Casamento homoafetivo e a teoria do reconhecimento

Resumo: Este artigo explicita de que forma a teoria do reconhecimento de Hegel (2008) e Honneth (2009) pode servir para consolidar o entendimento jurídico para a habilitação de casais homoafetivos para o casamento. Para isso, é observado o direito à diferença e à igualdade, pois são eles, que na forma do reconhecimento jurídico, podem preservar a identidade particular desses casais, bem como a identidade coletiva de uma sociedade como um todo.

Palavras-Chave: Teoria do Reconhecimento de Hegel e Honneth; Casamento Homoafetivo; Direito à identidade particular e coletiva; Direito à diferença e igualdade.

Abstract: This article explains how the theory of recognition of Hegel (2008) and Honneth (2009) may serve to consolidate the legal opinion for enabling homosexual couples for marriage. Therefore, it is subject to the right to difference and equality, as they are, which in the form of legal recognition, can preserve the identity of these particular couples as well as the collective identity of a society as a whole.

Keywords: Theory of recognition of Hegel and Honneth; Marriage homosexual; Right to private and collective identity; Right to difference and equality.

Sumário: 1 – Considerações Iniciais; 2 – Reatualizando a Teoria do Reconhecimento: de Hegel a Honneth; 3 – O Conflito Normativo; 4 – Todos são Diversos e Iguais entre Si; 5 – Considerações Finais; 6 – Referências.

1 Considerações Iniciais

O presente artigo tem por objetivo tratar acerca do casamento homoafetivo e a teoria do reconhecimento de dois filósofos: Hegel (2008) e Honneth (2009). A escolha por tal tema provém do fato de que a maioria dos juristas brasileiros entende que o casamento homoafetivo é inexistente, pelo fato do art. 1514 do Código Civil (CC) mencionar as palavras “homem e mulher”. Entretanto, essa ideia a respeito da norma civil, gera muitas discussões e até mesmo conflitos entre eles. Tais discussões propagam-se pelo fato de que, há outros profissionais do Direito que interpretam o artigo 1514/CC aliado ao artigo 226, §1º da Constituição Federal (CF), assim, permitindo essa espécie de casamento. Por haver divergências a esse respeito, alguns cartórios do Brasil acabam acatando o entendimento do STJ, quando entendeu ser possível a habilitação de casais homoafetivos para o casamento. Outros cartórios, ainda, negam-se a habilitarem esses casais para o matrimônio, sob o pretexto do art. 1514/CC mencionar que o casamento é somente para casais heteroafetivos.  

Sendo assim, por haver divergências, ainda, a esse respeito, é que se faz importante, o casamento homoafetivo, para ser definitivamente acolhido na legislação, ser visto e compreendido através da teoria do reconhecimento de Hegel (2008) e Honneth (2009). Para isso, será, primeiramente, explicitado como a teoria do reconhecimento, desenvolvida inicialmente por Hegel (2008) e, posteriormente, reatualizada por Honneth (2009) pode servir para compreender e acolher o casamento homoafetivo, de forma definitiva no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, será levado em consideração o principio da igualdade bem como o direito à diferença. Direito à diferença que possibilita a preservação da identidade, tanto particular quanto coletiva, dos grupos sociais minoritários, frente aos outros grupos e também à sociedade como um todo. Havendo a preservação da identidade e, como consequência, o reconhecimento das diferenças é que se estará promovendo e proporcionando uma maior igualdade social e, principalmente, jurídica entre os membros de uma sociedade.

Para que se chegue a essa explicitação, tomam-se por base as ideias de Hegel (2008), encontradas no clássico “Fenomenologia do Espírito” que foram, de alguma maneira, reatualizadas por Honneth (2009), em sua obra filosófica: “Luta por Reconhecimento: a Gramática Moral dos Conflitos Sociais”. Após, será apresentado o motivo de que as divergências jurídicas a respeito do casamento homoafetivo, são entendidas como um conflito social e, também, por quais motivos se fala em reconhecimento, de acordo com os referidos filósofos. Cabe mencionar, ainda, como o reconhecimento, ao ser entrelaçado com o princípio da igualdade, bem como o direito à diferença, pode proporcionar o acolhimento desse grupo social, tanto pelo ordenamento jurídico, quanto pela sociedade. Por fim, serão apresentadas as considerações finais.

