Resumo: A coisa julgada contemporânea não é mais aquela prevista originalmente pelo CPC de 1973, e nem ensinada pela tradição romanística-germânica. Para entendê-la, perpassamos por diversos doutrinadores que marcaram a evolução do instituto e debatemos sobre a relativização da coisa julgada e suas principais consequências para o processo civil contemporâneo.
Palavras-chave: Coisa julgada. Direito processual. Direito constitucional. Inconstitucionalidade. Processo contemporâneo.
Abstract: A contemporary res judicata is no longer that originally provided by the CPC in 1973, and not taught by romain-Germanic tradition. To understand it, pervading by several scholars that marked the evolution of the institute and discussed about the relativization of res judicata and its main consequences for the contemporary civil procedure.
Keywords: Res judicata. Procedural law. Constitutional law., Unconstitutional. Contemporary process.
I – Introdução
Tratar sobre a flexibilização, revisão e relativização da coisa julgada principalmente por inconstitucionalidade e pelas variadas correntes doutrinárias existentes requer boa dose de reflexão.
Debates que envolvem o processo contemporâneo em seu trajeto evolutivo trazem a lume nova visão de conflito de interesses, de jurisdição e de decisão judicial calcada no julgamento.
Ademais, o certo desprestígio do julgamento[1] enquanto fenômeno jurídico-social deve-se as tendências relativizantes da coisa julgada, maculando sua definitividade e imutabilidade.
Não pode o aplicador de Direito restar afastado da presente evolução constante no texto constitucional bem como de seus princípios (sejam explícitos ou implícitos), dos desígnios da cidadania que tanto prestigiam o Estado Democrático de Direito que consagra valores primaciais como a dignidade humana, os valores sociais do trabalho, da moralidade, da legalidade, eticidade, eficiência, sociabilidade e operabilidade, entre tantos outros que formam e dão corpo ao direito contemporâneo.
É certo que no ordenamento jurídico brasileiro que os atos e decisões devem respeitar aos ditames constitucionais, exigência que não só é da segurança jurídica, mas também da manutenção e aperfeiçoamento constante do Estado Democrático de Direito tão bem esculpido pela vontade dos contribuintes posto que sejam delegados da vontade popular e a expressão da alma da nação.
Até mesmo o Poder Executivo no âmbito de sua competência tem o dever de atuar suas precípuas atribuições conforme os postulados e princípios explícitos ou implícitos da Constituição Federal Brasileira, caso contrário, receberão os efeitos do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, cabendo este afastar o ato ou decisão do mundo jurídico, se for chamado para tanto.
Nem o Poder Legislativo está imune ao controle de constitucionalidade, submetendo-se até as emendas constitucionais a esse mesmo controle, bem como as medidas provisórias emitidas pelo Executivo, e ainda, as leis delegadas, decretos legislativos e resoluções.
Convém ressaltar que também o Poder Judiciário submete-se ao controle de constitucionalidade, não vige, portanto, isenção desse controle posto que concebido justamente para bem caracterizar o regime democrático, como também não infringe o princípio da separação de poderes.
O controle de constitucionalidade dos atos administrativos, das leis e das decisões judiciais, por quaisquer meios processuais permitidos pela ordem legal instituída, não viola a separação de poderes, e sim, fortalece o princípio democrático representativo por garantir a vontade soberana do povo expressa no texto da Carta Maior e, ainda promove o efetivo e íntegro respeito aos seus ditames, dando unidade e harmonia a toda ordem jurídica pátria.
Nesse sentido, ao aplicar a lei ao caso concreto, encontrando o julgador o conflito entre a vontade do legislativo e a vontade do povo expressa num texto constitucional, deve promover hodiernamente um intrínseco controle de constitucionalidade.
Como o Poder Legislativo é atribuído pela Constituição, sendo um poder delegado que tenha se excedido, configurando que o mandatário não se manteve dentro da órbita do mandato conferido. O excesso, por conseguinte, é nulo e, é dever do tribunal reconhecer e dar efetividade ao texto constitucional tido como o direito primordial, recusando-se a executar o ato do Legislativo que assim o anular na prática.
Evidentemente é a evolução da democracia e o crescimento da confiança nos poderes da república que fazem com que a prática dos atos e decisões apresente-se em conformidade e sintonia com os ditames constitucionais.
É, pois inconcebível no Estado de Direito, permanecer a coisa julgada como dogma intangível mesmo quando em evidente contrariedade com os postulados, princípios e regras da Constituição Federal.
O que se espera do Poder Judiciário é a integral defesa da supremacia constitucional, e jamais a violação ao exarar suas decisões. A atividade jurisdicional deve, portanto, imprimir o grau máximo de segurança[2] jurídica e que se configura explicitamente quando revela em perfeita harmonia dos efeitos de seus julgados com as linhas-mestras delineadas pela Constituição vigente.
A principal bússola para o intérprete e aplicador de Direito é a força magnética da Constituição Federal que existe por originar-se do poder do povo, e nenhum outro poder está acima deste.
Ipso facto num Estado Democrático de Direito não há a realização plena dos ideais concebidos quando o Poder Judiciário, ao proferir suas decisões e julgamentos, pretender restar acima dos limites constitucionais vigentes.
Especialmente é do Poder Judiciário, a missão é fazer prevalecer a força da Constituição, endossada pelos os demais poderes, especialmente o Executivo e o Legislativo. Não se pode conceber a intangibilidade da coisa julgada para acatar-se o descumprimento da Constituição Federal.
As variadas manifestações doutrinárias sobre a flexibilização da coisa julgada e, ainda sobre a coisa julgada inconstitucional que se revela em afronta à moralidade privada e pública em seus efeitos vieram produzir inúmeras teorias umas a favor, da chamada relativização, enquanto outros, contrários.
A primeira teoria é de autoria de Carlos Valder Nascimento em sua obra “Por uma teoria da coisa julgada” onde examinou os seguintes assuntos: a) considerações propedêuticas acerca da coisa julgada inconstitucional; b) coisa julgada inconstitucional; c) panorama pós-moderno da legitimação normativa; d) valor justiça e controle dos atos públicos; e) escola clássica do positivismo; f) crise da teoria constitucional e a contribuição de John Rawls[3] e controle dos atos públicos; g) O Direito na ótica do pós-positivismo; h) pressupostos constitucionais e processuais da coisa julgada; i) a função jurisdicional e inconstitucionalidade dos atos públicos; j) a decisão judicial e seus fundamentos no plano da validade; k) contribuições ao estudo da coisa julgada inconstitucional; estudos doutrinários; l) dogmatismo e não-relativização da eficácia da coisa julgada inconstitucional; m) segurança jurídica; justiça da sentença e sentença inconstitucional; n) hermenêutica constitucional: ponderação de interesses, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade e do fenômeno jurídico; o) instrumentos processuais de controle da decisão inconstitucional;[4]
Pode-se entender que o controle de constitucionalidade trata de analisar as atividades típicas dos Poderes do Estado, certo que todas são sujeitas ao controle da sociedade.
As regras atinentes à coisa julgada são regras no plano da legislação ordinária, que inclusive por expressa previsão constitucional, não podem contrariar ou promover modificações no referido instituto que tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas nos termos do Código de Processo Civil brasileiro.
Não existe nenhum choque entre o princípio de segurança jurídica e a aplicação dos demais princípios que estão [5]acima daquele, sendo presente que o caráter absoluto atribuído à coisa julgada não resiste aos primados da moralidade e da legalidade;
O princípio da segurança jurídica deve ceder diante dos princípios fundantes do ordenamento constitucional, quando se sabe que o processo não realiza o direito de modo perfeito, em toda a sua plenitude.
“Nas sentenças nulas, os vícios inerentes ao conteúdo de inconstitucionalidade por estes veiculados podem ser atacados, sem necessidade de observância de tempo ou de procedimento específico, posto que decretem a inexigibilidade do título executivo sentencial, por força do parágrafo único do art. 741 do CPC, acrescentado com a redação dada pelo art. 10 da Medida Provisória 2.180-5 de 24/08/2001” [6].
Nada impede que em sede de embargos o juiz examinasse a questão da inconstitucionalidade da sentença, considerada nula, mesmo sem qualquer pronunciamento prévio do Supremo Tribunal Federal, nos aspectos difuso ou concentrado.
Se existem ressalvas quanto à autoridade da coisa julgada, tanto no âmbito criminal quanto no cível, que autorizem a revisão criminal e a rescisão da sentença, portanto é lícito admitir que a coisa julgada inconstitucional que pode ser objeto de ação declaratória em busca de sua desconstituição, por não se compatibilizar com o ordenamento constitucional positivo.
