Resumo: A arquitetura jurídica desenvolvida entre o final do século XIX e até meados do século XX posicionou o direito no universo como legítimo a solucionar problemas. Ao lado do direito, economia e política também se encontravam privilegiadamente como autores principais das decisões a respeito do rumo que a sociedade trilharia. Ignoravam focos específicos de problemas, no qual a insatisfação da solução apresentada implicava irritações sistêmicas severas. A emancipação de múltiplos discursos, até pouco tempo tímida, atualmente têm legitimação para apresentar soluções para problemas fragmentados da sociedade. Esses autores aplicam critérios jurídicos não da forma como encontrada nos tribunais, mas, com o intuito de legitimar as suas decisões.
Palavras chaves: Teoria dos Sistemas, Transnacionalidade e evolução.
Sumário: Introdução. I. A evolução da sociedade na teoria dos sistemas. I. 1 A evolução do Direito como exemplo de evolução sistêmica. II. Direito e Economia: do acoplamento estrutural à razão transversal. III. Há a terceira mão? IV. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
A vetusta arquitetura do Estado legitimado pelo direito proporciona há tempos uma celeuma cuja solução a teoria jurídico-político construída com base no modelo representativo piramidal (pode ser um losango ou círculo, como bem vocês queiram) e na forte crença de uma soberania inabalável do Estado territorial não apresenta soluções para as indagações ou mesmo para os bloqueios oriundos de um tempo e de uma sociedade muito mais controvérsia, mais esquizofrênica, mais inexplicável. As inabaláveis teorias científicas do direito e do estado, formuladas com pretensão de autonomia cognitiva perante aos demais saberes ou narrativas[1] malogra diante de uma sociedade complexa e por que não de múltiplas consciências: ora mais sensíveis, ora mais limitadas, e tantas faces semânticas que a consciência pode se apresentar; isso porque a ciência não parece ser mais suficiente a explicar todos os eventos.
Na aurora do Estado laico, o direito, a economia, a política, a ciência tiveram o seu próprio reino. Uma época em que as respostas se deslocaram do imaginário de um soberano absoluto e de um clérigo para universos, aparentemente, autônomos, a esferas confiantes das repostas e saberes que apresentavam à sociedade ou, caso achem mais correto, à esfera pública.
Mas o que seria a falta ou a escassez de sólidos pressupostos aptos a conferir uma solução, no mínimo aceitável pela comunidade? Encara-se como uma crise de legitimidade, como um movimento pendular que devolveria ao presente postulados pretéritos rechaçados pelo menos em uma oportunidade na temporal linha representativa da evolução das idéias? Estaríamos a vivenciar um momento de ruptura de paradigmas, em consonância ao pensamento de Thomas Khun[2]·? Adentrando ao enigma: o que é uma solução correta e a legitimidade é provável na complexa complexidade da modernidade?
Essas indagações se referem às instâncias centrais produtoras do saber na modernidade, como já dito: o direito, a economia, a política detém o monopólio da verdade? Inegável é a influências das referidas esferas na formulação do conhecimento, assim, o direito e a economia seriam, supostamente, as peças fundamentais do jogo das decisões na globalização, além disso, o controle da escassez assumiu o leme da desgovernada embarcação da complexa modernidade, nada o quase nada tem importância se não for objeto de trato da economia e tudo ou quase tudo reivindica a ser objeto da economia.
Onde se localiza o direito no centro mundial supostamente dominado pela economia hegemônica? Seria a função de legitimar em conjunto com o sistema político as relações economias? Criar e preservar um propício ambiente para as atividades de cunho econômico? Ou, conforme outro bloco de pensamento, regular as principais prestezas da economia com o fito atender a elevada exigência ao princípio da igualdade como entre um dos principais pilares do Estado Democrático de Direito patrioticamente constituído?
A tensão entre economia e direito é, sem dúvida, alvo dos estudos teóricos mais instigantes dos últimos trinta anos. As linhas de pesquisa fogem a vários trajetos, para alguns a economia guia o direito, assim com há o inverso a essa premissa; a outros o vislumbram o ser humano como o homus economicus, ou seja, todos os seus atos dirigem, em último plano, a um objetivo eminentemente econômico. Daí, quiçá, desemboca o equívoco fatal da análise e inconsistência na solução dos problemas surgidos: crer que o ser humano é o guia dos interesses da sociedade, melhor dizendo, o juízo do homem é que conduz a sociedade [3].
A complexa sociedade moderna é fruto da evolução[4], não das intenções dos seres humanos ou de um processo natural de seleção ou mesmo do acaso [5], mas a esse tema voltarei no próximo capítulo. Eis o diagnóstico: o pensamento moderno partiu de uma hipótese descritiva ou especulativa carente de diversos fundamentos, portanto, necessitou em algum momento soldar a miscelânea de razões a fim de conferir sentido, de dotar uma experiência de lógica científica, elabora-se uma linguagem própria e apropriada ao saber, afastando-o da comunicação usual. Ou seja, elaborou-se unicamente uma cortina, algo que ao ser confrontado não poderia dar explicações, principalmente em razão à constelação de exigências, contingências e de possibilidades que a modernidade nos apresenta. Veja, a título exemplificativo, como a norma hipotética fundamental pressuposta talhada por Hans Kelsen[6]. O direito não necessita de uma norma pressuposta como fundamento, pois, o direito é fruto de sua própria evolução [7]. Como escreveu Teubner: “o direito – como dolorosamente descoberto pelo rabino Eliezer – não é determinado nem por autoridades terrestres, nem por autoridades de textos, nem tão-pouco pelo direito natural ou por revelação divina: o Direito determina-se a ele mesmo por auto-referência, baseando-se na própria positividade” [8].