2 Reatualizando a Teoria do Reconhecimento: de Hegel a Honneth

De acordo com a maioria dos juristas brasileiros, há o entendimento de que o casamento homoafetivo é inexistente juridicamente, pelo fato do art. 1514/CC mencionar a expressão “homem e mulher”. Entretanto, essa ideia a respeito da norma civil, gera muitas divergências e conflitos. Tais conflitos propagam-se pelo fato de que, há outros profissionais do Direito que interpretam o art. 1514/CC conjuntamente com o art. 226,§1º/CF, entendendo que, a letra da norma constitucional (art. 226,§1º/CF) ao tratar de matéria de casamento não menciona o sexo dos nubentes para o matrimônio. Sendo assim, o art. 1514/CC, por justamente, pertencer ao Código Civil, é hierarquicamente inferior à Carta Magna, daí não podendo prevalecer. Além desse entendimento, tais juristas alegam que, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é proibido expressamente pela norma jurídica, ele é permitido.

Por outro lado, há juristas que não possuem esse entendimento e, portanto, apegam-se ao diploma civil, somente, alegando que, o casamento, é por definição, um contrato que se realiza apenas quando os nubentes são de sexos diversos. Esses profissionais do Direito, alegam, portanto, que o casamento homoafetivo é inexistente.

Por existir, ainda, divergências, apesar dos últimos avanços no Poder Judiciário acerca dos direitos homoafetivos, é que há cartórios que, desde a decisão do STJ, já habilitam casais homossexuais para o casamento, enquanto, muitos outros cartórios do Brasil ainda se negam a habilitarem esses casais, pois entendem que essa espécie de casamento é inexistente. Nesse caso, esses casais precisam ingressar no Judiciário se desejarem contrair matrimônio. Sendo assim, se for comparar a situação exposta acima com a habilitação de um casal heteroafetivo, verifica-se a diferença de tratamento para casos semelhantes.

Como há essa diferença de tratamento e, muitas discussões a esse respeito, verifica-se que há conflitos em como a norma matrimonial é interpretada para acolher um determinado grupo social no ordenamento jurídico. Desse modo, quando se está diante de conflitos que envolvam características particulares desse determinado grupo social, por exemplo e, se busca uma forma para que ele seja acolhido no Direito, é necessário falar em reconhecimento, conforme expõe a teoria de Hegel (2008) e Honneth (2009).

Honneth (2009) principia expondo que Hegel (2008), para realizar a sua teoria do reconhecimento, baseou-se em Fichte. Este filósofo “havia concebido o reconhecimento como ‘uma ação recíproca’ entre indivíduos.” (HONNETH, 2009, p. 46). Isso significa que entre os indivíduos precisa haver uma consciência comum. Tendo em vista tal pensamento, Hegel (2008), através de uma filosofia transcendental, aplica esta teoria sobre a ação recíproca entre os indivíduos. Quando faz isso, Hegel (2008) “projeta o processo intersubjetivo de um reconhecimento mútuo para dentro das formas comunicativas de vida.” (HONNETH, 2009, p.46). Esta questão (formas comunicativas de vida) possui relação com a eticidade humana, isto é, com as relações éticas de uma sociedade. Tais relações representam, para Hegel,

“As formas de uma intersubjetividade prática na qual o vínculo complementário e, com isso, a comunidade necessária dos sujeitos contrapondo-se entre si são assegurados por um movimento de reconhecimento. A estrutura de tal relação de reconhecimento recíproco é para Hegel, em todos os casos a mesma: na medida em que se sabe reconhecido por um outro sujeito em algumas de suas capacidades e propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito sempre virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse modo, também estará contraposto ao outro, novamente como um particular”. (HONNETH, 2009, p. 46-47).

