Autora: Luiza Santos Rodrigues <[email protected]>. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (2019).
Orientadora: Ana Cláudia Vinholes Siqueira Lucas < [email protected]>. Advogada criminalista. Doutora em Política Social pela Universidade Católica de Pelotas (2018). Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999).
Resumo: o presente artigo visa investigar a efetividade dos institutos de proteção à mulher vítima de violência doméstica dispostos na Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha. Para tanto, serão analisados determinados dispositivos da lei e, de forma empírica e qualitativa, se buscará evidenciar quais as dificuldades enfrentadas pelas vítimas para por em prática o seu direito em relação a tais mecanismos, na cidade de Pelotas – RS. Por fim será abordado como as questões atinentes à violência de gênero podem influenciar na forma como as vítimas sofrem violência doméstica.
Palavras-chave: Violência doméstica; Lei Maria da Penha; pesquisa empírica.
Abstract: the present article aims to investigate the effectiveness of the protection institutes for women victims of domestic violence provided in Law 11.340/06, the Maria da Penha Law. Therefore, the some delimited articles in law will be analyzed and, empirically and qualitatively, it will seek evidence what are the difficulties faced by victims to put into practice their right in relation to such mechanisms. Finally, it will be approached how issues related to gender may influence the way victims suffer domestic violence.
Keywords: Domestic violence; Maria da Penha Law; empirical research.
Sumário: Introdução. 1 Origens, perspectivas e desafios: estudo da Lei 11.340/06. 2. Para além da lei: pesquisa empírica sobre a aplicação da Lei Maria da Penha e os institutos de proteção à mulher na cidade de Pelotas. 2.1 A assistência articulada. 2.2 As medidas protetivas de urgência. 2.3 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. 2.4 A audiência de retratação. 3. Por trás da lei: questões de gênero, classe, maternidade e a importância da Lei Maria da Penha para uma mudança de paradigma. 3.1 A violência de gênero. 3.2 Maternidade. Conclusão. Referências.
Introdução
A Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, passou a compor o ordenamento jurídico pátrio após um processo reivindicatório de vários setores da sociedade brasileira e também da comunidade internacional, que cobravam do Estado brasileiro instrumentos efetivos de combate à violência doméstica.
Todavia, ao passo que os movimentos feministas rogavam por uma resposta mais rígida às agressões ocorridas dentro da relação conjugal, começava no direito brasileiro a tendência pelo modelo consensual de justiça. Os Juizados Especiais Criminais foram inaugurados pela Lei 9.099/95 e objetivam, sempre que possível, a composição civil dos danos, o acordo entre as partes e a celeridade processual.
É nesse embate, de abordagens mais criminalizantes ou mais consensuais, que é criada a Lei 11.340/06, batizada com o nome da farmacêutica Maria da Penha Fernandes que teve seu caso nacionalmente conhecido, não somente pela violência dos atos praticados pelo ex-marido, mas também pela morosidade da justiça brasileira em punir o agressor.
A lei inaugurou uma série de mecanismos que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tais como os Juizados de Violência Doméstica, a rede articulada de atendimento à mulher e as medidas protetivas.
Portanto, o objetivo central deste artigo é investigar a efetividade dos principais institutos de proteção à mulher vítima de violência doméstica trazidos pela Lei 11.340/06, quais sejam, a assistência articulada, as medidas protetivas de urgência, o Juizado de Violência Doméstica e a audiência de retratação. Para tanto, se utilizará da abordagem metodológica indutiva: a partir de informações particulares, se buscará chegar a uma premissa geral.
O método de abordagem utilizado é definido por Ventura (2002, p. 78) como o “processo mental pelo qual, partindo de dados particulares, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida nas partes examinadas”. Portanto, a partir dos dados colhidos em campo, se procurará analisar a efetividade dos institutos de proteção previstos na Lei Maria da Penha.
Para a produção dos dados a seguir analisados foram realizadas entrevistas semiestruturadas que, quando permitido pelo entrevistado, foram gravadas e posteriormente transcritas. Os entrevistados foram convidados a participar do presente estudo de forma voluntária, sendo cientificados do objeto de investigação, dos riscos mínimos da participação, bem como dos benefícios em contribuir para a produção científica acerca do tema, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido entregue na ocasião da entrevista.
É importante ressaltar que não foi perquirido evidenciar um padrão nos dados obtidos, mas sim analisar qualitativamente a realidade trazida em cada relato, levando em conta o contexto da entrevista.
Ao analisar os dados produzidos foi levado em conta que, em decorrência da técnica empregada, foi dado enfoque às perspectivas das representações sociais, observando a ocorrência de valores similares, mas sem presumir que os resultados obtidos revelassem com precisão o panorama geral da violência doméstica na cidade de Pelotas. Neste sentido, o fator temporal foi determinante para a delimitação do nicho de entrevistados, sendo perfeitamente possível que a presente pesquisa tenha continuidade.
Neste sentido, a preocupação central da metodologia adotada foi dar voz às mulheres vítimas de violência doméstica, a partir das suas percepções acerca das agressões que sofreram e da tutela estatal.
Em consonância à cláusula de confidencialidade constante no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os nomes das vítimas entrevistadas foram substituídos por nomes fictícios. Esta técnica, ao mesmo tempo em que protege a identidade do entrevistado, permite que o leitor estabeleça uma conexão entre o locutor e os excertos utilizados ao longo do trabalho.
Os nomes fictos, por sua vez, são nomes de cristais e foram escolhidos pela autora em homenagem às mulheres entrevistadas, que enfrentam as intemperanças da vida com resistência e altivez. Portanto, compõem o nicho de vítimas entrevistadas:
- Ametista: ensino superior incompleto, desempregada, mãe de dois adultos e uma adolescente;
- Jade: ensino superior completo, servidora pública, mãe de uma criança;
- Rubi: ensino superior completo, professora, mãe de uma criança.
Desta forma, a partir da metodologia apresentada, buscar-se-á chegar ao objetivo central deste artigo, que é a investigação da efetividade dos institutos de proteção à mulher da Lei Maria da Penha.