A res judicata tem força de lei entre as partes, de forma que não pode ser modificada por lei ordinária, cuja sentença enfrentou o mérito, assim transitado em julgado;
A tese da relativização da coisa julgada ganha conteúdo captando a adesão de juristas europeus e brasileiros, a partir da percepção de que não se pode acolher o entendimento que não seja consentâneo com a realidade dos fatos.
Conclui-se que a decisão jurisdicional de carga lesiva que não possa ser revertida, mesmo em situação extraordinária, sob o pretexto do seu caráter de absolutividade.
A autonomia da chamada querela nulitatis no direito brasileiro que visa impugnar a sentença inquinada de nulidade, independentemente do manejo recursal conforme bem apontado por José Cretella Neto. Lembrando que os vícios insanáveis não se resolvem nem mesmo com a preclusão temporal.
Também poderá ocorrer a arguição de inexigibilidade do título sentencial a ser processada em exceção de pré-executividade, mesmo diante da decisão trânsita em julgado. Havendo a petição de nulidade relativa quanto à execução, o deve ocorrer em qualquer grau de jurisdição, possuindo natureza suspensiva já que afeta diretamente o processo de execução.
Esclarece Ivo Dantas[7] em seu artigo intitulado “Coisa julgada inconstitucional: declaração de inexistência” publicada na Revista Fórum Administrativa, de maio de 2002, aceitando a trilogia hegeliana composta da tese, antítese e síntese, aponta como principais pontos:
a) se a inconstitucionalidade significa inexistência[8] da lei e/ou ato, não se poderá cogitar em coisa julgada por encontrar-se esta fundamentada em algo que não existe;
A própria expressão “coisa julgada inconstitucional” traz uma intrínseca contradição, tendo sentido mais retórico do que científico, nesse mesmo sentido pontua Rosemiro Pereira Leal.
b) caso a coisa julgada seja calcada em norma inconstitucional, não se cogita na flexibilização da coisa julgada inconstitucional, razão pela qual os meios de impugnação utilizáveis apenas irão reconhecer por meio de novo pronunciamento da decisão rescindenda, juridicamente nunca existiu, por está baseada em inconstitucionalidade;
Na prática, sem a rescisão do julgado, conforme já lecionava Pontes de Miranda, ter-se-á “a eficácia da sentença rescindível é completa, como se não fosse rescindível”.
c) Como a arguição de inconstitucionalidade poderá ser feita a qualquer tempo e em qualquer instância ou tribunal, não se cogitando de decadência, nem preclusão e, ou ainda, prescrição.
Porém, se por qualquer motivo a ação rescisória for apontada como ilegítima em razão do tempo, a saída seria o mandado de segurança ou da ação declaratória de nulidade[9] absoluta da sentença, em razão da inconstitucionalidade em que se encontra fundamentada.
Convém lembrar que esta derradeira hipótese já foi aceita pelo STF (ex vi Recurso Extraordinário 97.589, Relator Ministro Moreira Alves, j.17.11.1981, DJU 03.06.1983, dentro do prazo da ação rescisória).
Outro doutrinador que abordou o tema foi Francisco Barros Dias através de seu artigo sob o título “Breve Análise sobre a coisa julgada inconstitucional” e afirmou em síntese:
a) É imprescindível uma posição doutrinária e jurisprudencial sobre a coisa julgada, quando violadora da Constituição, em face da perplexidade que prova aos diversos julgados contraditórios, especialmente quando existe afronta a Constituição;
b) Da forma com que a jurisprudência vem tratando a ação rescisória, tal remédio processual não é suficiente para corrigir a decisão tida como inconstitucional, especialmente depois do trânsito em julgado, ou seja, depois do biênio decadencial;
c) O sistema jurídico brasileiro está baseado em diversos princípios que fornecem sustentação ao ordenamento, como os da hierarquia das normas, o democrático, os da legalidade, isonomia e separação de poderes, os quais deverão ser observados pelo julgador ao aplicar a norma;
d) A sentença que afronta princípio constitucional deve ser considerada como inexistente, em face de sua incoerência com o ordenamento jurídico vigente;
e) É uma perplexidade a situação de um jurisdicionado que recorre ao Judiciário e se depara com decisão contrária à Constituição, e não tem como remediar tal erro, o que leva o órgão estatal a sofrer pesadas críticas, e ser logicamente, incompreendido em sua real função; (nesse sentido a crítica até retira substancial legitimidade do Judiciário posto que imponha sentença injusta e um processo injusto);
f) Como forma de correção direta e sem a necessidade de reforma da lei ou do texto constitucional, essa suposta omissão instrumental, seria a jurisprudência aceitar a ação rescisória com fundamento da inconstitucionalidade do julgado e sem prazo decadencial, ou a forma mais prática e eficaz da ação declaratória de inexistência de coisa julgada inconstitucional, a qual não encontraria qualquer óbice em nosso ordenamento jurídico. Ao contrário, com o mesmo se compatibiliza e até harmoniza-se.
Mais um importante doutrinador trata do espinhoso tema, que é José Maria Tesheimer que em sua obra sobre a coisa julgada merece principalmente quando comenta sobre os limites da proteção constitucional da coisa julgada.
In litteris: a) “A Constituição estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” ( art. 5º, XXXVI).
Em essência, o que aí se veda é a lei retroativa, isto é, lei posterior para reger fatos passados. “A revisão da sentença, por fato superveniente, em relação jurídica continuativa não ofende a Constituição”;
b) “Também não ofende a Constituição a ação rescisória, pois não há retroatividade quando se rescinde a sentença, proferindo-se novo julgamento, com base na mesma legislação existente no tempo da rescisão rescindida. Nem precisa lançar mão do argumento de que a própria Constituição contém referência à ação rescisória”;
c) “A ação rescisória[10] poderia ser perpétua, sem com isso violar-se a Constituição. Se se entendesse essencial à existência de prazo, estar-se-ia a interpretar a Constituição como se esta apenas protegesse a chamada coisa soberanamente julgada, isto é, as sentenças de mérito que não apenas transitaram em julgado como se tornaram irrescindíveis pelo decurso do tempo.
Mas a proteção constitucional a coisa julgada é mais ampla. Não se limita a proteger as sentenças irrescindíveis, mas toda e qualquer sentença que haja produzido coisa julgada material[11]”.
Mais um autor, Eduardo Talamini, enfrenta a temática e dedica todo um capítulo ao exame das sentenças inexistentes e ineficazes. Defendendo que o reconhecimento da sentença inexistente e ineficaz. Defende o autor que o reconhecimento da sentença inexistente pode ser buscado pela actio nullitatis.
In litteris: “A actio nulitatis destina-se à constatação da inexistência da sentença. É exercitável “a qualquer tempo” pois, sendo precipuamente declaratória, não está sujeita a prazos de prescrição ou decadência. Estão legitimados a formulá-la tanto o vencido quanto o vencedor, cujo interesse pode residir na eliminação da incerteza criada pela aparência de sentença. É de competência do juiz de primeiro grau (rectius: do juiz de competência originária para a causa objeto da sentença inexistência).”
Talamini analisa as sentenças inexistentes e as ineficazes em confronto com as sentenças nulas e injustas, tece críticas à noção de inexistência jurídica como categoria autônoma e relevante, analisa também as razões as razões para a aceitação da categoria e a sua eficácia e ineficácia.
E, de modo sistemático aborda: a) as sentenças justas e injustas; b) as razões de especial relevância de inexistência jurídica no processo civil; c) sentenças inexistentes: configuração lógico-jurídica, importância prática e tutela constitucional; d) sentença sem dispositivo; e) ato proferido em procedimento em que falta pressuposto de existência processual; f) regime jurídico de averiguação da sentença juridicamente inexistente; g) sentenças inexistentes e relativização[12] da coisa julgada.
Por fim, Eduardo Talamini finaliza o capítulo relatando que muitos graves defeitos de forma e conteúdo por vezes não implicam na inexistência da sentença. Em tais casos, não será aplicável o regime anteriormente delineado.
Portanto, sendo sentença fruto de cognição exauriente de mérito, estará presente a autoridade da coisa julgada material, a qual em princípio apenas poderia ser derrubada mediante ação rescisória (desde que observados todos seus pressupostos de cabimento e o biênio decadencial que corresponde ao prazo de propositura) ou algum outro típico instrumento (conforme o art. 741, parágrafo único CPC). É nesse terreno – alheio às sentenças inexistentes que se põe o problema da relativização da coisa julgada.