Através destas questões, Hegel avança a partir das ideias de Fichte. Ele passa a entender que os indivíduos, quando há uma relação ética estabelecida “vêm sempre a saber algo mais acerca de sua identidade particular, pois trata-se em cada caso até mesmo de uma nova dimensão do seu Eu que veem confirmada.” (HONNETH, 2009, p.47). Ocorre que, para acontecer este reconhecimento, sempre haverá o abandono da etapa da eticidade que foi alcançada. E, isso se dá de modo conflituoso, pois, somente assim, chega-se ao reconhecimento. Hegel, no entendimento de Honneth (2009), preocupa-se mais com a relação entre os indivíduos, porém, para haver o reconhecimento, eles precisam abandonar e superar a eticidade que haviam conquistado, pois não viam “plenamente reconhecida sua identidade particular.” (HONNETH, 2009, p.48). Para isso, Honneth (2009) insere-se na “Escola de Frankfurt” que trata sobre a “Teoria Crítica”. Essa teoria, após muitos debates, desde a sua criação em 1930 sofreu muitas reformulações, que, embora relevantes, não cabe discuti-las neste artigo. Apenas é necessário mencionar que, atualmente, a Teoria Crítica trabalha com “as questões sobre os ideais de uma sociedade justa colocados pelas lutas contemporâneas, pelo reconhecimento social e jurídico das identidades particulares e formas de vida culturais.” (WERLE; MELO, 2008, p.183). Em outras palavras, é possível dizer que “os pressupostos teórico-explicativos e crítico-normativos estão ancorados no processo social de construção intersubjetivo da identidade (pessoal e coletiva).” (WERLE; MELO, 2008, p.184). Por se preocupar com a questão da justiça dentro da sociedade, com a identidade particular de cada pessoa, Honneth propõe pensar “os fundamentos [da Teoria Crítica] […] segundo as experiências de injustiça e os conflitos que se seguem a tais experiências.” (WERLE; MELO, 2008, p. 184). Quando faz isso, o filósofo percebe que esse conflito

“Não pode ser um conflito pela pura autoconservação de seu ser físico; antes o conflito prático que se acende entre os sujeitos é por origem um acontecimento ético, na medida em que objetiva o reconhecimento intersubjetivo das dimensões da individualidade humana”. (HONNETH, 2009, p. 48).

Nessa senda, em que Honneth (2009) toma o conflito como um acontecimento ético é possível dizer que a Teoria Crítica do reconhecimento

“Deve servir tanto para uma descrição empiricamente relevante das relações sociais e conflitos vigentes como também deve tomar o comportamento crítico diante da realidade social e apontar para a emancipação e as patologias e obstáculos que impedem a sua realização”. (WERLE; MELO, 2008, p. 191).

Frente a isso, Honneth (2009) retira o conceito de eticidade que acompanha os conflitos e tem por escopo “uma avaliação das lutas sociais.” (WERLE; MELO, 2008, p.191). Aduz ele que a eticidade é um

“Todo das condições intersubjetivas das quais se pode demonstrar que servem à realização individual na qualidade de pressupostos normativos. […] Esse conceito […] de eticidade pretende ser uma ampliação da modalidade no sentido de incluir “todos os aspectos que constituem o objetivo de um reconhecimento não distorcido e deslimitado” o que significa integrar um mesmo quadro tanto a universalidade do reconhecimento jurídico moral da autonomia individual quanto a particularidade do reconhecimento ético da realização pessoal. Nas sociedades modernas, os sujeitos tem de encontrar reconhecimento como seres tanto autônomos quanto individualizados. A concepção […] de eticidade reúne todos os pressupostos intersubjetivos que precisam estar preenchidos para que os sujeitos se possam saber protegidos nas condições de sua auto-realização”. (WERLE; MELO, 2008, p. 191).

Quando Honneth (2009) propõe a reatualização, tomando o conflito, a luta social como um acontecimento ético, com vistas ao reconhecimento da realização individual, ele afasta da teoria do reconhecimento o forte pensamento metafísico fundado na relação sujeito-objeto. O filósofo passa a basear a referida teoria na relação intersubjetiva (sujeitos-sujeitos), próximo de um pensamento pós-metafísico. É possível afirmar isso, pois somente entre pessoas, consideradas como sujeitos de uma relação ética é que pode haver o mútuo reconhecimento. Honneth (2009) fala em relação intersubjetiva, pois é a partir dela que os indivíduos

“Podem saber-se reconciliados uns com os outros justamente sob a medida de um reconhecimento recíproco de sua unicidade – o respeito de cada pessoa pela particularidade biográfica de todo outro formaria de certo modo o fermento habitual dos costumes coletivos de uma sociedade”. (HONNETH, 2009, p. 107-108).

Diante disso, para relacionar tal teoria com a proteção ao casamento homoafetivo no ordenamento jurídico do Brasil, cabe falar nos conflitos que levam às divergências entre os juristas a respeito dessa espécie de matrimônio. Expõe-se isso, posto que são desses conflitos que advém a luta pelo reconhecimento.

