SOCIAL MOVEMENTS IN THE FIGHT FOR RIGHTS: THE CRITICAL THOUGHTS OF KARL MARX AND NIKLAS LUHMANN.
*Matheus de Almeida
Resumo: O estudo apresenta duas análises críticas do direito, inspiradas nos estudos de Karl Marx e Niklas Luhmann, com objetivo principal de fazer uma crítica jurídico-política aos movimentos sociais que lutam somente pela via do direito, desconsiderando a luta política. Traz também um objetivo secundário, visando expor os pensamentos desses autores que não são ensinados como complemento na formação jurídica da ciência pura do direito, ou seja, os juristas contemporâneos são formados somente com uma visão lógica da ciência do Direito. Desta forma, o artigo se propõe a apresentar uma crítica construtiva com a finalidade de demonstrar os limites da democracia ao qual o direito se propõe a assegurar, com efeito de enriquecer os debates dentro dos movimentos sociais, para que a transformação social não fique somente na via burocrática positivada, e sim no real combate à desigualdade social, construindo um saber coletivo. Conclui-se o estudo voltando a importância de se resgatar os debates relacionados as lutas de classes, que é desconsiderada pela ciência jurídica contemporânea.
Palavras-chave: Filosofia do Direito. Teoria crítica do direito; Marxismo e direito; Luhmann e direito; Direito e política.
Abstract: The study presents two critical analyzes of law, inspired by the studies of Karl Marx and Niklas Luhmann, with the main objective of making a legal-political critique of social movements that fight only by way of law, disregarding the political struggle. It also has a secondary objective, in order to expose the thoughts of these authors who are not taught as a complement in the legal formation of the pure science of law, that is, contemporary jurists are formed only with a worldview. In this way, the article proposes to present a constructive critique with the purpose of demonstrating the limits of the democracy to which the law proposes to ensure, in order to enrich the debates within the social movements, so that social transformation is not only on the road bureaucratic, but in the real fight against social inequality, building a collective knowledge. The study concludes by highlighting the importance of rescuing the debates related to class struggles, which is disregarded by contemporary legal science.
Keywords: Philosophy of law. Critical theory of law; Marxism and law; Luhmann and law; Law and politics.
Sumário: Introdução; 1. Movimentos de luta por direitos: sob enfoque da crítica marxista; 2. Crítica dos movimentos de protestos no pensamento de Niklas Luhmann; Considerações finais; Referências.
Introdução
De um lado, pode-se dizer que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo, sendo hoje, ano de 2018, a nona maior economia (NAKAGAWA, 2016), mas já chegou a ser a sexta maior economia no ano de 2011 – com projeções na época para ser a quinta maior economia no ano de 2020 (COSTA, 2011) o que possivelmente não se concretizará devido à crise política instaurada no ano de 2016. Por outro lado, encontra-se a miséria, diante do risco do país voltar para o mapa mundial da fome (NASSIF, 2017), além disso, no nível de distribuição de renda está na décima posição como o mais desigual do mundo (CORRÊA, 2017). Dados como os citados, são reflexo do sistema capitalista no Brasil, em que se concentra cada vez mais riquezas nas mãos de poucas pessoas, semelhante ao que ocorre em todos os outros países, pois segundo pesquisa da Oxfam, 1% dos mais ricos concentram metade da riqueza do mundo (REUBEN, 2016), bem como, somente oito pessoas concentram mesma riqueza que a metade mais pobre da população mundial (PRESSE, 2017).
Neste sentido, analisando a história do Brasil, denota-se que a desigualdade social sempre esteve presente. Como tentativa de solucionar essa desigualdade, a quase três décadas, no ano de 1988, a sociedade brasileira por meio da Constituição Federal resolveu adotar o modelo de Estado Social, dando aos direitos sociais a qualidade de direitos humanos fundamentais, ou seja, no plano teórico avanços significativos para que se possa trazer uma melhora na qualidade de vida da população, afim de tornar o dia-a-dia das pessoas mais dignos. Deste modo, os direitos sociais podem até serem considerados recentes no Brasil, já que três décadas de existência é um período pequeno para os 517 anos de história do país. Contudo, do ponto de vista de avanço civilizatório, o discurso dominante é que, em quase três décadas de avanços tecnológicos o Brasil poderia ter conquistado sólidas bases por meio de políticas públicas para promover a igualdade social, e não, como mostram os números supracitados: um país onde os ricos marcham para o acúmulo de riqueza infindável e pouco se faz para uma justa distribuição de renda.