Os doutrinadores sustentam um rol significativamente mais amplo de sentenças inexistentes (atribuindo tal inexistência ao núcleo conceitual mínio desse tipo de ato) desenvolvem, por esse caminho, uma teoria de relativização da coisa julgada. Ou, noutra perspectiva, mediante a própria negação de que exista a coisa julgada, tais doutrinadores eliminam o busilis referente à quebra da coisa julgada.
Sobre a relativização da coisa julgada, Talamini finalmente concluiu: “Confirma-se a necessidade imperativa de definir o exato sentido e alcance dos conceitos e categorias sobre o tema (coisa julgada, seus limites, existência jurídica e nulidade da sentença, etc)”.
Uma indevida relativização dos conceitos estaria ocultando a verdadeira relativização dos institutos, sem que os critérios empregados necessariamente se revistam de legitimidade constitucional. Nas situações em que apesar de existir a coisa julgada não pareça ser razoável mantê-la, em vez de enfrentar a questão da ruptura da coisa julgada, optam pela ampliação ou adaptação de outros conceitos, mediante formulações destinadas a sustentar que não haveria a coisa julgada.
De qualquer modo, o exame cioso da temática deve se realizar a luz da Constituição, portanto não é possível a adoção de critérios meramente estruturais. E a problemática não tem como ser reduzida à mera questão de compatibilidade hierárquico-normativa, nos moldes usualmente adotados para a lei e o ato administrativo.
Indispensável verificar os valores constitucionais envolvidos, e que a proporcionalidade não venha a ser fundamento adicional, um argumento de reforço, em favor da relativização da coisa julgada.
Cumpre igualmente investigar se tal balanceamento de valores fundamentais para a relativização da coisa julgada é exclusivo encargo do legislador ou, também, deve ser atribuída ao órgão jurisdicional. Cabendo também ao julgador definir a possibilidade de ruptura da coisa julgada e ainda, a identificação do instrumento processual pelo qual isso deve ser feito.
Genaro e Alejandro Carrió são doutrinadores argentinos que escrevem em 1983 a obra intitulada “El recurso extraordinário por sentencia arbitraria – Em la jurisprudência da La Corte Suprema” editada em Buenos Aires em dois volumes.
Desses doutrinadores destacamos algumas afirmações, no intuito de demonstrar a quebra do paradigma, com base em teorias científicas, esmaecendo o mito do absolutismo da sentença transitada em julgado, quando diretamente, oposta aos postulados, princípios e regras constitucionais, ou na afirmação contida na obra citada “sentença arbitrária”.
Carrió et Carrió se preocuparam com a noção de sentença arbitrária conforme in verbis por tradução livre: “No capítulo II tratamos de distinguir entre o âmbito de aplicação excepcional deste”. Esse último gira em torno da noção de sentença arbitrária. E nesse mesmo capítulo procurados dar certo enquadramento normativo ao recurso extraordinário[13] por sentença arbitrária. Este é o remédio federal da Lei 48, art. 14, quando opera em seu âmbito de aplicação excepcional. O enquadramento normativo mais plausível, segundo a formulação da Corte, esta é a garantia da defesa em juízo (devido processo legal adjetivo).
Uma sentença arbitrária não satisfaz aos requisitos do devido processo adjetivo porque não é verdade que seja uma sentença nos termos da Constituição. Isto nos é permitido ver (capítulo III) que o que realmente faz a Corte quando utiliza como ferramenta da noção de sentença arbitrária e valendo-se desta, opera com o recurso extraordinário dentro do âmbito excepcional deste, é desqualificar pronunciamentos e decisões que venham rotulados como sentenças. “Os desqualifica como tais, porque o juízo da Corte reconhece que não chega a ser sentenças em termos que satisfazem os reclamos da Constituição Nacional.”
Assim existem sentenças que têm sido desqualificadas por serem arbitrárias em razão de: omitirem a consideração e resolução de certas questões oportunamente propostas; ou resolvem questões não pleiteadas; foram ditadas por juízes que ao fazê-lo, se arrogam o papel de legisladores e não se sentem limitados pela ordem jurídica; prescindem do texto legal sem dar razão plausível alguma; aplicam preceitos derrogados ou não vigentes dão como fundamento pautas de excessiva amplitude na substituição de normas positivas diretamente aplicáveis.
Ainda se definem por arbitrárias por: prescindirem de prova decisiva; o invocam prova inexistente; contradizem abertamente outras circunstâncias dos autos; ao estabelecimento do fundamento normativo do fundamento do feito, ao trânsito deles até a conclusão.
Definem-se como arbitrárias as sentenças onde haja afirmações dogmáticas que só constituem um fundamento aparente; incorrem em excessos formalistas em seus rituais; são autocontraditórias e pretendem deixar sem efeito decisões anteriores firmadas.
Em verdade as sentenças inconstitucionais são transitam em julgado, porque foram proferidas em processos instaurados por meio de mero exercício de direito de petição e não de direito de ação já que não existia a possibilidade jurídica do pedido.
Alguns doutrinadores aludem sobre a sentença proferida com base na lei que posteriormente sofreu a ação declaratória de inconstitucionalidade julgada procedente, também examinam a sentença baseada na “não-incidência” de determinada norma posto que considerada inconstitucional incidenter tantum, e sentença posterior de procedência de ação declaratória de constitucionalidade e os embargos à execução com base na inconstitucionalidade[14] da lei em que se baseia a sentença exequenda.
Teresa Arruda Alvim Wambier[15] e José Miguel Medina destacaram que o CPC não pode ser encarado como um sistema devido a sofrer profunda reforma e cujas feições definitivas ainda não se completaram, até porque a doutrina e a jurisprudência não amadureceram o suficiente.
Multiplicaram-se as zonas de penumbra e na velocidade da justa proporção referente à quantidade de alterações que foram sendo introduzidas ao texto da lei processual.
Dessa forma, é inconcebível a insistência em manter o raciocínio exclusivamente pelo método clássico de lógica. Uma das conclusões a que se chegou é a existência de um grupo de sentenças que seriam juridicamente inexistentes posto que padeçam de grave defeito intrínseco, que as desfigura como sentença, e maculam sua natureza, ou ainda, porque herdaram certos vícios processuais em que foram prolatadas (como por exemplo, a ausência de citação do réu, ou de um dos réus no caso de litisconsórcio necessário).
Felizmente boa parte da doutrina qualificada e boa parcela da jurisprudência tais sentenças não possuem aptidão para transitar em julgado e, portanto, não devem ser o objeto de ação rescisória, principalmente por estar ausente um dos principais pressupostos de cabimento da rescisória que consiste na sentença de mérito transitada em julgado.
De sorte que é pertinente a ação em rito ordinário, cuja propositura não se sujeita a limitação temporal. Flávia Sapucahy apud Delgado concluiu que as nulidades se perpetuam na sentença com o advento da coisa julgada em seu bojo. Porém, existem nulidades tão graves que não podem sobreviver no ordenamento jurídico, e são insanáveis, quanto menos perpetrar no mundo dos fatos, por essa razão, podem ser a qualquer tempo alegadas.
Seguir exatamente as regras constitucionais significa buscar sempre a verdade real e o direito justo sobre as formas processuais e preclusões.
Deve a concepção contemporânea de direito justo alterar o dogma da coisa julgada[16], por vezes ampliando excepcionalmente, em casos específicos evitando o uso do recurso extraordinário e especial.
Deve-se ter tolerância no sentido do juiz de primeiro grau examinar a ação de querela nulitatis em sua competência. Deseja-se evitar os inúmeros recursos e, a jurisprudência brasileira entende acertadamente pelo sentido excepcional da relativização da coisa julgada.
Contudo, se a nulidade for arguida no momento devido, nada discutiríamos a respeito da relativização da coisa julgada. A verdade que o ideal é que o poder judiciário trabalhasse de maneira que as nulidades não ocorressem.
Fausto França Junior em seu artigo intitulado chamado “A coisa julgada inconstitucional e seu controle por meio de ADPF” para atacar a coisa julgada inconstitucional, aponta as seguintes conclusões: a verdade é que a coisa julgada formada em contrariedade à Constituição não cumpre sua função, não gerando pacificação social gerando também revolta e desprestígio ao Judiciário.
E, data venia, o valor da segurança jurídica e a consequente força que põe fim ao litígio e não podem credenciar eternas injustiças e, ainda ferir o princípio da isonomia, entre outros.