Leve-se o mesmo raciocínio à economia, qual seria o ato fundador da economia? O homem é por natureza um animal econômico ou desde a aurora da humanidade a administração da escassez estaria incorporada ao inconsciente coletivo? Não! A gênese econômica advém de uma improbabilidade, ou seja, a economia já foi um acontecimento improvável; daí em diante a economia fundamenta-se na própria economia.
Então os respectivos sistemas jurídicos e econômicos não seriam autônomos, dada um cuidando de seus próprios problemas? A resposta é sim não, quem sabe, também poderia dizer não se tratar disso; tratarei esse tema mais adiante.
Por detrás de tudo isso a que me referi até o momento, evolução, acoplamento estrutural, há algo oculto em comum entre ambos os sistemas: a “loucura da decisão” [9]. Irrompe o arbítrio, os paradoxos, a irracionalidade se infesta nas hodiernas teorias a respeito da racionalidade jurídica e econômica[10].
I – A EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE NA TEORIA DOS SISTEMAS
A evolução dos sistemas jurídicos e econômicos não pode ser compreendida sem a análise da evolução da teoria dos sistemas [11], mesmo ao tratar-se de co-evolução sistêmica de sistemas parciais da sociedade[12]. Na mesma seara de Marcelo Neves[13], relevante é investigar o sentido a concepção de “evolução” ao qual a teoria dos sistemas oferece.
A “evolução”, conforme Niklas Luhmann [14] consiste no resultado do “paradoxo da probabilidade do improvável” [15]. A teoria dos sistemas, ao contrário do que sustenta postulados estatísticos, enfrenta a questão da “evolução” ao solucionar ou atenuar o problema do paradoxo, tentado “explicar como estruturas carregadas cada vez mais de pressupostos – a dizer, cada vez mais improváveis -, surjam e logo funcionem como normais” [16], ou, como afirma adiante, se trata da “morfogênese da complexidade” [17], ou seja, é capaz de aplicar os próprios resultados da evolução na evolução de maneira recursiva.
Para lograr a evolução deverá preencher três condições: a variação, a seleção e a restabilização, esquema oriundo de teorias neodarwinistas, além do êxito do processo comunicativo[18]. Observa-se que os mecanismos de evolução sistêmica também se aplicam ao processo de evolução dos seres vivos, não se deve deixar induzir que se trata de uma aplicação análoga dos termos, como bem adverte Marcelo Neves, “‘evolução’ apresenta-se como um conceito-gênero que se submete a especificações analíticas, respectivamente, conforme se refira aos sistemas biológicos, psíquicos ou sociais” [19]. Nessa quadra, não faz sentido orientar-se segundo o modelo de “seleção natural” oriunda da teoria darwinista da evolução das espécies, em razão da forte influência de variação ambiental e das condições sobrevivência dos seres mais aptos ou organicamente menos vulneráveis às alternâncias de seu nicho e de risco predatório [20]. Porém, como Luhmann afirma que a teoria da evolução sistêmica utiliza “implicações causais”, no entanto, rechaça a hipótese de explicar a evolução por meio das leis da causalidade[21], a evolução segundo, está sempre à espera de “eventualidades propícias”, daí a questão cronológica torna-se indispensável à evolução sistêmica[22].
Por “evolução”, ainda, não devemos confundir com aspectos que tornam a vida melhor, o avanço tecnológico[23], revoluções paradigmáticas e mesmo projeções futuristas que eventualmente se concretizem[24].
O rechaço a diversas concepções de pensamento não esclarece de maneira peremptória como se concebe a “evolução” na teoria dos sistemas ou como se realiza o preenchimento dos instrumentos de “evolução”: a “variação”, a “seleção” e a “restabilização”.
A “variação”, termo já empregado por Darwin, não consiste no resultado da troca, “senão a elaboração de uma variante para uma possível seleção” [25]. A “variação”, portanto, pressupõe a alteração de elementos do sistema [26], e, não regras específicas ou taxativas para se alcançar a “variação” [27]. O fenômeno da variação pode ser claramente percebido na linguagem, pois, a linguagem necessita ser correta para ser assimilada pelo receptor da mensagem, no entanto, a “variação” no campo lingüístico não consiste em assimilar um erro de linguagem, mas, em “unicamente pelo fato de que alguns esforços de sentido já logrados linguisticamente no processo da comunicação. A variação pode consistir em dar-a-conhecer algo insólito, mas também – e quiçá mais freqüentemente – na não aceitação inesperada daquilo que se dá-a-conhecer em vista de uma situação que o havia motivado por possível ou por fertilidade em perspectivas” [28].
Embora, a “variação” corresponda a uma “comunicação inesperada”, leve-se em conta a possibilidade de rechaço ou de uma “seleção negativa”, que acarreta ao “abandono ao esquecimento” ou que “rejeita explicitamente” a referida comunicação. A atualização de toda a comunicação inesperada sobrecarregaria a sociedade, tornando-a insuportável ou mesmo impossível[29]. Nesse instante, a função de “seleção” é concebida de maneira indispensável a “evolução” do sistema social, em virtude de selecionar comunicações incompatíveis que possa se adaptar aos padrões estruturais, podendo repetir-se com sucesso[30].