Como solução para essa desigualdade o método proposto pela população é sempre a via do direito, quanto mais aumenta a desigualdade, mais direitos nascem para tentar suprir essa deficiência. E, atualmente, o instrumento utilizado pela população para se exigir mais direito, são os protestos por meio de movimentos sociais, sindicatos, etc., que unidos, algumas vezes até conseguem alcançar avanços jurídicos, ou evitar retrocessos, mas, questiona-se: É possível alterar a exploração do homem pelo homem, pela via do direito?
Para responder essa questão, como orientação principal desse artigo, utiliza-se as obras de Pachukanis, para refletir sobre o método de Marx aplicado ao direito; bem como, utiliza-se da obra de Bachur, para fazer uma aproximação da teoria dos sistemas de Luhmann com Marx, que diz: “Capital e autopoiese são gêmeos siameses: ambos representam circuitos operativos fechados, lógicas objetivas de auto-referência estruturadas por processos de produção, circulação e acumulação”. (BACHUR, 2010, p. 257)
Assim, inicia-se o debate a seguir, com uma abordagem simples, para que o leitor compreenda de modo mais didático os pensamentos de Karl Marx e Niklas Luhmann, que trabalham em seus estudos uma crítica ao direito:
- Movimentos de luta por direitos: sob enfoque da crítica marxista.
Para entender o pensamento de Marx, a priori é necessário compreender a metodologia utilizada, que é o materialismo histórico/dialético, pressupondo dois momentos inseparáveis: a investigação (pesquisa analítica, reflexiva, do objeto, antes de sua exposição metódica) e a exposição (apresentação crítica do objeto com base em suas contradições), ou seja, reconstruindo criticamente, buscando compreender o movimento real, no qual o desenvolvimento histórico se apresenta sob tensão de forças opostas, geradas nas condições materiais da vida em sociedade, segundo Meksenas (2011, p. 88):
O método de Marx concebe os fenômenos em análise como sendo históricos, dotados de materialidade e movidos pela contradição: afirmação-negação- nova afirmação. Desse método resulta a tese que concebe o conhecimento como um movimento que se dá no marco da luta de classes e, assim, a ciência e a pesquisa afirmam-se como fenômenos que contribuem para a manutenção da atual sociedade capitalista. Por outro lado, as classes trabalhadoras e aquela intelectualidade que se aliar a seus interesses tornar-se-ão os sujeitos da contradição dessa sociedade também no campo do conhecimento, isto é, capacitar-se-ão a estabelecer uma nova afirmação: a luta por uma nova ciência e por pesquisas comprometidas com os valores populares.
O pensamento de Marx está ligado a materialidade econômica e é assim que ele irá iniciar seus estudos interpretando as relações jurídicas, além disso, deve-se acrescentar que ao contrário da ciência iluminista que ronda o saber jurídico até hoje, o autor não coloca o indivíduo como sendo o centro do mundo, dotado de uma consciência que vem de dentro, natural do espírito humano, apartado da sociedade; ao contrário, ele defende que até a consciência humana é formada pelo contexto da vida material, das relações de produção e convivência social, as pessoas são submetidas a terem vidas já pré-definas desde seu nascimento, por exemplo, a criança que nasce no seio de uma família privilegiada, terá uma educação superior a uma criança filha de um desempregado, meios de vida diferenciado, e até forma de pensamento diferenciados, no caso na criança privilegiada, será educada à manter as bases sociais, políticas, jurídicas e econômicas, para defender sua forma de vida. Desta forma, o Estado nada mais é do que uma construção dos burgueses para manter os seus privilégios e suas propriedades:
Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política. (…) O resultado geral a que cheguei é que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 2008, p.47) (grifo nosso)
Assim, com base em estudos marxistas, quem melhor inicia a aplicação do método de Marx na Teoria do Direito é Pachukanis (2017, p.124), que atribui ao direito a possibilidade da circulação da mercadoria, em celebre passagem: “O fetichismo da mercadoria”[1] é completado pelo fetichismo jurídico”, levando a uma reflexão crítica para a sociedade que busca resolver os conflitos sociais criando leis, e na prática, as leis acabam sendo a estrutura do Estado que permitem os excessos, pois como mencionado, o Estado é uma forma de dominação da sociedade burguesa. Nesse mesmo sentido, diz um importante pensador marxista, que as formas de igualdade determinadas pelo direito, têm um campo muito reduzido, seria uma igualdade formal, dada somente no papel, e é dessa forma que ele entende a igualdade jurídica, não como uma igualdade material de colocar trabalhadores e capitalistas com o mesmo nível de força:
Devemos tomar cuidado com o uso dos direitos do homem! Se num primeiro momento, e num curto período, eles podem constituir uma base para a luta, se, em certo sentido, a extensão dos direitos aos trabalhadores pode significar um “progresso”, esse “progresso” carrega seus próprios limites. Porque a reivindicação de igualdade que não deixa o campo do direito não pode ir além da igualdade jurídica, logo das relações de produção capitalistas. (EDELMAN, 2016, p.76)
Em relação a questão das classes sociais, não se pode reduzir toda complexidade somente em duas classes, por isso Marx trabalha com a divisão mais oposta e conflitante que existe dentro da sociedade capitalista, os detentores dos meios de produção – burgueses; e, os expropriados dos meios de produção – trabalhadores. Dentro dessa oposição social, constata que o trabalhador é obrigado a vender sua força de trabalho (mercadoria), se quiser sobreviver. Com isso surge o trabalho não pago, ou seja, a forma que o capitalista irá transformar valor em mais-valor, sua fonte principal é no processo de produção. Assim, no meio desse processo de produção, onde o burguês paga ao trabalhador por sua força de trabalho (mercadoria) um valor menor pelo que ele vende o produto final (mercadoria), com isso o burguês extrai do trabalhador, trabalho não pago. Esse processo produtivo é a base de toda a sociedade capitalista, o que permite a existência do processo de valorização do valor:
No trabalho escravo, mesmo a parte da jornada de trabalho em que o escravo repõe o valor de seus próprios meios de subsistência, em que, portanto, ele trabalha, de fato, para si mesmo, aparece como trabalho para seu senhor. Todo seu trabalho aparece como trabalho não pago. No trabalho assalariado, ao contrário, mesmo o mais-trabalho ou o trabalho não pago, aparece como trabalho pago. No primeiro caso, a relação de propriedade oculta o trabalho escravo para si mesmo; no segundo, a relação monetária oculta o trabalho gratuito do assalariado (MARX, 2017, p. 610).
Compreendido o pensamento metodológico de Marx de uma forma resumida, volta-se para o objeto desse estudo, ou seja, os movimentos sociais, para apresentar uma crítica marxista desses movimentos que lutam por direitos sociais no Brasil, é necessário trazer algumas das várias constatações que Marx aborda em suas obras sobre o direito. Nesse sentido, a relação jurídica contratual para Marx está entrelaçada com a relação econômica, ou seja, o processo de produção e a mais-valia:
Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica (MARX, 2017, p.159).
A teoria do direito marxista expõe que essa relação de exploração econômica, gera uma tensão constante entre essas classes, por isso precisa ser institucionalizada uma pacificidade por meio da forma jurídica, pois o burguês – detentor dos meios de produção – necessita que sua propriedade não seja reivindicada por outros, e assim surge a figura do Estado, para que proteja as suas posses, além de garantir que ele compre a força de trabalho (mercadoria), e assim consiga, por meio dos seus meios de produção, produzir mais mercadorias (produtos). Deste modo surge a figura do “sujeito de direito”:
Assim, o sujeito de direito é um possuidor de mercadorias abstrato e ascendido aos céus. Sua vontade, entendida no sentido jurídico, tem um fundamento real no desejo de alienar ao adquirir e adquirir ao alienar. Para que esse desejo se efetive, é indispensável que a vontade do possuidor de mercadorias vá ao encontro de um desejo de outro proprietário de mercadorias. Juridicamente, essa relação se expressa na forma do contrato ou do acordo entre vontades independentes. Por isso o contrato é uma parte constitutiva da ideia de direito (PACHUKANIS, 2017, p.127).
O ponto chave desse modelo de sociedade, é que o trabalhador não tem uma liberdade real, a única liberdade que tem, é de qual força de trabalho que ele irá vender para conseguir sobreviver, já que ele não é detentor de nenhum meio de produção. Nas palavras de Marx (2017, p.648): “O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela mudança constante dos padrões individuais e pela fictio juris do contrato”. Acrescenta Pachukanis (2017, p.118):
O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurídica do contrato. Acredita-se que esses exemplos sejam suficientes para se admitir o significado decisivo da categoria de sujeito para a análise da forma jurídica (PACHUKANIS, 2017, p.118).
