Ian Shapiro, Boaventura de Sousa Santos são exemplos de filósofos do Direito no estrangeiro; Tércio Sampaio Ferraz Jr., Alysson Leandro Mascaro e Lênio Luiz Streck são exemplos de jusfilósofos brasileiros. Todos pensam o fenômeno jurídico através do instrumental filosófico, o que leva a um refinamento gnosiológico que atinge as próprias estruturas paradigmáticas.
Considerações finais
À guisa conclusiva, a história da sociedade é a história da juridicidade, mostrando que os caminhos do Direito seguem em passos que foram antecedidos pela comunidade humana. O mundo jurídico adere-se ao plano social e expressa com maior ou menor fidelidade os anseios sociais quanto à fixação de comportamentos permitidos, proibidos e obrigatórios.
O que se vê no contexto histórico global social é um progressivo processo de hipercomplexidade, que é transportado para o plano da juridicidade. Na contemporaneidade, este sofre, simultaneamente, de hipertrofização e de opacidade.
A primeira está no fato de que as normas jurídicas se espraiam sobre diversos setores sociais, tanto na esfera privada quanto na esfera pública. Chega-se a lugares antes inimagináveis em razão da constante abertura sistemática.
A segunda característica é que a complexidade jurídica afeta a relação entre o sistema e seus destinatários ao ponto de tornar o conteúdo normativo incompreensível por quem deve cumprir com ele e, também, por quem deve aplicá-lo. O Direito torna-se opaco, carente de transparência e incompreensível a quem deve obedecê-lo.
Depreendeu-se que um movimento constatado nas áreas jurídicas atuais é de fragmentação, um rumo à excessiva especialização, o que se pode ver com a busca de interessados por operadores de maior renome no segmento, p. ex., do Direito Digital, da Fashion Law, do M&A.
A soma das características com o rumo aparentemente adotado pelo campo jurídico mostra um comprometimento da noção basilar de sistema jurídico, compreendido como a estrutura de normas hierarquicamente dispostas, encontrando, hodiernamente, na Constituição a unidade e o grau máximo do escalonamento.
Para contornar essa desestruturação aparente é que os operadores do Direito buscam rumos extrajurídicos e entram em contato com outros campos do saber – a economia, a política, a religião, a cultura -, adotando uma compreensão mais holística do caso que lhe é levado, relacionando as especificidades tanto do caso quanto da matéria jurídica envolvida com o todo (não só o sistema jurídico, mas com o conhecimento em geral).
Um segundo recurso utilizado por muitos estudiosos do fenômeno jurídico é a revisão das bases estruturais a partir dos contributos filosóficos gerais, o que leva a uma resposta com maior profundidade conteudística e crítica acerca dos aparatos preexistentes, inclusive desenvolvendo uma nova perspectiva sobre antigas estruturas. Aqui, o cientista do Direito mostra um protagonismo em retomar a noção sistemática a partir do delineamento da própria estrutura jurídica a partir da compreensão interdisciplinar.
Em síntese, a solução buscada pelos juristas para manutenção do ordenamento jurídico frente sua hipertrofia e opacidade, com rumos de fragmentação, é realizar uma interconexão entre global, nas teorias gerais, e local, nas teorias especiais, entre as premissas mais amplas e as premissas mais detalhadas, e que são complementadas pela abertura sistêmica aos contributos de outras áreas do saber.
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