3 O Conflito Normativo

Como já foi visto do que se trata a teoria do reconhecimento, vale mencionar que ela parte de conflitos, de divergências. Por conflitos, entende-se que é “a interação de duas partes que tem propósitos incompatíveis.” (BELMAR, 2005, p.102). Em outras palavras, “o conflito é uma situação de oposição consciente entre duas partes.” (BELMAR, 2005, p. 111). Para Burguet (2005, p.47), na mesma linha, retira-se que “quando há a incompatibilidade de interesses ou necessidades, surge o conflito.” Já Darino e Oliveira (2007, p.14), aduzem que o conflito “significa discrepância, choque, intereses contrapuestos en relación con una situación o un tema determinado.”

Sabendo, desse modo, que o conflito necessita de ideias opostas entre si, de sujeitos que pensem de maneira diversa acerca de um mesmo assunto, como, por exemplo, a norma jurídica que regra o casamento no Brasil, é que Honneth (2009), para haver o reconhecimento, preocupa-se com os conflitos sociais que seguem por causa dessa regra jurídica. Conflitos esses que implicam no não acolhimento dos casais homoafetivos perante o ordenamento jurídico brasileiro, por parte de muitos juristas que ainda não conseguem compreender que o art. 1514/CC, se combinado com o art. 226, §1º/CF, abarca o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo.

Sendo assim, para buscar o reconhecimento intersubjetivo das partes envolvidas em um conflito, como por exemplo, os próprios juristas que não aceitam o casamento homoafetivo de um lado e, os casais homoafetivos que desejam se casarem, sem ter a preocupação de ter o pedido de habilitação negado no cartório, de outro lado, Honneth (2009, p.17), parte “dos conflitos e de suas configurações sociais e institucionais.” Porém, nesse contexto, cabe uma ressalva, pois para ele não é qualquer conflito que merece ser estudado sob a ótica do reconhecimento, até porque alguns não valorizam a luta social, prendendo-se à auto conservação bem como ao aumento de poder. Os conflitos que interessam para o filósofo são aqueles

“Que se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal ou coletiva capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou justamente desenvolvê-las num nível evolutivo superior”. (HONNETH, 2009, p.18).

Se olhar e analisar sobre as palavras de Honneth (2009), ver-se-á que o conflito, que para esse artigo, é a equivocada interpretação da norma jurídica matrimonial por alguns juristas, de alguma maneira, desrespeita, desmereça, rebaixe e não valoriza a identidade pessoal e coletiva dos casais homossexuais que desejam se casarem, encaixa-se perfeitamente na ideia do filósofo. Para ele, o conflito é “a base da interação social […] e a gramática moral desse conflito é a luta por reconhecimento.” (WERLE; MELO, 2008, p.186). Honneth se ancora no “fato de que há uma suposição básica de reconhecimento social à qual os sujeitos se vinculam com suas expectativas normativas quando entram em relações comunicativas.” (WERLE; MELO, 2008, p.186). Essa relação comunicativa é a base para o reconhecimento da diversidade no Poder Judiciário, mesmo que haja juristas que, ainda entendem que o casamento homoafetivo não é possível no Brasil. Afirma-se isso, pois, para o referido filósofo, a relação comunicativa não pode ser desenvolvida em “termos de uma teoria da linguagem, mas com base nas relações de reconhecimento formadoras da identidade, isto é, da constituição intersubjetiva da identidade pessoal e coletiva.” (WERLE; MELO, 2008, p.186).

Honneth parte dessa concepção de conflito, pois há nos relacionamentos entre as pessoas, situações às quais são eivadas de desrespeito e injustiça, justamente porque agridem a identidade de uma delas e, como conseqüência, a todo um grupo social que tenha essa mesma identidade. Isso ocorre, pois, de acordo com Honneth (2009), aos sujeitos, pertencentes aos grupos sociais minoritários, em sua autodescrição

“Se veem maltratados por outros, desempenham até hoje um papel dominante de categorias morais que, como as de “ofensa” ou de “rebaixamento”, se referem a formas de desrespeito, ou seja, às formas de reconhecimento recusado. Conceitos negativos dessa espécie designam um comportamento que não representa uma injustiça só porque ele estorva os sujeitos em sua liberdade de ação ou lhes inflige danos, pelo contrário, visa-se àquele aspecto de um comportamento lesivo pelo qual as pessoas são feridas numa compreensão positivas de si mesmas, que elas adquiriram de maneira intersubjetiva”. (HONNETH, 2009, p.213).

