Introdução
Apesar das polêmicas que giram em torno da chamada Era Vargas, entre os anos 30 e 50 do século XX, é incontroverso que foi nesse período que se iniciou o processo de institucionalização dos direitos trabalhistas, individuais e coletivos. Cite-se, por exemplo, a criação da carteira de trabalho (1932), da Justiça do Trabalho (1946), do salário mínimo (1940) e do descanso semanal remunerado (1949). Durante o governo de Getúlio Vargas também foi regulamentado o trabalho do menor, da mulher, o trabalho noturno e o direito à aposentadoria para os trabalhadores urbanos. Estes e outros direitos, garantidos inicialmente na constituição de 1934, foram reunidos mais tarde na CLT, em 1943, e permanecem até hoje, apesar do vai-e-vem de avanços e retrocessos nas conquistas trabalhistas que se sucederam nos governos seguintes.
Segundo Ângela de Castro Gomes: mesmo no Estado Novo, trabalhar não era um meio de ganhar a vida, mas sobretudo um meio de servir à pátria. Já na Constituição de 1937 se adotava o critério de que o trabalho era um dever de todos (artigo 136), e que a desocupação era crime contra o próprio Estado.[1]
Publicada no tumultuado cenário político e econômico mundial dos anos 40, a CLT até hoje tem sido alvo de críticas por grande parte da doutrina especializada. Alguns a acusam de contribuir no processo de controle da classe operária pelo Estado, nos moldes da Carta del Lavoro, idealizada durante o regime fascista na Itália. Essa idéia se difundiu face à instituição da unicidade sindical, do imposto sindical compulsório e do poder normativo atribuído à Justiça do Trabalho, os quais refletiriam a ideologia corporativista fascista. A partir dessa crítica, surgem propostas de reformas na legislação trabalhista, principalmente no que concerne ao direito coletivo, no sentido de atribuir maior liberdade sindical e autonomia da vontade coletiva.
De outro lado, a crítica conservadora argumenta que as leis trabalhistas, de certa forma, prejudicam os trabalhadores ao aumentarem o chamado “custo Brasil”, onerando demasiadamente as empresas e gerando mais desemprego e subemprego. Para resolver tais problemas, acena com propostas de maior flexibilização e desregulamentação das legislação trabalhista.
Diante desse paradigma, faz-se necessário alguns esclarecimentos sobre a chamada doutrina fascista, sobre o movimento corporativista e sobre a Carta del Lavoro, todos originados na Itália, no início do século XX. O objetivo é averiguar em que medida a legislação trabalhista brasileira teria nascido sob a influência da ideologia fascista de Mussolini e lançar as bases para uma melhor compreensão dos fundamentos ideológicos e políticos da legislação trabalhista brasileira.
1. O Fascismo e o corporativismo na Itália do início do século XX.
O fascismo foi um dos regimes totalitários do século XX, de inspiração hegeliana, surgido na Itália, no final da primeira Guerra Mundial, e que perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Ao então chefe de governo, Benito Mussolini, foram atribuídos todos os poderes de um ditador, fazendo com que a Itália vivesse um período de ausência total de liberdades individuais e políticas. Ao longo dos mais de 20 anos em que perdurou o regime foram suprimidas todas as formas de autogoverno das administrações locais, o sindicato fascista assumiu o monopólio da representação operária, as greves foram proibidas, a imprensa censurada e os partidos de oposição, suprimidos. Um tribunal especial foi criado para julgar os opositores do regime e a pena de morte voltou a viger.