Os primeiros mestres que enfrentaram a espinhosa temática refutaram a invocação da segurança jurídica, entre estes está José Augusto Delgado[17] quando leciona que a injustiça, a imoralidade, o ataque à Constituição, a transformação da realidade das coisas quando presentes na sentença viciam a vontade jurisdicional de modo absoluto, pelo que, em época alguma, ela transita em julgado, os valores absolutos como o da legalidade, moralidade e justiça estão acima do valor da segurança jurídica.
Aqueles são pilares, entre outros que sustentam o regime democrático de natureza constitucional, enquanto este é valor infraconstitucional oriundo naturalmente do regramento processual.
Porém, convém não defender o indiscriminado uso das ADPFs contra as sentenças transitadas em julgado vista como uma última impugnação ou mero recurso a mais. Conclui-se que a coisa julgada portando o vício da inconstitucionalidade é excepcional e surge em situações pontuais.
E, tal caráter extraordinário é identificado por doutrinadores de peso como Cândido Rangel Dinamarco que confirma o teor do art. 102, primeiro parágrafo da CF/1988 a utilização da APDF como meio hábil de desconstituição de coisa julgada violar preceito fundamental.
A teoria do processo assim como todo o direito público vem sofrendo rupturas paradigmáticas o que foi esmaecendo as rígidas e tradicionais concepções dando azo a certa flexibilização[18] nas formalidades com o objetivo de dar maior efetividade ao pronunciamento judicial.
A crescente constitucionalização do processo[19] confirma que o sistema infraconstitucional deve obediência ao teor da Magna Lei, ratificando não só sua supremacia e também sua supralegalidade bem peculiar aos sistemas escritos e, que justifica plenamente o controle de constitucionalidade.
Lembremos que a coisa julgada representa um dos três pilares da segurança jurídica conforme previsão do art. 5º, inciso XXXVI e ainda a LICC, ou seja, o Decreto-Lei 4.657/42[20].
Na LICC em seu art. 1º, caput determina que “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada”. Enquanto que no seu art. 6º caput ainda prevê: “a lei em vigor terá efeito imediato e geral respeitados o ato jurídico perfeito, o adquirido e a coisa julgada”.
No seu primeiro parágrafo prescreve que se reputa ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo que se efetuou, sendo que no segundo parágrafo consta: “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável a arbítrio de outrem”.
E, finalmente, chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não cabe recurso (terceiro parágrafo) e o CPC endossa em seu art. 467 que se denomina “coisa julgada material[21] a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
O Código de Processo Penal apesar de não conceituar propriamente a coisa julgada, se refere ao instituto ao disciplinar as exceções em seus arts. 95, inciso V e art. 110 e segundo parágrafo.
Somente poderá tal exceção ser oposta em relação ao fato principal que tiver sido objeto da sentença.
Não podemos olvidar a lição de Dinamarco[22] em seu artigo “relativizar a coisa julgada material” no qual depois de propor dois alicerces, a saber:
a) que essa garantia não pode ir além dos efeitos a serem imunizados;
b) que ela deve ser posta em equilíbrio com as demais garantias constitucionais e com os institutos conducentes à produção de resultados justos mediante as atividades inerentes ao processo civil.
Sem dúvida, o mais elevado grau de estabilidade dos atos estatais é representado pela coisa julgada, que a doutrina define com imutabilidade da sentença e seus efeitos, com a vigorosa negação de que esta seja mais um dos efeitos da sentença (Liebman).
Em verdade, não existem dois institutos diferentes ou autônomos, representados pela coisa julgada formal[23] e pela material, referem-se aos dois aspectos do mesmo fenômeno de imutabilidade, ambos responsáveis pela segurança nas relações jurídicas, revelando finalmente que a imutabilidade é uma figura de duas faces e não dois institutos distintos.
A coisa julgada material significa a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito, e tal status transcende a vida do processo e atinge a vida das pessoas, já a intangibilidade das situações criadas ou declaradas, de modo que nada poderá ser feito por estas próprias, nem por outro julgador, nem pelo próprio legislador, que venha a contrariar o que houver sido decidido (Liebman).
Não se trata de imunizar a sentença como ato do processo, mas os efeitos que esta projetou para fora deste e atingem as pessoas em suas relações, e daí a grande relevância social do instituto da coisa julgada material, que a Constituição assegura (art. 5º, inciso XXXVI) e a no CPC no art. 467 e ss.
Com essa missão e tal efeito, a coisa julgada material não é instituto confinado somente ao direito processual. Esta tem um significado político-institucional de assegurar a firmeza das situações jurídicas, tanto que se constitui como garantia constitucional.
É necessário um posicionamento da doutrina e também da jurisprudência, sobre o instituto da coisa julgada, quando viola a Constituição, em face da perplexidade que provoca a diversidade de julgados contraditórios, especialmente quando há, entre estes, uma afronta a Constituição.
De fato, concluiu a jurisprudência brasileira que a ação rescisória não é remédio suficiente e adequado para corrigir a decisão tida como inconstitucional, depois do trânsito em julgado. Devendo tal sentença afrontosa ser considerada inexistente, em face de sua incoerência com o ordenamento jurídico vigente.
A forma de correção, mesmo sem a necessidade de reforma do CPC ou da Constituição, seria aceitar a rescisória[24] com fundamento da inconstitucionalidade do julgado e sem prazo de decadência, ou a forma mais prática e eficaz da ação declaratória de inexistência da coisa julgada inconstitucional, que poderia ser proposta em primeiro grau, ressalvando apenas os casos de competência originária dos tribunais. No entanto, a visão deve ser outra, pois não se pode aplicar o mesmo tratamento ao caso julgado que se coaduna com o texto constitucional, com a outra coisa julgada que é inconstitucional.
Os procedimentos são construídos a partir da combinação das diversas técnicas de cognição e que a coisa julgada material possui, como requisitos fundamentais para sua ocorrência: natureza jurisdicional do provimento, cognição exauriente, análise de mérito e a preclusão máxima (correspondente à coisa julgada formal)[25].
A coisa julgada comum caracteriza-se pela limitação inter partes de seus efeitos, pela inevitabilidade e por ser pro et contra. Assim as demandas coletivas possuem peculiar produção de coisa julgada material, sendo pro et contra, secundum eventum probationis, erga omens e com a possibilidade de extensão, in ulibus e secundum eventum litis, pela ampliação ope legis do objeto do processo, dos efeitos da decisão, nas demandas coletivas em ações civis públicas, para as causas individuais.
Especial destaque merece coisa julgada material nas demandas de paternidade[26] é o comum, apesar da existência do exame genético de DNA. Sendo possível, no entanto, a rescisão de julgado, em demanda investigatória ou negatória, que se não tenha valido o exame genético pericial, com fundamento em violação a literal disposição de lei, ou prova falsa. Não é possível a rescisão com base em documento novo.
Portanto, indispensável, de lege ferenda, que se imponha às demandas investigatórias o regime da coisa julgada secundum eventum probationis, como homenagem ao princípio da adequação.
Tanto o devido processo legal como o princípio da instrumentalidade das formas não podem ser vistos em si mesmos. Por isso o intérprete na qualidade de operador do direito a quem compete crítica visão e sistêmica, é chamado constantemente a exercer a sua sensibilidade ao valor do justo, do constitucional e do socialmente legítimo.
Salienta Dinamarco que os princípios devem conviver harmoniosamente na ordem constitucional e processual na busca de soluções equilibradas.
Há relevantes conclusões sobre a coisa julgada pois sendo princípio, pode ser relativizado quando em confronto com outro princípio constitucional de maior ou igual valor no caso concreto apresentado; apontou que o conceito contido no art. 467 do CPC correspondente ao de coisa julgada formal[27]; enquanto que a coisa julgada material é conceito dado pela doutrina.
Não há a irrestrita e ampla liberdade sobre o conteúdo da coisa julgada e consequentemente, os modos de sua desconstituição sem que seja adequadamente preservado o núcleo constitucional mínimo do instituto; os relativistas entendem que o valor da justiça deve sempre prevalecer mesmo em face ou em prejuízo do valor da segurança[28];
Parte da doutrina reage contra o referido entendimento argumentando que se trata de falso silogismo e que, aquilo que se pretende ser a exceção inevitavelmente se tornará a regra, tornando ainda mais ineficaz a tutela jurisdicional prestada; não se pode admitir rescisória extemporânea, ou seja, fora do prazo legal de dois anos mesmo que fundada em inconstitucionalidade superveniente do julgado;
A ação rescisória fundada na inconstitucionalidade superveniente do julgado deverá ter como um de seus fundamentos a alegação de inaplicabilidade da Súmula 343 do STF[29] em matéria constitucional.