Esse conflito ocorre, pois os casais homoafetivos que buscam a habilitação para o seu casamento e, se caso a tem negada, sentem-se desrespeitados, posto que, no entendimento de Honneth (2009), construíram uma imagem positiva de si mesmos frente ao ambiente social onde se encontram. Sendo assim, eles tem violada a sua identidade, bem como a possibilidade de serem eles mesmos, seja na sociedade quanto nas normas jurídicas. É por isso que Honneth,

“Destaca a ideia fundamental de que os indivíduos só podem se formar e construir suas identidades pessoais quando são reconhecidos intersubjetivamente. O indivíduo só pode ter uma relação positiva consigo mesmo se for reconhecido pelos demais membros da comunidade. Quando esse reconhecimento não é bem sucedido (pela ausência ou falso reconhecimento), desdobra-se uma luta por reconhecimento na qual os indivíduos procuram estabelecer ou criar novas condições de reconhecimento recíproco”. (WERLE; MELO, 2008, p.114).

Portanto, quando se fala em proteção aos casais homoafetivos, é necessário dar relevância à esse conflito normativo que traz desrespeito e injustiça para com eles. Menciona-se isso, pois, é de um conflito, onde uma das partes não reconhece ou então nega direitos à outra, por esta ser diversa de si, que se deve primar pelo reconhecimento. Fala-se isso, pois,

“O conflito representa uma espécie de mecanismo de comunitarização social, que força os sujeitos a se reconhecerem mutuamente no respectivo outro, de modo que, por fim sua consciência individual da totalidade acaba se cruzando com a de todos os outros, formando uma consciência “universal”. Essa consciência que veio a ser “absoluta” fornece […] a base intelectual para uma coletividade futura e ideal: proveniente do reconhecimento recíproco como um médium da universalização social, ela constitui o “espírito de povo” e, nesse sentido, também a “substância viva” de seus costumes”. (HONNETH, 2009, p.64).

Honneth (2009) baseando-se em Hegel (2008) defende a ideia de que esse conflito, gerado pelo motivo de que, quando alguns juristas não aceitam a habilitação de um casal homoafetivo para o casamento, fere a identidade desse casal e, isso

“Resulta em uma luta dos sujeitos por um reconhecimento recíproco de sua identidade uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e político de instituições garantidoras da liberdade: trata-se da pretensão dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade”. (HONNETH, 2009, p.25).

Isso quer dizer que o

“Desenvolvimento da identidade pessoal de um sujeito está ligado fundamentalmente à pressuposição de determinadas formas de reconhecimento por outros sujeitos, pois, com efeito, a superioridade da relação interpessoal sobre a ação instrumental consistiria manifestamente em que ela abre reciprocamente para os sujeitos comunicantes a possibilidade de se experienciar em seu parceiro de comunicação como o gênero de pessoa que eles reconhecem nele a partir de si mesmos”. (HONNETH, 2009, p.78).

Isso significa que, se os juristas negarem a habilitação do matrimônio para um casal homossexual, eles “não reconhecem […] [esse casal] como um determinado gênero de pessoa, tampouco pode experienciarem-se a si mesmos integral ou irrestritamente como um tal gênero de pessoa.” (HONNETH, 2009, p.78). Assim, a ocorrência de tais divergências normativas que prejudique a identidade de um grupo social minoritário, é porque alguns juristas não conseguem perceber que os casais homoafetivos possuem uma identidade própria e que lhes é inerente à sua condição de indivíduo digno e capaz de ser reconhecido. Assim, aquele sujeito que não reconhece a diferença dos outros, perde o direito de ser reconhecido em sua essência, justamente porque não reconhece o outro e não procura formar uma comunidade ética que seja capaz de consolidar todas as identidades inerentes aos sujeitos. Portanto, Honneth (2009, p.78) diz que

“Se eu não reconheço meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco posso me ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa, já que lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis me sentir confirmado por ele”.

