Caso Araguaia,constitucionalidade x convencionalidade: A lei da anistia na sentença da Corte Interamericana e no julgamento da ADPF 153

Resumo: Os crimes praticados por militares ao combater a guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar de 1964, foram objetos de sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinou a persecuçãopenal dos culpados. O Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, declarou a constitucionalidade da lei 6.683/79, que concedeu anistia pelos crimes ocorridos no mesmo período. Estas sentenças, contraditórias entre si, requerem da sociedade, e em especial do estudioso do direito, uma ponderada análise dos fundamentos jurídicos que sustentam uma e outra decisão. Com base na jurisprudência dos dois tribunais, na doutrina especializada e na análise dos fatos históricos,foi possível aferir em qual delas se assenta a premissa de uma justiça de transição capaz de consolidar o estado democrático de direito, sem deixar de imprimir um desvalor condizente ao merecido pelos atos praticados. A sustentabilidade jurídica das ambas as teses foi devidamente apreciada, mas como uma negação a tese de um direito puro, a conclusão a que se chegou revela que as verdadeiras razões que aqui se impõe são compostas de elementos mais políticos que jurídicos.[1]

Palavras-chave: Ditadura. Araguaia. Crimes. Anistia.

Abstract: The crimes committed by the military to combat the Araguaia guerrilla, in the context of the military dictatorship of 1964, were objects of judgment of the Inter-American Court of human rights which determined the punishment of the guilty. The Federal Supreme Court in the judgment of the Argumentation of breach of Fundamental precept 153, declared the constitutionality of the law 6.683/79 that granted amnesty to the crimes that occurred during the same period. These contradictory judgments between themselves, requires of the society, especially of the law scholar, a weighted analysis of legal bases that support both decisions. Based on the jurisprudence of these two courts, in the specialized doctrine and in the analysis of historical facts, was possible to determine in which adapt the premise of Justice, non-derogable to positive or customary law and print a worthlessness appropriate to deserved by acts practiced. The Legal sustainability of the arguments welcomed was properly respected, although the conclusion achieved show that the true reasons that here predominate are more politics that legal.

Keywords: Dictatorship. Araguaia. Crimes.Amnesty

Sumário: Introdução. 1 A ditadura militar: aspectos históricos. 1.1 A resistência armada nos vales do Araguaia. 2 O sistema global e regional de proteção aos direitos humanos. 3 A constitucionalidade da lei da anistia no julgamento da adpf 153. 3.1 A não recepção da norma pela constituição de 1988 e a controvérsia do que vem a ser crimes conexos. 3.2 O caráter bilateral da lei da anistia e as circunstâncias de um suposto acordo. 4 A competência da corte interamericana de direitos humanos no caso “Gomes Lund”. 4.1 A ausência de tipificação do desaparecimento forçado e os crimes de consumação permanente. 4.2 A legalidade em direito penal, a existência e a prescrição dos crimes. 5 A responsabilidade do estado brasileiro em punir as graves violações aos direitos humanos. 5.1 A persecução penal dos acusados e as consequências da impunidade. Conclusão. Referências.

Introdução

Em tempos em que golpe militar de 1964 ultrapassa os 50 anos,esteimportante capítulo da história política do Brasil, ressurge na seara acadêmica, após tensa controvérsia onde se questiona os efeitos jurídicos da Lei 6.683/79 e sua compatibilidade com a Constituição Republicana de 1988 e os tratados de Direitos Humanosem que o Brasil é signatário.

No centro do debate está a persecução penal dos acusados pela prática dos mais variados crimes atribuídos aos agentes da repressão militar entre os anos de 1964 e 1985, cuja punibilidade houvera sido afastada pela Lei da Anistia.O Suprema Corte brasileira, ao analisar a matéria em abril de 2010,por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF/153, impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, reconheceu a constitucionalidade do referido dispositivo. Todavia, em dezembro do mesmo ano, as famílias das vítimas da Guerrilha do Araguaia, após anos de batalhas judiciais, obtiveram daCorte Interamericana Sobre Direitos Humanos – CIDH, o reconhecimento do direito de ver os algozes de seus filhos, responder pelos crimes que praticaram. Ao determinar que o Brasil, cumpra o Pacto São José de Costa Rica, a CIDH reiterou um entendimento já consolidadoem outras decisões contra países latino americanos, que vivenciaram estas mesmas atrocidades, e que acataram a jurisprudência dos tribunais internacionais. Passados cinco anos de ambos os julgamentos, no momento em que a Comissão Nacional da Verdade, apresenta seu relatório que confirma muito dos fatos criminosos atribuídos aos militares,ressurge em setores mais diversos da sociedade um discurso saudosista pela volta da ditadura, apresentada como antídoto aos sucessivos escândalos de corrupção. Esse contexto impõe a necessidade de compreender os no campo do direito quais são os elementos técnico-jurídicos que subsidiaram ambas as decisões, bem como as razões pelas quais a sentença da CIDH vem sendo ignorada, e suas consequênciaspara o Estado brasileiro num contexto de globalização dos direitos humanos.

O estudo se serve dos precedentes do Supremo Tribunal Federal – STF e da Corte Interamericana Sobre Direitos Humanos, apoiando-se em vasta bibliografia doutrinária e documentos oficiais que possibilitam confrontar os principais argumentos que permeiam esta palpitante discussão.