“Seleção” compreende o outro lado[31] da “variação”, assim, “a distinção entre de variação e seleção é a forma do conceito de seleção” [32] e, ambos os termos se acoplam por meio da causalidade. A “seleção” está em contínua referência com as expectativas que norteiam a comunicação do sistema social[33], nesse sentido, a “seleção” trabalha com as estruturas e a partir da “variação”, em consonância com o que já foi escrito, seleta aquela que aptas a formar estruturas e, consequentemente, elaborar expectativas.
No entanto, a unidade “variação” e “seleção” não são suficientes para o logro da “evolução”. Necessário é o preenchimento da “restabilização”, observável já em um estádio em que o sistema social está em evolução, após uma “seleção” ser acatada. No atual estádio do sistema social a “restabilização” é cada vez mais referente aos sistemas parciais, que devem se sustentar perante o próprio entorno, ou seja, “se trata, em última instância, do problema da sustentabilidade da diferenciação do sistema da sociedade” [34]·.
Na modernidade complexa a evolução decorre da diferenciação dos três pressupostos, em estádios anteriores à modernidade não era possível distinguir com a devida clareza os três mecanismos de evolução. Em sociedades segmentárias “variação” e “seleção” se embaralham. Eram as expectativas e as comunicações que determinavam os modos de operação. Relega o desvio a um momento assombroso, não lhe confere uma oportunidade de “seleção”, e, caso aconteça não há como precisar se se tratou de uma “seleção” ou de uma “variação”. Nesse estádio “o momento está determinado pelo passado” [35].
Em sociedade de outra natureza, dita estratificada, é possível diferenciar a “seleção” da “variação”, em virtude da possibilidade de discriminar os elementos das estruturas[36]. Na oportunidade de um desvio há estruturas internas na sociedade aptas a avaliá-lo, entretanto, o direito ainda é cometido de vínculos morais e religiosos[37] que se espalham por toda a sociedade. A facilidade de diferenciação entre “variação” e “seleção” se deve muito ao aparecimento da escrita, tida como uma “evolução aquisitiva”, a partir daí a possibilidade de domínio dos agentes emissores da comunicação é mais restrita, a escrita possibilita a superação da ocorrência da comunicação e de sua respectiva orientação conteudística apenas no espaço físico em que era proferida, havendo a oportunidades de conferir sentidos mais diversos aos vernáculos[38]. Todavia, nas referidas sociedades hierárquicas existe um forte apego aos saberes sagrados e à vontade do soberano, revestidos de verdade absoluta. Disso decorre a imprecisão de separar “seleção” de “restabilização” [39].
Apenas nas sociedades modernas funcionalmente diferenciadas é que se origina a possibilidade de diferenciação entre os três mecanismos de evolução da sociedade. Os sistemas parciais da sociedade, em razão da clausura auto-referencial, tornam a questão da evolução mais labiríntica, pois, nas sociedades complexas apresentam-se duas formas de evolução: a evolução interna e a evolução externa[40]. Por óbvio, os sistemas parciais como o jurídico e o econômico passam a possuir mecanismos particulares de evolução que permanecem em tensão com as expressões oriundas da sociedade global, principalmente no que diz respeito à evolução sistêmica.
I. 1 A evolução do Direito como exemplo de evolução sistêmica
No sistema jurídico a “variação” corresponde à “comunicação de expectativas normativas inesperadas” [41], ou seja, o desvio é soçobrado pelo sistema jurídico, dado que a expectativa normativa não assimila os desapontamentos e o processamento do indiferente da mesma forma das expectativas cognitivas[42].
Teubner aponta alguns mecanismos essências a fim de apresentar o modo de evolução do direito nos dias atuais, são os seguintes: “interação ‘cega’ entre variação, seleção, e retenção, enquanto mecanismos evolutivos” [43]; a análise do desenvolvimento ontogenético ao filogenético; a co-evolução do sistema jurídico, da sociedade e demais sistemas parciais da sociedade.
A evolução do direito para além daquilo que já foi descrito, possui especificidades, uma vez que, as estruturas inerentes ao sistema jurídico: a estrutura normativa, a institucional, e a dogmática; referentes respectivamente aos mecanismos de evolução da variação, da seleção e da restabilização, garante o sucesso da evolução do sistema jurídico[44].
Retornando às premissas básicas da evolução dos sistemas sociais a diferenciação dos mecanismos do processo evolutivo que formam uma unidade, concomitantemente às estruturas inerentes ao direito rechaça o vetusto juízo projetado pelo darwinismo social, que poluiu diversos blocos de pensamento. Nota-se que na perspectiva puramente de matriz darwinista as bases de evolução social e, portanto, do próprio direito reside exclusivamente no ser humano e em fatores exógenos, inclusive no acaso e na causalidade[45]. Enquanto que na perspectiva da teoria dos sistemas a evolução decorre da unidade da evolução[46], ou seja, a evolução provém da própria estrutura da sociedade e não da crença no progresso do homem e tão pouco de um “gene egoísta”.