Entende ainda a doutrinadora que após o prazo da ação rescisória, serão cabíveis embargos à execução bem como ação declaratória de ineficácia (que é distinto de invalidade) do título judicial. Conclui advertindo que a relativização da coisa julgada evidencia tendência contemporânea irreversível de aproximar o direito processual do direito material, numa visível revisitação dos institutos processuais, movimento advindo das chamas “ondas renovatórias do direito processual”.
Sob o prisma mais científico deve ser repensado o art. 485 do CPC de maneira a harmonizá-lo com novos paradigmas processuais caracterizados, notadamente pela economia, celeridade e efetividade da tutela jurídica processual jurisdicional a ser prestada pelo Estado-Juiz.
Pela concepção de Paulo Otero[30], prestigiado doutrinador português em sua obra “Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional”, faz distinção entre a inexistência e inconstitucionalidade das decisões judiciais, centrando-se no alargamento do princípio a toda atividade do Poder Público, estabelecendo tipologias dos casos e da espécie, tipificando dentre as situações arroladas as principais modalidades de inconstitucionalidade do caso julgado, dando especial destaque a decisão cujo conteúdo viole direta ou indiretamente um preceito ou um princípio constitucional.
Portanto defende a destruição do caso julgado desconforme com a Constituição. Prevalecendo a regra do caráter relativo da coisa julgada, sem desfigurar a segurança e a certeza da ordem jurídica.
O ilustre Dinamarco[31] desenvolve a sistemática e usando critérios objetivos ao apontar a prevalência de certos valores garantidos constitucionalmente “tanto quanto a coisa julgada, os quais devem prevalecer mesmo com algum prejuízo para a segurança das relações jurídico”.
O estudo da coisa julgada delinquente na dicção de Eduardo Couture que se preocupava com a repercussão de fraude nas situações jurídicas das pessoas, ainda mais quando os resultados dessa fraude estivessem reforçados pela autoridade da coisa julgada.
II – Desenvolvimento
Ao consagrar a fraude dá-se o máximo desprestígio ao Direito, nega-se a justiça fere-se a carta da cidadania, e rompe-se com a legalidade peculiar do Estado Democrático de Direito.
Dinamarco enfatizou os precedentes jurisprudenciais, ressaltando que eram casos em que se questionavam indenizações a serem pagas pelo Estado, notando-se até uma preocupação unilateral pela integridade dos cofres públicos.
Mas a temática ora em exame é mais ampla posto que a fragilização crescente da coisa julgada[32] tornando-a susceptível de ocorrer em qualquer área das relações humanas que são trazidas à apreciação do Poder Judiciário. Onde quer que se tenha uma decisão aberrante aos valores, princípios, garantias ou normas superiores, nascerão, ipso facto, os efeitos juridicamente impossíveis e, não incidirá a autoridade da coisa julgada porque não se imuniza o que agride a ordem jurídico-constitucional.
A ação proposta por Piero Calamandrei que é adequada contra a sentença nula será a ação declaratória negativa de certeza, mediante a qual sem implicar em modificação no mundo jurídico, declarar-se-á o caráter negativo do conteúdo sentencial até o momento de sua concepção.
Deve ser repensado o princípio da imutabilidade da sentença a fim de não se eternizar injustiças. Os princípios que fundamentam a coisa julgada não são suficientes para mantê-la imutável, pois foi a Lei Maior que restou violada. Se fosse possível conceber esse anacronismo comprometer-se-ia todo sistema jurídico. A sentença passada em julgado é relevante e merece ser prestigiada, porém tornar-se vulnerável à própria atividade do Poder Judiciário.
Assim, para que se cogite na tutela da intangibilidade da coisa julgada e, por conseguinte, na sua sujeição a um regime excepcional de impugnação, sendo indispensável que se verifique sua adequação à Constituição.
Há de se lembrar do ensino de Paulo Otero que o princípio da imodificabilidade do caso julgado fora criado em razão das decisões judiciais conformes com o Direito, ou as meramente injustas ou ilegais em relação à legalidade ordinária.
A imodificabilidade da coisa julgada apenas pode concorrer em pé de igualdade com o princípio da constitucionalidade dos atos jurídico-públicos quando essa imutabilidade ou insindicabilidade seja consagrada constitucionalmente.
Em todas as restantes, o princípio da imodificabilidade do caso julgado não tem força suficiente para limitar ou condicionar o princípio da constitucionalidade das decisões judiciais.
Existem vários autores que esquadrinham novas configurações jurídicas[33] da coisa julgada inconstitucional ou quando proveniente de sentenças arbitrárias, nulas ou inexistentes.
Apesar do crescimento dessa corrente, há de ser examinado, o posicionamento daqueles que insistem em, por aplicação do princípio de segurança jurídica, defender a imutabilidade, em qualquer situação, da coisa julgada absoluta (a que não pode mais ser atacada pela via da ação rescisória).
É grande a intensidade da doutrina em enfocar, na época contemporânea, a coisa julgada apresentando alguns principais enunciados:
a) O momento atual em que vivemos caracteriza-se pela incerteza;
b) Notabiliza-se devido à ampla e compulsiva revisão, principalmente em razão da nova configuração das relações jurídicas na sociedade contemporânea;
c) A modernidade faz com que o que seja sólida desmanche no ar[34] (essa frase é atribuída a Karl Marx);
d) O cenário cultural da contemporaneidade é repleto de mudanças, não sendo surpresa que venha a coisa julgada antes sagrada nos primórdios da modernidade entrar em declínio (que também é fenômeno característico do mundo moderno) vindo assim melhor se adequar aos propósitos da modernidade, da moralidade, da justiça, da dignidade da pessoa humana e da valorização da cidadania.
Reconheçamos que o dogma da coisa julgada serviu para dar a segurança jurídica e ser a âncora que possibilitou a construção do mundo industrial.
A fase contemporânea cada vez mais se revela em ser a da eterna mudança (Immanuel Allerstein) sob o império do racionalismo.
A contradição existente entre a exigência de segurança jurídica e a sua respectiva eliminação pela redução da coisa julgada deve ser ponderada.
É temerosa relativização da coisa julgada posto que tal posicionamento acabaria de vez com a res judicata. Não é o ideal da modernidade, desejar a desconsideração da coisa julgada por ser a sentença injusta. Por outro lado, exigir que a coisa julgada não se confronte com algum princípio constitucional ou com princípios de grau inferior é submetê-la a uma premissa impossível a ser observada.
Na doutrina europeia considera que a coisa julgada é o efeito, ou como quer Liebman a qualidade que se agrega à declaração contida na sentença, libertando os demais efeitos da imutabilidade que pretendera atribuir-lhes, o que permite, por exemplo, se aceitar a modificação da decisão que homologue a atualização do cálculo, na fase de execução da sentença, por não se ter a ofensa à coisa julgada.
Há necessidade, portanto, de ser ampliado o debate para revisar o sistema de proteção à estabilidade dos julgados, como uma congruência determinada pela crise paradigmática.
Já Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria[35] apontam que as nulidades conforme observou Liebman pode suprir-se ou sanar-se no decorrer do processo, e normalmente não são mais sanáveis se a sentença passou em julgado. Ratificando que a coisa julgada é a sanatória dos vícios do processo.
Há, contudo, vícios maiores e essenciais que sobrevivem mesmo à coisa julgada, atingindo a eficácia de seus efeitos. Havendo o vício da inconstitucionalidade, a coisa julgada é coisa vã, carente de efeitos no mundo jurídico.
Dá-se o que a doutrina denomina nulidade ipso iure, o que impede que a sentença passe em julgado, podendo a todo tempo se opor contra esta. Qualquer sistema processual contemporâneo por maior prestígio que tenha a coisa julgada é impossível recusar a possibilidade de superveniência de sentenças substancialmente nulas, mesmo depois de esgotada a viabilidade recursal ordinária e extraordinária.
Calamandrei destacou a verdade é que nenhuma legislação, nem as dominadas pelo princípio germânico da validade formal da sentença, nem tampouco as modernamente inspiradas na aceleração do término das lides e em alcançar com maior rapidez a certeza sobre fato podem sustentar-se as leves da razão e lógica; e obediência a estas, deve a ciência admitir, embora se a medida mais restringida que depois da preclusão dos meios de impugnação, subsistam sentenças afetadas por nulidade insanável.