Mais que uma oportunidade de rememorar um conteúdo histórico que não deve jamais ser esquecido, busca-se responder a questão que se impõe: Ainda é possível, transcorridos tanto tempo, punir os culpados? A resposta de tal questionamento passa por delimitara relação entre o direito e a justiça, nesta dialética argumentativa que envolve a luta pelo poder político em conflitocom a luta pela inviolabilidade dos Direitos Humanos.

1A ditadura militar: aspectos históricos

Em março de 1964, o governo do então Presidente João Goulart enfrentava enorme crise institucional em razão de sua temida aproximação com os movimentos sociais de esquerda e os diversos compromissos políticos assumidos para efetivação de uma democracia social por meio de diversas reformas. Herdeiro dos ideais trabalhistas de Vargas, Jangoassumiu a presidência depois da renúncia de Jânio Quadros, aproximando o governo das organizações populares de camponeses, estudantes e sindicalistas. Por outro lado,o mundo vivia a expansão do capitalismo para os países periféricos,produzida pelas nações já industrializadas, ávidas pela exploração da mão de obra barata das economias subdesenvolvidos como o Brasil.Isto fez com que as iniciativas reformistas de Jango provocassem o desagravo da elite econômica, que segundo elementos históricos fórum em muito influenciada pelos Estados Unidos, e internamente por uma parcela conservadora da Igreja Católica, por setores da classe média e da maioria dos militares, queacusavam o presidente de que querer instaurar no Brasil, um sistema comunista, nos moldes de Cuba (DELGADO, 2009).

Foi neste contexto que as forças armadas depuseram pela força o presidente reformista, com o falso discurso de que o estado de exceção era medida emergencial e temporária para garantir a estabilidade política e a própria democracia.Não foi bem assim. Logo trataram de promover uma violenta reforma “legal” que ignorou a Constituição de 1946, ultrajada pelos decretos presidenciais. Os temidos Atos Institucionais cassaram direitos políticos, fecharam o Congresso Nacional e negaram aos cidadãos seus direitos e garantias fundamentais,em nome da doutrina da segurança nacional.

Segundo alguns estudiosos, os militares foram bem acolhidos pela Suprema Corte, a quem sempre coube a defesa da Ordem Constitucional. Uma considerada parcela dos juristas brasileiros,também teriam se omitido da defesa do Estado Democrático de Direito.

“Se o Supremo não conspirou contra João Goulart, a tomada do poder pelos militares foi comprovadamente aplaudida por alguns de seus ministros. Na verdade, o meio jurídico como um todo recebeu os militares de braços abertos, especialmente por influência dos bacharéis da UDN. Se a OAB como instituição não se manifestou publicamente, o apoio dado ao golpe pelo presidente do Conselho Federal da Ordem foi claro e expresso. A OAB passou a fazer certa oposição ao regime militar somente a partir da segunda metade da década de 1970. Diversos professores de direito também apoiaram o 1º de abril de 1964, entre eles Miguel Reale”(VALÈRIO, p.202).

Sem uma forte resistência na seara jurídica, que salvaguardasse a legalidade e os direitos dos cidadãos, tornou-se relativamente fácil impor a lei da força, da repressão, da censura e do silêncio que perduraram durante vinte e um, longos e sombrios anos.

1.1 A resistência armada nos vales do araguaia

Em dezembro de 1968, o governo editou o Ato Institucional nº5 (AI-5), que vigorou por dez anos, em resposta a diversas manifestações estudantis contrárias ao regime,impondoferrenha repressão aos insurgentes que passaram a ser duramente perseguidos, presos, torturados e condenados por tribunais militares. Impossibilitados de fazer oposição pela via das idéias, muitos insurgentes foram exilados e outros preferiram o combate pela força das armas.

Na região do Araguaia,Sul do Pará e divisa com o Estado de Goiás,militantes do Partido Comunista do Brasil – PCdoB, refugiaram-se na selva com o intuito de aprimorar técnicas de guerrilha que lhes permitissem o enfrentamento das forças repressivas do governo.  Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, os militares descobriram a guerrilha por acaso, tendo realizado entre os anos de 1972 e 1975 três expedições à região do Araguaia, envolvendo cerca de cinco mil homens, com o objetivo de erradicar a guerrilha. As duas primeiras sem sucesso, provocaram onze baixas aos guerrilheiros e sete deles foram presos. Na última delas, não houve sobreviventes.

Uma reportagem de capa da revista Veja de 13 de outubro de 1993 intitulada “eu vi os corpos queimando”, baseada nas declarações do Coronel da Aeronáutica, Pedro Corrêa Cabral,revela sobre a ótica de um militar que pilotava um helicóptero de guerra, os tenebrosos dias vividos naquela selva. Os relatos de atrocidades incluem rendições, torturas durante interrogatórios e extermínios, que segundo ele, eram comandados pelo oficial Sebastião de Moura, o Curió, hoje tenente-coronel da reserva. Correia ainda denunciou a ocorrência de uma operação limpeza, que teria acontecido meses após o fim dos conflitos. Os corpos dos guerrilheiros teriam sido desenterrados, e transportados por ele, de helicóptero até um local ermo na Serra das Andorinhas.

