Resumo: Sem que se pretenda aqui aprofundar a questão do neoconstitucionalismo em si mesma, importa, no entanto, enfatizar que um dos principais fenômenos operados no âmbito justamente da evolução constitucional é o da constitucionalização, por conta, em especial, da afirmação da supremacia da Constituição e da valorização da força normativa dos princípios e dos valores que lhes são subjacentes, de toda a ordem jurídica. Na sequência, é nosso propósito discorrer sobre os aspectos nucleares da discussão travada no Brasil (em nível doutrinário e jurisprudencial) sobre as relações entre os direitos fundamentais e o Direito Privado, renunciando-se a um detalhamento e uma análise crítica mais aprofundada.
Palavras-chave: constitucionalismo; supremacia; perspectivas; direitos fundamentais.
Abstract: Without deepening the question of neoconstitutionalism in itself, it is important to emphasize that one of the main phenomena in the context of constitutional evolution is constitutionalisation, due in particular to the affirmation of the supremacy of the Constitution and The valorization of the normative force of the principles and values that underlie them, of the whole legal order. In the sequence, it is our purpose to discuss the core aspects of the discussion in Brazil (at a doctrinal and jurisprudential level) on the relationship between fundamental rights and Private Law, with no further details and critical analysis.
Keywords: constitutionalism; supremacy; Perspectives; fundamental rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. Tendências dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado. 3. Perspectivas sociais na discussão. 4. Pauta de solução. 5. Função defensiva dos direitos sociais. 6. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
A evolução do constitucionalismo contemporâneo, sobretudo em função dos câmbios substanciais (tanto na perspectiva do direito constitucional positivo, quanto da teoria constitucional) operados desde a Segunda Guerra Mundial, tem servido de justificativa para que, já de há algum tempo, se possa efetivamente falar da ocorrência de uma mudança no âmbito do próprio paradigma do Estado Constitucional, de tal sorte que, numa certa perspectiva, é possível falar de um neoconstitucionalismo, ou mesmo – o que parece ser mais apropriado – de um conjunto de neoconstitucionalismos, já que também o assim designado Estado Neoconstitucional pode apresentar uma multiplicidade de dimensões.
Sem que se pretenda aqui aprofundar a questão do neoconstitucionalismo em si mesma, importa, no entanto, enfatizar que um dos principais fenômenos operados no âmbito justamente dessa evolução constitucional referida é o da constitucionalização, por conta, em especial, da afirmação da supremacia da Constituição e da valorização da força normativa dos princípios e dos valores que lhes são subjacentes, de toda a ordem jurídica. Tal fenômeno, embora possa ser observado como sendo mais ou menos relevante em praticamente todos os sistemas jurídico-constitucionais contemporâneos, assume particular relevância no campo da incidência dos direitos fundamentais sobre os diversos ramos do Direito, resultando em farta produção doutrinária e jurisprudencial, além de constituir, sem receio de algum exagero, de um dos temas centrais da discussão constitucional atual.
É evidente, por outro lado, que a atualidade, a relevância e a intensidade do debate não tem sido as mesmas em cada lugar, o que, sem que se possa aqui entrar em detalhes, encontra-se não apenas na dependência dos textos constitucionais, mas de uma multiplicidade de fatores, mesmo que diretamente estranhos ao Direito.
Embora se possam identificar algumas vozes isoladas que já há mais tempo pugnam por uma aplicação dos direitos fundamentais na seara do Direito Privado, ou, pelo menos, apontam para algumas dimensões desta temática, certo é que o debate propriamente dito, seja na doutrina, seja na jurisprudência, é relativamente recente, coisa de aproximadamente no máximo quinze anos. Isto se explica, em primeira linha, pelo fato de que apenas com a promulgação da atual Constituição Federal Brasileira, em 05.10.1988, após anos de regime militar, tanto a Constituição quanto os direitos fundamentais passaram a ser novamente levados a sério como fonte primeira e vinculativa do Direito, ainda que tal reconhecimento tenha encontrado alguma resistência.
