Ciranda legislativa

A Lei n. 11106/2005 que retirou a expressão “honesta” dos artigos 215 e 216 do Código Penal pode ser considerada louvável já que somente a mulher de bons costumes e como dizia Hungria (apud BITENCOURT, 2004:21) a mulher que “ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes”, era protegida por estes dois tipos penais.

De acordo com o artigo 215 (posse sexual mediante fraude), também conhecido como “estelionato sexual”, a mulher configurava como sujeito passivo desde que fosse honesta e, este juízo de valor, de acordo com Mirabbete (2004:426) era conceituado como “a mulher honrada, decente, de compostura” e, por isso, estavam excluídas “da proteção, portanto, não só as prostitutas como as promíscuas, francamente desregradas, as mulheres fáceis e de vários leitos (RT436/342)”. A par disso, o Superior Tribunal de Justiça em 2002 decidiu que:

A expressão “mulher honesta” , como sujeito passivo do crime de posse sexual mediante fraude, deve ser entendida como a mulher que possui certa dignidade e decência, conservando os valores elementares do pudor, não sendo necessário, portanto, a abstinência ou o desconhecimento a respeito de prática sexual. Evidenciado que o réu teria se utilizado de estratagemas, ardil, engodo para que as vítimas se entregassem a conjunção carnal, não se vislumbra a existência de consentimento das vítimas para as práticas sexuais ocorridas, em tese, com o paciente. “Pai-de-santo” que, dizendo estar incorporado, chamava as vítimas, suas seguidoras religiosas, para realizar “trabalhos” – oportunidade em que as forçava, em tese, a manterem relações sexuais com ele. Não há que se falar em trancamento da ação penal por atipicidade da conduta, se os autos dão conta de que o procedimento do paciente reúne os três elementos necessários para a configuração do crime de posse sexual mediante fraude: conjunção carnal, honestidade das vítimas e fraude empregada pelo agente.(HC 21129 / BA ; Habeas Corpus 2002/0026118-0, Ministro Gilson Dipp (1111), T5 – Quinta Turma, DJ 06/08/2002, DJ 16.09.2002)

Mas este “progresso” do legislador possibilita o conflito entre dois dispositivos incriminadores pelo mesmo fato. Vejamos:

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Antes da modificação pela referida Lei, o crime de “posse sexual mediante fraude” era descrito pelo Código da seguinte maneira:

Artigo 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude.

Pena-reclusão  de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único. Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos.

Pena-reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Deste modo, se a vítima menor de dezoito e maior de catorze não fosse virgem o crime praticado era regulado pelo caput. Observe que este não delimitava a idade da vítima. Bastava que a mesma fosse considerada honesta. Mas se a vítima fosse menor de catorze anos? Estaríamos diante de uma posse sexual mediante fraude ou de estupro com violência presumida?

Pela concepção de mulher honesta esta vítima menor de catorze anos teria que, obrigatoriamente, ser virgem, pois caso contrário, não estaria incluída nos padrões mínimos de decência exigidos pelos bons costumes, conforme a conceituação formulada por Hungria acima. Mas pelo critério objetivo de responsabilidade, por presunção absoluta de violência, artigo 224, a do Código Penal, a menor de catorze anos, virgem ou não, era impossibilitada de consentir para o ato sexual, mesmo que aceitasse a prática por meio ardil, por exemplo. A presunção de violência era compreendida como absoluta já que o consentimento da vítima da menor de catorze anos não era válido.

Com a nova redação dada pela nova Lei o artigo 215 passou a ter a seguinte redação:

Artigo 215. Ter conjunção carnal com mulher mediante fraude.

Pena-reclusão  de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único. Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos.

Pena-reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

A partir desta nova definição do crime de “posse sexual mediante fraude” vale a pena perguntar: a mulher já iniciada em matéria sexual, menor de catorze anos que consente na prática de conjunção carnal mediante ardil é vitima de qual crime: estupro com violência presumida ou posse sexual mediante fraude? A resposta dependerá de qual concepção é aceita no que tange à natureza da presunção de violência regulada pelo artigo 224, a do Código Penal.

Conforme a Exposição de Motivos do Código Penal, a presunção pela menoridade é fundamentada na innocentia consili:

Como se vê, o projeto diverge substancialmente da lei atual: reduz para o efeito de presunção de violência, o limite de idade da vitima e amplia os casos de tal presunção (a lei vigente presume a violência no caso único de ser a vítima menor de dezesseis anos). Com a redução do limite de idade, o projeto atende à evidencia de um fato social contemporâneo, qual seja, a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência nos casos dos adolescentes é a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento.

Mas o próprio dispositivo do Código Penal não dispõe sobre a natureza da presunção “dando Hungria seu testemunho de que foi eliminada do anteprojeto a expressão ‘não se admitindo prova em contrário’ que caracterizaria a presunção absoluta” (MIRABETE, 2004:452).

Aceitando a presunção relativa de violência, não haverá o estupro com violência presumida quando a menor de catorze anos é destinada à prostituição, não tem vida recatada, se mostra experiente em matéria sexual, já manteve relações sexuais com outro indivíduo, o que caracterizaria a extinta “honestidade” da mulher.

Deste modo, não havendo violência presumida caberá ao fato a tipificação do crime de “posse sexual mediante fraude”, que não exige mais que a mulher seja considerada “honesta”. Em decisão recente, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás decidiu que:

Comprovado nos autos que a vítima, com treze anos de idade, tinha plena consciência de seus atos e das conseqüências da vida que levava no terreno da sexualidade, constitui um verdadeiro contra-senso entender que sofrera uma violência levando-se em conta o caráter relativo da presunção de violência ademais, se há dúvidas razoáveis de que o apelado tenha praticado a conduta criminosa, o caminho mais prudente e o reconhecimento da absolvição com a aplicação do principio in dubio pro reo. Apelo improvido para manter a sentença absolutória. (Apelação Criminal 25631-5/213. Relator. Des. Elcy Santos de Melo. DJ 30/11/2004; 1ª Câmara Criminal. DJ 14427 de 06/01/2005, livro 447B).

Aceitando-se a presunção absoluta de violência persistirá o crime de “estupro mediante violência presumida”, já que o único critério é o objetivo, ou seja, o fato da mulher ser menor de catorze anos.

Mas se aceitar que o fato acima é realmente “posse sexual mediante fraude” o autor do fato terá a pena mais leve do que o autor que, por meio ardil, pratica conjunção carnal com mulher virgem, maior de catorze e menor de dezoito anos. O legislador valorizou, novamente, o conceito anterior de “honestidade” da mulher.

Além disso, o legislador perdeu uma boa oportunidade de decidir claramente pela presunção relativa de violência (dos males o menor!). O melhor seria, tendo como fundamento a responsabilidade penal subjetiva e o principio da não culpabilidade, a retirada da presunção do ordenamento jurídico penal pela sua inconstitucionalidade. A violência deveria ser demonstrada de forma concreta e não ficticiamente.

A presunção de violência padece vício de inconstitucionalidade material, por violar os princípios da responsabilidade subjetiva e da não culpabilidade e, aquele que manifesta o sistema sufragado pelo legislador constituinte, vale dizer, o direito penal do fato. Violência, no sentido estrito empregado no Código Penal, sob qualquer enfoque, inclusive filosófico, é trecho da realidade humana, é fato que deve ser perceptível aos sentidos – portanto, fato não pode ser presumido, não pode estar na cabeça do legislador, deve produzir um resultado naturalístico, mesmo porque o estupro é um crime material. Logo, o juiz garantista deve nortear sua atuação convergindo-a para, incidenter tantum, promover o reconhecimento da inconstitucionalidade do preceptivo, mesmo que não tenha sido expressamente a isso provocado, pois se trata de matéria que pode, melhor dizer, deve ser conhecida de ofício (CAMARGO, 2005).

Além disso, o legislador poderia ter modificado o tipo do artigo 215 o tornando mais específico, como o Código Penal Português, que em seu artigo 167 (fraude sexual) dispõe: “1. Quem, aproveitando-se do erro sobre a sua identidade pessoal praticar com outra pessoa acto sexual de relevo é punido com pena de prisão até 1 ano”.

O legislador deu uma volta de 360º, ou seja, andou brincando de uma velha cantiga de roda…

 

Bibliografia
BRASIL, Código Penal. Organizador: Luis Flávio Gomes; obra coletiva de autoria da Editora Revista dos Tribunais. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direto Penal. Parte Especial. Vol 4. São Paulo: Saraiva, 2004.
CAMARGO, Adriano Roberto Linhares de. Publicação eletrônica (mensagem pessoal). Mensagem recebida por [email protected] em 25/05/2005.
MARCAO, Renato. A Lei 11.106/2005: Novas modificações ao Código Penal brasileiro (II)- Posse sexual mediante fraude (art. 215); Atentado violento ao pudor mediante fraude (art. 216) e, causas de aumento de pena (art. 226). Disponível da Internet: www.ibccrim.org.br. Acessado em 22/05/2005
MARQUES DA SILVA, Ivan Luís. A presunção de honestidade da mulher-algumas reflexões sobre a Lei n. 11.106 de 28/03/2005. Disponível da Internet: www.ibccrim.org.br. Acessado em 22/05/2005
PORTUGAL. Código Penal. Organização: Clara Luzia. Coimbra:Edições Almedina, janeiro de 2005.
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Informações Sobre o Autor

 

Aline Seabra Toschi

 

Professora Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Goiás. Professora de Direito Penal e Processual Penal e supervisora do Núcleo de Prática Jurídica do Curso de Direito da UniEVANGÉLICA, Anápolis-GO

 


 

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