Desse modo, quando houver o reconhecimento da habilitação para os casais homossexuais, em todos os cartórios brasileiros, sem exceção, é que eles, bem como os juristas envolvidos nessa relação ética terão a sua identidade reconhecida. É relevante destacar que esse reconhecimento somente enseja, pois há a divergência normativa, o conflito, o sentimento de desrespeito e injustiça para com os casais homossexuais. Sendo assim, isso tornará a relação de reconhecimento “eticamente mais madura,” (HONNETH, 2009, p.57), o que leva ao desenvolvimento de “uma ‘comunidade de cidadãos livres’,” (HONNETH, 2009, p.57), bem como conscientes, de maneira universal, e reconhecentes dos direitos que cabem aos grupos sociais minoritários, como os homossexuais.

Visto o que é o reconhecimento, bem como quais os conflitos e, aqui pode-se fazer referência às divergências normativas acerca do casamento homoafetivo, que são passíveis dele (do conflito) é que, no próximo item será trabalhando com o direito à diferença e igualdade, tomando por base o reconhecimento, para a proteção ao casamento do pessoas do mesmo sexo.

4 Todos são Diversos e Iguais entre Si

Para que seja alcançada uma consciência universal e, como consequência, o reconhecimento dos homossexuais, no momento de se habilitarem ao casamento, pelos juristas, é necessário expor acerca do princípio da igualdade bem como ao direito à diferença. Aduz-se isso, posto que, é o princípio insculpido no art. 5º, caput da Constituição Federal[1] e a sua observação ao direito à diferença que será construído o reconhecimento. É por isso que o fato de um sujeito ser diverso do outro, não significa que ele é desigual à esse outro para receber tratamento diferente (nesse caso, desigual) dele.

Tomando por base que o reconhecimento se dará quando as diferenças entre os sujeitos (se comparar a maneira como é tratado um casamento homoafetivo e um heteroafetivo) forem entendidos como iguais e não desiguais é que se começa a discussão com a máxima de Aristóteles: “a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.” (MELLO, 2004, p.10). Diante desta questão, Celich (2011) aduz que esta “assertiva […] traz implícita uma pergunta: quem são os iguais e quem são os desiguais?” (CELICH, 2011, p.149). A resposta para tal indagação aparece em Mello (2004, p.11), quando afirma que

“O que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Em suma qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos […] diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia”.

Diante disso, Celich (2011, p.150) aduz que

“Há grupos de pessoas sob um ponto de vista comum, que devem ser tratados de maneira igual, porque são iguais sob este referencial comum. E há outros grupos, sob outro ponto comum, que devem ser tratados de forma desigual se comparadas com aquele (grupo de pessoas iguais) porque estes são desiguais. [Desta forma], é aplicando de maneira correta essa máxima aristotélica que será encontrada a verdadeira igualdade entre os indivíduos.”

De outro modo, Brandão (2002, p.84) esclarece que

“A regra da igualdade não consiste em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha verdadeira a lei da igualdade. […] Tratar com desigualdade a diferença, ou a desiguais com igualdade, será desigualmente flagrante, e não liberdade real. O problema do reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra de isonomia se biparte em duas questões. A primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação. A segunda reporta-se à correlação existente entre o fato erigido em critério de discriminação e a disparidade estabelecida no tratamento. Esclarecendo melhor, tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro, se há justificativa para, a vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento […] constituído em função da desigualdade proclamada”.

Tomando por base as idéias expostas, Dias (2006) compreende que, frente a um caso de desigualdade, é necessário investigar se existe diferença entre o que foi estabelecido com a desigualdade de análogo caso. Celich (2011, p.151) diz que

“Poder-se-ia avaliar uma eventual afronta ao princípio da igualdade. Assim, será agredida a igualdade quando o fator diferencial escolhido para qualificar os indivíduos atingidos pela norma não guardar pertinência, seja de inclusão, seja de exclusão com o benefício concedido”.

Em outras palavras é necessário levar em consideração se a orientação sexual de um sujeito, pode ser tomada, pelos juristas, como fator justificável para que ele seja tratado de modo diverso de outros indivíduos. Isso quer dizer que, necessita discutir se a diferença de um sujeito ou de um grupo social que deseja a habilitação para o casamento, pode ser considerada como fator justificador para que haja um tratamento diferenciado ou não. De outro modo, diz-se que, para alguém receber tratamento diverso de outrem, é necessário existir uma explicação lógica, racional e plausível para que aconteça realmente um tratamento diferente. Mello (2004, p.21), leciona que se tem de

“Investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório, de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento […] construído em função da desigualdade proclamada”.