A Constituição anterior (1967- 69) certamente não poderia ser considerada, já pela sua manifesta ausência de legitimidade democrática, um parâmetro adequado para o restante da ordem jurídica, de tal sorte que a postura então prevalentemente resistente a uma constitucionalização do Direito, não apenas se revela compreensível como também merecedora de aplausos, especialmente quando representativa de um ato de resistência à outorga constitucional.
Observando-se, em contrapartida, a evolução mais recente, merece ser sublinhado que os primeiros esforços efetivos para o tratamento do tema no Brasil foram empreendidos basicamente por alguns autores do Direito Privado. A doutrina constitucionalista, por sua vez, apenas algum tempo depois passou a se ocupar mais detidamente da matéria, colocando as relações entre os direitos fundamentais e o Direito Privado no centro da discussão, ao passo que a dogmática do Direito Privado, pelo que se pode avaliar a partir da produção científica prevalente, acabou priorizando, a partir de uma perspectiva mais ampla, um Direito Civil-Constitucional, engendrado no âmbito de uma interpretação conforme a Constituição (aqui tomada também em sentido mais aberto, de uma filtragem constitucional da normativa infraconstitucional), fortemente influenciada por alguns nomes conhecidos da doutrina italiana nesta seara.
Os cultores do direito constitucional, por seu turno, especialmente em função da influência da experiência alemã, espanhola e portuguesa, têm tratado do tema no contexto de uma eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, entre outros aspectos, explorando a controvérsia em torno de uma eficácia indireta ou indireta dos direitos fundamentais, aspecto que os autores oriundos do Direito Privado, pelo menos em termos gerais e numa fase inicial, pouco levaram em conta, sem que se esteja aqui a emitir qualquer posicionamento a respeito do maior ou menor acerto de cada um dos caminhos trilhados.
De outra parte, convém registrar que a expressiva influência da literatura e jurisprudência estrangeira também nesta seara inexoravelmente tem por consequência que uma investigação sobre a evolução no âmbito das relações entre direitos fundamentais e o Direito Privado no Brasil acabe refletindo boa parte da discussão promovida em outros lugares (com destaque, no que concerne às fontes mais acessadas para efeitos desta perspectiva, para a Alemanha, Espanha e Portugal), seja na teoria, seja na prática jurisprudencial.
Na sequência, é nosso propósito discorrer sobre os aspectos nucleares da discussão travada no Brasil (em nível doutrinário e jurisprudencial) sobre as relações entre os direitos fundamentais e o Direito Privado, renunciando-se a um detalhamento e uma análise crítica mais aprofundada, seja pelo propósito do presente trabalho, seja pelas suas limitações físicas, ainda mais considerando a farta literatura e jurisprudência existente. É preciso frisar, de outra parte, que se trata aqui essencialmente de uma apresentação da evolução do tema no Brasil e, portanto, de uma abordagem de caráter mais descritivo do que analítico-reflexivo.
A jurisprudência colacionada limita-se, em princípio, a algumas decisões representativas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal brasileiros, não considerando, portanto (ressalvadas algumas exceções) a farta produção dos demais Tribunais. Com o fito de honrar o nosso propósito, iniciaremos com algumas observações sobre o conteúdo e significado (designadamente jurídico) dos direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, para, num segundo momento, apresentar as condições e fundamentos do reconhecimento, em princípio, de uma eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas no Brasil. Somente então serão desenvolvidos os aspectos mais relevantes da controvérsia em torno do modo pelo qual se dá a influência dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada, com destaque para as relações entre atores privados.
2. TENDÊNCIAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO DO DIREITO PRIVADO
Sem que se vá aqui enfrentar, de modo mais detido, a evolução histórica em termos de constitucionalização da ordem jurídica, é significativo que as relações entre a Constituição e o Direito Privado sempre se revelou como sendo pautada por um relacionamento dialético e dinâmico de influência recíproca. Também por isso a relação entre a Constituição e o Direito Privado pode ser descrita pelo menos a partir de duas perspectivas: a do Direito Privado na Constituição e a da Constituição no Direito Privado.