O regime fascista surgiu, em parte, como uma reação à Revolução Bolchevique de 1917, na Rússia, e em parte, às idéias liberais características do pós-Revolução Francesa. Contudo, é certo que o fascismo se propunha a realizar um discurso liberal, mas conservador na prática, uma vez que Mussolini, no fundo, adotou por completo a idéia liberal mesmo dizendo combater o Stato liberale, como se fossem duas coisas diversas.[2]
Em um dos seus mais famosos discursos, ocorrido em 19 de agosto 1921, e publicado no Diario della Volontà, Mussolini afirmava que:
Il Fascismo è una grande mobilitazione di forze materiali e morali. Che cosa si propone? Lo diciamo senza false modestie: governare la Nazione. Con quale programma? Col programma necessario ad assicurare la grandezza morale e materiale del popolo italiano. Parliamo schietto: Non importa se il nostro programma concreto, non è antitetico ed è piuttosto convergente con quello dei socialisti, per tutto ciò che riguarda la riorganizzazione tecnica, amministrativa e politica del nostro Paese. Noi agitiamo dei valori morali e tradizionali che il socialismo trascura o disprezza, ma soprattutto lo spirito fascista rifugge da tutto ciò che è ipoteca arbitraria sul misterioso futuro.
O objetivo do fascismo era, em síntese, substituir o sistema liberal democrático clássico, então vigente, – de inspiração rousseaunia e iluminista – por um modelo concentrado na idéia de representação por grupos profissionais – inspirada na noção de corporação de Hegel. Essa política veio a se tornar conhecida como corporativismo[3].
O nome corporativismo deriva das corporações de ofício que controlavam a vida urbana em muitas cidades da Itália medieval. Desde o início, o sistema corporativo encontrou, forte oposição interna por parte dos grandes industriais e dos proprietários de terra, os quais se sentiam ameaçados pelo Partido Nacional Fascista.
Contra as constantes exigências de liberdade, necessárias ao desenvolvimento do sistema econômico, o fascismo buscou obter a harmonização entre as exigências dos trabalhadores e dos empregadores, principalmente pelo método da coerção, a fim de que tudo ficasse sob a autoridade do Estado. Assim, empregados e empregadores passaram a ser enquadrados em um único sindicato fascista.
A Carta del Lavoro, editada em 21 de abril de 1927 pelo Gran Consiglio Del Fascismo, foi o documento político fundamental do ordenamento corporativo. Expunha, em trinta declarações, os princípios fundamentais sobre os quais se inspiraram as sucessivas legislações fascistas. A publicação da Carta, como escreveu De Felice, realizou os objetivos políticos que Mussolini prefixou e serviu para dar uma aura de sociabilidade ao novo regime.[4] Na verdade, tratava-se de um documento solene que exprimia a ética e os princípios sociais do fascismo e resumia toda a sua idéia de organização do trabalho, a qual estaria fundamentada em uma lógica produtivo-corporativa. Sob uma perspectiva social e em particular do melhoramento das condições do trabalho, a Carta del Lavoro não inovou significativamente. Segundo De Felice, a Carta foi uma tentativa tomada por parte do fascismo de impor um modelo de organização social que pudesse surgir como uma resposta à ideologia materialista do socialismo fundada na dinâmica da luta de classes. De qualquer modo, a Carta del Lavoro não nasceu de improviso, pois antecipações daquelas idéias já se encontravam em curso no pensamento nacionalista, em legislações esparsas anteriores e, em especial, no institucionalismo autoritário de Alfredo Rocco. Diversamente daquilo defendido pelo próprio fascismo, a Carta del Lavoro não trazia grandes inovações – com exceção de algumas normas gerais de conduta e de aprimoramento das condições de trabalho – e pouco tinha de ‘ponto de partida’ para um novo ‘Estado do povo’, pois quase nada de revolucionário e inovador ela apresentou em relação à situação sócio-política que já vinha se desenvolvendo na Itália do início do século XX.[5]
A auto-administração da economia, a conciliação das diversas vertentes e conflitos de trabalho realizados no ordenamento corporativo, foram alguns dos principais argumentos propagandísticos usados pelo regime. Porém, este ordenamento nasceu frágil porque, como se sabe, os grandes industriais italianos se recusaram a fazer parte da implementação do corporativismo.