Ovídio A. Baptista da Silva foi levado a concluir que a virtude sanatória dos recursos e da coisa julgada não credenciaria, por exemplo, tornar uma sentença contendo dispositivo impossível ou incerto, isenta de tal nulidade, de tal forma tornar-se indispensável o cabimento de ulterior ação ordinária de natureza declaratória, não sujeita a nenhum prazo, mesmo sendo vício ventilado no tema de recurso, não impedirá o recurso da ação de nulidade em qualquer tempo.
De fato, segundo pacífica orientação em sede doutrinária, a parte prejudicada pela sentença nula ipso iure ou inexistente, para se furtar aos seus devidos efeitos, não precisa usar a via especial da ação rescisória.
Para tanto poderá: opor embargos quando a parte vencedora intentar a execução da sentença; ou propor qualquer ação comum tendente a reexaminar a mesma relação jurídica litigiosa, inclusive uma ação declaratória ordinária, como sobrevivência da antiga querella nullitatis.
Apesar de não defender o uso da rescisão para obter o reconhecimento do vício sério (nulidade) que contamina a decisão judicial[36], força é lembrar que não será correto omitir-se o tribunal de apreciar a questão, caso a parte lance mão da ação rescisória.
As nulidades podem ser declaradas incidentalmente em qualquer juízo ou grau de jurisdição, e até mesmo de ofício.
Chiovenda ao esclarecer sobre as sentenças constitutivas apontou que o objeto que passa em julgado não é o ato do juiz enquanto produz novo estado jurídico, mas enquanto afirma ou nega a vontade da lei, de que o novo estado se produza.
Com maior clareza explicou Pontes de Miranda que indicou o que há de entender por eficácia da coisa julgada material é a eficácia que o elemento declarativo da sentença produz, ou seja, a chamada força preponderante, ou efeito se junta à força específica da sentença.
Consiste a coisa julgada em vincular as partes, os litigantes à declaração. Consagra-se a coisa julgada como fenômeno típico e exclusivo da atividade jurisdicional, fazendo a lei no caso concreto.
Somente um novo ordenamento constitucional pode abalar o recrudescimento decorrente da coisa julgada. Possui um efeito negativo da coisa julgada, pois impede que o tema já decidido e que produziu coisa julgada venha novamente ser debatido; e opera também um efeito positivo posto que vinculasse os juízes de causas subsequentes à declaração proferida e transitada em julgado, no processo anterior.
A declaração judicial apta a receber a qualidade de coisa julgada material precisa ter a intensidade para se tornar definitiva. As decisões fundadas na provisoriedade como nas ações cautelares onde a cognição é sumária, ou rarefeita (conforme ocorre na jurisdição voluntária, ou no processo de execução) não são aptas a gerar a coisa julgada pois em sua essência não é definitiva.
A imutabilidade apenas se manifestará entre as mesmas partes perante as quais a declaração foi obtida e enquanto permanecem intactas e intocadas as circunstâncias fáticas e jurídicas o que caracteriza o mesmo caso concreto.
De forma que a objeção da coisa julgada veda que o órgão jurisdicional decida novamente alguma ação já julgada. E corrobora esse sentido o art. 301, terceiro parágrafo do CPC vigente: “Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recursos”.
A identidade da ação julgada se apura conforme o art. 301, segundo parágrafo do CPC (mesmas partes, mesmo pedido e mesma causa de pedir), é portanto, uma tríplice identidade (de sujeitos, de pedidos e da causa de pedir) na qual se define a extensão do caso julgado.
A imutabilidade protege a parte dispositiva da sentença (art. 469 do CPC) não é capaz de escudar a declaração ali constante contra qualquer espécie de declaração contrastante.
Convém recordar que a causa de pedir é o fato ou ato que resulta direta ou indiretamente o direito ou a obrigação que constitui o objeto da ação ou exceção. Enfim, a causa de pedir é o bastante fundamento para obtenção do resultado (efeito jurídico) pretendido a título do pedido na ação judicial perpetrada.
A dicção magistral do Regulamento 737 apontava que a petição inicial deveria conter “o contrato, a transação, ou fato dos quais resultar, segundo o Código, o direito do autor e a obrigação do réu” (art. 66, segundo parágrafo)[37].
A formação e individualização de uma causa de pedir residem precisamente na unção de pressupostos necessários e suficientes para ensejar certo efeito jurídico, que será exatamente o pedido formulado pelo autor na peça exordial.
Eventualmente pode haver diversos grupos de fatos jurídicos que permitam a realização do mesmo efeito jurídico; cada grupo de fatos deverá ser considerado como causa de pedir autônoma, capaz individualizar uma ação isolada.
Nesse caso, ainda que o pedido seja um só, a existência de pluralidade de causas de pedir revelará a possibilidade também de pluralidade de ações.
Resta evidente que a alteração completa da causa de pedir importa em nova ação, infensa a influência do resultado (e da imutabilidade decorrente) do primeiro julgamento.
A causa de pedir é um todo integrado por seus dois elementos e qualquer alteração de um destes elementos, importa na alteração da própria causa de pedir, gerando ipso facto, nova ação.
Fica evidente que a causa de pedir se alterada, implica em nova demanda e seu respectivo fundamento relativo aos fatos absolutamente desvinculados dos que foram alegados na primeira ação; portanto modificações fáticas induzem a um fundamento distinto.
A extensão objetiva da coisa julgada reporta-se à parte dispositiva da sentença, tornando imutável o seu efeito declaratório. Frise-se que mesmo a mera alteração de parcela da causa de pedir (ou seja, de um de seus elementos) importa em outra ação, uma vez que daí surgirá uma modificação evidente de causa de pedir, e por consequência da ação.
Como a fixação da lei do caso concreto que é a coisa julgada, somente se manifesta em relação às sentenças definitivas (que examinam diretamente o pedido do autor seja para acolher ou rejeitar).
É fato notório que não produzem coisa julgada material sobre as sentenças meramente terminativas, nem sobre as sentenças homologatórias (vide art. 269, II, III e V do CPC).
A imutabilidade referente à sentença homologatória em verdade consiste em ato jurídico perfeito homologado (seja renúncia, transação e, etc). É o ato jurídico perfeito que a sentença reconhece e opera sua chancela de estabilidade com status inclusive constitucional, idêntico à coisa julgada e, capaz por essa razão operar os mesmos efeitos no mundo das relações sociais.
Registre-se que não somente se opera a coisa julgada sobre o efeito declaratório da sentença, ou somente as sentenças proferidas em ação declaratória.
Também as sentenças condenatórias, constitutivas, executivas e mandamentais possuem carga declaratória em si, mesmo porque fixam cada qual, uma lei para o caso concreto. O mesmo se aplica à sentença de improcedência, já que também estas declaram a vontade do direito em face do caso concreto.
A coisa julgada é capaz de reger especificamente a situação deduzida em juízo, e sua imutabilidade atinge as duas partes originárias conforme o art. 472 do CPC preconiza que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando e nem beneficiando terceiros.
Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados a sentença produz efeito de coisa julgada em relação a terceiros.
Portanto, em princípio, tomando-se a regra geral, tem-se que somente as partes (e seus sucessores, por dedução lógica) ficam acobertadas pela coisa julgada.
A conotação mágica da norma fundamental faz admitir que nesta o ordenamento jurídico se unifica, e que nela o sistema se identifica e, obtém coerência e sem a qual se esfacelaria inevitavelmente.
Na matriz disciplina processual onde o processo civil é visto pelos doutrinadores como notável protagonista, e pregam sempre a prevalência da norma fundamental sobre todas as demais, preocupados com a produção das leis (pelo Legislativo) e a atividade administrativa, quando pouca atenção se devotava a coisa julgada inconstitucional pois era tida como dogma sagrado, que consolidava o julgamento judiciário e, somente se admitia a rescisão mediante casos específicos, poderia ser revisitada.
Fora das taxativas hipóteses legais da rescisão, não havia força jurídica capaz de desfazer, alterar ou desconstituir aquela situação.
Em sua origem, a sagrada coisa julgada residia na crença que como esta passara por um longo percurso de discussão, análise e debate, na sua formação com as plúrimas oportunidades, a coisa julgada era resultante de várias etapas vencidas, e, portanto, merecia ficar imune aos futuros questionamentos.
Não havia inicialmente a preocupação pelo menos de forma expressa com a correção e o erro, a justiça, ou mesmo, a injustiça da decisão judicial, nem mesmo a sua adequação ou inadequação com os ditames e espíritos contidos na Constituição Federal vigente posto que tais aspectos fossem superados precisamente no iter de sua formação.