Em outras palavras, o trabalhador, por meio da venda de força de trabalho, torna-se mercadoria:
Na realidade o trabalhador pertence ao capital ainda antes de vender-se ao capitalista. Sua servidão econômica é a um só tempo meada e escondida pela renovação periódica de sua venda de si mesmo, pela mudança de seus patrões individuais e pela oscilação do preço de mercado do trabalho (MARX, 2017, pp. 652-653).
Com isso, a igualdade jurídica pela análise marxista, é uma igualdade formal, pois, garante apenas a igualdade de venda e aquisição de mercadorias, mas, aquele que detém os meios de produção, podem vender a mercadoria (produto), enquanto os expropriados só podem vender sua força de trabalho (mercadoria), com isso, não é possível uma igualdade material para essas classes econômicas distintas. Deste modo, os direitos sociais têm por finalidade, assegurar a igualdade formal, de uma sociedade desigual, já que poucos são compradores e muitos vendedores de força de trabalho.
Parafraseando um dos pontos da teoria marxista, sobre a aparência e a essência dos objetos de estudo, pode-se dizer que na teoria crítica marxista para o direito, entende-se que o modo de se distribuir riqueza realizado pelo Estado Social Democrático – modelo ainda contemporâneo – não é o modo mais eficaz para transformar as desigualdades sociais existentes, pois, traz a aparência de que o Estado se propõe a reduzir desigualdades, de modo que essas mudanças sempre ficam para o futuro e nunca realmente são concretizadas, sendo que, em sua essência, mantém uma passividade entre os não detentores dos meios de produção, pois a classe trabalhadora que luta somente para a positividade de leis em relação aos direitos sociais, pode até concretizar suas pautas e tornar as reivindicações em lei vigente, porém, a sua aplicabilidade e efetividade sempre dependerá das formas econômicas-políticas.
Assim, toda vez que sociedade, por meio de movimentos sociais, luta por direitos, está lutando pela forma jurídica capitalista, ou seja, continua mantendo a mesma forma Estatal, permitindo a continuação da venda da força de trabalho e a exploração do mais-valor, mantendo um Estado que foi criado para atender os anseios da burguesia, e que sempre irá colocar a questão econômica-política como prioridade em relação aos direitos sociais, que acabaram sendo apenas normas positivadas formalmente, nunca concretizadas.
- Crítica dos movimentos de protestos no pensamento de Niklas Luhmann
Por um outro ponto de vista crítico em relação a luta por direitos, Niklas Luhmann traz a teoria dos sistemas sociais, ou seja, uma nova metodologia para se analisar a sociedade, diferente das teorias tradicionais que partem da análise de sujeito/objeto, Luhmaan irá utilizar a comunicação como elemento principal de sua teoria, sendo a comunicação uma operação única, que se autoreproduz, mas que, mantem a diferenciação entre sistema/ambiente – que será explicado a seguir -, de modo que:
A teoria dos sistemas deve então poder tudo explicar (“universalidade”), inclusive o próprio teorizar (“reflexividade”), o que faz explicando tudo como sendo sistema (“auto-referência”) + o que não é esse sistema: o meio circundante ou ambiente (Umwelt). A “diferenciação sistêmica” entre “sistema” e “ambiente” é o artifício básico empregado pela teoria, diferenciação essa que é trazida “para dentro” do próprio sistema, de modo que o sistema total, a sociedade, aparece como “ambiente” dos próprios sistemas parciais, que dele (e entre si) se diferenciam por reunirem certos elementos, ligados por relações, formando uma unidade (GUERRA FILHO; CARNIO, 2009, p. 208).
Sua teoria compreende que existem basicamente três tipos diferentes de sistemas, o sistema biológico, o psíquico e o social. No caso do sistema social, Luhmann não trabalha com a diferenciação de sujeito/objeto, ou seja, o autor acredita que as consciência e inconsciência de um indivíduo são formadas pelo coletivo, e não por um espírito interno, pela naturalização das coisas, os indivíduos compõe um todo, assim, têm que analisar o coletivo como sistemas, e esses são sistemas autopoiéticos, que reproduzem a si mesmo. Nas palavras de Luhmann (2011, p. 293):
A teoria geral dos sistemas autopoiéticos exige que se indique exatamente a operação realizada pela autopoiese do sistema, delimitando assim, o sistema em relação ao restante. No caso dos sistemas sociais, isso ocorre mediante a comunicação. Exclui-se, com isso, toda determinação psicológica da unidade dos elementos dos sistemas sociais. Tais sistemas não constam de sistemas psíquicos e, muito menos, de seres humanos de carne e osso.
Com isso, a sociedade moderna se apresenta com uma função diferenciada, em outras palavras, atitudes isoladas de certas pessoas – subsistemas – não podem alterar um sistema, pois:
As sociedades estruturadas a partir da diferenciação funcional – sociedades modernas – diferenciam-se em subsistemas funcionais que são autopoiéticos e auto-referênciais, nos quais o que importa para a construção do sistema não é mais a posição de cada subsistema, mas sim a função que cada um desempenha na sociedade. (BÔAS FILHO, 2009, p. 105)
Nesse sentido a teoria do Luhmann visa reduzir a complexidade existente na sociedade apresentando um paradoxo, de um lado, reduzindo os conflitos existentes; de outro lado, permitindo que os conflitos existam dentro do sistema, para que o sistema não se altere diante de provocações, sendo o sistema do conflito, semelhante ao direito, um sistema imunológico:
Tem-se conflito sempre que uma comunicação é contraditada ou quando uma contradição é comunicada: só há conflito quando se comunicam expectativas e, em função disso, também a não-aceitação dessas expectativas. A importância da contradição como forma semântica está em preservar temporariamente expectativas incompatíveis: ela aumenta a complexidade do sistema ao permitir um excesso de possibilidades em uma situação de pressão por seleção. Por essa razão, a contradição é instável e não pode ser reproduzida indefinidamente, exige a diferenciação de um sistema específico. Esse sistema é justamente o conflito. As contradições funcionam como um sistema imunológico dentro de um determinado sistema autopoiético, disparando a necessidade de redução de complexidade (BACHUR, 2010, p. 242-243).
De forma mais simplificada, pode-se dizer que um sistema só continua existindo se ele permitir que exista mudanças superficiais, por exemplo a Constituição Federal de 1988 foi concebida com uma série de artigos, mas não eram todos artigos cláusulas pétreas, a própria Constituição Federal, estabeleceu a existência de sua renovação e transformação, para que ela continuasse sobrevivendo durante os anos, sem alterar a sua essência principal. E, dentro desses últimos 30 anos, a Constituição Federal realizou várias autopoiese, ou seja, trocou vários artigos seus, sem trocar a forma social ao qual ela foi concebida para guardar, o capitalismo.
Compreendido o método de Luhmann, entende-se que, os movimentos sociais que exigem mais direitos, se apresentam como uma forma de conflito dentro do sistema jurídico, contribuindo para manter a sociedade funcionalmente diferenciada, pois o fazem de modo suportável pela sociedade, não há uma violência que pleiteia uma nova forma de sociedade, mas sim, uma luta para conquistar mais espaço dentro da sociedade já posta, acrescenta Bachur (2010, p. 251):
O paradoxo dos movimentos de protestos está no fato de que eles tentam mobilizar a sociedade contra ela mesma, a partir de dentro dela mesma, mas como se estivessem fora ou acima da sociedade (…) os movimentos de protestos fazem com que a reação da sociedade e suas contradições internas reforce as estruturas contraditórias da própria sociedade, bloqueando a passagem a modos de vida autenticamente novos.
Vale ressaltar, que esses novos movimentos sociais, que buscam direitos, são diferentes dos movimentos de outrora, defendido pela teoria da revolução marxista, que propõe uma nova forma social. O conflito existente nos movimentos que lutam por direitos, são atitudes já previstas pelo sistema funcionalmente diferenciado, não nega o sistema, mas como já mencionado, contribui para sua existência:
Nesse sentido, o conflito, só pode existir como conflito (de antemão) negado porque se torna fundamento de uma decisão: uma contradição – que poderia significar a negação da sociedade funcionalmente diferenciada – é assim convertida em um momento de sua afirmação. Isso ajuda a entender o porque o espírito do partido comunista, o espírito da revolução, rondava a Europa: a revolução somente poderia ser pensada como um conflito generalizado para todas as dimensões simbólicas da vida – uma revolução social, como fala Marx n’O Dezoito de Brumário. (BACHUR, 2010, 249)
Esses novos movimentos sociais se apresentam nos mais variados tipos de grupos fracionados, como: movimento para reduzir passagem de ônibus, direitos trabalhistas e previdenciários, grupos feministas, contra o racismo, etc. Todos contribuem para gerar um debate social, isso é inegável, mas não tem força para alterar a sociedade materialmente, assim:
Os movimentos sociais fazem a crítica da sociedade. Logo, seus alvos são as lacunas, as inconsistências, as perversões, o mau funcionamento e os efeitos do próprio funcionamento dos sistemas de função. A sociedade que provoca a mobilização dos movimentos sociais é uma sociedade diferenciada funcionalmente. É nesse ambiente que os protestos são construídos (CAMPILONGO, 2012, p. 63).
Ressalta-se, os novos movimentos sociais são fracionados, lutam por questões pontuais, e são incapazes de se unirem para uma causa maior e de fato coletiva, como por exemplo, a emancipação material e intelectual da classe trabalhadora sobre a exploração do homem pelo homem:
(…) os movimentos sociais são radicalmente individualistas (…) este engajamento se dá antes em bases rigorosamente individuais, relativas a problemas contemporâneos de busca de sentido e de auto-realização pessoal. (…). Os novos movimentos sociais não são rigorosamente sociais porque não estão plenamente constituídos na esfera objetiva de generalização simbólica e produção de sentido; pois sua manifestação, nessa esfera, tem recorrentemente de ser recuperada e imputada ao comprometimento obtido na esfera da consciência individual (BACHUR, 2010, p. 251).
Pode-se citar o exemplo dos movimentos sociais que ocorrem no Brasil em 2013, onde os movimentos sociais reivindicavam não fazer parte da política, tinham como bandeira principal não serem partidários, inclusive rasgavam e queimavam bandeiras de partidos e expulsavam militantes políticos de suas manifestações. Esses movimentos não almejam ter o poder o Estado, mas provocam os partidos para que eles abraçassem as suas reivindicações:
Os movimentos de protestos introduzem uma diferença centro/periferia, mas se localizam na periferia, notadamente na periferia do sistema político. A periferia protesta contra o centro do sistema, exigindo dele que a leve a sério (…). Isso o diferencia da oposição partidária: esta última faz parte do sistema político e se caracteriza não por ser contra o governo, mas pela prontidão em assumir o poder ou, pelo menos em influenciar e co-determinar os rumos do governo. (BACHUR, 2010, p. 252-253)
Assim, pode-se dizer que os movimentos sociais que lutam por direitos, são uma parte da sociedade funcionalmente diferenciada, que em nada alterará de forma substancial, pois as suas reinvindicações, são para serem reconhecidas as suas pautas dentro do Estado, para que os partidos políticos façam suas pautas virarem leis, uma mudança de dentro do sistema. Não levam em consideração que tipo de Estado é, qual a sua origem, a quem ele serve, e desconhece totalmente o papel das classes sociais e a influência econômica material da vida coletiva.
Considerações finais
Conclui-se que somente o direito não pode alterar a sociedade. Sendo assim, contata-se que os movimentos sociais, frutos da sociedade moderna fracionada e individualizada, não consegue construir uma força de luta que coloque em xeque o sistema de exploração existente, pelo contrário, a sociedade moderna de certa forma, de modo “consciente” ou “inconsciente”, acaba aceitando a exploração do homem pelo homem, mas prefere adotar a narrativa de lutas imediatas, mais fáceis de se lutar, que não cause tanto atrito, que luta dentro da passividade que o sistema permite para que continue realizando sua autopoiese e se reproduzindo sem ameaças.
Por fim, o que os movimentos sociais que lutam por direitos buscam, é a inclusão no sistema, seja representativo para grupos de minorias, seja para uma inclusão social no consumo de produtos, mas se limitam a lutar isoladamente, ou seja, um avanço social somente para a inclusão de seus membros, de modo a não compreender ou não se interessar por uma nova forma social, uma forma que abarque todos seres humanos, preferem a luta por direitos, do que partirem para uma mudança transformadora.
Referências
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* Bolsista CNPq. Doutorando em Filosofia do Direito – PUC/SP. Graduado e Mestre em Teoria do Direito e do Estado – Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Advogado. E-mail: [email protected]
[1] Em Marx a célula fundamental do capitalismo é a mercadoria, que passa por dois processos, o da produção e o da circulação. O fetichismo é um valor simbólico atribuído a uma mercadoria, que excede a sua utilidade real, fazendo que seja necessário para o homem o consumo desse valor simbólico, ocultando a forma como esse produto foi produzido. Para Marx (2017, pp.147-148): “O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias”. (Grifo nosso).