Günther Teubner levanta a indagação de uma possível inconsistência do modelo evolutivo da teoria dos sistemas autopoiéticos, pois, como haveria ele, acentuadamente, o sistema jurídico em permanecer estável perante a forte pressão seletiva que o entorno provoca? Entre outros questionamentos[47] aponta ao problema denominado “stasis”, períodos de equilíbrio e de revolução. Habermas é cético quanto aos sistemas funcionais que operam de forma autônoma, pois, carecem de uma construção ética e de padrões normativos que influenciariam, de certa forma, o agir comunicativo. Luhmann insiste no modelo evolutivo baseado no preenchimento de três mecanismos, embora adote subterfúgios de adequação evolutiva dos sistemas parciais para acompanharem a evolução da sociedade global.
Mesmos assim, as soluções apresentadas por Teubner, leia-se Luhmann e Habermas, aparentemente não soluciona a possibilidade da ocorrência de stasis. Na autopoiesis, considerando que o seu entendimento “reside na internalização de variação, seleção e retenção” [48], a identidade do sistema jurídico seria concebida exclusivamente em um estádio pré-autopiético. A isso podemos remeter isso à questão da variação, pois, exclusivamente em sistemas fechados e autopoiéticos[49] aconteceria em razão da estrutura formada pelo sistema ser responsável pelo resultado desejado.
O que está no outro lado da forma ou extrajurídico não determina as transformações causais que ocorrem no interior do sistema jurídico, há de certa maneira de se reconhecer uma influência, mas não devemos considerar uma influência como aquela que molda o desenvolver de uma personalidade, como por exemplo, àquela relação entre artistas famosos exercem sobre os admiradores, a influência a que a teoria dos sistemas se refere é quanto à auto-irritação de um sistema parcial[50].
O sistema jurídico também possui o mecanismo da evolução a ser preenchido e, como ressalta Teubner, não mais se trata da aprovação social, pois, a expectativa de um consenso na multifacetada sociedade moderna. Assim, creditar a esfera pública como instância a determinar os rumos jurídicos se transforma em um equivocado juízo, pois, ao fim, caberá ao mecanismo da seleção aprovar quais comunicações serão internacionalizadas[51].
Por fim, a restabilização do sistema jurídico é fruto do próprio sistema jurídico e não de possíveis argumentações políticas, morais; é inerente a auto-referência do sistema jurídico, expressando-se por intermédio das decisões regulares, de princípios, da dogmática jurídica[52].
Retornando à problemática no qual uma teoria do sistema jurídico autorreferente como insuficiente a colaborar com todas as especulações evolutivas da sociedade e mesmo rechaçar os padrões éticos do agir humano, Habermas elabora a partir de teorias cognitivas, de Piaget e Kohlberg, as etapas de desenvolvimento da sociedade, partindo dos estádios de desenvolvimento individual – desenvolvimento ontogenético -, para as etapas de desenvolvimento da sociedade – desenvolvimento filogenético[53].
Sendo breve na descrição da referida teoria habermasiana, sendo que a transposição do nível ontogenético ao filogenético implica a passagem de três níveis de consciência moral singular para um nível global, os seguintes níveis: o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional, em consonância com os estudos desenvolvidos por Kohlberg.
Em relação à teoria de Piaget, segundo Marcelo Neves, “retiram-se e reconstroem-se elementos básicos da teoria dos estádios de desenvolvimento cognitivo e, especialmente, do julgamento moral na criança” [54]. Numa fase referente à primeira infância, o sujeito não é capaz de diferenciar-se de meio, não possui autonomia própria. Inexiste uma formação subjetiva da consciência[55], em termos freudianos, a criança possui apenas o id formado, sendo que o ego não está abstratamente formado. Doravante, a criança aprende a compreender o universo a partir da sensibilidade tátil, diferenciando-se de seu ambiente. No entanto, não é capaz de se dissociar precisamente do que a cerca, como também, ocorre na confrontação da personalidade com a realidade. “Isso implica o egocentrismo cognitivo e moral: a criança só considera as situações a partir de seu próprio ponto de vista, em uma perspectiva de pensar e agir ‘fixada ao corpo’” [56].
Ao saltar para a próxima fase da existência inexiste uma demasiada obscuridade na distinção entre corpo/mente e o universo circundante, formado por coisas, outros sujeitos e comunicação. Logo, a criança apresenta um desenrolar dos atos de falas e da interação com o mundo. “Esse estádio implica uma postura objetivista e sociocêntrica, no sentido de que os padrões cognitivos e normativos estabelecidos no contexto social passam a ser inquestionáveis” [57].
Com o ingresso na adolescência o sujeito não mais mantém um padrão objetivo de reflexão em relação aos acontecimentos e julgamentos, além de questionar os padrões predominantes de comportamentos. Além disso, passa a exteriorizar com maior clareza a linguagem interna o que compreende sobre os acontecimentos. “Na medida em que supera ‘o dogmatismo dado e do existente’, constitui-se um eu capaz de pensar hipoteticamente e expor-se discursivamente” [58]. O que se constitui como mais relevante nesse estádio é que o sujeito passa a argumentar com um universo maior de vernáculos com o fito de estabelecer verdades e padrões morais não unicamente aplicáveis à sua esfera de convívio social e familiar.