Desta forma, não se reverenciava o controle de constitucionalidade da decisão trânsita em julgado, sendo raríssimos os casos de discussão da eventual incompatibilidade de decisões judiciais consolidadas com a Carta Magna, ou não ser, evidentemente, como argumento (poderoso) durante o trâmite de ações e, excepcionalmente, por meio de rescisória.
Mas a existência de coisa julgada inconstitucional é antiga tanto que já era abordada pelo doutrinador português Paulo Otero[38] que fez uma monografia de grande prestígio (“O ensaio sobre o caso julgado inconstitucional”, Lisboa: Lex, 1993) onde lançou gritantes questionamentos sobre a prevalência dos preceitos constitucionais diante das decisões judiciais da Carta Política, propugnando que pelas prescrições e, anotando que as questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram totalmente esquecidas.
Inaceitável a mera recusa de discutir a coisa julgada[39] sob a superficial alegação de que esta faz do preto branco, e do círculo um quadrado, posto que a supremacia da Constituição precise ser afirmada e reafirmada, mesmo quando a infração decorra de um pronunciamento judicial consolidado.
Enfaticamente é necessário o reexame do problema de forma mais vertical que possível, pois a coisa julgada serve para assegurar ad futurum (e, ainda que de forma ilimitada) a força vinculante de uma solução jurisdicional dada em certa relação litigiosa concreta, desde que consagrada como definitiva, sem a possível revisão por via recursal ou mesmo rescisória.
Promovida como dogma, a coisa julgada para a religião processual (muito apegada à ritualística das formas) como bem diziam os juristas romanos: res judicata sacra est.
Lembremos que o fundamento deste axioma era a premente necessidade de estabilização das relações sociais e da pacificação dos conflitos, por via jurisdicional, garantindo ao litigante vitorioso na demanda a certeza da imutabilidade da sua vitória, em todo tempo do futuro assim lhe proporcionando a tão sonhada segurança jurídica que representa o grande pilar férreo que sustenta a coisa julgada.
O moderno cenário da coisa julgada bem como a discussão de seus significados remonta aos eruditos estudos de Savigny (1779-1861) que no século dezenove já demonstrava que a exceptio rei judicata do Direito Romano não possuía somente o efeito negativo de impedir a repropositura de ação idêntica a uma anterior já julgada por isso que se tutelava desde priscas eras, o próprio conteúdo do julgado calcada no aforismo res judicata pro veritate habentur, isto é, valia eficazmente contra todos (erga omnes) embora se deixando suspensa a questão de ser a sentença uma proposição lógica, ou um ato de vontade ( questão que perpetua-se em aberto em doutrina).
Com as posteriores contribuições de Carnelutti e Liebman que tiveram grande influência na conformação do sistema processual civil brasileiro com as doutrinas jurídicas reexplicativas da coisa julgada, algumas destas, atuando poderosamente na formação dos Códigos de Processo tanto na Itália como no Brasil, até o ousado advento contra a sacralidade da coisa julgada abalando sua intangibilidade e agregando fragilidades que redundaram enfim na relativização da coisa julgada que angariou adeptos e críticos ilustres nos mais refinados ambientes acadêmicos.
Entre os principais autores nacionais destacam-se o professor Celso Neves (1913-2006) que dedicou à res judicata uma monografia que se tornou referência “Coisa Julgada Cível” (São Paulo: RT, 1971) onde explicou os fundamentos históricos e sociológicos os seus aspectos culturais e a sua necessidade na função estabilizadora do Direito.
De igual forma, Egas Dirceu Moniz de Aragão estudou a fundo a coisa julgada produzindo a obra intitulada “Sentença e Coisa Julgada” (São Paulo: Editora Aide, 1992). Também o professor Ignácio Botelho de Mesquita foi incansável defensor das virtudes do processo civil, elaborando fecundo trabalho intitulado “A coisa julgada” (São Paulo: Editora Forense, 2006) criticando veementemente a estação de caça à coisa julgada, o derradeiro bastião em defesa das liberdades civis contra as arbitrariedades do Estado no exercício da função jurisdicional.
Os professores José Miguel Garcia Medina e Teresa Alvim Wambier também se ocuparam do tema produzindo obra sob o título “O Dogma da Coisa Julgada” (São Paulo: RT, 2003) registrando a pertinência que em passado recente a intangibilidade da coisa julgada se revestia de uma mística auréola de santidade.
O percurso histórico-evolutivo da coisa julgada em sua absolutista concepção (e consequente mistificação) trouxeram a indiscutibilidade e imutabilidade da res judicata, oriunda da respeitável tradição romana que a declamava sua eficácia em verso e em prosa.
Mas mesmo antes da portentosa expansão do império romano já se cogitava na existência da coisa julgada, e tal concepção fora recepcionada pelos sistemas jurídicos oriundos do jus romanorum e depois passaram para o fragmentário direito medieval da Europa continental conforme aduziu o historiador John Glissen.
A coisa julgada romana, mais propriamente, res judicata já se fundava em costumes e tradições e teve sua inicial recepção de forma acidental que se tornou constante e duradoura.
Cabendo fazer alusão a família jurídica chamada de common law que já em pleno século XIII contava em controle da prepotência dos príncipes. A superação da coisa julgada não surpreende se analisarmos a superação do consensualismo contratual e da autonomia da vontade reconhecidos por muito tempo como hábeis concepções jurídicas capazes de prover o bem-estar geral e, mesmo realizar a melhor justiça nas relações negociais e, de fato, representaram a pedra fundamental do liberalismo.
Portanto, a flexibilização da coisa julgada coaduna com a progressiva fragilização dos conceitos privatísticos que outrora foram considerados como intocáveis, vindo a redimensionar totalmente a teoria das obrigações principalmente pela doutrina tão mal impressionada com a submissão da pessoa do devedor à tirania do credor.
O direito civil constitucional veio juntamente com o novo direito privado desmistificar a ideia de contrato perfeito que acenava com a doce ficção da equidade existente entre o benefício do contrato e o consentimento do obrigado (devedor).
Para os juristas romanos era irrefutável que a coisa julgada tinha essencialmente significado negativo, ou seja, obstativo da reprodução de uma mesma ação muito embora se tenha procurado colocar função positiva ao vincular a proteção ao direito que fora reconhecido e proclamado na decisão.
Acreditava-se piamente, na época que o decisum criava o direito do caso concreto e, tinha nos limites da lide (portanto, dentro da questão de mérito) a mesma força que tem a lei, conforme positivasse o comando normativo.
Assim o contrato que representava a lei entre as partes, a lei e a decisão judicial transitada em julgado caso evidenciasse afronta aos valores constitucionais como justiça, a equidade ou a própria Constituição deve ser repensado e garantir que não exista sistema de liberdades que erijam direitos individuais olímpicos e absolutos onde possam ser alcançado pela realidade social ou restar a salvo de cotejos de outros direitos e deveres.
A ênfase veio em boa hora do aspecto positivo da res judicata deve-se a Savigny, mas é uma função auxiliar ao efeito negativo, e que tal positividade tida em menor conta pois o efeito impeditivo de repetição de demandas é o impulsiona ainda mais os estudos sobre a coisa julgada.
Sempre houve um superlativo enaltecimento da coisa julgada, atribuindo-lhe força vinculante e definitiva, até mesmo nas famosas Ordenações do Reino que perduraram tanto tempo em vigência no Brasil e traduziram a mais fiel e eloquente exaltação ao instituto que atualmente conta somente com uma previsão constitucional (art. 5º, XXXVI da CF/1988).
O CPC de 1973 de autoria de Alfredo Buzaid veio atribuir as notas de imutabilidade e indiscutibilidade conforme bem consigna o art. 467 concedendo a imunidade quanto ao tempo e aos eventos posteriores.
Mas é impossível esconder que quando a decisão judicial incide sobre relação de trato sucessivo, que se prolonga no tempo, fatalmente encontrarão inumeráveis e imprevisíveis alterações em suas bases fáticas e jurídicas.
O tempo não para e, ri zombeteiro das patranhas humanas que tentam aprisiona-lo, o tempo é o único problema metafísico[40] do homem. De tal sorte que se no cenário das alterações históricas inevitáveis atuando a coisa julgada anterior a estas, questiona-se se a res judicata sobrepairará ao seu poder modificativo, permanecendo sublime diante do império voraz do tempo, poupando-se de sofrer todos os desgastes que atinge inexoravelmente todas as coisas criadas. Pois somente o senhor Tempo, está sempre imune à erosão que carcome todas as coisas e criaturas.