“Ali, alguns brasileiros fizeram uma pilha de cadáveres de outros brasileiros, também desenterrados de suas covas originais. Cobertos com pneus velhos e gasolina, foram incendiados. A fogueira de carne humana, ossos e borracha ardeu em labaredas imensas, fazendo uma fumaça escura e tão espessa que podia ser avistada a dezenas de quilômetros”(VEJA, 1993, p.16).

Estes crimescometidos por agentes do governo,as margens da lei, mesmo numa “legalidade” ditada ao bel prazer das conveniências do regime, segundointerpretação do STFforamanistiados pela lei 6.683/79. Todavia, este entendimento contraria jurisprudência consolidada da CIDH proferida em diversos casos, contra o Chile, Uruguaio, Argentina e o próprio Brasil, no caso Gomes Lund e outros – Guerrilha do Araguaia.

2 O sistema global e regional de proteção aos direitos humanos

As atrocidades cometidas contra a raça humana durante a segunda guerra mundial provocaram na humanidade um forte sentimento de repúdio a crimes que violam o direito natural, a vida e a liberdade, já promulgados nas declarações iluministas do sec. XVIII. O sistema global capitaneado pela Organização das Nações Unidas – ONU nasceu com o fito de integrar os países, ora divididos em dois blocos socialistas e capitalistas, em prol da positivação de normas, que independente das posições ideológicas seguidas, não poderiam jamais ser violadas. Portanto os tratados de Direitos Humanos, no âmbito da ONU, ganharam status de jus cogens, e dever ser acolhidas e respeitadas por todos os países que dela fazem parte.

Mas esse sistema global, embora dotado de coercibilidade pelos órgãos que criou, ficou ao longo do tempo limitado a conflitos entre nações, deixando espaço para o surgimento do Sistema Regional – Continental, que teve foco nas violações domésticas cometidas pelos Estados contra seus próprios cidadãos. A organização dos Estados Americanos, criada em abril de 1948, instituiem novembro de 1969 a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH (Pacto São José de Costa Rica), ratificado por 25 países com exceção dos Estados Unidos e Canadá.

Para garantir a efetividade de suas deliberações criou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A primeira é competente para avaliar as denúncias de violações, apresentadas por cidadãos, contra o Estado-membro que dizem respeito a alguns dos direitos assegurados na Convenção, desde que superados as instâncias judiciárias do país. Recebida a denúncia, se a Comissão entender que houve violação, ela é competente a propor ação contra o referido Estado junto a Corte, a quem compete julgar e determinar as sanções, que vão desde a indenização das vítimas, a obrigaçãode punir os responsáveis,à adequar a sua legislação aos preceitos estabelecidos no pacto.

O Brasil ratificou o Pacto São José de Costa Rica em 1992, tendo reconhecido a partir de dezembro de 1998, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores, a competência contenciosa da CIDH. Em agosto de 1995, as famílias das vítimas do Araguaiadenunciaram o Brasil a Comissão Interamericana, questionando a interpretação política dada a Lei 6.683/79. Isso só foi possível porque o poder judiciário brasileiro negou-lhes o direito de conhecer a verdade, objeto de uma ação civil na Justiça Federal iniciada desde 1982, que buscava compelir o Estado a conceder todas as informações sobre o paradeiro das pessoas desaparecidas e as circunstâncias de sua eventual morte.

3 A constitucionalidade da lei da anistia no julgamento da adpf 153

A lei da anistia, foi promulgada ainda sobre a vigência do regime ditatorial que só teve fim em 1985. Segundo entendimento do Supremo, ela anistiou todos os crimes, de qualquer natureza, cometidos por agentes civis ou militares, no período entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, não podendo o Estado cogitar qualquer tipo de persecução penal contra seus executores.

A decisão foi uma resposta ao questionamento feitopela OAB, por meio da ADPF/153. Na referida ação, a Ordem questionou a recepção do disposto no parágrafo 1º do art. 1º da lei 6.683/79 pela Constituição de 1988, bem como a interpretação dada à expressão “crimes conexos”. Pelo entendimento da proponente,a anistia concedida pela lei aos crimes políticos ou conexos não se estendem aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos (OAB, 2008 p.16). No pleno do egrégio Tribunal, sete ministros denegaram o mérito da ação, e apenas dois o acolheram. Os argumentos de ambas as partes carecem de profunda análise que parece imprimir uma dicotomia entre a estrita legalidade e a irrenunciabilidade da justiça nos crime de afronta aos Direitos Humanos.

3.1 A não recepção da norma pela constituição de 1988 e a controvérsia do que vem a ser crimes conexos

Otexto constitucional de 1988,logo no art. 5º, inciso XLIII, incluiu a tortura entre os crimesinafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia,devendo responder por ele mandantes, executores e os que podendo evitá-lo, se omitirem(grifo nosso). Todavia o constituinte originário admitiu expressamente a anistia no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mas apenas em “decorrência de motivação exclusivamente política”, que contemplou expressamente os decretos nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e nº 864, de 12 de setembro de 1969. Ele quis,e deixou de fora a lei 6.683/79, mesmo podendo ter acolhido neste artigo assuas disposições não o fez, deixando entender que não pactuava com ela.

O relator Eros Grau, e outros ministros do Supremo que defenderam a constitucionalidade da norma impugnada, invocaram o argumento de que a Emenda Constitucional 26/85, em seu artigo 4º, reproduziu o texto da referida lei incorporando-a na constituição vigente à época. E por esta mesma emenda convocar a assembléia nacional constituinte, desfazendo a antiga ordem, declarou queela não encerrará a ordem anterior, mas inaugurou uma nova,fazendo a anistia parte desta. Com as devidas vênias, mas estainterpretação é no mínimo forçosa. Para José Afonso da Silva, a emenda 26/85, si quer emenda é, tratando-se apenas de um ato político (p.89). Embora concordando com o relator no mérito da ação, a Ministra Cármem Lúcia é catedrática quanto a esta interpretação.

“A interpretação de que a emenda constitucional n. 26/85 integraria a ordem constitucional instaurada em 5 de outubro de 1988 não me convence, porque a constituição de 1988 é Lei Fundamental do sentido de que é fundante e fundadora, logo o que veio antes e que não foi por ela cuidado expressamente para ser mantido não há de merecer o adjetivo de norma integrante do sistema constitucional”(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, STF, 2010, p.87-8).

No tocante aamplitude da interpretação que se pode dar aexpressão“crimes conexos”, amaioria dos julgadores asseveraram que o legislador conferiu-lhes interpretação autêntica expressa no art. 1º, § 1º da mesma Lei: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. E se assim o fez, teria querido cientificar que a anistia contemplavaos crimes comuns, não possibilitando qualquer interpretação que disso destoe.

Ricardo Lewandowski desfaz tais argumentos, enfrentando a complexidade da questão numa exegese mais técnica.

“A partir de uma perspectiva estritamente técnico-jurídica, pois, não há como cogitar de conexão material sobre os ilícitos sob exame, conforme pretenderam os elaboradores da lei de Anistia, portanto não é possível conceber tal liame entre os crimes políticos praticados pelos opositores do regime de exceção e os delitos comuns alegadamente cometidos por aqueles que se colocavam a seu serviço, visto inexistir, com relação a eles, o necessário nexo teológico, conseqüencial ou ocasional exigido pela doutrina para sua caracterização”(STF, 2010, p.113).

Na opinião do eminentejulgador, para quem “a Lei da Anistia não cogita de crimes comum, e emprega, de forma tecnicamente equivocada, o conceito de conexão”(STF, 2010, p.126),é jurisprudência consolidada na Suprema Corte que a conexão entre delitos diferentes só se evidenciaria se os crimes comuns fossem empregados como meios para a consecução de crimes de real natureza política, devendo a análise ser feita caso a caso (case by case approach), obedecendo aos critérios da preponderância e da atrocidade dos meios (STF, 2010, p.126).Ahistória revela que os meios foram os mais atrozes possíveis, de forma que mesmo obedecendo a mais elaborada técnica jurídica não se sustenta o argumento daqueles que buscam silenciar a voz dos que gritam por um direito justo.

3.2 O caráter bilateral da lei da anistia e as circunstâncias de um suposto acordo

A bilateralidade da anistia, outorgada pela lei 6.683/79, também foi invocada para sustentar a tese de que ela foi medida necessária e eficaz ao restabelecimento da paz social no processo de transição da ditadura para a democracia. O decano do STF Celso de Melo, usou de tais argumento para afastar a jurisprudência da CIDH, que segundo palavras do douto julgador “[…] não tolera o esquecimento penal de violações aos direitos fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que ampararam e protegem criminosos que ultrajaram,[…] valores essenciais protegidos pela convenção” (STF, 2010, p.183, grifo do autor). Apesar de conhecer os parâmetros da referida Corte, o julgador preferiu entender que o fato da anistia brasileira haver sido outorgada à ambos os lados, a desqualificava como lei de auto-anistia, tornando-a livre da censura do Pacto de São José de Costa Rica. A Corte respondeu a esta alegação dizendo que: “a incompatibilidade em relação à Convenção inclui as anistias de graves violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas ‘auto-anistia’” (CIDH, 2010, p.65).

Eros Grau também fundamentou sua tese na alegação de que as circunstâncias históricas, produzidas por um suposto clamor popular legitimaram a anistia nos termos e na forma concedida, como um acordo entre partes. Todavia ao citar depoimento de Dalmo de Abreu Dallari, revela que a anistia, a qual a sociedade da época buscou, a princípio não contemplava os chamados “crimes de sangue” (STF, 2010, p.23). Adiante o próprio relator deixa compreender porque eles foram anistiados. “Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos nem mesmo viver)” (STF, 2010, p.37). Então não se trata de acordo de vontades, mas de uma coação física irresistível, vez que uma das partes ainda está sob a mira do fuzil. Que validade jurídica se pode atribuir a um ato que resultou em lei, realizado em tais circunstâncias? É notório que uma das partes esta impedida de manifestar livremente sua vontade. Mesmo na ridícula hipótese em que fosse possível extinguir a punibilidade de crimes tão graves por esta modalidade de “transação”, o que não é,a doutrina positivista-legalista ensina, que quando uma vontade está coagida a vontade da outra parte, o ato nasce nulo ou no mínimo é passível de anulabilidade. Não se deve ignorar que a punição a tais crimes decorre de ação incondicionada, que independe da vontade da parte, promove-la é dever irrenunciável do Estado, por meio do Ministério Público,  não podendo ser objeto de nenhum tipo de acordo por trata-se do mais sublime dos direitos da pessoa humana, que é a vida e sua integridade corporal. Por fim, ainda pergunta-se: Quem neste balcão da impunidade representou as vítimas? Eles detinham legitimidade para transigir? Pode-se tê-la?  A fragilidade de tal argumento ignora o sangue que foi derramado no seio desta terra “mãe gentil”.

4A competência da corte interamericana de direitos humanos no caso “gomes lund”

Em 1995 entidades ligadas às famílias das vítimas da Guerrilha do Araguaia, impetraram junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma representação contra o Brasil, que culminou com umadenúncia, levada ao Corteque buscava responsabilizar o Brasil pela “detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas […] resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia” (CIDH, 2010, p.4). O Estado ainda foi acusado de violar o direito à verdade e à informação.

A Corte, no entanto, limitou seu arbítrio a julgar as violações à convenção posterior ao reconhecimento de sua competência, admitindo ser inequívoca a falta dela para julgar os crimes de “detenções arbitrárias, atos de tortura e execuções extrajudiciais ocorridos antes de 10 de dezembro de 1998” (CIDH, 2010, p.8). Todavia, no que concernem as violações do direito à verdade e os danos causados às famílias das vítimas, bem como ao crime de desaparecimento forçado, cujos corpos não foram localizados até10 de dezembro de 1998, declarou-se plenamente competente, em razão do já pacificado entendimento,que tais crimes têm caráter permanente e continuado, ou seja, a consumação do delito protraiu-se no tempo, até os dias atuais (CIDH, 2010, p.10).

4.1 A ausência de tipificação do desaparecimento forçado e os crimes de consumação permanente

O crime de desaparecimento forçado, nunca foi tipificado no Brasil, embora a CIDH, tenha determinado esta tipificação. Para tanto, o Senado Federal aprovou recentemente o PL 245/11, que cria o art. 149-A no Código Penal, e altera a Lei 8.072/90, incluindo-o no rol dos crimes hediondos, e encaminhou o projeto para a Câmara Federal. Mas até que finde o processo legislativo, em Direito Penal não se pode considerar crime a ação ou omissão cuja lei não delimite. Este argumento tem sido invocado, para dizer que o único crime para o qual a Corte reconheceu competência é atípico no Brasil. No entanto, a ausência de um tipo autônomo deste delito é suprida por subsunção na norma primária do art. 148 do Código Penal – sequestro. O fato de um tipo penal não ser descrito na lei, não garante que o crime não exista nela. Um exemplo disso é o atentado violento ao pudor, art. 214 do CP que foi revogado pela lei 12.015/09, com isso não se aboliu o referido delito, apenas aglutinou-o ao estupro do art. 213 do CP. Aliás, o Brasil reiterou este entendimento em sua defesa, admitindo perante a Corte, que a ausência de tipificação não impede que tal conduta seja subsumida em outro tipo penal (CIDH, 2010, p.104).

Surpreendente é que em 2008, o STF por meio da Extradição 974, concedeu ao governo argentino, a extradição do ex-major Manoel Cordeiro Paincentini, acusado de fazer parte da denominada operação condor, organização secreta que perseguia adversários políticos de países da América Latina nos tempos da ditadura. Dentre os crimes a ele imputados está o de desaparecimento forçado, que teria sido cometido em 1976. Ocorre que para conferir tal decisão sem afrontar as premissas constitucionais, o Supremo considerou que o dito crime de fato corresponde ao sequestro, que é de natureza comum e não político, e que tal crime não prescreveu em razão de sua natureza continuada e permanente (STF, 2008). Resta saber por que o mesmo raciocínio não foi aplicado aos militares brasileiros no julgamento da ADPF/153. Lewandowski chegou a lembrar aos colegas do recente entendimento, mas seus argumentos não prosperaram.

4.2 A legalidade em direito penal, a existência e a prescrição dos crimes

Os legalistas da moderna dogmática penal,que questionam as decisões da CIDH, avocamo art. 5º, incisos XXXIX eXL do texto de 1988, face aos princípios da Legalidade eda Irretroatividade da norma penal incriminadora respectivamente, para assevera quea lei não pode voltar no tempo. Em verdade, o que não se tem admitido voltar no tempo não é a lei, mas a justiça. Até porque não se esta fazendo lei, mas revogando um atendimento que os defensores alegam contrariar a Constituição e toda uma estrutura global de Direitos Humanos, construída a duras penas e muitas vidas. O apego a legalidade parece esquecer-se que os crimes ocorridos nos porões da ditadura e alcançados pela norma anistiadora, eramtipificados no Código Penal de 1940, vigente ao tempo da ação.

“a) crimes contra a vida e integridade corporal: homicídio (art. 121), leões corporais (art. 129), maus-tratos (art. 136), omissão de socorro (art. 135) etc; b) crimes contra a liberdade individual: privação arbitrária de liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado (art. 148), constrangimento ilegal (art. 146), ameaça (art. 147) violação de domicílio (art. 150)etc.; c) crime contra o patrimônio: furto (art. 155), dano (art.163), apropriação indébita (art. 168)etc; d) crimes contra o respeito aos mortos: destruição ou ocultação de cadáver (art. 211); e) crimes contra a liberdade sexual: estupro (art. 213, atentado violento ao pudor (art. 214); f) crimes de falsificação: falsificação de documento público (art. 297), atestado falso por médico (art. 302); g) crimes contra a administração pública: concussão (art. 316), violência arbitrária (art. 322), abuso de autoridade (art. 350), condescendência criminosa (art. 320) etc” (SWENSSON JÚNIOR, 2009, p. 62-63).

À exceção da prática da tortura que somente em 1997, foi definido por meio da lei 9.455, o crime de desaparecimento forçado, embora não tipificado, adéqua-se perfeitamente ao tipo penal do sequestro, o que afasta a tese de afronta aos princípios da legalidade e da irretroatividade.Mas esta dogmática penal exige a não incidência de alguma das causas de justificação, e neste prisma os militares afirmam que todas as ações praticadas nos atos de repressão, foram realizadas em estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular de direito, em cumprimento da legislação em vigor. Entretanto a doutrina consagrada à época adverte que:

“Todavia em nenhum passo podemos acolher, em nosso direito positivo, algum caso ou exemplo de prática de homicídio no exercício regular de um direito… o mesmo se verifica em se tratando de estrito cumprimento do dever legar […] Evidente é, no entanto, que matar não se encontra entre esses meios necessários. A ocorrência de homicídios em casos desta natureza pode encontrar justificativas na legítima defesa, ou no estado de necessidade, nunca, porém, no estrito cumprimento do dever legal” (MARQUES, 1961, p.84-5 apud THOMPSON, 1983, p.24).

Resta então saber se os supostos autores são plenamente imputáveis. E neste último estágio invoca-se em favor dos militares o excludente de culpabilidade da obediência hierárquica e o estrito cumprimento à ordem, não manifestamente ilegal. Outrossim, este argumento não prospera, posto que é inimaginável que o agente não tivesse em si a consciência, ou pelo menos a potência consciência de que seus atos eram ilegais, pressupostos de admissibilidade para tal excludente. E mesmo que lhes faltasse esta consciência, o que é inadmissível, a não ser que se tratasse de um plenamente inimputável, isto só afetaria a culpabilidade do agente executor, permanecendo o mandante plenamente imputável. Ressalte-se que nunca houve lei alguma – nem os Atos Institucionais – que autorizasse a barbárie da tortura, do estupro e da execução de pessoas rendidas. Muito pelo contrário, a norma penal vigente a época é a mesma de hoje, de forma que aceitar tais atos no passado, sob o império da mesma lei, não deixa de ser uma forma de permiti-los também nos dias atuais.

Mas estes não são os únicos elementos conflitantes neste palpitante debate. Um dos argumentes fortemente endossados é o de que tais crimes cometidos a mais de trinta anos, estão fartamente prescritos. Não é o que quis o constituinte originários no art. 5º, incisos XLII e XLIV da CRFB/88, ao estabelecer como  imprescritíveis os crimes de racismo e a ação de grupos armados civis e militares contra a Ordem Constitucional e o Estado Democrático de Direito (grifamos). A tomada do poder em 1964 nada mais foi do que uma ação de um grupo militar armado, contra o Estado Democrático de Direito. O constituinte ao imprimir cláusula de imprescritibilidade nestes únicos dois delitos, deu lhes caráter ad perpectuam rei memoriam. Isto para certificar de que o Estado que adere a nova Ordem Constitucional não quer, não pode esquecer os fatos e não abriu mão do seu poder-dever de punir os que ousaram ultrajá-lo. É uma forma de dizer queo tempo não poderia apagar as marcas de um passado, que devem permanecer vivas na memória de seu povo, até que a democracia se consolide e a justiça ouse abrir os olhos.

A defesa da prescrição de crimes de tamanha monta confronta-se com a que há mais moderno na proteção internacional aos Direitos Humanos e nega o compromisso estabelecido logo no art. 4º, inciso VIII, da CRFB, onde o Brasil se comprometeu a reger-se em suas relações internacionais, pela prevalência dos Direitos Humanos. A Organização das Nações Unidas, ainda em 1968 adotou em Assembléia a resolução 2.391 que cria o princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e assegura sua aplicação universal. Em 2002, o Brasil ampliou o rol dos crimes imprescritíveis ao ratificar o Estatuto de Roma, aderindo ao Tribunal Penal Internacional que no art. 5º declara-se competente a julgar os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. O art. 29 deste mesmo tratado deixa certo que todos os crimes da competência deste tribunal são imprescritíveis.

O Estatuto de Romaem seu art. 7º, ainda define o que vem a ser crime contra a humanidade, elencando um rol taxativo de verbos e circunstâncias em que praticados sujeitam-se ao direito penal internacional. Dentre eles vê-se homicídio; a tortura; a agressão sexual; a perseguição de um grupo, dentre outros, por motivo político e o desaparecimento forçado. É com este fundamento que pode-se afirmar que a grande maioria dos crimes cometidos durante a repressão militar no Brasil são crimes de lesa humanidade e, mesmo que tenham em sua gênese a motivação política não podem ser assim considerados em razão do grau de violação a bens jurídicos fundamentais tutelados.

“Se atingidos os bens jurídicos vida e integridade física, não será a motivação política que irá prevalecer, […] mas sim a consequência da conduta, quais sejam as mortese lesões praticadas em nome de um ideal político. O crime deixa de ser exclusivamente político e passa a ser tratado como crime comum, não estando acobertado, por exemplo, pela lei da anistia”(MARQUES. 2011, p.136,137, grifos do autor).

Destoar deste entendimento é cair no perigo de transformar o campo do debate democrático que abriga a luta política, num sangrento campo de guerra, onde já não é mais possível confrontar idéias.

5 A responsabilidade do estado brasileiro em punir as graves violações aos direitos humanos

Recentemente o STF, pacificou entendimento da supra legalidade dos tratados de Direitos Humanos, anteriores a emenda constitucional 45, a exemplo do Pacto São José de Costa Rica. Isto para tornar inaplicável o mandamento constitucional, que permitia a prisão do depositário infiel. Neste caso o pretório excelso acolheu o entendimento que a prisão civil, mesmo aceita pela Constituição, não podia ser aplicada por contrariar normas de Direitos Humanos, cujo Brasil se obrigará a cumprir. Esta decisão revela a tamanha contradição que há no atual entendimento do poder judiciário, que se utiliza do precedente criado pelo julgamento da ADPF/153, para negar provimento a ações criminais já propostas pelo Ministério Público Federal, atendendo a determinação da CIDH.  Acaso o mesmo tratado que num momento serviu para relativizar a aplicação de um dispositivo constitucional não tem a mesma força para impedir a aplicação de lei ordinária, que como se demonstra, conflita com a própria Constituição?

Ao averiguar os fundamentos que poderiam justificar a posição Brasileira, percebe-se que ela é do ponto de vista técnico jurídico, inadmissível pelo Direito Penal Internacional, por impedir a punição de crimes de Lesa Humanidade, tendo vasta jurisprudência consagrada e acolhida no mundo todo. Ao sentenciar a CIDH cita as decisões de órgãos das Nações Unidas, da Corte Européiade direitos Humanos, do Sistema Africano de Direitos Humanos, dos Tribunais Internacionais para ex Iugoslávia e Serra Leoa, da Corte Suprema de Justiça do Chile, do Tribunal Constitucional do Peru, da Suprema Corte de Justiça do Uruguai e da Corte Constitucional da Colômbia (CIDH, 2010). Todas no sentido de confirmar a invalidade das leis de anistia e do reconhecimento da responsabilidade dos Estados em punir e prevenir violações aos Direitos Humanos. Só o Brasil pensa o contrário.

A punição aos crimes de Lesa Humanidade baseia-se em normas de Direito Internacional público, dotadas de coercitividade e imperatividade (jus congens), inauguradas com o fim da segunda guerra mundial nos chamados Princípios de Nuremberg. Elas foram adotadas pela ONU, e fazem parte da chamada quarta onda de evolução do Estado, do Direito e da Justiça (GOMES; MAZZUOLI, 2011). O Estado brasileiro opta por não surfarnesta onda de evolução fingindo-se de surdo ao que preceituou, a CIDH:

“Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. […] O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” exofficioentre as normas internas e a Convenção Americana.” (CIDH, 2010, p. 65).

Ao assinar a Convenção Americana, os países membros aceitaram o disposto no art. 67 e 68, que torna tal sentença inapelável e definitiva, comprometendo-se os Estados parte a cumpri-la. Isto contraria o entendimento propositadamente difundido, até por membros da suprema corte, de que o teor de tal sentença nada mais representa do que uma mera recomendação política.

“[…] faz-se mister reconhecer a importância desta sentença internacional e incorporá-la de imediato ao ordenamento nacional, de modo que se posso investigar, processar e punir aqueles crimes até então protegidos por uma interpretação da lei de Anistia […]” (CALDAS, 2010, p.5, grifamos) .

Se a lei da anistia sobreviveu ao controle de constitucionalidade do Supremo, foi veementemente reprovada no controle de convencionalidade da Corte Interamericana. Tendo os países da América Latina, acatado tal determinação, é no mínimo curioso o fato do Brasil relutar em efetivar as deliberações que lhe foram impostas. Obviamente quea criação da Comissão Nacional da Verdade – CNV, pela Lei 12.528/11, é passo importante para esclarecer tais crimes.Por meio dela montou-se um grupo de trabalho para estudar o caso Araguaia, que produziu até agora dois relatório. No primeiro deles, ao analisar documentos secretos do Exército produzidos à época concluiu que: “Está cristalino que as forças de repressão do Estado Ditatorial militar, diante do acanhado grupo de opositores políticos, adotou postura de implacável eliminação destas pessoas” (CNV, p.5, grifos do autor). Dar a conhecer a verdade é parte significativa da responsabilidade do Estado que já se omitiu por muito tempo, mas não é suficiente. Sem a devida punição dos culpados, deixa a impressão de reabrir uma ferida histórica, que sem o devido remédio, teima em não cicatrizar, permitindo que aqueles que desconhecem as circunstancias históricas achassem no direito de reivindicar a volta ao passado.

5.1A persecução penal dos acusados e as consequências da impunidade

Em atendimento aos efeitos vinculantes da sentença do STF na ADPF 153, o judiciário brasileiro continua a dar eficácia jurídica a lei 6.683/79, numa grave afronta aos consagrados princípios dos Direitos Humanos, e coloca em cheque a respeitabilidade do Brasil entre aos Estados americanos. Em relatório apresentado a CIDH, em dezembro de 2012, com o objetivo de prestar contas das ações desenvolvidas no cumprimento da sentença, o Brasil reforça a anistia dada pela lei 6.683/79, admitindo apenas sanções civis, administrativas e políticas dos acusados (BRASIL, 2011, p.7).

O Ministério Público Federal criou a “Grupo de Trabalho Justiça de Transição”, com o objetivo de investigar casos de supostos crimes contra a humanidade ocorridos entre 1964 e 1985.  Algumas denúncias já foram oferecidas pelospromotores em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Pará, uma das quais contra Sebastião de Moura, o Curió, acusado de execuções no Araguaia. A ação penal contra ele, apesar de aceita em primeira instância, foi trancada por um Habeas Corpus concedido pela 4ª turma do Tribunal Regional Federal I.

A predominância dos velhos fundamentos jurídicos que privilegiam a impunidade, com o fito de macular a real natureza política deste debate, coloca o Brasil numa posição vexatória frente à eminente globalizar dos princípios de Direitos Humanos e denuncia a fragilidade de sua democracia.

“Los fundamentos jurídicos para la reabertura de losprocesospenales que habían clausurado lainvestigación sobre las graves violaciones a losderechos humanos, implica superar el marco de legalidad formal propio de lailustración y avanzarencriteriosmateriales y axiológicos. Esta afirmación exige pues superar posiciones positivistas extremas o ideológicas y repensar elpropioprincipio de legalidad penal. Dichaactitudconstituye um nuevo paradigma jurídico respectodel configurado em loscomienzos de lamodernidade” (YACOBUCCI, 2010, p. 30).

A principal consequência da impunidade é a perpetuação da violência.  Enganam-seos que pensam que tais crimes ficaram limitados no tempo. Em verdade, a tortura foi e continua sendo uma das mais eficientes formas de obtenção da mais acreditada das provas, a confissão, patrocinada pelos agentes da lei. Por outro lado, o desaparecimento forçado de pessoas, a exemplo do pedreiro Amarildo, ocorrido recentemente no Rio de Janeiro, denuncia as velhas formas de violência policial, encapada pelas fardas militares. As vítimas desta violência, em geral, são moradores das periferias de grandes cidades, pobres, negros e marginalizados sociais. Os Amarildos que a sociedade central desconhece e se quer dar a falta do seu desaparecimento.

Conclusão

O futuro de uma nação é dependenteda forma como se resolve os dilemas do passado. Esta evidente que o Brasil não virou a página dessa história e parece recear esta opção, sacando da cartola um rol de elemento jurídicos superadosparafundamentar sua escolha,mas que em verdade disfarçam a real natureza de um debate que revelam contradiçõesde ordem política e histórica. Esquece-se que a justiça não pode ser refém do direito. Não obstante, este só adquire utilidade quando oferece as bases para que aquela se realize plenamente. Neste caso, o direito que quer se avocar apenas sustenta um sistema de poder que oprimiu e ceifou muitas vidas, e que ainda não foi superado, apenas adéquo-se as formas da democracia. Esta opção por um direito desumanizado e sem justiça, é uma tentativa inglória de legitimar as atrocidades do passado e negar a ciência jurídica o mais defensável dos seus fundamentos.

A resistência em punir os militares brasileiros tem razões simples e óbvias. Alguns historiadores preferem chamar a ditadura de “civil – militar”, posto que os militares, ao tempo que administraram o Brasil,gozavam de eminente apoio da grande mídia e das elites econômicas nacionais. Eles não estavam sozinhos, e se desceram a escadado poder,os seus apoiadores não. Estes continuam no controle de diversas instituições públicas e são detentores dos meios de produção nacional.  São eles, que mesmo após vinte anos de governo liderado por “insurgentes”, permanecem infiltradosnos bastidores do governo, financiado a cena política nacional e freando as reformas que Jango almejava em 1964. Se a aliança foi desfeita é porque representava uma enorme contradição entre a falta de liberdade do regime e a necessidade de trabalhares “livre” a negociar sua força de trabalho. Um pressuposto do sistema mercantil capitalista. É óbvio que esta elite poderia permanecer no poder sem os militares, mas esta clara que se voltar a ser ameaçada, não hesitará em chamar seus homens de farda, apoiados pelos mesmos setores conservadores da sociedade.Optar por punir estes “ilustres personagens” é uma decisão mais política que jurídica, que requer coragem, e representa um marco que pode delimitar a superação do conservadorismo e a ruptura com as formas de poder historicamente predominantes.

É certamente quase impossível, punir a totalidade dos que cometeram crimes neste período, em razão do tempo decorrido e da destruição proposital de muita das provas.O que não podeservi de desculpa para que aqueles,contra quem há provas inequívocas, escapem do devido processo legal, com todas as garantias que o Estado de Direito oferece aos réus, inclusive a de que não serão torturados para confessar seus crimes.

Resta saber se nossas autoridades políticas e judiciárias terão coragem de pagaro preço político por uma decisão que revela quão frágil é a democracia brasileira. Estas reflexões terminam por revelar que o apego ao poder é maior que o apego a vida de quem já empunhou armas para defender convicções democráticas. E assim, vai-se dando um “geitim”, até que a efêmera memória de uns poucos não se lembre mais disso.

Referências

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Notas:
[1]Trabalho orientado pelo Prof. Felipe Miranda dos Santos:Professor  e Coordenador do Curso de Direito da Universidade Vale do Rio Doce


Informações Sobre o Autor

Veronica Oliveira Lima

Acadêmica de Direito da Universidade Vale do Rio Doce – Univale


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