Resumo: Artigo escrito com o objetivo de dirimir dúvidas acerca das conceituaçãoes sobre os dois temas, através da pesquisa das obras clássicas dos jurisconsultos romanos até os doutrinadores atuais.
“É cousa tão natural o responder que até os penhascos duros respondem, e para as vozes têm ecos. Pelo contrário, é tão grande violência não responder, que aos que não pudessem responder, rebentariam de dor”. Padre Antônio Vieira
Introdução
Ainda paira no direito pátrio grandes controvérsias a respeito do assunto. Muitos autores e doutrinadores entendem que caso fortuito e força maior são a mesma coisa, outros definem que caso fortuito é todo acontecimento que foge ao controle humano, embora reflita diretamente no mundo fático, e consequentemente, pode haver interações jurídicas. Existem ainda aqueles que definem força maior como atos ou criações humanas ou modificações no status quo reinante antes do próprio acontecimento. Esses conceitos são aplicados, basicamente da mesma forma, mas inversamente por outros autores não menos renomados, conforme estudo a seguir.
Importante ressaltar que as controvérsias são tantas até hoje, que, fato em concreto, existem leis que suprimem os dois termos, adotando um sinônimo que procura reunir os dois princípios, ou a utilização de um único termo com sentido global. Um bom exemplo é a Lei n° 5772/71, o antigo Código de Propriedade Industrial, que foi ab-rogado pela Lei n° 9279/96. No Código de Propriedade Industrial, art. 49, caput, era adotado o seguinte termo: “Salvo motivo de força maior comprovado, caducará o privilégio, ex officio ou mediante requerimento de qualquer interessado, …” (grifo nosso). No caso em tela, o termo “força maior” era utilizado em sentido lato sensu, englobando neste o conceito de caso fortuito. Na Lei n° 9279/96, que a ab-rogou, não desejando o legislador incorrer no mesmo erro, decidiu, sem critério hermenêutico, abolir o termo e utilizou um sinônimo, procurando abarcar os dois sentidos sob um mesmo tema novamente, conforme o art. 221, §1o: “reputa-se justa causa o evento imprevisto, alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato”. (sobre os recursos). No art. 143, §§ 1o. e 2o. utiliza-se de outro sinônimo em substituição:§1o.: “Não ocorrerá caducidade se o titular justificar o desuso da marca por razões legítimas; (…) o titular será intimado(…) por razões legítimas”. (grifo nosso) O que vem a ser razões legítimas? O que vem a ser evento imprevisto? São meros sinônimos que procuram fundir os termos caso fortuito e força maior, que são totalmente distintos. Para o bom entendimento sobre o tema, torna-se necessário uma volta ao passado, para o século V d. C.
1 Histórico
O presente estudo tem como fontes, registros históricos do Império Romano, mais precisamente das obras compiladas no governo do Imperador Justiniano ( 482-565 d.C.).
Justiniano foi elevado ao trono do Império Romano do Oriente em 1 de agosto de 527, com o nome de Flávio Anício Justiniano Magno. Tinha como um dos fundamentos do seu governo o objetivo de criar uma codificação com boa parte de toda a obra legislativa criada desde os primórdios do colossal Império Romano. Para isso contava com as constituições imperiais reunidas nos Códigos Gregoriano, Hermogeniano, Teodosiano, além das novelas e os textos produzidos pelos jurisconsultos. Como essas fontes se encontravam desordenadas até então, constituiu primeiramente uma comissão de juristas para reunir as principais Constituições Imperiais, que eram as leis emanadas pelos imperadores. Esta obra ficou pronta em 529 d.C. e foi publicada com o nome de Codex. Infelizmente, esta obra se perdeu com o tempo; sabemos que existiu através de relatos históricos, mas não chegou ao nosso tempo, devido, possivelmente as guerras que ocorreriam durante todos os séculos posteriores. O que nos chegou foi um Codex revisado em 534 d.C., já com influência das Institutas.
Em 530, de forma mais ousada, Justiniano determinou a seleção de todas as obras dos jurisconsultos clássicos, encarregando a direção da comissão a Triboniano, neste trabalho hercúleo.
As obras dos jurisconsultos clássicos foram baseadas nas atividades desenvolvidas pelos magistrados e pelos pretores peregrinos, que atuavam como são chamados hoje os juízes leigos. Os pretores atuavam diretamente nos territórios conquistados e utilizavam-se dos formulários, ou seja, codificações de despachos e sentenças mais comuns, já pré-estabelecidos, como hoje se faz em diversos órgãos cartoriais da administração pública, onde a figura do profissional de direito não é requisito essencial.
Naturalmente, sempre ocorriam novos casos, frutos de uma sociedade em eterna evolução, e estas questões os pretores traziam aos magistrados. Desta forma o direito evoluía, junto com a doutrina criada pela interação tripartite – magistrado, pretor peregrino e jurisconsultos. Todos os éditos elaborados pelos pretores foram codificados pelo jurista Sálvio Juliano, por volta do ano 130 d.C., conforme diretriz emanada pelo imperador Adriano, tamanha a importância destes trabalhos jurisprudenciais para o Império romano. Entretanto, assim como hoje, este ius honorarium não tinha força de lei, mas exercia o importante papel de alavanca de mudanças para a derrogação ou abrogação da lei.
Em relação ao Digesto ou Pandectas, a comissão chefiada por Triboniano atingiu o feito surpreendente de terminá-lo num prazo de três anos, composto de cinqüenta livros, nos quais são encontrados trechos de mais de dois mil livros de jurisconsultos clássicos. Anos depois, foi elaborada as Institutiones por influência da obra de Gaio, do século II a.C. , e publicado em 533 d. C. por Triboniano, Teófilo e Doroteu. E, por último, Justiniano editou diversas leis, as novellae constituniones, a fim de completar as obras e adequá-las ao império do Oriente. Desta forma, Justiniano criou o denominado Corpus Iuris Civilis, composto pelo Codex, o Digesto, as Institutas e as Novelas.
Portanto, desta forma foi codificada boa parte de toda obra jurídica romana e preservado à posteridade este incrível compêndio que influencia todo mundo, notadamente nas relações de controle estatal. E, em relação aos dois temas elencados neste ensaio, é certo afirmar que a delimitação conceitual está contida no Digesto, através das obras de Gaio e Ulpiano, que trataremos a seguir.
2 Gaio e Ulpiano
Gaio e Domicio Ulpiano foram os principais jurisconsultos do Império Romano, sendo o Digesto composto de 1/3 da obra deste. Na obra, diversos temas de direito civil foram conceituados, dentre eles os de caso fortuito e força maior. Gaio assim descreveu força maior: “vis maior est cui humana infirmitas resistire non postest”. Traduzindo a frase, podemos depreender que força maior é aquela a que a fraqueza humana não pode resistir. Assim sendo, é entendido como sendo um fato imprevisível, resultante da ação humana, gerando efeitos jurídicos, independente da vontade das partes. Orlando de Almeida Secco1 assim leciona:
“ a força maior evidencia um acontecimento resultante do ato alheio (fato de outrem) que sugere os meios de que se dispõe para evita-lo, isto é, além das próprias forças que o indivíduo possua para se contrapor, sendo exemplos: guerra, greve, revolução, invasão de território, sentença judicial específica que impeça o cumprimento da obrigação assumida, desapropriação etc.” Ou seja, todos os atos ou ações humanas que se tornem obstáculos a outrem, impedindo-os de agir ou cumprir com seus direitos ou deveres”.
Sobre o termo caso fortuito, Domicio Ulpiano2 assim o conceituou: “Fortuitus casus est, qui nullo humano consilio praevideri potest”. Traduzida a frase o conceito seria: caso fortuito é aquele que não pode ser previsto por nenhum meio humano. Em outras palavras seria todo acontecimento de ordem natural que gera efeitos no mundo jurídico. Podemos dar como exemplo as erupções vulcânicas, os terremotos, estiagem, inundação por meio de chuvas abundantes ( e não por represas construídas artificialmente ), quedas de raio, aluvião etc.
Assim estando os termos bem definidos, a partir da conceituação romana, abordaremos agora as discordâncias na doutrina nacional.
3 Distinção entre os termos
São bastante comuns os casos em que os indivíduos sofram prejuízos tendo como gênese os fatos imprevisíveis, os quais não podem impedir ou muitas vezes prevê-los. E, havendo uma falta de conhecimento da origem dos termos “caso fortuito” e “força maior” por doutrinadores civilistas, passou a existir uma verdadeira dialética sobre quando e como adotar os termos. José dos Santos Carvalho Filho, assim explica:
“São fatos imprevisíveis aqueles eventos que constituem o que a doutrina tem denominado de força maior e de caso fortuito. Não distinguiremos estas categorias, visto que há grande divergência doutrinária na caracterização de cada um dos eventos. Alguns autores entendem que a força maior é o acontecimento originário da vontade do homem, como é o caso da greve, por exemplo, sendo o caso fortuito o evento produzido pela natureza, como os terremotos, as tempestades, os raios e os trovões”.
Na corrente que segue a orientação do Digesto romano, podemos citar autores como Diógenes Gasparini, Antônio Queiroz Telles, Hely Lopes Meirelles. Entretanto, outros autores, como Maria Sylvia di Pietro, Lucia Valle Figueiredo e Celso Antônio Bandeira de Mello, entendem que a conceituação é inversa, entrando em choque com o “Iuris Corpus Civilis”, caracterizando uma divergência hermenêutica. Ainda existe uma terceira corrente, em que figuram Orlando Gomes e José dos Santos Carvalho Filho, que pensam que o melhor é o agrupamento dos termos, por considerarem idênticos os seus efeitos. Na realidade, os efeitos em nada são parecidos, pois havendo a responsabilidade objetiva do Estado, por danos causados por seus agentes, como construção de pontes, túneis, enfim, serviços de engenharia, resta ao Estado indenizar o indivíduo ou a sociedade em caso de ato que configure força maior, conforme art. 37, §6°. da Constituição Federal, pela Teoria do Risco Administrativo.
Desta forma, finalizo o presente ensaio, com o objetivo de deixar mais transparente a origem dos termos e contribuir para a construção de conceituações baseadas em fontes seguras e históricas, respeitando a historicidade e a hermenêutica, como instrumentos metodológicos e científicos adequados.
Jurisprudência:
-Responsabilidade Civil do Estado – Obras Públicas – Empreiteiro Particular – ApCív no. 24.363, 3a. Ccív, rel. Dês. May Filho, cc. de 25/03/1986 – TJ – SC;
-Responsabilidade Civil do Estado – Ap. Cív. No. 31.302, 1a. Ccív, Relator Dês. João Martins;
-Responsabilidade Civil do Estado – Acidente ocorrido no interior do Túnel Rebouças que resultou em ferimentos no autor e na perda total de seu automóvel. Caso fortuito ( sic – na realidade é força maior, porém o julgamento está perfeito, s.m.j.). TJ – RJ ApCív no. 041/94 – 3a. Ccív – Rel. Dês. Humberto Perri – apud suplemento ADCOAS, p. 20 ).
Bibliografia:
ASCENÇÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal, Editora Almedina 2002.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 11a. ed. P. 458
CERQUEIRA, João da Gama Tratado da propriedade industrial / CERQUEIRA, João da Gama2ª Ed . São Paulo: RT, 1982.
DEL CORRAL, D. Ildefonso L. Garcia. Tradução da obra “Cuerpo Del Derecho Civil Romano”, do latim para o espanhol. Barcelona, Jaime Molinas Editor, 1889.
SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1981, p. 125
SOARES, José Carlos Tinoco Tratado da Propriedade Industrial / SOARES, José Carlos Tinoco São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1988.
Informações Sobre o Autor
Osvaldo Alves Silva Junior
Advogado