Diante do exposto, também se deve observar que, “quando se trata acerca do princípio da igualdade, deve-se também observar o direito à diferença.” (CELICH, 2011, p.153). Lopes (2003, p.30) diz que esta diferença pode ser “justamente aquilo que se quer preservar e não abolir.” Este autor levanta um questionamento sobre esse direito. Ele afirma que isso pode ser duas coisas distintas. A primeira

“Pode significar exatamente o mesmo que os direitos fundamentais implicam como programa democrático: que se nenhuma característica individual seja levada em conta pelo legislador e pelos tribunais para restringir os direitos de alguém sempre que esta característica não se justifique como diferenciador suficiente. Diferenças de nascimento, de etnia, de gênero, e assim por diante são proscritas do ordenamento jurídico. Tratar alguém de forma diferente nestes termos significa não reconhecer a pessoa individualmente pelo que é. O remédio jurídico para a falta de reconhecimento individual é a proibição de tais atos pela regra da isonomia”. (LOPES, 2003, p.30)

A segunda coisa distinta, para Lopes (2003, p.30) vai significar

“A valorização positiva de certa identidade. Nestes termos, o direito do indivíduo não é apenas o de ser tratado como todos os outros, mas ver sua diferença específica positivamente valorizada, ou não desrespeitada. O direito ao reconhecimento, neste momento, adquire o aspecto distributivo […] já que esta identidade não é exclusiva de um indivíduo, mas pertence a um grupo. Este bem comum (uma identidade) é o que merece o respeito público”.

Percebe-se, portanto, que qualquer característica inata de um sujeito, como ocorre com a homoafetividade, significa uma diferença em relação aos demais, se comparada com a heteroafetidade. Sendo assim, uma diferença não é entendida como desigualdade e, portanto, nenhum sujeito pode receber tratamento desigualitário por sua diversidade se comparado aos outros sujeitos que o rodeiam. Verifica-se isso, pois, se a legislação, preza pela igualdade, ou melhor, pelo tratamento igualitário para todas as pessoas, independente de qual seja a característica diferente que esta possua, é necessário que aquele indivíduo que tem alguma diferença, seja respeitado por essa diversidade. No momento em que um sujeito, bem como um grupo social é respeitado por sua diferença em relação aos outros grupos sociais que compõem a mesma sociedade, está-se falando em reconhecimento da diferença, tanto a nível social quanto legislativo, entre todas as pessoas. Desse modo, por estar preservado o direito à diferença, também estar-se-á acolhendo e reconhecendo a identidade de determinados grupos sociais, como por exemplo, os homossexuais que desejarem contrair matrimônio. Assim, haverá o alcance da consciência universal e o mútuo reconhecimento entre os sujeitos.

5 Considerações Finais

Conforme foi explicitado ao longo do artigo, a teoria do reconhecimento irá se preocupar em fazer com que, as diferenças inatas, que fazem parte da identidade dos sujeitos e dos grupos sociais a que eles pertencem, sejam acolhidas e reconhecidas pelos demais atores sociais, como os juristas, por exemplo. Porém, como, ainda, muitas diferenças não foram reconhecidas, há sujeitos desrespeitados por outros, justamente pelo fato de serem diferentes deles. É por isso que ocorre o conflito, a divergência de ideias acerca da norma matrimonial. Divergência essa, que causa nos casais homossexuais prejudicados (aqueles que tentam se habilitarem ao casamento e tem o pedido negado) um sentimento de injustiça e, por isso

“Devem ser vistos como o estopim par excellence da luta por reconhecimento. [Assim], Honneth procura mostrar que uma experiência social de desrespeito atua como uma forma de freio social que pode levar à paralisia do indivíduo ou de um grupo social. Por outro lado, ela mostra o quanto o ator social é dependente do reconhecimento social. […] A experiência do desrespeito, então, deve ser tal que forneça a base motivacional da luta por reconhecimento, porque essa tensão […] só pode ser superada quando o ator social estiver em condições de voltar a ter uma participação ativa e sadia na sociedade”. (SAAVEDRA, 2007, p.109)