Os três níveis de julgamento moral desenvolvido por Kohlberg parte das premissas da psicologia cognitiva de Piaget. Os três níveis de julgamento moral, conforme já exposto são respectivamente: o pré-convencional, em que as expectativas em torno da moral não estão interiormente assimiladas pelo sujeito; o nível convencional, em que o sujeito apresenta uma relação com os padrões de comportamentos e julgamentos morais, passando a expressar verbalmente tais convenções; por último, o estádio pós-convencional, no qual o sujeito separa os padrões e julgamentos esperados pelos demais sujeitos dos seus próprios princípios. Para cada etapa de desenvolvimento moral há uma respectiva etapa de “perspectiva social: a concreta individual, a de membro da sociedade e a do prioritário-em-face-da-sociedade” [59]. Kohlberg separa cada etapa de desenvolvimento moral, subdividindo-os em seis níveis relativos a cada perspectiva social.
O estádio pré-convencional subdivide-se em dois planos de desenrolar. No primeiro corresponde ao da “punição e obediência”. O que predomina nessa fase é a fuga às punições em razão da violação a comportamentos previamente determinados. O sujeito tem os seus atos guiados em face de obediência a uma autoridade superior. Na perspectiva puramente do sujeito há apenas uma postura egocêntrica, uma vez que, a criança não é capaz de diferenciar os seus interesses dos interesses dos demais, “a criança confunde a sua perspectiva com a da autoridade” [60].
A posterior etapa do nível pré-convencional consiste na acentuação dos atos individuais. O sujeito julga quando é importante seguir as normas morais estabelecidas de acordo com os seus próprios interesses. A criança consegue reconhecer a existência de interesses alheios ao seu, passando a agir em relação a interesses contrários quando houver trocas que lhe satisfaça.
Na seguinte etapa de desenvolvimento, a primeira da subdivisão do estádio convencional, acentua-se o agir de acordo com interesses alheios e a conformidade perante situações contrárias. Nesse momento agir conforme a expectativa dos outros é considerada a melhor estratégia para alcançar os próprios interesses, clara que essa atuação não se apresenta de maneira objetiva na mente da criança. Existe por parte de o sujeito um agir orientado a aparecer para os outros com virtudes, de demonstrar que conhece os comportamentos padronizados. A quarta fase do desenvolvimento, a segunda do nível convencional, tem como característica a relação de cumprir os deveres e obrigações em que se vinculou. Para ser correto é necessário reconhecer a autoridade da lei e contribui com a ordem estabelecida, embora, não devemos entender como uma situação que surge concretamente para a criança. Nessa fase ela passa a ter consciência de seu papel e de suas obrigações.
A quinta dimensão apresenta-se como a fase de reconhecer as legais triviais da sociedade e cumpri-las de modo espontâneo. Há consciência em relação à existência da pluralidade de valores dos outros, bem o como o respeito desses valores distintos dos próprios valores.
O último estádio denomina-se “estádio dos princípios éticos universais” [61], o correto constitui na “crença na validade universal de princípios morais e o senso de compromisso pessoal para com eles” [62], o julgamento moral do ponto de uma perspectiva moral derivada do aprendizado do convívio social.
Habermas interpreta as teses de Piaget e Kohlberg segundo a perspectiva do agir comunicativo. Assim, o julgamento e o desenvolvimento moral ocorrem gradualmente de acordo com a compreensão de mundo em três perspectivas: o mundo objetivo, o social e o subjetivo, levando-se em conta a ação comunicativa e estratégica.
Para Habermas, no nível pré-convencional o sujeito não é capaz de diferenciar o seu self da vontade própria, dos interesses alheios, os acontecimentos não são passíveis de uma interpretação densa, busca-se exclusivamente evitar punições.
No estádio convencional já se apresenta uma distinção entre as perspectivas sociais e objetivas, como também existe uma noção entre agir comunicativo e agir estratégico, o que não havia na etapa anterior. No entanto, “as crenças intuitivamente partilhadas no mundo da vida não passíveis de ser questionadas. A identidade ainda está subordinada aos imperativos institucionais” [63].
No último nível, o pós-convencional, o sujeito é capaz de argumentar e questionar contra padrões de validade estabelecidos consensualmente.
Dessa perspectiva ontogenética passa-se a um modelo filogenético de evolução social, analisando os diversos institutos em razão da generalização de suas ordens e das funções das pessoas mediante a complexidade da convivência.
A evolução do direito na perspectiva filogenética surge a partir de mecanismos de aprendizagem e retenção em face da experimentação e compreensão dos mecanismos jurídicos experimentados[64]. Para isso é necessário o mecanismo da conexão episódica, que contribuiria com a seleção de eventos pré-jurídicos, ainda em um momento individual para um nível social por intermédio da aprendizagem.
A singularidade do processo jurídico tem um enredo único que se esgotará, porém, para a continuidade do direito é relevante que haja um meio que possa reproduzir os resultados individuais com o fito de mantença do sistema jurídico. A reunião do desenvolvimento do direito ontogenético ao filogenético com a evolução do sistema jurídico no sistema social, da maneira concebida por Teubner, me parece improvável, podemos questionar qual o papel do indivíduo, já que sociedade e consciência constituem dois planos autônomos separados, um não determina o outro, são unicamente os lados da forma. A função do sujeito como o próprio Teubner ressaltou em algum momento consiste em compreender semanticamente o sistema jurídico e como o outro lado da forma, ou seja, como sistema psíquico.
Por fim, remeto-me ao problema da co-evolução[65], que, de maneira simplificada, acarreta em afirmar que uma vez que a evolução do direito não depende de fatores exógenos ao sistema jurídico, sem embargos, não há uma fonte externa que determina o rumo do direito, no entanto, a evolução do sistema jurídico ou em outros termos a autopoiesis do sistema jurídico não implica exclusivamente mudança no sistema jurídico, observa-se a mudança nos demais sistemas parciais e do sistema social[66]. A co-evolução é altamente emblemática no sentido de adequação das estruturas dos mais variados sistemas parciais, além do mais, caso nos inclinemos para a linha de Teubner, cada sistema parcial pode apresentar uma pluralidade de instituições que não podem ser consideradas sistemas autorreferenciais, mas que, participam do processo de co-evolução, como por exemplo, o regime de produção[67].
Por essa referência a descrição da evolução do sistema jurídico como sistema que evolui a partir do próprio sistema, já é possível compreender que teorias cuja insistência reside na afirmação de um parto jurídico oriundo de uma progenitora econômica, descrições do direito como ciência autônoma inabalável que cria a própria realidade ou mesmo do direito como produto da linguagem, pois, linguagem é a forma de ser e posicionar-se no universo tão como compreendê-lo, carecem de solidez ao embaterem-se com as mais variadas questões a respeito de uma realidade de funcionamento global da sociedade e, até mesmo quando tentam definir o papel do indivíduo. Exemplifico, atribuir a uma instância específica o desenho do direito que não seja o próprio direito consiste em antes de qualquer coisa imputar a referida instância o conhecimento de todo o direito, ou seja, algo guardado até mesmo do próprio direito, assim, para conhecer o direito deve-se conhecer muito mais da outras instâncias. Seria como, por exemplo, para conhecer a si mesmo é preciso conhecer ou a deus ou muito mais ao pai e mão do que a si próprio. É uma situação bem próxima ao do “trilema de Münchhausen”, no qual o barão de Münchhausen disse que se salvou da areia movediça de um pântano, pois, ele mesmo puxou os próprios cabelos. Mesmo se nos referimos à linguagem como limite da compreensão do universo e, dessa maneira, do próprio direito, estaríamos a acreditar que todos os seres humanos têm um sentido consensual referente a quaisquer aspectos do direito: situação, pelo menos no presente, improvável!
II. DIREITO E ECONOMIA: DO ACOMPLAMENTO ESTRUTUAL À RAZÃO TRANSVERSAL
A busca insistente por tais recursos culminam mais em afastar o direito da realidade do que intencionam essas teorias, aproximá-las. Além disso, a elevada abstração dos argumentos prinpiológicos, por exemplo, agravam a crise de legitimidade do direito, que ao invés de buscar adequação e aprendizado nos demais sistemas parciais da sociedade[68]·, como a racionalidade transversal[69], culmina em acumular o direito de uma narrativa peculiar, sem referência ou legitimação de demais esferas da sociedade.
O acoplamento estrutural, termo moldado por Maturana e Varela auxilia na compreensão de que o entorno não determina o as reações de um sistema, fortalece o entendimento de que o meio apenas influi causalmente no sistema[70] acarretando na destruição do sistema. O acoplamento então pode rechaçar as comunicações que poderiam determinar uma possível substituição de códigos, daí que, conclui-se que o acoplamento só é possível quando se reconhece a autonomia dos sistemas e a autopoiesis. Ambos os sistemas se irritam mutuamente e, por conseqüência, implica em elevação da complexidade o entorno o que força a presença do mecanismo da seleção. É o que deveria ser observado, embora, na modernidade complexa da atualidade existe a expansão e elevada influência do código econômico e dos limites inerentes dos sistemas jurídicos e econômicos. Não me refiro a questões vagas e imprecisas com o emprego do termo globalização, dotado de imprecisão no emprego e na origem do vernáculo. A expansão do código econômico frisa-se oportunamente a fim de evitar embaraços teóricos, não é assumida aqui como corrupção sistêmica [71], no entanto, isso corresponde à outra face da crise, no qual um código passa a ditar as decisões de outro sistema, como a título exemplificativo, no momento em que o sistema jurídico passa a emitir a comunicação jurídica com enfoque no código ter/não ter ao invés do código próprio direito/não direito, sem se tratar de substituição de códigos. Reflete mais a uma questão da sociedade mundial[72] hipertrofiar-se com base tendo com base o código econômico e o banco central eleito como centro do sistema social, soma-se a essa afirmação a impossibilidade da teoria dos sistemas refletir e operar na realidade de modo satisfatória. Assim, a produção da comunicação jurídica e científica deve obedecer aos critérios econômicos, caso contrário a economia influirá destrutivamente nos sistemas parciais, principalmente do direito e da política.