Obviamente a coisa julgada não é mera regra de processo, embora sob a proteção constitucional, sem dúvida, esta representa mais que um simples princípio constitucional.
Sendo indispensável ao discurso jurídico e ao exercício da jurisdição conforme bem esclarece Marinoni em sua obra “Coisa julgada inconstitucional: a retroatividade da decisão de (in) constitucionalidade do STF sobre a coisa julgada: a questão da relativização da coisa julgada” São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
A decisão judicial é elemento final do discurso jurídico realizado pelo Estado-juiz ao desempenhar sua função de tutelar os direitos e, por consequência, as pessoas.
É sabido que todo discurso, (prossegue Marinoni) necessita de regras para desenvolver-se de forma adequada, assim também o processo que permite a formação do convencimento do juiz e o desenvolvimento deste exige a disciplina sobre o tempo, o modo e o conteúdo da participação das partes e do juiz. E, tais regras se preocupam substancialmente com a legitimidade tanto do processo como da jurisdição.
A coisa julgada então representa uma condição para que o discurso seja institucional daí sua limitação no tempo que opera enfim um corte epistemológico necessário ao debate jurídico. Pois do contrário será incapaz de prover a estabilização, não podendo haver um eterno aberto debate e nem mesmo firmar-se em rígido discurso do poder estatal.[41]
III – Conclusão
Desta forma, a coisa julgada antes de ser regra destinada a legitimar o processo tido como discurso jurídico, é igualmente regra crucial à sua própria existência.
O que reforça a tese de que a admissibilidade da retroatividade da decisão de inconstitucionalidade e sobre a coisa julgada, além de contradizer o poder jurisdicional de controle difuso da constitucionalidade, nega a existência do discurso jurídico que somente existe se for capaz de produzir decisão definitiva.
Em verdade, representa a coisa julgada uma regra formal do discurso jurídico, sendo sua fundamentação de cunho pragmático- transcendental. Os conflitos de interesses em sociedade cada vez mais plúrima e complexa o que torna cada vez mais a atividade jurisdicional essencial. Nenhum sistema de direito seja este fulcrado no precedente judicial ou no direito positivo pode ser tão perfeitamente moldado de modo a não deixar quaisquer espaços para as disputas. A lide[42] é pois inexorável.
Para agir corretamente segundo as normas, os homens devem não apenas ter oportunidade de aprender quais as normas, mas devem também ter assegurado, que em caso de disputa, sobre o significado dessas normas, haverá um método disponível para resolvê-las (In Lon Fuller, The morality of law, 2.ed., New Haven, Yale University Press, 1969, p.56-57).
Caso os conflitos, uma vez resolvidos pudessem rediscutidos, ou se a solução judicial fosse negada, de nada adiantaria a jurisdição. Portanto, a discussão judicial trânsita em julgado deve tornar-se imutável e indiscutível.
A decisão produzida no processo não é definitiva apenas porque pôs fim a lide e impedir a reabertura do litígio e do embate, mas sim, por constituir a afirmação estatal.
O enfraquecimento da autoridade da coisa julgada corresponde ao enfraquecimento da autoridade do Estado. Pois a decisão jurisdicional é também protegida contra outros setores estatais e mesmo em face do Executivo e do Legislativo que são impedidos expressamente em prejudica-la.
Sublinhe-se que a imutabilidade da coisa julgada protege a declaração judicial apenas enquanto as circunstâncias (fáticas e jurídicas) da causa permanecem as mesmas, inseridas que estão na causa de pedir da ação.
Sempre que as circunstâncias fáticas ou jurídicas da causa forem alteradas dá azo à composição de nova causa de pedir, ensejando uma nova ação, totalmente diferente da ação anteriormente proposta e decidida. E, por esta razão não afeta a coisa julgada imposta sobre a primeira decisão.
Desponta a coisa julgada como corolário do direito fundamental de ação, ou seja, a tutela jurisdicional efetiva. Assim, o litigante vencedor em razão de seu direito fundamental de ação, tem direito a uma tutela estável e que não possa ser modificada ou rediscutida por ato do próprio Estado.
Frise-se que a decisão dos juízes e tribunais sobre uma questão constitucional jamais poderá ser como se fosse uma lei inconstitucional ou simples aplicação, declaração ou atuação de uma lei inconstitucional ou nula.
No Estado Constitucional, o juiz não tem apenas a mera tarefa de atuar a vontade da lei, conforme ocorria no Estado Legislativo. Cabe-lhe o dever de interpretar a lei na medida da Constituição e de realizar o controle de constitucionalidade no caso concreto.
A coisa julgada como corolário do princípio da segurança jurídica[43] é resguardada expressamente no texto constitucional vigente e deriva diretamente do Estado de Direito. O Estado de Direito é sobreprincípio de ampla latitude e se correlaciona com outros princípios e pode ser analisado sob a dimensão objetiva e subjetiva.
No plano objetivo incide diretamente na ordem objetiva importando na irretroatividade e a previsibilidade dos atos estatais, bem como, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Já no plano subjetivo é o visto pelo prisma dos cidadãos em face dos atos do poder Público, aparecendo o princípio da confiança, que é indissociável à dignidade da pessoa humana.
Em verdade, a coisa julgada material é autêntico signo da tutela da confiança do cidadão nos atos estatais. A decisão de inconstitucionalidade proferida no STF na ação direta de inconstitucionalidade declara a inconstitucionalidade tendo eficácia ex tunc, ou seja, até o momento da edição de lei.
Não possuindo natureza desconstitutiva, mas apenas declaratória posto que reconheça a nulidade da lei. E, a doutrina pátria bastante influenciada pela norte-americana[44] acabou por definir que a inconstitucionalidade[45] equivale à nulidade absoluta da lei ou do ato normativo. O que reforça pela inconsistente existência da coisa julgada inconstitucional.
Chiovenda chegou a mencionar que não pode haver submissão à jurisdição senão onde haver sujeição da lei. Assim a jurisdição revela a vontade da lei e, esta o poder estatal. Inspirado no Iluminismo e nos valores da Revolução Francesa separava radicalmente as funções do legislador e do juiz. Atribuindo a um a criação do direito e a outro a aplicação do direito.
Basta lembrar que no Estado Liberal ao juiz cabia simplesmente aplicar a lei ditada pelo legislador. Sustenta o ministro José Augusto Delgado que a segurança jurídica imposta pela coisa julgada está vinculada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que devem seguir todo ato judicial, e assim, que o intérprete tem o dever de ao se deparar com o conflito entre os princípios da coisa julgada e outros postos na Constituição, averiguar se a solução pela aplicação do superprincípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
A teoria pretende dar solução às questões do DNA e a supervalorização das indenizações na desapropriação mediante a contraposição de normas constitucionais com a coisa julgada, e aponta para o que chamam de superprincípio de proporcionalidade, utilizado como mecanismo de outorgar ao juiz o poder de escolher entre a norma constitucional que se alega violada e a coisa julgada.
Então, conclui Marinoni que a coisa julgada por não fazer parte do conteúdo material do discurso jurídico, não pode ser objeto de balanceamento. E, mesmo que se considere como parte do discurso, e assim passível de ponderação, a mesma já fora realizada pelo legislador, que optou por esta, diante do risco de eventuais injustiças. Em boa hora, o STJ em acórdão relatado pelo Ministro Luiz Fux, que “a rediscussão reiterada de matéria decidida e declarada por sentença transitada em julgado implica a pretensão de consagração da cognominada tese da “relativização da coisa julgada” postulado que se choca com a cláusula pétrea da segurança jurídica, garantia fundamental do jurisdicionado, consagrada em todas as Constituições” (STJ, Resp 671182, 1ª. Turma, relator Min. Luiz Fux, DJ 02.05.2005).
Por fim, se uma coisa julgada se formou (seja injusta ou justa) a sua eficácia há de produzir os efeitos peculiares da sua natureza, e os deverá produzir até que essa aptidão seja estancada por outra coisa julgada, mas desde que formada em sede concentrada, cortando o fluxo da anterior, ou por meio de sua rescisão, contudo, os efeitos já produzidos (que deverão ser obviamente preservados), cessando a eficácia da res judicata somente para o tempo futuro, quando se referir à relação jurídica continuativa.
Informações Sobre os Autores
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
Denise Heuseler
Professora assistente, bacharel em Direito pela UNESA, Pós-Graduada Lato Sensu em Direito Civil, Advogada, Tutora da FGV On-line. Membro do Conselho do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ)