Colaboração premiada: Ato “espontâneo” ou “voluntário” do colaborador?

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Acertadamente, o artigo 41 da Lei 11.343/2006 (Nova
Lei Antidrogas) requer do colaborador que a colaboração premiada se dê em
caráter “voluntário”, em vez de “espontâneo”. No entanto, diversos outros
dispositivos referentes a essa modalidade de cooperação com a Justiça trazem
como requisito a “espontaneidade” do agente revelador das informações, a
exemplo do § 2.º do artigo 25 da Lei 7.492/86, do parágrafo único do artigo 16
da Lei 8.137/90, do artigo 6.º da Lei 9.034/95 e do § 5.º do artigo 1.º da Lei
9.613/98. Assim como a Nova Lei Antidrogas, a Lei 9.807/99, em seus artigos 13
e 14, adjetiva a colaboração premiada de “voluntária”.

Em comentário ao § 2.º do artigo 25 da Lei
7.492/86,[1]
Paulo José da Costa Junior, Maria Elizabeth Queijo e Charles Marcildes Machado
aduzem que se “pressupõe que o agente venha a admitir a prática do crime,
voluntariamente”,[2]
equivalendo espontâneo a voluntário, a exemplo do tratamento
dispensado a esses vocábulos no léxico:

“Espontâneo: [Do lat.
tard. spontaneu.] Adj. 1. Que se origina em sentimento ou
tendência natural, em determinação livre, sem constrangimentos; ex.: aceitar
uma coisa por espontânea vontade. 2. Que se manifesta como que por instinto,
sem premeditação ou desvios; sincero; ex.: criança espontânea; gesto espontâneo.
[…]

Voluntário: [Do lat. voluntariu] Adj. 1. Que age espontaneamente. 2. Derivado da vontade própria; em
que não há coação; espontâneo. 3. Bras. RS Diz-se do cavalo que marcha com
facilidade, espontaneamente, sem ser preciso fustigá-lo”.[3]

A despeito da apontada sinonímia, “voluntário”, em
certa medida, difere de “espontâneo”.[4]

Espontâneo é o ato cuja motivação é interna ao
agente, isto é, não há estímulo nem sugestão externa, mas a vontade decorrente
de fatores intrínsecos àquele que age desse modo. Já voluntário, por sua vez, é
o ato possivelmente (mas não necessariamente) derivado de provocação, estímulo,
sugestão; enfim, de fator externo a deflagrar a vontade do agente.

Na parte que lhe coube redigir, Luiz Flávio Gomes,
em obra conjunta com Raúl Cervini e William Terra de Oliveira, também
diferencia “voluntário” de “espontâneo”. Segundo o autor, “colaboração
espontânea é a que parte da iniciativa do próprio infrator. Ao exigir a lei que
seja ‘espontânea’, faz depender que a idéia de colaborar provenha dele mesmo”.[5]
Sob essa perspectiva, há um algo mais exigido pela lei, porquanto “não basta
que a colaboração seja ‘voluntária’ (ato livre) – requer-se um plus, que é a espontaneidade”.[6]

Ao analisar o (revogado) texto do artigo 32, § 2.º,
da Lei 10.409/2002,[7] Paulo
Rangel também operou a mesma distinção: “o ato [de colaboração] é espontâneo e
não voluntário, ou seja, deve ser praticado por livre decisão do acusado,
independentemente de qualquer fator externo impulsionando-o para tal”.[8]

Em ambas as situações – espontaneidade e
voluntariedade – a vontade do agente de prestar declarações e cooperar com a
investigação criminal ou instrução processual penal há de existir, quer tenha
sido espontânea (sem sugestão, provocação ou estímulo de outrem), quer tenha sido,
por assim dizer, tão-somente voluntária.
De qualquer sorte, o legislador empregou tais palavras, nos dispositivos
referentes à colaboração premiada, atribuindo-as a mesma significação.

O raciocínio acima deve ser aplicado não só à
confissão (artigo 65, III, d, do
Código Penal), mas também à colaboração premiada, vez que se traduz numa
espécie de confissão qualificada, em
que o agente, necessariamente, precisa reconhecer a autoria do ilícito penal
que recai sobre si e fornecer dados implicadores de outros indivíduos no crime.
Essa locução – confissão qualificada – também pode assumir outra conotação,
sendo empregada “quando o acusado assume a autoria de um fato, porém invoca em
seu favor uma causa de exclusão de antijuridicidade, como a legítima defesa, ou
então ausência de culpa, como no erro de fato”.[9]

Seria mais adequada a dicção legal “voluntário”, no
sentido de vontade livre, facultativa e intencional, “isenta de imposição, de
constrangimento ou de coação”,[10]
pouco interessando se essa voluntariedade foi espontânea (brotada do íntimo do
colaborador) ou estimulada (derivada de proposta de acordo de colaboração por
parte do membro do Ministério Público, por exemplo). Importa é que seja vontade
livre e consciente, marcada pela facultatividade, sem a interferência de
qualquer tipo de coação, manifestada espontaneamente ou não.

A propósito, à luz da Constituição Federal de 1988,
o cidadão não pode ser coagido para cooperar com a Justiça, seja coação
psicológica ou física, tampouco deverão ser manejadas contra ele medidas
cautelares prisionais para tal fim, conforme já assentou o Tribunal Regional
Federal da 1.ª Região: “a prisão temporária não pode ser decretada para coagir
o indiciado a delatar” (TRF-1, 3.ª Turma, HC 2006.01.00.030745-9, Rel. Des.
Federal Tourinho Neto, j. 19.09.2006, DJ 29.09.2006, p. 18).

Há outro argumento, de razões práticas, para lermos
“voluntário” onde a lei diz “espontâneo”.

Para fazer ruir a espontaneidade e sem constranger
psicológica ou fisicamente aquele que poderia vir a ser colaborador, bastaria à
autoridade policial antecipar-se a qualquer manifestação do indiciado e lhe
perguntar se nutre, ou não, interesse em colaborar com a Justiça. Acaso o
investigado responda afirmativamente, a cooperação daí advinda seria de modo
voluntário – repare bem, voluntário
e não, espontaneamente. Se entendermos “espontâneo” no sentido de “brotado do
íntimo”, estaria nas mãos do delegado de polícia decidir, de pronto, sobre a
configuração, ou não, de circunstância ensejadora de colaboração espontânea
para posterior e eventual compensação, quando do término do processo.

E não é só.

Se interpretado literalmente o dispositivo contendo
o vocábulo “espontâneo”, o mero esclarecimento ao indiciado, no exemplo citado,
dos benefícios legais provenientes de provável colaboração poderia elidir, por
si só, a espontaneidade requerida por lei. A nosso ver, insistimos, não é
espontaneidade que a lei requer.

Se a colaboração somente pudesse ocorrer por ato
espontâneo do indiciado ou acusado, haveria, ainda, outro sério inconveniente:
a iniciativa para celebração de acordo de cooperação com a Justiça ficaria a
cargo do pretenso colaborador, que, por vias transversas, seria o único
legitimado a propor a avença em questão, mas nunca poderia ter-lhe dirigida
qualquer proposta de compensação legal, sob pena de afastamento da
espontaneidade que deveria estar presente.

Por tais motivos, sustentamos que onde a lei
menciona “espontaneidade” o intérprete há de ler “voluntariedade”, esta que
sempre deverá integrar o instituto da colaboração premiada como requisito de
ordem subjetiva.

 Notas:

[1] Art.
25.
Omissis… […]§ 2.º Nos crimes
previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou
partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou
judicial toda a trama delituosa terá sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois
terços).

[2] COSTA
JUNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth; MACHADO, Charles Marcildes. Crimes do colarinho branco. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 165.

[3]
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo
dicionário Aurélio da língua portuguesa
. 3.ª ed. Curitiba: Positivo, 2004,
p. 814 e 2.075.

[4] É válida a
leitura desses verbetes em DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 4, p. 756, e
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico.
São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 392. Consulte-se, também, o minucioso exame a
respeito do vocábulo “voluntário” realizado por SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro,
São Paulo: Forense, 1973, v. 4, p. 1.664.

[5] GOMES,
Luiz Flávio. In: CERVINI, Raúl; GOMES, Luiz Flávio; OLIVEIRA, William Terra de.
Lei de lavagem de capitais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 344.

[6] Ibid., p. 344.

[7] Diploma
legal revogado por força da Lei 11.343/2006, que, por igual, revogou a Lei
6.368/1976.

[8] RANGEL,
Paulo. Direito processual penal.
10.ª ed., 2.ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 130.

[9] ARANHA,
Adalberto José Q. T. de Camargo. Da
prova no processo penal
. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 115.

[10] SILVA, De
Plácido e. Op. cit.,1973, p. 1.664.


Informações Sobre o Autor

Danilo Andreato

Professor de Direito Penal e Processo Penal do Curso Ordem Mais. Mestre em Direito (PUC/PR). Especialista em Direito Criminal (UniCuritiba). Assessor jurídico do Ministério Público Federal