Afora o problema acima descrito, a modernidade convive com demasiada descrença no Estado, embora, trata-se de argumento por maior parte das situações retóricos e deficitários de conteúdo, a questão apresenta-se por outro ângulo, em consonância ao pensamento de Helmut Willke[73], a improbabilidade da existência do Estado como prova da falência do estado de bem estar. Trata-se de discutir mais uma crise ideológica com base uma suposta superação de uma condição do sujeito histórico em virtude do advento do Estado Liberal, explicando de outra forma, os ideólogos concentraram seus estudos no papel do Estado como sendo indispensável para ao menos existir um ponto de partida para as discussões, seja a favor de um Estado mínio ou de um Estado interventor. Isso se observa em mais variados campos do saber, vejamos o exemplo das teorias constitucionais mais influentes da última metade do século XX, como a Constituição Dirigente[74], no qual atribuiu ao legislador, como representante de uma massa, e, a Constituição, a finalidade de criar e uma realidade almejada. O que os teóricos não refletiram é que a raiz das idéias, arquitetadas em Hegel e Kant, a respeito do papel do Estado e sua respectiva atuação em nenhum momento falaram na improbabilidade do Estado e, por conseqüência, que o autor que conduze a economia, o direito, à política, não consiste nesse ente denominado Estado, mas, nos sistemas parciais do sistema social.
Realizei a digressão com o fito de proporcionar ao leitor uma reflexão prática referente ao tema, nas linhas abaixo, apresentarei uma possível teoria, oriunda de Wolfgang Welsch, que poderá contribuir para a crise.
Nessa seara, o acoplamento não é toda a estrutura do sistema que está relacionada ao meio, mas, unicamente uma fatia escolhida de forma designada, sendo que o que não está acoplado influi de modo destrutivo.[75] Como, por exemplo, o acoplamento entre direito e economia acontece por intermédio do contrato e da propriedade. Para o sistema jurídico esses institutos refletem um importante juízo para o direito: os deveres e as obrigações enquanto que para a economia faz referência ao código econômico ter/não ter[76]. O mecanismo de interação entre os sistemas autônomos e o sistema social permite irritação recíproca entre os sistemas, provocando, dessa maneira, a seleção, mesmo entre sistemas que apresentam assimetria e programas diversos, como é o caso da semântica contratual e da propriedade para o direito e para a economia[77].
A idéia de racionalidade transversal seria um estádio mais adequado ao que se compreende por acoplamento estrutural[78]. Nos primórdios ou na pré-modernidade concentrava-se a decisão na escolha soberana na razão do poder do soberano e da instituição religiosa[79]. Na modernidade complexa, forma-se uma “pluralidade de esferas de comunicação com pretensões de autonomia e conflitantes entre si” [80]. A sobrevivência da sociedade só foi possível em razão da criação de um mecanismo capaz de possibilitar “vínculos construtivos de aprendizados e influência recíproca entre as diversas esferas sociais” [81]. No entanto, a idéia de acoplamento estrutural formulado por Niklas Luhmann, com base nas idéias de Maturana e Varela[82], não seria suficiente, de acordo com Wolfgang Welsch seguindo por Marcelo Neves, a possibilitar a “influência recíproca entre diversos âmbitos autônomos de comunicação” [83]; daí surge uma criação mais adequada à proposta de um mecanismo que tem entre diversas funções o objetivo de redução da complexidade, denominado racionalidade transversal. A racionalidade transversal torna fatível “o intercâmbio construtivos de experiências entre racionalidades parciais diversas” [84]. O referido conceito é reinterpretado de acordo com o significado “razão transversal” proposto por Wolfgang Welsch que “considera a sociedade multicêntrica sob o ponto de vista da heterogeneidade dos ‘jogos de linguagem’” [85]. Isso implica que não há um discurso na modernidade que se sobreporia as demais. Nesse diapasão, “trata-se de uma razão que não é outorgada aos jogos de linguagem particulares, mas, ao contrário, está envolvida com entrelaçamentos” [86]. É por esse motivo que Welsch mencionará uma “metanarrativa pós-moderna”. Para Welsch, a metanarrativa tem uma face descritiva e outra normativa. Descritivamente, segundo Marcelo Neves, a metanarrativa se expressa da seguinte forma: “há distintas formas de vidas, sistemas de orientação, tipos de discursos etc. com diferenças basais” [87]. A faceta normativa teria o seguinte enunciado: “as diversas concepções não devem ser medidas, desacreditadas ou coativamente unidas em nome de um supermodelo – que, na verdade, só poderia ser um modelo parcial (correspondente a uma narrativa particular) [88]. Dessa forma, a face normativa se orientaria em consonância com padrões de justiça, contudo, para uma “justiça sem consenso”, pois, em uma etapa mais avançada sabe-se que não haverá consenso em relação ao conteúdo[89], além do exposto: “Em primeiro lugar, a justiça teria o papel de atuar corretivamente nas formas particulares de racionalidade e também de intervir na relação entre estas, impedindo exclusões, ‘majorações’, e totalizações, assim como possibilitando o intercâmbio e o caráter racionais dos conflitos entre elas. “Em última instância, ela serviria para manter a ‘pluralidade do todo’, ou seja, a diferença nos diversos níveis de um mundo discursivo complexamente heterogêneo”.
Marcelo Neves se afasta das pretensões de Welsch ao entender que o modelo formulado não seria suficiente para analisar a sociedade multicêntrica, policontextural[90]. Para Neves o emprego uma metanarrativa não teria sentido, em virtude de que as variadas espécies de comunicações existentes são capazes de reajustarem-se entre si mesmas, “desenvolvendo seus próprios mecanismos estáveis de aprendizados e influência mútuos” [91]. Por fim, “a racionalidade transversal importa, então, um grau de aprendizado e intercâmbio construtivo entre esses sistemas” [92].