A idéia dos fascistas em matéria de corporativismo não era nada unânime. Havia numerosos fascistas, moderados e intransigentes, que não acreditavam em suas propostas. Tais eram, por exemplo, os moderados Grandi e Emilio De Bono, os fascistas intransigentes, como os secretários do PNF, Turatti, Giuriati, Leandro Arpinati e por fim, também Farinacci, que em um primeiro momento foi favorável. O próprio Mussolini não tinha muita fé no corporativismo, pois temia que este tomasse espaço do partido.[6]
Na época em que foi elaborada a Carta del Lavoro, impuseram-se as idéias de Mussolini sobre o corporativismo, quais sejam, o sindicato e as corporações deveriam ser concebidos como sendo tão-somente órgãos burocráticos do Estado. Contudo, após 1933, a idéia de corporativismo foi abandonada por Mussolini. O Duce queria realmente que as intervenções públicas na economia fossem conduzidas não pelas corporações, mas sim pelo Estado.[7] Mussolini tinha dois objetivos: (1) impedir que as corporações pudessem se tornar centros de poder capazes de fazer sombra a sua liderança política frente às massas, e (2) não fazer qualquer coisa que desagradasse os grandes industriais, sobretudo naqueles temas que o Duce considerava de secundaria importância.[8]A conclusão foi que no ordenamento corporativo os sindicatos acabaram sendo postos sob a tutela do Estado e tornaram-se instrumentos de controle político, subordinados ao Partido Nacional Fascista.[9] Ao fazerem parte da burocracia estatal nos anos 30, as corporações tornaram-se um meio de fazer carreira, paralelamente à via “oficial”, seguida dentro do partido.
Pelo exposto, portanto, podemos concluir que a famigerada doutrina corporativista nasceu sob forte desconfiança do próprio partido fascista italiano e cedo foi abandonada por aqueles que queriam, acima de tudo, o controle do Estado e do Partido sobre as demais instituições, não obstante o modelo econômico proposto pelo fascismo fosse, sem dúvida alguma, o capitalista.
2. O contexto sócio-político brasileiro no momento de elaboração da CLT. Distinção entre as influências ideológico-políticas da Carta del Lavoro e da CLT.
Feitas essas considerações, vejamos agora algumas pesquisas e depoimentos sobre as origens da legislação trabalhista brasileira.
Os críticos de Getúlio Vargas dizem que sob qualquer compreensão de corporativismo seria possível subsumir o populismo de seu governo. R. M. Levine diz que esta teria sido a forma encontrada por Vargas para manter o seu poder político controlador e centralizador, sendo que:
Os programas decorrentes da legislação social de Vargas eram essencialmente manipuladores, técnicas enganosas empregadas para canalizar a energia de grupos emergentes – principalmente das classes médias e trabalhadoras assalariadas e urbanas – para entidades controladas pelo governo. Os brasileiros acolheram as iniciativas de Vargas por elas prometerem melhores condições de trabalho, garantia de emprego e oportunidade de habitação subsidiada.[10]
Contudo, sem querermos fazer uma apologia do governo de Getúlio Vargas, temos de referir que tal compreensão não é pacífica. O historiador José Augusto Ribeiro defende a tese de que Getúlio Vargas, ao criar as primeiras leis trabalhistas, pretendia tão-somente impulsionar o desenvolvimento social e industrial no país, sendo que suas idéias iniciais tinham profunda identificação com os ideais socialistas. Segundo o autor, o documento conhecido como “Manifesto de Maio”, no qual Luis Carlos Prestes expõe as razões de sua filiação ao Partido Comunista, é praticamente idêntico ao programa da plataforma da Aliança Liberal de Getúlio Vargas, que o levou ao seu primeiro governo provisório, no início dos anos 30.[11] Disto depreendemos que os ideais e a inspiração dos dois revolucionários eram, no mínimo, parecidas.
Ribeiro ainda menciona documentos e discursos que comprovam a participação direta de intelectuais e políticos marxistas, inclusive filiados ao então incipiente Partido Comunista, na elaboração do texto da CLT, como Joaquim Pimenta, Evaristo de Moraes, Carlos Cavaco, Agripino Nazaré, Jorge Street, todos assumidamente socialistas.[12]
O autor recorda, ainda, que a Lei dos Sindicatos, de 19 de março de 1931, estabelecia a necessidade de reconhecimento dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho e previa a organização dos sindicatos, tanto de trabalhadores quanto de empregadores, em federações profissionais, regionais ou nacionais, e em confederações nacionais, o que, na época, tratava-se de um importante avanço dentro de uma seara legislativa quase inexistente em termos trabalhistas .[13]
O ponto mais importante da Lei mencionada era o estabelecimento do princípio da unicidade sindical: em cada circunscrição territorial havia apenas um sindicato, de trabalhadores ou de empregadores, de cada categoria profissional ou econômica.[14] Neste ponto, Ribeiro acrescenta que foi aí que várias tentativas surgiram no sentido de atrelar a CLT à Carta del Lavoro, ainda que aquela se assemelhasse mais à legislação francesa, a qual nada possuía de fascista.[15]
A nosso sentir, parte da doutrina tem incorrido no equívoco de tomar a parte como um todo. A legislação trabalhista, de fato, apresenta feições corporativistas, ao pretender a organização da coletividade baseada na associação representativa dos interesses e das atividades profissionais. Contudo, isso é mais visível no âmbito do direito coletivo.
Mesmo um dos árduos defensores da tese de que o direito do trabalho brasileiro teria sido axio-orientado pelo fascismo, Arion Sayão Romita, sustenta que os principais institutos do direito individual do trabalho pátrio não foram inspirados na Carta del Lavoro:
A coincidência no tempo, da presença de certos institutos lá e cá não induz necessariamente à formação originária do instituto brasileiro a partir do direito italiano, como se pode verificar por exemplo nos institutos do repouso semanal e das férias.[16]
O mesmo autor também reconhece que não é por ter sido adotado pelo ordenamento fascista que determinado instituto será pernicioso ao direito brasileiro. Há normas no ordenamento corporativo perfeitamente ajustadas ou adaptáveis ao regime democrático.[17]
A. S. Romita afirma, ainda, que
No Brasil, entretanto, só foi possível construir os dois estágios inaugurais do corporativismo: a organização sindical e a Justiça do Trabalho, ambos instituídos em 1937, mercê do disposto nos Decretos-Leis n° 1.402 e 1.237, respectivamente. Ambos estão em vigor até hoje, já que foram incorporados na CLT, em 1943, esta por seu turno compatível com os preceitos das Constituição de 1988 (exceção feita à autonomia sindical, como ficou esclarecido anteriormente). As corporações, contudo, não chegaram a ser criadas, embora previstas pela Carta de 1937.[18]
Contudo, é o eminente jurista Arnaldo Sussekind, membro da comissão que elaborou a CLT, ex-Ministro de Estado do Trabalho e ex-Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, quem nos fornece uma das leituras mais lúcidas quanto às origens da CLT.[19]
Sussekind, revela que as principais fontes materiais da CLT foram os pareceres de Oliveira Vianna e de Oscar Saraiva, o 1º Congresso Brasileiro de Direito Social, as Convenções e Recomendações da OIT e a Encíclica Papal Rerum Novarum. Diz que na elaboração da CLT teriam participado, ainda, juristas como Evaristo de Moraes, Oliveira Vianna e Oscar Saraiva.
Durante o Primeiro Congresso de Direito Social, em comemoração aos 50 anos da Rerum Novarum, em maio de 1941, Sussekind conta que apresentou uma tese, aprovada – “A Fraude à Lei no Contrato de Trabalho”, – e que inspirou, na comissão de elaboração da CLT, a redação do artigo 9º, o qual combate a fraude e a simulação e configura a consagração do princípio da primazia da realidade.
Outro ponto importante esclarecido por Sussekind é o fato de que, quando Getúlio Vargas, após o movimento conhecido como Intentona Comunista, em 1935, passou a combater os comunistas, estes passaram a criticar aquilo que era o principal feito de Getúlio – a legislação do trabalho – , afirmando que a CLT seria cópia da Carta del Lavoro, de inspiração fascista. As críticas, então, começaram a partir de todos os lados, por questões unicamente políticas.
Contudo, atualmente, seriam os liberais mais conservadores os principais críticos da CLT ao alegarem que a magistratura do trabalho no Brasil tem poder normativo tal como a “magistratura del lavoro”, prevista na Carta del Lavoro. Nesse ponto, Sussekind esclarece que o Poder Normativo não foi criação do fascismo italiano. O instituto, na verdade, nasceu em 1904, na Nova Zelândia; depois, foi implantado na Austrália, Turquia, e no México, em 1917. De resto, diz o jurista, que a CLT não fala em Poder Normativo, mas em “possibilidade de criar normas e condições de trabalho, tal como um poder arbitral”. O poder normativo nada mais é do que uma forma de arbitragem, como refere Américo Plá Rodrigues, lembra.
Sussekind refere ainda que o outro foco de crítica dos neoliberais é a compulsoriedade da unicidade sindical, a qual está prevista também na Carta del Lavoro. O jurista rebate a crítica lembrando novamente que este instituto não é criação italiana, sendo que, já em 1917, Lenin havia instituído a unicidade sindical na extinta União Soviética. E, muito antes dele, havia sido defendida por vários juristas, como Max Leroix, em 1913 e Georges Scelle. Desta forma, entende que é falacioso afirmar que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro, tendo em vista que a CLT tem 922 artigos e a Carta possui apenas 11 princípios trabalhistas, a maioria deles de pouca aplicabilidade imediata.
No que pertine ao imposto sindical, é Ângela de Castro Gomes quem explica suas origens. Segundo a historiadora, este visava adotar os sindicatos de recursos capazes de fazê-los arcar com suas responsabilidades entre as massas trabalhadoras. Ou seja, transformar o sindicato em um real dispensador de benefícios e, com isso, torná-lo um pólo de atração para os trabalhadores.[20] Nesse sentido, o aumento do número de associados, o qual era o principal objetivo, acabou tendo um efeito inverso:
Uma vez que os sindicatos recebiam verbas independentemente da quantidade de filiados que reunissem, tornava-se desnecessário e até pouco interessante aumentar esse número. Esse efeito perverso foi-se afirmando e crescendo com o passar do tempo, tanto por implicações econômicas stricto sensu, quanto políticas, pois se tratava de reduzir as margens de competição pelo controle da vida sindical. Mas nos anos 40 estes desdobramentos ainda não eram tão óbvios, embora já se anunciasse com certa clareza.[21]
Gomes explica que o Ministério do Trabalho, já na década de 40, queria sindicatos e líderes convencidos das qualidades do sistema corporativista, o que não significava necessariamente submissão total. A vivificação do sindicalismo corporativista deveria passar por um esforço eminentemente pedagógico e não fundamentalmente repressivo.[22] Nesse período, o governo estava se empenhando em difundir a idéia da sindicalização, sendo que, só no final do Estado Novo, ou seja, passado o período de autoritarismo, começou a se desenvolver a idéia do corporativismo brasileiro. A Justiça do Trabalho, o imposto sindical e a CLT já haviam sido criados, não havendo falar que tais institutos teriam sido idealizados sob a inspiração totalitária do Estado Novo. Conforme Gomes, o chamado sindicalismo corporativista não foi implementado durante os anos de autoritarismo do Estado Novo, mas sim no período de transição do pós-1942, quando a questão da mobilização de apoios sociais tornou-se uma necessidade inadiável ante a própria transformação do regime. A autora conclui que o aspecto político da implementação do corporativismo no Brasil buscou, na verdade, uma saída do autoritarismo. O objetivo do governo, nos anos pós-1942, era mobilizar e preparar lideranças e não mais exercer a repressão.[23]
Nessa época já se falava na necessidade de desvincular o sindicalismo corporativista de outros regimes totalitários:
Nosso regime diferenciava-se dos demais corporativismos (alemão, italiano, austríaco e até português e espanhol), já que adotava uma estrutura organizativa eminentemente representativa. O corporativismo brasileiro consagrava o direito de a própria produção organizar-se através de sindicatos, definidos como órgãos coordenados pelo Estado, no exercício de funções delegadas pelo poder público. Esta dimensão oficial era imprescidível a todo o corporativismo moderno, já que por ela se garantiam as próprias tarefas de representação das corporações profissionais.[24]
Concluímos, mais uma vez, que não é correto associar o corporativismo italiano com o corporativismo brasileiro. Tratam-se de ideologias surgidas em realidades históricas específicas, cada uma ambicionando chegar a um resultado político e econômico diferente.
3. Considerações finais.
Após o exposto, ainda cabe um último questionamento: é possível afirmar que a suposta influência do movimento fascista italiano sobre a formação do direito trabalhista brasileiro, caso tenha sido determinante, foi um mal? Entendemos ser inviável responder essa questão sem que se tome como referência a ideologia e a posição política preponderante em cada momento histórico, em cada governo, em cada indivíduo.
Quando analisados os fundamentos antropológicos e filosóficos do poder público, parece inevitável concluir que à condição humana são inerentes o altruísmo limitado e o constante conflito de interesses.[25] Diz-se altruísmo limitado por ser o indivíduo, segundo a concepção de estado de natureza hobbesiano – aquele momento pré-estatal em que nenhum poder público está instituído e os homens são os seus próprios senhores e deuses, sendo famoso o aforismo “o homem é o lobo do homem”[26] –, coagido pela sua natureza a buscar assegurar o seu próprio bem antes de considerar o bem comum ou o bem dos outros. E fala-se em conflito de interesses pelo fato de que os indivíduos vivem uma constante e incessante busca de poder e mais poder (power after power[27]), de modo que, inevitavelmente, os seus interesses irão colidir com os de outro(s) indivíduo(s).
Cabe aqui esta brevíssima retomada do clássico pensamento de Hobbes para demonstrar que a regulação jurídica por parte do Estado é mais do que uma prerrogativa deste: é uma necessidade imposta pelo indivíduo, após considerar sua própria natureza e perceber que um terceiro imparcial deve ser instituído para regrar e pacificar as relações sociais.
O direito sindical brasileiro, antes da legislação elaborada durante o governo Vargas, preenchia muito – ainda que não todos, obviamente – as características do estado de natureza de Hobbes: trabalhadores e empregadores viviam em uma verdadeira “terra de ninguém” onde tenderia sempre a prevalecer a vontade daquele que fosse o mais forte (via de regra, o empregador). Sem a presença de um terceiro agente, imparcial e soberano, os interesses de trabalhadores e empregadores tenderiam a viver em constante conflito, pois é da natureza humana o altruísmo limitado. Assim, a partir de uma leitura antropológica e filosófico-política, a legislação sindical trabalhista de Vargas foi, respectivamente, uma necessidade e obrigação estabelecida in abstracto quando do contrato social.
No que concerne aos apelos por desregulamentação, a experiência internacional não confirma que elas tenham sido adotadas pela maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Pode-se dizer, na verdade, que as reformas foram exceções. Para a maioria dos países, a reorganização da regulação pública ocorreu e continua a ocorrer paulatinamente, de modo limitado e de forma descontínua no tempo.[28]
Não queremos desqualificar a necessidade de reorganização da estrutura sindical brasileira. A questão que se coloca é sobre a estratégia a ser adotada para o encaminhamento do processo. Sugerimos que a estratégia de reorganização, independentemente de qual vier a ser adotada, seja estabelecida segundo fases, que contemplem mudanças pontuais, mas importantes para a emergência futura de uma conformação da representação sindical menos fragmentada e aprofunde as relações democráticas das instituições que organizam as relações de trabalho no Brasil, fazendo com que sejam considerados também fatores provenientes dos âmbitos sociais, políticos, econômicos, culturais e formativo-educacionais no processo de reforma da nossa organização e regulamentação trabalhista, uma vez que este processo afetará direta e indiretamente todos aqueles âmbitos.
Uma reforma com esse grau de comprometimento social e, inclusive, humanístico, não permitiria que no período de um governo se realizasse a reforma sindical ou mesmo na legislação trabalhista. O caminho a ser trilhado é, com certeza, mais longo, mas talvez seja aquele que possa de fato produzir uma realidade, que supere as perversas desigualdades que gravam a sociedade brasileira.
Informações Sobre o Autor
Camile Balbinot
Especialista em Direito do Trabalho pela PUC/RS e servidora do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região.