Em primeiro lugar e ocupando um papel de destaque situa-se a eficácia da Constituição na esfera do Direito Privado, onde se cuida principalmente de uma interpretação conforme a Constituição das normas de Direito Privado e da incidência da Constituição no âmbito das relações entre sujeitos privados, seja por meio da concretização da Constituição pelos órgãos legislativos, seja pela interpretação e desenvolvimento jurisprudencial.
Além disso, importa não esquecer do fenômeno da inserção, na Constituição, de institutos originariamente oriundos do Direito Privado, em outras palavras, da presença do Direito Privado na Constituição. Justamente nesta hipótese, quando não estamos mais em face de institutos de Direito Privado propriamente ditos, mas sim, de disposições e normas constitucionais (que, por sua vez, incidirão na esfera jurídica privada por meio da outra via da constitucionalização) é que não nos parece a solução mais adequada – pelo menos em termos terminológicos – falar em um Direito Civil-Constitucional ou de um Direito Privado com “status” ou hierarquia constitucional.
Apenas em caráter ilustrativo, vale referir alguns exemplos extraídos da Constituição Federal de 1988 e que apresentam direta relação com o Direito Privado: o direito à indenização por violação da honra, intimidade e da imagem (artigo 5º, Inciso X); a função social da propriedade e o direito de propriedade em termos gerais, que abrange também a propriedade intelectual e industrial (art. 5º incisos XXII-XXIX); o direito à herança (artigo XXX-XXXI); a tarefa do Estado no sentido de proteger o consumidor (artigo 5º, inciso XXXII); proteção da família, do casamento, das uniões estáveis, assim como a vedação da discriminação entre os cônjuges e dos filhos (artigos 226 e 227), dentre tantos outros que poderiam ser colacionados.
Antes mesmo de adentrarmos o exame da possível eficácia dos direitos fundamentais (dos acima colacionados e de outros) no âmbito do Direito Privado, importa registrar que a problemática ora versada segue constituindo um tema teórico e prático atual e relevante, ainda que as constituições nacionais estejam gradativamente perdendo em centralidade, bastando aqui breve referência ao fenômeno da internacionalização do Direito, que, na Europa, assume feições particularmente relevantes.
Soma-se a isso, a crescente perda da capacidade de regulação e de tutela, mas também da capacidade prestaciona do Estado e do Direito estatal (também do Direito Constitucional) no contexto da sociedade contemporânea ou pós-moderna, como preferem alguns. Todavia, justamente os conhecidos déficits de proteção e regulação verificados numa ambiência marcada pelo incremento dos poderes sociais e econômicos por parte de atores não estatais acabam, mesmo que de modo diferenciado, influenciando o debate sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, o que também alcança os direitos sociais, notadamente no que diz respeito à privatização das funções e tarefas estatais, como, por exemplo, ocorre nos setores de fornecimento de energia, água, serviços de saneamento básico, telecomunicações, entre tantos outros.
Em função das crescentes ameaças aos direitos fundamentais – se não geradas pelo menos acirradas no contexto ora sumariamente delineado – houve mesmo quem chegasse a apontar para a necessidade de uma espécie de “privatização dos Direitos Fundamentais”, no sentido precisamente do reconhecimento da eficácia desses direitos na esfera das relações privadas.
Nesta quadra, sublinha-se que o Estado Democrático de Direito, que por definição é “amigo” dos direitos fundamentais, continua comprometido com a proteção efetiva dos direitos fundamentais também nos casos de violações e ameaças de violações oriundas de atores privados, não sendo à toa que a teoria dos deveres de proteção estatais e os seus diversos desdobramentos tenham alcançado tanta importância também para o debate a respeito do tema versado neste ensaio.
3. PERSPECTIVAS SOCIAIS NA DISCUSSÃO
Como ponto de partida para a discussão, será possível assumir como correta a premissa de que os direitos fundamentais são constantemente (e no caso de Países periféricos como o Brasil, marcados por grandes contrastes econômicos, sociais e mesmo culturais, ainda com maior intensidade) violados e ameaçados na esfera das relações privadas.
Assim, relativamente ao “se” de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das relações entre particulares não se verificam objeções significativas, notadamente quando se compreende que esta eficácia não se restringe à problemática da vinculação dos particulares, abrangendo a influência da Constituição sobre os atos normativos infraconstitucionais de Direito Privado e sua aplicação judicial.
De outra parte, anunciamos desde logo que a concepção ora assumida como correta – para espancar qualquer dúvida a respeito – alcança igualmente os direitos sociais, também pelo fato de não poderem ser reduzidos à noção de direitos a prestações estatais. Além disso, há de ser considerado que na sua dimensão prestacional os direitos sociais (e outros direitos a prestações, tomando-se o conceito em seu sentido mais amplo) possuem, em regra, um vínculo mais ou menos intenso com a dignidade da pessoa humana, especialmente onde se cuida da garantia de um mínimo existencial para uma vida digna, que, de resto, encontra reconhecimento mesmo no âmbito de determinadas concepções liberais de justiça social.
Sem que se esteja aqui a considerar as necessárias diferenciações, a eficácia dos direitos fundamentais no Direito Privado (incluindo as relações entre particulares) pelo menos em princípio não é de ser refutada, ainda mais levando em conta o grande comprometimento da ordem constitucional brasileira com os direitos sociais e com a justiça social, que, importa destacar, constitui princípio informador da ordem constitucional econômica.
Em caráter complementar convém referir que no caso de direitos fundamentais cujo destinatário direto e principal é o Estado (como no caso da nacionalidade, dos direitos políticos e das garantias contra extradição, entre outros) uma eficácia na esfera das relações entre particulares resulta, em princípio, afastada, o que não significa que também nestes casos não se possa falar em uma eficácia mediata (indireta), como, aliás, já demonstrado no âmbito da literatura mais recente, aspecto que, todavia, não será desenvolvido neste ensaio. Soma-se ao exposto que o próprio modo e a intensidade – em outras palavras, o “como” – e não apenas o “se” de uma eficácia dos direitos fundamentais no Direito Privado encontra-se também na dependência da concepção vigente da ordem constitucional concreta e do respectivo conteúdo e significado dos direitos fundamentais.
No caso do Brasil, a despeito das constantes e significativas reformas constitucionais levadas a efeito, que atenuaram em muito o caráter prevalentemente estatizante, interventivo e nacionalista do texto originalmente aprovado pelo Constituinte, a Constituição de 1988 segue correspondendo mais a um modelo constitucional dirigente, o que indubitavelmente implica limites mais acentuados à liberdade de conformação do legislador e da administração pública, bem como reforça a possibilidade de controle jurisdicional (o que também decorre das competências e instrumentos colocados à disposição do Poder Judiciário) dos atos legislativos e administrativos.
Nesta perspectiva, resulta no mínimo questionável a adoção, designadamente para efeitos das possibilidades e limites da constitucionalização do Direito no Brasil (especialmente no que concerne às relações entre particulares), do modelo de uma Constituição do tipo quadro, mesmo que não privilegiando uma concepção eminentemente liberal. De qualquer sorte, não é nosso propósito explorar todo o potencial desta discussão, mas apenas apontar para alguns dos seus pontos problemáticos.
4. PAUTA DE SOLUÇÃO
Assumindo a premissa de que, em regra, também a eficácia dos direitos fundamentais no Direito Privado de um modo geral gravita em torno de problemas ligados à colisão de direitos fundamentais, implicando juízos de ponderação e “concordância prática”, também a doutrina brasileira – fortemente influenciada pela evolução no plano do direito comparado – vêm tentando identificar e desenvolver alguns critérios para viabilizar a implementação da tese da eficácia direta, no âmbito da já apontada metódica diferenciada que deve pautar a busca da solução constitucionalmente adequada. Além da já de há muito praticada aplicação das exigências da proporcionalidade (pelo menos concebida como impeditiva de excessos, já que a proibição de insuficiência, embora já conhecida e discutida no Brasil, ainda não tem sido aplicada pelos Tribunais na seara do Direito Privado) e da própria razoabilidade, certamente os principais vetores interpretativos têm sido construídos em torno do maior ou menor poder social e econômico (a assimetria das relações entre os atores privados), a salvaguarda da dignidade da pessoa humana e a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais em causa.
Desde logo, especialmente no que concerne à evolução jurisprudencial, tais figuras, embora a relativamente farta produção doutrinária, ainda não foram suficientemente sistematizadas, o que dificulta significativamente a própria compreensão e análise das decisões judiciais, que, em muitos casos, ou não aplicam explicitamente tais critérios ou não justificam satisfatoriamente a sua aplicação, ainda que em muitos casos haja substancial reconhecimento quanto ao acerto do resultado final da decisão.
Com relação ao exercício de poder social, por exemplo, verifica-se a assimilação, por parte da doutrina brasileira, da tese de que a assimetria das relações gerada pela presença de um ator social (privado) poderoso não constitui critério (por si só) determinante da eficácia direta dos direitos fundamentais. O maior ou menos desequilíbrio objetivamente aferível nas relações entre particulares serve em geral como critério justificador da maior ou menor necessidade de efetivar os deveres de proteção do Estado, viabilizando eventual restrição (sempre proporcional) da autonomia privada do ator social “poderoso” em benefício da parte mais frágil da relação, com o escopo de assegurar a manutenção (não meramente formal) do equilíbrio entre as partes, quando efetivamente rompido ou ameaçado.
Cumpre anotar que embora a autonomia privada e a liberdade contratual não estejam explicitamente previstas no texto constitucional brasileiro, cuida-se de direitos fundamentais implicitamente consagradas e que, a despeito de sua possível e necessária relativização, representam limites importantes para as intervenções na esfera das relações entre particulares, sem que tal circunstância seja tida como um obstáculo à eficácia direta dos direitos fundamentais nesta seara.
Nesta perspectiva, calha referir a paradigmática decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a aplicação, na esfera das relações privadas, do princípio-garantia da ampla defesa (e do correlato contraditório). Na hipótese em exame, recuperando a orientação já traçada em julgados anteriores, mas desenvolvendo de modo significativo a argumentação em prol de uma eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, a exclusão de associado da União Brasileira de Compositores sem a observância das exigências essenciais da ampla defesa e do contraditório foi tida como constitucionalmente ilegítima, ainda mais – como enfatizado na argumentação deduzida na decisão – quando se trata de associações privadas que exerce função preponderante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, de tal sorte que tais associações integram o espaço público não-estatal.
Como prestigiada diretriz material para a solução dos casos concretos envolvendo também as relações entre particulares e a alegação da violação de direitos fundamentais, a doutrina e a jurisprudência majoritárias costumam invocar a fórmula in dubio pro dignitate, sem, todavia, reduzir uma eficácia direta ao conteúdo em dignidade dos direitos fundamentais ou mesmo à própria dignidade da pessoa humana autonomamente considerada, como, de resto, já frisado48. Isto não significa que não se possa (e deva) controverter o uso muitas vezes quase que meramente retórico e até mesmo panfletário da dignidade da pessoa humana (aspecto que diz respeito aos princípios de um modo geral), o que, contudo, extrapola os limites do presente estudo.
No que diz com a jurisprudência, assume posição de destaque, na condição de autêntico leading case, a decisão do Supremo Tribunal Federal que, reformando decisão judicial de instância inferior, proibiu a condução compulsória e submissão igualmente cogente de requerido em processo de investigação de paternidade promovido por menor a exame de coleta de sangue para fins de determinação da paternidade, argumentando que tal procedimento, além de violar as exigências da proporcionalidade também representaria violação da dignidade pessoal do investigado.
Entendeu o Tribunal que, para a proteção efetiva dos interesses do menor e de seu direito ao conhecimento da paternidade, bem como a determinação das consequências ligadas a este reconhecimento (pensão alimentícia, uso do nome, direitos hereditários, etc.) existiriam meios menos gravosos, como a inversão do ônus da prova e o estabelecimento de uma presunção (relativa) em prol do reconhecimento da de modo significativo a argumentação em prol de uma eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, a exclusão de associado da União Brasileira de Compositores sem a observância das exigências essenciais da ampla defesa e do contraditório foi tida como constitucionalmente ilegítima, ainda mais quando se trata de associações privadas que exerce função preponderante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, de tal sorte que tais associações integram o espaço público não-estatal.
Como prestigiada diretriz material para a solução dos casos concretos envolvendo também as relações entre particulares e a alegação da violação de direitos fundamentais, a doutrina e a jurisprudência majoritárias costumam invocar a fórmula in dubio pro dignitate, sem, todavia, reduzir uma eficácia direta ao conteúdo em dignidade dos direitos fundamentais ou mesmo à própria dignidade da pessoa humana autonomamente considerada, como, de resto, já frisada.
Isto não significa que não se possa (e deva) controverter o uso muitas vezes quase que meramente retórico e até mesmo panfletário da dignidade da pessoa humana (aspecto que diz respeito aos princípios de um modo geral), o que, contudo, extrapola os limites do presente estudo.
Também a aplicação do princípio da igualdade às relações privadas já foi objeto de reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal. Com efeito, no Recurso Extraordinário n° 161.243-6/DF, de 1996, relatado pelo Ministro Carlos Mario Velloso, o Tribunal decidiu em favor na necessária equiparação (para efeitos de regime de trabalho) entre funcionários estrangeiros de uma conhecida empresa multinacional (no caso, a Air France) e os funcionários brasileiros, antes sujeitos, de acordo com as normas internas da empresa, a condições diferenciadas, no sentido de menos favoráveis.
Embora a correção do resultado, de modo geral acatada pela doutrina, a decisão foi objeto de uma série de críticas no que diz coma sua fundamentação, notadamente no que diz com a ausência de apreciação das indispensáveis diferenciações incidentes quando da aplicação do princípio isonômico. Outras questões relativas ao princípio da igualdade e as diversas proibições de discriminação no Direito Privado constituem o objeto de contribuição específica neste mesmo volume e deixarão de ser aqui referidas e desenvolvidas. Como, de resto, já anunciado, também os direitos fundamentais sociais, que ocupam uma posição relevante na arquitetura constitucional brasileira, têm representado um atual e polêmico foco de discussões no contexto da constitucionalização do Direito Privado.
5. FUNÇÃO DEFENSIVA DOS DIREITOS SOCIAIS
Especialmente no que diz com a função defensiva dos direitos sociais é possível identificar uma série de exemplos, que em várias hipóteses guardam conexão com a dignidade da pessoa humana e a garantia de um mínimo existencial. A maioria dos casos diz com a aplicação do direito à moradia e o conteúdo existencial (assim como a função social de um modo geral) da posse e da propriedade, designadamente no que diz com a proteção do direito à moradia contra intervenções oriundas do legislador e de sujeitos privados.
É possível perceber o quanto a discussão em torno da eficácia dos direitos fundamentais (inclusive e possivelmente com ainda maior ênfase na esfera dos direitos sociais) já na sua dimensão defensiva (ou negativa) no Direito Privado é atual e demanda um desenvolvimento também no que diz com o seu tratamento dogmático. Também aqui a experiência acumulada no direito comparado poderia ser mais aproveitada, notadamente quanto à aplicação metodologicamente adequada do princípio da proporcionalidade (como proibição tanto de excessos quanto de insuficiências) e da própria interpretação conforme a Constituição, esta mais propriamente nas hipóteses em que está em causa o controle das opções legislativas.
De outra parte, verifica-se que uma distinção substancial entre a dimensão negativa dos direitos de liberdade mais tradicionais e a dimensão defensiva dos direitos sociais não se revela como correta, especialmente (mas não exclusivamente) quando e onde estiver em causa a dignidade da pessoa humana.
É possível afirmar que os direitos fundamentais, pelo menos de acordo com o entendimento prevalente na ordem jurídico-constitucional brasileira, geram efeitos diretos prima facie no âmbito das relações privadas, o que, além de pressupor uma metódica diferenciada, também implica o reconhecimento de uma relação de complementariedade entre a vinculação dos órgãos estatais e a vinculação dos atores privados aos direitos fundamentais, que também se verifica em relação ao modo pelo qual se opera esta eficácia.
Neste contexto, importa relembrar aqui que independentemente do modo pela qual se dá, em concreto, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, entre as normas constitucionais e o Direito Privado o que se verifica não é um abismo, mas uma relação pautada por um contínuo fluir, o que apenas reforça a tese da necessidade de uma metódica diferenciada, amplamente adotada no Brasil, em que pesem algumas variações de autor para autor e na seara jurisprudencial.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A posição aqui sustentada é que, notadamente (mas não exclusivamente) em virtude da insuficiente consideração das estruturas argumentativas e dos métodos e princípios de interpretação mais adequados ao direito constitucional positivo, especialmente no que diz com o correto manejo dos critérios da proporcionalidade e das diretrizes que presidem a solução das colisões entre direitos fundamentais de um modo geral, seguidamente ocorrem certos abusos também na seara da assim designada constitucionalização do Direito Privado, com particular ênfase na aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas.
Não é sem razão, portanto, que mesmo adeptos insuspeitos de uma eficácia dos direitos fundamentais também na esfera das relações privadas têm pugnado por uma postura mais cautelosa, destacando, por exemplo, que um dos efeitos colaterais indesejáveis decorrentes de uma hipertrofia da Constitucionalização da ordem jurídica acaba por ser uma por vezes excessiva e problemática judicialização das relações sociais.
Cientes disso, não há como deixar de enfatizar, por outro lado, que o pleito em prol de uma eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais nas relações privadas não se justifica apenas por razões de ordem dogmática, mas também em função da necessidade evidente de limitação do poder social e como resposta às persistentes desigualdades sociais, culturais e econômicas, ainda mais acentuadas em sociedades periféricas como a do Brasil.
Certamente o modelo de constitucionalização do Direito Privado também deve ser compatível com os desafios concretos de um determinado ambiente social, econômico, político-institucional e mesmo cultural. Acima de tudo, resulta importante destacar que entre os possíveis extremos de uma “civilização do direito constitucional e uma constitucionalização do direito civil”, seja possível trilhar um caminho intermediário, pautado pela proporcionalidade e razoabilidade, evitando-se aqui os efeitos nefastos de uma leitura fundamentalista da Constituição, mas especialmente dos princípios e direitos fundamentais.
Caso isto seja alcançado (e nos parece ser uma meta perfeitamente atingível) também será viável contornar os – em parte justificados – ao se pronunciar em relação a uma eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Com efeito, seguimos convictos de que tanto a Constituição e os direitos fundamentais, quanto o Direito Privado, nada têm a perder, mas somente a ganhar com uma adequada constitucionalização da ordem jurídica.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Paixão Caetano
Professor de Ciências Criminais. Delegado de Polícia Judiciária Civil. Mestrando em Direito Ambiental Especialista em Direito Público Pós-graduado em Direitos Difusos e Coletivos em Segurança Pública Especialista em Direito Penal e com certificação de MBA Executivo em Negócios Financeiros