Para tanto, primeiramente, será feita a análise desses institutos em sua forma positivada no diploma legal e também a comparação com os dados produzidos de maneira empírica. Desta forma, serão apresentados os relatos das vítimas acerca das experiências e eventuais dificuldades que tiveram quando se utilizaram dos mecanismos de proteção da lei e também os relatos dos profissionais que atuam no âmbito da violência doméstica na cidade de Pelotas – RS.
Ao final, será trabalhado o conceito de violência de gênero, tendo em vista que a Lei 11.340/06 está pautada no combate a este tipo de violência e também porque que os relatos colhidos deram conta de outras dificuldades enfrentadas pelas vítimas de violência doméstica que não guardam estreita relação com má aplicação da lei, porém influenciam na efetividade dos institutos de proteção.
1 Origem, perspectivas e desafios: estudo da Lei 11.340/06
A elaboração da Lei 11.340/06 é fruto de um processo reivindicatório de diversos setores da sociedade brasileira e também da comunidade internacional. Compreender como ocorreu este processo é de especial importância para compreender também como a lei é aplicada hoje e as principais dificuldades encontradas pela clientela atendida.
Em 1995 a violência contra a mulher passou a ser entendida, no direito pátrio, como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Decreto n.º 1.973/96). A partir daquele momento, ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, o Estado Brasileiro comprometia-se a adotar medidas efetivas para prevenir, punir e erradicar tal violência, bem como modificar padrões sociais que respaldassem a tolerância da violência contra a mulher.
Em período contemporâneo, foi sancionada a Lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, pautados, sobretudo, pela economia processual e celeridade. A inovação dos Juizados diz respeito à busca, sempre que possível, pela transação e conciliação entre as partes. Desta forma, especialmente no que concerne ao processo penal, a lei conferiu uma roupagem mais dinâmica à investigação de infrações de menor potencial ofensivo, ao retirar a obrigatoriedade do inquérito policial e prever audiência preliminar a fim de estabelecer a composição civil dos danos.
Iniciou-se então a discussão a respeito das benesses do Juizado Especial Criminal quando a infração ocorria no âmbito doméstico, pois ao estimular uma solução conciliatória do problema, o processo penal acabaria por silenciar a vítima inserida em um ambiente doméstico violento. Dias (2015, online) explica que não há que se falar em consenso ou colocar sobre a vítima a responsabilidade de buscar a apenação do agressor quando existe entre eles uma relação hierarquizada de poder.
Por outro lado, alguns perceberam o Juizado Especial Criminal como um veiculador das demandas que antes não eram levadas ao judiciário, além de o modelo consensual de justiça permitir maior participação e autonomia da vítima dentro do processo penal. “Criados para assumirem na prática uma parcela dos processos criminais das varas comuns, esses juizados passaram a dar conta de um tipo de infração que não chegava às varas judiciais: a violência contra a mulher” (STUKER, 2016, p. 26).
Os movimentos feministas da época passaram a se articular para reivindicarem do Poder Público uma regulamentação específica, que pensasse a violência doméstica a partir das relações de gênero. Além disso, o país havia se comprometido internacionalmente com o combate contra a violência de gênero. Neste sentido, utilizar-se dos institutos descriminalizantes dos Juizados Especiais para tratar da violência doméstica não parecia a melhor forma de cumprir com os termos da Convenção de Belém do Pará. O direito brasileiro estava diante de um impasse.
O entendimento popular de que o enfrentamento da violência contra a mulher era banalizado, haja vista a falta de mecanismos efetivos para solução da controvérsia, como por exemplo, o pagamento de cestas básicas, deu força ao clamor dos movimentos sociais, pondo fim à discussão e culminando na criação da Lei 11.340/06.
A lei foi batizada com o nome de Maria da Penha, mulher que foi vítima de sucessivas agressões por seu marido e se tornou um símbolo nacional de luta contra este tipo de violência conjugal.
Desta forma, após longo período de tratativas descriminalizantes para o problema epidêmico da violência doméstica, a Lei Maria da Penha começou a mudar o panorama nacional e o entendimento de que violência doméstica é um problema de segurança pública, não devendo ficar circunscrita aos limites da família.
2 Para além da lei: pesquisa empírica sobre a aplicação da Lei Maria da Penha e os institutos de proteção à mulher na cidade de Pelotas – RS
Dentro do contexto acima retratado, em agosto de 2006, a Lei 11.340/06 foi publicada, trazendo na ementa o seu principal objetivo: criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Portanto, proceder-se-á à análise das principais ferramentas jurídicas de proteção criadas pela Lei Maria da Penha e investigar como elas são aplicadas na prática.
2.1 A assistência articulada
O artigo 9 da Lei Maria da Penha prevê que a assistência à mulher vítima de violência doméstica será feita de forma articulada, seguindo as diretrizes da Lei Orgânica de Assistência Social, do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Segurança Pública. De igual forma, as medidas de prevenção à violência doméstica serão articuladas de forma integrada entre a União, Estados, Municípios e Organizações não Governamentais.
Sobre este ponto Mello e Paiva (2019) asseveram que muitos Estados alteram seus ordenamentos jurídicos a fim de eliminar ou mitigar as desigualdades entre homens e mulheres, todavia a eficácia dos diplomas legais é limitada, pois não há o aporte material para tanto. Por isso a importância da estruturação de uma rede integrada de atendimento das instituições públicas e capacitação dos seus servidores.
Em Pelotas, a rede de acolhimento à mulher vítima de violência doméstica, responsável por prestar assistência à mulher nos termos da lei é composta por oito instituições, sendo elas: o Juizado da Violência Doméstica, a Promotoria de Justiça Especializada, a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), a Defensoria Pública do Estado, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, a Patrulha Maria da Penha, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência e a Casa da Acolhida.
A Patrulha Maria da Penha é o instrumento de combate à violência doméstica da Brigada Militar do estado do Rio Grande do Sul, que de forma pioneira instituiu o atendimento personalizado às vítimas. O intuito principal da Patrulha é fiscalizar a efetividade das medidas protetivas deferidas em Juízo, através de visitas à residência da vítima com o preenchimento de relatórios, que são remetidos ao Poder Judiciário para verificação.
O Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, por sua vez, integra a Secretaria Municipal de Assistência Social e foi inaugurado em 13 de março de 2014 com o objetivo de prestar atendimento psicossocial às vítimas, que podem comparecer espontaneamente ou encaminhadas de outros órgãos da rede. Em entrevista com a assistente social do Centro de Referência foi explicado que o atendimento inicial concentra-se na escuta qualificada da mulher, bem como na conscientização acerca dos seus direitos e aos diferentes tipos de violência existentes. Após o primeiro atendimento, o acompanhamento psicológico é prestado.
Por fim, a Casa da Acolhida, também nomeada de Casa Luciety, é um abrigo de caráter sigiloso, responsável por acolher mulheres em risco de morte eminente e que, pelos mais diversos motivos, não contam com uma residência para abrigarem-se. Também integrante da Secretaria Municipal de Assistência Social, a casa conta com uma assistente social e uma psicóloga, além dos educadores sociais e um agente da Guarda Municipal, estes últimos em serviço constante. Ao contrário do Centro de Referência, por questões de segurança, as mulheres que precisam ser abrigadas pela Casa da Acolhida somente recebem encaminhamento através da Delegacia da Mulher.
A partir das entrevistas realizadas com os profissionais e os eventos observados, foi possível perceber a eficaz articulação da rede de acolhimento. O bom relacionamento entre as instituições que compõem a rede foi relatado diversas vezes, bem como a facilidade de comunicação.
Especialmente no que diz respeito à Casa da Acolhida e ao Centro de Referência, as vítimas entrevistadas expressaram grande satisfação com o atendimento recebido. Nos casos analisados, a assistência prestada teve grande influência na interrupção do Ciclo da Violência de modo que as vítimas sentiram-se apoiadas e encorajadas a sair de uma situação de violência.
Rubi: “Eu fiz atendimento gratuito lá [no Centro de Referência] por um ano e melhorou muito a minha vida. Eu não sei o que teria sido, porque eu estava no quinto mês de gravidez quando tudo aconteceu. Foi muito transformador para mim”.
Ametista: “É muito difícil tu conseguir perceber no que tu está inserida. As pessoas todas vêem que tu está passando por abuso, tu estás passando por uma situação gravíssima e não consegue enxergar. Então com o atendimento [no Centro de Referência] tu começa a perceber e depois se fortalecer pra conseguir sair dessa situação. O apoio que eu recebi aqui foi fundamental”.
Jade: “É horrível a gente imaginar que a vida da gente pode dar essa reviravolta. Mas a Casa da Acolhida foi essencial. E todo o trabalho lá dentro. (…) Eu acho que teria sido muito difícil se eu não pudesse ter contado com a Casa”.
Em comparecimento ao Centro de Referência, em duas oportunidades diferentes, foi possível notar ser um local pensado para receber mulheres, muitas vezes, em condições psicológicas abaladas, tendo em vista que a composição do ambiente remete a sensações de tranquilidade e acolhimento.
De igual maneira, em visita previamente autorizada à Casa da Acolhida, que tem o endereço sob sigilo, notou-se que, apesar de ser um prédio voltado para garantir a segurança interna, posto que construído com muros altos e cercas elétricas, a dinâmica que se opera dentro da casa é de conforto e respeito às individualidades das mulheres abrigadas.
Por outro lado, em relação às dificuldades enfrentadas no que concerne à rede de acolhimento, a desinformação foi um elemento que apareceu de forma recorrente. Quando as entrevistadas manifestaram descontentamento com o atendimento prestado por algum órgão da rede de acolhimento, os casos estavam atrelados à má orientação destas vítimas acerca do direito que são titulares.
Nesse sentido, em um dos casos, a vítima não judicializou a violência que vinha sofrendo porque acreditava que, para ter apoio policial precisaria ter sido agredida fisicamente e ter ficado com vestígios das agressões. Porém, segundo o relato da mesma, o agressor incorreu na prática de vias de fato e ameaça.
Foi relatado pela maioria dos profissionais entrevistados que a falta de efetivo é um entrave para a plena funcionalidade da rede. Por exemplo, a Patrulha Maria da Penha é composta por uma equipe de três policiais militares e o Centro de Referência conta com dois psicólogos e um assistente social. Resta evidente que para atender a demanda de mais de 340.000 habitantes na cidade de Pelotas (IBGE, 2019), tal efetivo é insuficiente.
Desta forma, a partir dos dados produzidos, foi possível concluir pela estruturação e articulação satisfatória da rede de acolhimento à mulher vítima de violência doméstica em Pelotas, apesar das dificuldades apontadas, tais como a dificuldade de acesso à informação e a falta de efetivo de servidores.
2.2 As medidas protetivas de urgência
O artigo 12, inciso III do diploma legal traz à baila o instituto das medidas protetivas de urgência, preconizando que estas serão remetidas ao juiz no prazo de 48 horas para análise e deferimento. Tais medidas são propriamente tratadas no Título IV, Capítulo II da lei de forma exemplificativa e podem ser requeridas pelo Ministério Público ou pela ofendida.
As medidas protetivas de urgência são um dos mecanismos mais importantes trazidos pela lei, pois de maneira acertada garantem à vítima prestação jurisdicional, ainda que provisória, a uma situação que, dadas as especificidades, não poderia aguardar o trâmite convencional.
Portanto, este instituto se consolida como uma das principais inovações da Lei 11.340/06, tendo em vista que pensa a tutela estatal a partir da perspectiva de gênero, ao atribuir grande valoração ao relato da vítima e ter como objetivo primordial a necessidade de proteção célere da mulher em situação de violência doméstica.
Ainda, desde que foram inauguradas no ordenamento pátrio, as medidas protetivas de urgência acenderam grande discussão doutrinária acerca da sua natureza jurídica. Sabadell e Paiva (2019) explicam que em razão da nomenclatura adotada pelo legislador, poderíamos entender tratar-se de medidas cautelares, as quais dependeriam de um processo principal. Todavia, após o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial n.º 1.419.421/GO, o entendimento sobre o tema foi mudado.
Esta decisão atribuiu caráter satisfativo às medidas protetivas de urgência e, em consonância com o que se buscará demonstrar a seguir, muitas vítimas de violência doméstica, ao judicializar as agressões que sofrem, estão buscando tão somente o estancamento da situação, sem desejar a condenação do agressor. Portanto, para estas mulheres, o deferimento e manutenção eficaz da medida protetiva, por si só, é suficiente. Sabadell e Paiva (2019, p. 199) apontam que este entendimento, ao respeitar a vontade da vítima em não perquirir a condenação do agressor, “amplia os horizontes de uma atuação do sistema de justiça voltada para a proteção da vítima”.
A partir dos dados produzidos, notou-se que são utilizadas de forma mais recorrente as medidas de afastamento do lar e a proibição de aproximação ou contato com a ofendida. Segundo o site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2019, foram deferidas 1.606 medidas protetivas na pelo Juizado da Violência Doméstica da Comarca de Pelotas.
Em correspondência ao exposto no tópico anterior, os relatos colhidos evidenciam a importância fundamental das medidas protetivas na cessação das agressões e interrupção do Ciclo da Violência. Ainda, este instituto apareceu como a principal perquirição das vítimas no geral, uma vez que estas estão mais interessadas na interrupção da violência do que na condenação criminal do agressor:
“Pesquisadora: Uma das hipóteses das pesquisas que eu mencionei é que as vítimas não estão buscando do Judiciário uma resposta criminalizante, mas sim a interrupção da violência. A senhora acredita que este também possa ser o caso de Pelotas?
Juíza: Muitas estão buscando a quebra do ciclo da violência. Tem umas que dizem pra nós ‘Ai Doutora tá uma beleza, depois que ele assinou o papel nunca mais me incomodou’. A Lei Maria da Penha é muito preventiva, então o fato de não estar mais incomodando e deixar elas em paz, faz com que a medida protetiva seja suficiente”.
Por outro lado, novamente a desinformação apareceu como um fator que obstaculizou o direito da vítima às medidas protetivas de urgência:
“Infelizmente foi uma baita dificuldade que eu tive, eu não consegui. Porque tinham muitas pessoas mal informadas na época, na Delegacia da Mulher, que achavam que a pessoa tinha que chegar com uma violência física para conseguir uma medida protetiva” (RUBI).
Neste sentido, a falta de informação também é indicado por Mello e Paiva (2019) como um entrave à estruturação de políticas públicas, que pode ocorrer em razão da dificuldade de se obter informações adequadas e precisas (posto que a linguagem jurídica muitas vezes não é acessível) e também em razão do acesso aos serviços disponíveis às mulheres em situação de violência.
O promotor de justiça titular da violência doméstica apontou que a intimação do agressor é outra dificuldade recorrente. Sem a ciência formal do agressor quanto ao deferimento das Medidas, estas não entram em vigência.
“Na prática o que a gente observa como dificuldade é a da localização do agressor para que ele seja intimado. É uma dificuldade prática, mas nós vemos sofrendo com isso recorrentemente, principalmente quando já mora separado da vítima. Evidentemente isso tem repercussão nos efeitos daquela medida” (PROMOTOR DE JUSTIÇA).
A transgressão do agressor à ordem judicial foi observada como dificuldade. Segundo observado pela juíza titular do Juizado da Violência Doméstica, o descumprimento das medidas protetivas pode ter vários motivos, até mesmo a dificuldade de compreensão do agressor, que é intimado mas não tem condições de entender do que realmente se trata.“E também existe a questão dos que sabem, entendem, mas não conseguem se conter pela ordem” (JUÍZA), quanto a estes casos, o Juizado tem tomado uma posição menos tolerante, tendo em vista que, por se tratar de uma questão muito passional, o risco de morte ou lesão grave é muito eminente.
“Tu acha que eu vou ter medo de um papel?” foi a pergunta feita por um agressor à vítima. Neste caso, a entrevistada relatou que durante a vigência das medidas protetivas o seu ex-companheiro apareceu diversas vezes em frente a sua residência, apesar de solicitar apoio policial, nenhuma situação de flagrância foi constatada.
“Mas eu ligava e quando eles vinham, ele já não estava mais, daí não acontecia nada. Isso quando vinham. Daí quando chegou o momento de renovar a medida pela quarta vez eu não quis, porque não tinha me ajudado em nada” (JADE).
A questão apontada no relato de Jade tem relação com a dificuldade apontada no tópico anterior, qual seja, a falta de efetivo. É oportuno relembrar que a Patrulha Maria da Penha é o instrumento da Brigada Militar para fiscalização das medidas protetivas, cujo horário de expediente é das 08h00 às 17h00, nos dias úteis. Os descumprimentos de medida protetiva que ocorrem fora deste horário, ficam a encargo do atendimento das ocorrências comuns.
Caso contasse com um efetivo maior, seria possível que a Patrulha atuasse em horários mais extensos, podendo dispensar às mulheres titulares de medidas protetivas o atendimento especializado que a situação requer.
Por fim, em 2018, as medidas protetivas sofreram uma importante alteração legislativa, uma vez que o descumprimento da decisão judicial concedente passou a ser definido como fato típico, diga-se, o único previsto na Lei 11.340/06. O Artigo 24-A comina com pena de detenção de três meses a dois anos a conduta transgressora.
2.3 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
Outra inovação trazida pela Lei 11.340/06 é a previsão de criação dos Juizados especializados para tratar dos casos de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal. Esta dupla atribuição representa o cuidado do legislador com a natureza dos conflitos tratados nestes juizados, pois, numa mesma audiência, podem ser resolvidas questões atinentes às medidas protetivas de urgência e ao direito de família, por exemplo.
Todavia, o que se depreende da leitura do Artigo 14 é que a criação dos Juizados não é obrigatória, sendo ainda previsto na lei que, na falta destes, os processos tramitarão nas Varas Criminais Comuns[1].
Parte da doutrina, quando da entrada em vigor da lei, rechaçou a alternativa dada pelo legislador, uma vez que ao não estipular prazo aos Tribunais para implementarem os novos Juizados, os processos decorrentes de violência contra a mulher no âmbito doméstico obrigatoriamente serão encaminhados a uma Vara Criminal que “frequentemente está sobrecarregada de processos envolvendo delitos de homicídio, roubo, estelionato entre outros, exigindo-se que sejam resolvidas questões que envolvam, principalmente, Direito de Família” (AQUINO, COSTA e Porto, 2011, p. 57).
Infelizmente, esta problemática não aparenta estar superada. Segundo os dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça (2018, p. 18), em 2017 o Poder Judiciário contava apenas com 122 Varas Exclusivas de Violência Doméstica, frente a 1.256 Varas Exclusivas Criminais. O estado do Rio Grande do Sul não escapa ao problema, tendo em vista que apenas seis comarcas contam com este tipo de juizado especializado.
Portanto, ainda que louvável, o intuito da lei em fornecer à ofendida uma prestação jurisdicional mais atenciosa e completa ainda não foi amplamente posto em prática. Muito pelo contrário, o que se depreende dos dados numéricos é que pouquíssimas comarcas contam com esta garantia.
Apesar de alguns relatos apontarem descontentamento com a sentença criminal, os dados produzidos, de uma maneira geral, não revelaram dificuldades encontradas pelas vítimas quanto ao acesso ao Juizado da Violência Doméstica, tampouco demora na prestação jurisdicional. O Juizado, compreendendo a sensibilidade do tema e urgência dos casos que chegam, trabalha de maneira célere e também criou mecanismos para evitar que burocracias impeçam a prestação tempestiva à vítima.
Por exemplo, a juíza titular, no despacho que defere as medidas protetivas de urgência, já intima as partes para a audiência de verificação das mesmas, evitando que o oficial de justiça precise cumprir um segundo mandado de intimação para tanto. O mesmo cuidado é tomado com os casos que chegam pelo plantão judicial, uma vez que a pauta de audiências da juíza é disponibilizada para o colega que esteja em serviço.
Ao lado da sala em que ocorrem as audiências foi cedida uma sala de espera para as vítimas, evitando que elas precisem ver o agressor antes das audiências ou esperar no corredor do Fórum. O ambiente conta com cadeiras, almofadas, quadros com mensagens de acolhimento e empoderamento e uma brinquedoteca para os filhos das vítimas, compondo um espaço muito aconchegante.
Por fim, foi possível perceber através das entrevistas e da observação participante, que o Juizado da Violência Doméstica da Comarca de Pelotas além de se preocupar com a celeridade dos procedimentos, tem se atido também à conscientização das vitimas, agressores e também da comunidade acerca dos direitos das mulheres e serviços prestados pela rede de acolhimento.
2.4 A audiência de retratação
Relativamente aos crimes de ação penal pública condicionada à representação, querendo a vítima retratar-se, a Lei Maria da Penha estabelece a necessidade de se realizar audiência judicial a fim de confirmar, perante o magistrado, a intenção de desistir da ação penal.
Segundo Hermann (2008, p. 167), o intuito da referida audiência é garantir que a renúncia à representação não resulte de qualquer espécie de pressão ou ameaça do agressor. Tendo em vista que, em juízo, a vítima precisa estar assistida por advogado ou Defensor Público, presume-se que esta terá ciência das suas garantias, evitando decisões motivadas pelo medo.
Ainda, é oportuno salientar que o crime de lesões corporais, quando ocorrido na forma qualificada do Artigo 129, §9º do Código penal[2], é de ação penal pública incondicionada, portanto não está sujeito à retratação da vítima. Tal entendimento vigora no direito pátrio desde 2009, após o julgamento do Habeas Corpus 96992/DF pelo Superior Tribunal de Justiça.
Mello e Paiva (2019, online) asseveram que, neste momento processual, a vítima deve ser cientificada das consequências da sua decisão, bem como das próximas etapas do processo e da possibilidade de manutenção das medidas protetivas de urgência, ainda que o processo de conhecimento seja extinto.
Foi relatado que muitas vezes, após desistir da ação penal, a vítima volta a registrar novas ocorrências, pois as agressões perduraram.
“Uns dois dias antes desse episódio teve a audiência, que eu desisti do processo, mas mantive a medida protetiva. Novamente eu registrei o BO e começou tudo de novo e depois disso eu não retirei mais, mas eu não sei em que pé anda o processo. Nem sei se eu poderia, mas eu não retiraria, pois foi o meu aprendizado. Na primeira vez eu retirei porque eu queria viver a minha vida, de forma tranquila, mas me arrependi” (JADE).
Tal fato guarda relação com o Ciclo da Violência em que a vítima está inserida, tendo em vista que, acreditando na mudança de comportamento do agressor, esta desiste da ação penal, entretanto, após um período de estabilização da violência, as agressões voltam a se repetir.
No que concerne ao exercício do direito de retratar-se perante um juiz, não foram observados óbices por parte das vítimas, portanto buscou-se investigar os motivos que levam as vítimas a tomarem tal decisão.
As razões que fundamentam a escolha das vítimas são variadas, mas tem se observado que na maioria dos casos em que a cessação da violência é garantida pelas medidas protetivas, há desinteresse na ação penal. Neste sentido, Stuker (2016) explica que nem sempre a retratação da representação criminal deve ser vista como uma hipótese de ineficácia da lei, tendo em vista que a estabilização da situação de violência, para vítima, muitas vezes é mais vantajoso do que a condenação do agressor.
Este entendimento se coadunou com os dados produzidos. Jade, em seu relato, ao ser orientada de que poderia procurar o Ministério Público em busca de mais informações a respeito do inquérito policial que investigaria a prática de uma ameaça, relatou que prefere que a situação se mantenha como está, tendo em vista que o agressor não mais lhe incomodou.
Ainda, a vinculação familiar também apareceu como um fator que leva as vítimas a desistirem da ação penal. Tendo em vista que o agressor muitas vezes é pai dos filhos da vítima, uma eventual responsabilização criminal poderia prejudicar o núcleo familiar, pois muitas empresas atualmente têm recusado candidatos com antecedentes criminais envolvendo violência doméstica.
A recusa à persecução penal nem sempre está ligada a uma condição de coação da vítima, podendo significar um espaço em que esta externa os seus motivos de foro íntimo, evidenciando a necessidade de uma audiência de retratação em que se tenha sensibilidade para ouvir a mulher.
3 Por trás da lei: as questões de gênero e a importância da Lei Maria da Penha para uma mudança de paradigma
A Lei 11.340/06 define a violência doméstica e familiar contra a mulher como sendo qualquer forma de ação ou omissão baseada no gênero[3], se fazendo pertinente, portanto, debater no presente tópico os diferentes aspectos deste tipo de violência. Para além da prestação jurisdicional e do arcabouço legislativo, buscar-se-á investigar questões mais profundas da violência doméstica, anteriores à promulgação da Lei Maria da Penha.
Os dados produzidos deram conta que algumas dificuldades enfrentadas pelas vítimas não necessariamente têm relação com a má funcionalidade dos institutos de proteção previstos na lei, mas sim com a construção social hierarquizada dos papeis desempenhados por homens e mulheres, como exemplificado abaixo.
Ametista deixou de trabalhar a pedido do companheiro tendo como prerrogativa o cuidado com a filha do casal. Ela pediu demissão, porém a situação de dependência financeira que se instalou posteriormente foi determinante para a permanência de Ametista no relacionamento abusivo.
“Eu parei de trabalhar há seis anos por convencimento dele e me tornei dependente financeiramente. Eu sou uma pessoa que trabalhei a vida toda, sempre dirigi minha vida financeira e acabei entrando numa situação sem perceber” (AMESTISTA).
Ora, a dependência financeira de Ametista não foi ocasionada porque o Estado deixou de socorrê-la em uma situação de violência, mas acabou por gerar uma questão de segurança pública, ao passo que, por ser dependente financeiramente do companheiro, permaneceu em uma relação em que era violentada.
Portanto, estamos diante da etapa final deste artigo. A saber: as situações que, a princípio, são extrínsecas à atuação estatal e que nutrem estreita relação com os casos de violência doméstica vivenciados por mulheres.
Ainda, Butler (2013) preconiza que é impossível dissociar a questão de gênero das demais interseções, como classe e raça, e os dados produzidos não fogem a esta premissa. As questões atinentes à classe social, escolaridade e maternidade fizeram com que a violência doméstica incidisse de uma forma muito particular sobre as vítimas. Para fins de delimitação de objeto de pesquisa, somente o último aspecto foi analisado de maneira específica no presente artigo.
3.1 A violência de gênero
A violência baseada no gênero, quando direcionada para as mulheres, as atinge pelo simples fato de assim o serem. Ou seja, em razão de pertencer ao gênero feminino, as mulheres são muito mais violentadas, como explica a Convenção de Belém do Pará: “a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens”.
Segundo Stuker (2016, p. 114), a violência de gênero se fundamenta na hierarquia estabelecida socialmente entre homens e mulheres: “O que faz com que as violências contra mulheres se deem em números alarmantes é algo estritamente cultural, consequente de uma construção social do que é ser homem e do que é ser mulher na sociedade. (…) Quando conhecemos o conceito de gênero, entendemos tudo que explica a relação de hierarquia entre homens e mulheres na sociedade e porque as mulheres são as maiores vítimas de violências domésticas e familiares”.
De acordo com a mesma autora, a violência de gênero é uma expressão da articulação de poder. Desta forma, “os homens ferem as mulheres nas relações conjugais violentas como uma manifestação de poder há muito legitimado na sociedade” (STUKER, 2016 p. 121).
Neste sentido, a estrutura social hierarquizada se mantém ao passo que a violência de gênero é uma forma de garantir o status quo. Sabadell e Paiva (2019, p. 189) explicam que o ato de agredir uma mulher é o modo que o homem reafirma, através deste ato de coerção, a sua imagem de dominador. Esta violência “propicia aos meninos e aos homens segurança, reafirmação de sua identidade e, por conseguinte, aceitação social”.
Desta forma, o exposto até então se coaduna com os dados produzidos. Os entrevistados relatam que os agressores agem imbuídos de um sentimento de posse em relação à vítima, atitude que somente poderia ser observada em uma relação de hierarquia, em que o homem acredita ser o dominante.
Podemos perceber esta sistemática com o relato de Jade. Ao descobrir uma segunda traição do marido, ela pediu que este saísse de casa e rompeu o relacionamento. Irresignado, o cônjuge incorreu em tentativa de feminicídio quando percebeu que não mais conseguiria manter a esposa dentro do matrimônio.
“Quando eu disse ‘pega tuas coisas e vai embora’ ele começou a me dizer horrores, quando ele viu que eu estava firme na minha decisão ele pegou uma faca na gaveta, me jogou aqui nesse sofá e tentou várias vezes atingir o meu pescoço, quase perfurou. Ele disse ‘tu vai ficar comigo!’ a cada vez que eu dizia não ele falava que iria me matar” (JADE).
A violência física não foi a única forma observada para agredir e coagir as vítimas. Nos relatos ouvidos os agressores valeram-se também da desqualificação perante as demais pessoas do círculo social do ex casal.
“Ele teve a capacidade de dizer que eu levava a minha filha para ter relações com homens mais velhos, chegou a dizer isso pra ela! Depois de tudo isso, eu ainda não conseguia sair dessa relação, o temperamento dele sempre foi abusivo. Ele quer me desqualificar perante todo mundo e me ofender, até na escola da minha filha!” (AMESTISTA)
Menos perceptível ainda à seara do direito penal é a violência psicológica que, apesar de não deixar vestígios físicos, tem o condão de abalar a vítima emocionalmente e ferir sua autoestima. A violência psicológica pode se manifestar através de ameaças, perturbações da tranquilidade e crimes contra a honra, todavia pode estar presente também em condutas não tipificadas pelo direito, como a chantagem emocional, intolerância e dependência econômica.
Incorrendo ou não em práticas criminosas, os homens valeram-se da violência de gênero quando a mulher adotou um comportamento não compatível, ao seu modo de ver, com a designação do papel de mulher. Desta forma, o sentimento de posse em relação à mulher, se valendo dos mais variados tipos de agressões, muitas vezes tem o condão de mantê-la em uma relação conjugal violenta:
Segundo o Promotor de Justiça titular da Promotoria de Justiça Substituta da Violência Doméstica, “em grande parte dos casos o homem age motivado pelo pensamento de que a mulher é posse dele. Não conformado pelo fim do relacionamento, ele começa a praticar contra a mulher atos de violência que estão previstas na Lei, que vai desde a agressão física e muitos casos pela violência psicológica”.
Por isso é importante trazer à baila o Conceito de Ciclo da Violência, criado por Walker (2009) para explicar como as agressões que acontecem dentro de uma relação afetiva podem obedecer a um padrão de comportamento. Segundo a autora, este ciclo, que é constantemente repetido, pode ser dividido em três fases: o aumento da tensão, a violência propriamente dita e a lua de mel.
Na primeira fase, o agressor demonstra um comportamento irritadiço, podendo ter acessos de raiva, neste momento é possível visualizar atitudes de culpabilização da vítima pelo temperamento do companheiro. A tensão tende a aumentar, chegando ao ato de violência, que pode ser psicológica, física, patrimonial ou moral. A lua de mel, por sua vez, é caracterizada por ser um período de calmaria dentro do relacionamento, em que o agressor se mostra arrependido e a vítima sente-se compelida a manter a relação.
A assistente social entrevistada no Centro de Referência relatou que muitas mulheres não têm consciência de que estão inseridas neste ciclo e explicar de forma didática como a violência ocorre ajuda a vítima a sair desta situação e desconstruir o sentimento de que o agressor mudará de comportamento.
Neste diapasão, a necessidade de conscientização das mulheres a respeito de como ocorre a violência de gênero foi um tema recorrente no discurso de todos os profissionais entrevistados, sendo também uma preocupação das Organizações Não Governamentais que atuam em defesa dos direitos das mulheres.
Como resposta a esta demanda, os órgãos que integram a rede, além de desempenhar sua função interna, trabalham também com a produção de panfletos informativos e a realização de palestras que ocorrem, na maioria das vezes, em escolas e centros comunitários.
A rede de acolhimento, ao adotar táticas de conscientização, mostrou estar em consonância pelo exposto por Sabadell e Paiva (2019, p. 200) no sentido de que “o mecanismo mais adequado para afrontar, de forma massiva, a violência machista é apostar em políticas públicas de educação e sensibilização da comunidade”. Contar somente com os institutos criminalizantes e repressivos da lei não parece ser a abordagem mais eficaz, ao passo que, se a violência de gênero atinge mulheres de maneira estrutural, a forma mais abrangente de mitigá-la é atuar na prevenção e conscientização.
Merece destaque a iniciativa do Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas (GAMP), organização não governamental atuante desde 1992, que trabalha constantemente na conscientização de mulheres, urbanas e rurais, acerca dos seus direitos e das opressões que sofrem. As atividades desenvolvidas pelo grupo são desenvolvidas através de ações articuladas de forma horizontal entre as integrantes e compreendem desde palestras e manifestações, até aulas de dança e ioga, tendo como objetivo a reconstrução da autoestima e independência da mulher.
Da mesma forma, Beauvoir (2009, p. 929) aponta a educação e conscientização como instrumento e mudança. Ora, segundo a autora, a ideia do que é se comportar como mulher foi ensinada pela sociedade, portanto o mesmo poderia ser feito para ensinar mulheres e meninas a ocuparem posições de igualdade em relação ao homem.
“Se desde a primeira infância a menina fosse educada com as mesmas exigências, as mesmas honras, as mesmas severidades e as mesmas licenças que seus irmãos, participando dos mesmos estudos, dos mesmos jogos, prometida a um mesmo futuro, cercada de mulheres e de homens que se lhe afigurassem iguais sem equívocos (…) a criança sentiria em torno de si um mundo andrógino e não um mundo masculino” (BEAUVOIR, 2009, p. 929)
Por outro lado, ainda que a mulher ocupe uma posição inferiorizada dentro da hierarquia patriarcal, ela não está completamente passiva à situação, apresentando muitas vezes formas de resistência e irresignação à violência de gênero que sofre.
Portanto, valendo-se mais uma vez do pensamento de Stuker (2016), não podemos reduzir a mulher em situação de violência doméstica simplesmente à figura de vítima, tendo em vista que muitas, cada vez mais, contam com formas de articulação de poder dentro de uma relação violenta. Portanto, registrar ocorrência policial, solicitar o deferimento de medidas protetivas e até mesmo buscar atendimento psicossocial são formas que as mulheres encontram de externar sua inconformidade com a violência que sofreram.
3.2 A maternidade
Outro ponto que se mostrou relevante após a análise dos dados foi a questão da maternidade, uma vez que a existência de filhos, em alguns casos, foi determinante para o rompimento da relação violenta e, em outros, para a manutenção desta. Ainda, os filhos apareceram como um dos motivos mais recorrentes que fundamentam a escolha das mulheres em renunciar a representação criminal.
Um ponto comum percebido nos discursos das vítimas é que todas colocam sua prole como sendo, nas palavras de Jade, o seu “ponto fraco”, no sentido de a integridade dos filhos ser mais importante que a genitora: “A minha cunhada disse: ‘ele ta louco, ta ameaçando todo mundo. Entrega o menino pra ele!’. E isso para mim era a morte. Tudo que ele precisava contra mim era o meu filho. Foi quando eu tomei da decisão de ir para a Casa da Acolhida. Eu tomei essa decisão pelo meu filho” (JADE)
Neste sentido, os discursos convergem para o entendimento de que as entrevistadas poderiam aguentar violências de toda sorte, menos a de ver o filho ser agredido física ou psicologicamente.
Ametista, por sua vez, apresentou uma reflexão interessante ao perceber que tolerou por anos as agressões do companheiro, mas quando ele começou a agredir os filhos, foi o estopim para o rompimento da relação: “Quando eu decidi que não queria mais foi por causa das crianças, ele começou a ser violento com elas também. Chegou ao ponto de ele pegar o meu menino, que mal caminhava, virou e colocou a cabeça embaixo da torneira, só porque ele tava pedindo água. Conclusão: quando mexe com o filho da gente a coisa fica insuportável. Coisa que a gente devia fazer pela gente e não faz” (AMETISTA).
De modo contrário, foram relatadas situações em que os próprios filhos pediram às vítimas para renunciar a representação criminal, tendo em vista que o agressor também era seu pai. Neste sentido, foi observado que alguns agressores se valeram da posição de mãe que a vítima ocupava, a fim de manipular sua vontade.
“Depois de registrado, elas nos procuram desesperadas ‘ah porque ele não pode ser preso, pelo amor de Deus, ele disse pro meu filho que ia ser preso e a culpa era minha’. E eles fazem isso! Recebe a intimação e vai direto para o WhatsApp do filho: ‘olha o que a tua mãe fez comigo!’” (ADVOGADA).
Por outro lado, ao passo que para as genitoras o bem-estar dos filhos é questão de máxima importância, se observa que, nos casos analisados, os genitores, a fim de atingir a mulher, não se importaram em agredir também os filhos. Frases como “quando mexe com o filho da gente, já viu, né?” foram recorrentes, dando conta de uma espécie de dissociação entre a figura de pai e de agressor. Não apareceram nos discursos colocações como “ele agrediu o nosso filho”, mas sim “ele agrediu o meu filho”, podendo levar à hipótese de que, ainda que um genitor igualmente responsável tenha vilipendiado o seu próprio filho, somente a mulher carrega o ônus de garantir a integridade daquele.
A designação social do papel de mãe implicitamente coloca as necessidades dos filhos em um patamar muito mais elevado do que as da mulher, exigindo destas sacrifícios diários que, muitas vezes, não são exigidos dos homens de maneira paritária. É nesse aspecto que a violência de gênero incide de uma forma muito particular nas mulheres que são mães.
Desta forma, o presente tópico almejou evidenciar como se articula a violência de gênero e como atinge as mulheres de formas diferentes, levando em conta o contexto social em que estão inseridas.
Por fim, ainda que estes assuntos não guardem estreita relação com a transgressão aos dispositivos da Lei Maria da Penha, percebeu-se que, por vezes, foram determinantes para a manutenção ou rompimento da situação de violência doméstica, afetando, reflexamente, a efetividade destes.
Conclusão
A pesquisa que aqui se desenvolveu procurou investigar a efetividade dos institutos de proteção dispostos na Lei 11.340/06. De modo a delimitar o objeto de pesquisa, foram escolhidos os principais institutos, trazidos pela Lei Maria da Penha: a assistência articulada, as medidas protetivas de urgência, os Juizados da Violência Doméstica e a audiência de retratação.
Para isso, no primeiro tópico foi feita a retomada histórica do processo de criação da lei, a fim de compreender o enredo social e os motivos a que ela se destina. Nos tópicos seguintes, passou-se à análise da letra fria da lei em cotejo com as dificuldades encontradas pelas vítimas, na prática, para efetivarem os institutos de proteção analisados. Para tanto, foi utilizado o método indutivo, uma vez que a efetividade dos mecanismos de proteção, premissa geral, foi analisada a partir de relatos particulares.
No desenvolvimento da pesquisa foi ressaltado que o método empregado não pretendeu estabelecer uma verdade acerca da realidade vivida pelas mulheres vítimas de violência doméstica, mas sim ser um instrumento para veicular suas experiências e interpretações. Ademais, diante do seleto nicho de entrevistados, os dados produzidos revelam de maneira qualitativa como estes compreendem e agem nos seus respectivos contextos sociais frente a posição que ocupam dentro do grupo analisado.
Desta forma, os dados revelaram que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelas vítimas é a falta de acesso a informações precisas e qualificadas. Relatos dão conta de duas situações recorrentes: as que as vítimas foram orientadas de maneira errônea nos órgãos públicos de atendimento e as que as vítimas não sabiam serem titulares de algum direito.
Ainda, outra dificuldade enfrentada foi a falta de efetivo de servidores. Tanto na esfera policial, para fins de atendimento de ocorrência e verificação das medidas protetivas, quanto na esfera da assistência social, para fins de acompanhamento psicossocial, a falta de servidores mostrou-se como um óbice ao exercício do direito das vítimas.
Por outro lado, ainda que tenha sido feita a análise positiva e empírica dos institutos de proteção delimitados, se percebeu que esta abordagem não dava conta da complexidade das dificuldades enfrentadas pelas vítimas.
Devido a isso, no último foi necessário debater questões atinentes à violência de gênero, uma vez que este assunto esteve presente nos relatos colhidos de maneira muito recorrente. Portanto, buscou-se também fazer o aporte teórico de tais questões, podendo chegar à conclusão de que elas estão embrionariamente ligadas ao problema da violência doméstica.
Isso posto, se pode concluir que os institutos de proteção à mulher vítima de violência doméstica dispostos na Lei 11.340/06 ora analisados têm sua efetividade limitada por diversos fatores, sendo os mais recorrentes, observados nesta pesquisa, a falta de informação qualificada transmitida à vítima acerca dos direitos de que é titular e também a carência de servidores para atender à demanda da cidade de Pelotas – RS.
Por outro lado, ainda que as questões atinentes à violência de gênero, analisadas no último tópico, não guardem estreita relação com a má funcionalidade dos institutos de proteção analisados, percebeu-se que, por vezes, estas foram determinantes para a manutenção ou rompimento da situação de violência doméstica.
REFERÊNCIAS
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[1] Artigo 33, Lei n.º 11.340/06
[2] Artigo 129, § 9º: Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
[3]Artigo 5, Lei nº 11.340/06.