É por isso que o reconhecimento jurídico dos casais homoafetivos encena

“Uma espécie de mudança estrutural na base da sociedade, à qual corresponde também uma mudança estrutural nas relações de reconhecimento: ao sistema jurídico não é mais permitido atribuir exceções e privilégios às pessoas da sociedade em função de seu status. Pelo contrário, o sistema jurídico deve combater estes privilégios e exceções. O direito então, deve ser geral o suficiente para levar em consideração todos os interesses de todos os participantes da comunidade. […] [A partir disso] a luta por reconhecimento deveria então ser vista como uma pressão sob a qual permanentemente novas condições para a participação na formação pública da vontade vem à tona. […] [Assim], reconhecer-se reciprocamente como pessoas jurídicas significa hoje muito mais do que no inicio do desenvolvimento do direito: a forma de reconhecimento do direito contempla não só as capacidades abstratas de orientação moral, mas também as capacidades concretas necessárias para uma existência digna; em outras palavras, a esfera do reconhecimento jurídico cria condições que permitem ao sujeito desenvolver auto-respeito. No caso da forma de reconhecimento do direito são postas em relevo as propriedades gerais do ser humano”. (SAAVEDRA, 2007, p. 104-106)

Desse modo, é através do reconhecimento, conforme as ideias de Hegel (2008) e Honneth (2009), que haverá total proteção para que os homossexuais se habilitem para o casamento. Cabe mencionar que o reconhecimento ocorre quando “uma pessoa desenvolve a capacidade de sentir-se valorizada somente quando as suas capacidades individuais não são mais avaliadas de forma coletivista.” (SAAVEDRA, 2007, p. 106-107). Isto é, os juristas não podem ficar esperando proteger os casais homossexuais e conceder-lhes habilitação para o matrimônio, quando todos os membros de uma sociedade os aceitarem e reconhecerem. É preciso protegê-los e dar assistência no momento em que a sua identidade particular e coletiva ainda não é aceita pela maioria dos juristas e até mesmo, da sociedade.

Fala-se isso, pois ali “são postas em relevo as propriedades que tornam o indivíduo diferente dos demais, ou seja, as propriedades de sua singularidade.” (SAAVEDRA, 2007, p.106). Assim, começa a construção de uma identidade social baseada na diversidade, onde a particularidade daqueles sujeitos que são oprimidos por outros, possam ser reconhecidos em seus direitos. Começa um fortalecimento e uma consolidação da identidade social e coletiva.

 

Referências

BELMAR, Alejandro Muñoz. O jogo de papéis: recurso metodológico para a resolução de conflitos escolares. In: VINYAMATA, Eduard. (org.). Aprender a partir do conflito: conflitologia e educação. Porto Alegre: Artmed, 2005. P. 99 – 112.

BURGUET, Marta. Diante do conflito… Uma aposta na educação. In: VINYAMATA, Eduard. (org.). Aprender a partir do conflito: conflitologia e educação. Porto Alegre: Artmed, 2005. P. 41 – 49.

BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Parcerias homossexuais: aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

CELICH, Grasiela Cristine. A possibilidade jurídica do casamento homoafetivo no Brasil. Santa Maria: AGBook, 2011.

DARINO, Marta Susana; OLIVEIRA, Mirta Gomez. Resolución de conflictos en las escuelas: Proyectos y ejercitación. 1ª Ed. Buenos Aires: Espacio Editorial, 2007.

DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

HEGEL. G.W.F. Fenomenologia do espírito. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. In: GOLIN, Célio; POCAHY, Fernando Altair; RIOS, Roger Raupp (Orgs.). A justiça e os direitos de gays e lésbicas: jurisprudência comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 13-36.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

SAAVEDRA, Giovani Agostini. A teoria crítica de Axel Honneth. In: SOUZA, Jessé; MATTOS, Patrícia. (Orgs.). Teoria crítica no século XXI. São Paulo: Annablume, 2007.

WERLE, Denilson Luis; MELO, Rúrion Soares. Reconhecimento e justiça na teoria crítica da sociedade em Axel Honneth. In: NOBRE, Marcos. (Org.). Curso livre de teoria crítica. 2ª ed. São Paulo: Papirus, 2008.

Nota:

 

[1] Art. 5ª, caput/CF – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se […] a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade […].”


Informações Sobre o Autor

Grasiela Cristine Celich Dani

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria – RS (FADISMA); Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – RS; Especializanda em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA- Santa Maria). Integrante do Grupo de Estudos em Afetividade e Moralidade – AFETOS MORAIS na Universidade Federal de Santa Maria – RS


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