III. HÁ A TERCEIRA MÃO?
Em uma famosa pintura de Escher podemos vislumbrar o impossível: uma mão pintando ou outra mão, melhor descrevendo a figura, uma mão faz outra mão no mesmo instante temporal, os traços das mãos apresentam-se da mesma forma, não há uma mão maior que a outra, não há uma mão esquerda e outra direita ou nenhuma das mãos é mais eficiente que a outra. Entretanto, se uma mão desenha a outra qual mão ou quais mãos desenha(m) as duas? Eis um paradoxo[93], eis uma hierarquia entrelaçada, a possibilidade do impossível.
A expansão da sociedade global para além das fronteiras territoriais amplia a influência dos sistemas parciais na construção semântica da realidade. Atribui-se aos sistemas jurídico e econômico as decisões mais relevantes. Ocorre que, a referida expansão do sistema social em escala global não ocorre de forma perfeita, há assimetrias e embaraços, melhor explicando, na atual fase da modernidade observa-se um deslocamento das instâncias de decisões centrais do sistema para a periferia dos sistemas, concomitantemente, os saberes entrelaçados rechaçam eventuais narrativas de cunho exclusivamente econômico e jurídico, mesmo que casos possam ser descritos ou decididos por um escopo jurídico e econômico.
O tribunal como centro decisão do direito[94] e os bancos e o mercado financeiro como centro do sistema econômico não mais respondem a todos os ruídos da sociedade. Há outras narrativas, outros discursos, existem diversas mãos que desenham as mãos, mãos que desenham as mãos que desenham as mãos, é frenético, é esquizo[95].
Existiu uma ordem correta para os eventos, uma arquitetura tão sólida quanto o planeta terra. Mas, a terra está inserida no universo, também se prende a força cósmica do espaço. A arquitetura do direito e do Estado, assim como da economia agora é um simulacro. Direito não consiste mais unicamente em um processo válido e legítimo no qual resultará em uma lei geral e abstrata[96], extraindo, supostamente, o fundamento de uma norma pressuposta[97] ou de uma norma de reconhecimento[98], direito é evolução[99]. Esse raciocínio aplica-se à economia, o animal econômico, a teoria dos jogos, a mão invisível, os economistas esperam ainda por Godot[100] para der-lhes razão.
O que fundamento o escrito no parágrafo anterior, a crítica ou a firmação, como queiram, inegavelmente é a teoria dos sistemas. Mas como já dito, qual é a função do direito e da economia frente a regimes – não sistêmicos diga-se -, que se irritaram, perturbaram-se perante a onipotência dos centros sistêmicos e da crença no Estado infalível. Há algo de podre no Reino da Dinamarca. A periferia também queria ser o centro, pois, sem o centro não há periferia (da mesma forma que sem o ato de decisão que fundamenta a lei hierarquicamente superior as demais leis, não existe constituição).
Regimes privados efetuaram m salto quântico, ousaram. Acoplaram-se ou criaram canais de racionalidade, de aprendizagem e adequação. De fato têm nasceram do sistema social[101]. Constituem regimes com narrativa particular, racionalidade marcante e autônoma. Caso não agissem estariam fadados a uma carência de legitimidade, a burocratização do Estado de bem estar. No entanto, tais regimes não se apresentam na modernidade como máquinas triviais, são muito pelo contrário, configuram-se como máquinas não-triviais[102].
Emprego o mesmo juízo em referência à globalização e à economia, de que todas as ações e intenções seriam guiadas tendo por fim último uma razão econômica, um cálculo de custo/benefício. Não devemos desprezar o entorno da economia, como já afirmado anteriormente, mas regimes privados espontâneos têm por fundamento a fuga de uma eventual atuação destrutiva do sistema econômico.
Quais seriam os regimes a que tanto mencionei? Há no seio da sociedade uma Lex sportiva, uma Lex digitalis, a Lex militar, a Lex turística, Lex contruciones, todas dotadas com racionalidade peculiares e instâncias de decisões que não se vinculam aos Estados mediante tratados de direito internacional e, em várias situações, não são contratualmente obrigadas ou inexiste um liame legal com o centro dos sistemas parciais.
No entanto, não há uma radicalidade na separação entre instâncias periféricas dos demais sistemas. As discussões giram em diversos casos entre, sem embargos, razão econômica e cultura[103], economia e patentes[104], etc. Mas existem casos exclusivamente dotados um discurso próprio, no qual afasta pretensões econômicas e até mesmo direitos humanos, como a maior parte dos casos julgados pela corte arbitral[105] do esporte na França. O tribunal arbitral esportivo teve originou-se da necessidade do COI julgar e punir práticas consideradas anti-desportivas e, posteriormente, vinculou-se à Agência Mundial Anti-Doping. O referido tribunal em diversas oportunidades afasta de suas decisões questões como dignidade da pessoa humana, direitos sociais, soçobra tratados e carece de reconhecimento de múltiplas nações. Quiçá, o caso mais elucidativo seja a do jogador de futebol brasileiro Dôdo, que no ano de 2007 flagrado no exame antidoping pela agência responsável pelos testes nos Brasil (com vínculo com a Confederação Brasileira de Futebol – CBF), foi absolvido pelo Superior Tribunal Desportivo – reconhecido pela Constituição da República -, todavia, o tribunal esportiva da França julgou e condenou o jogador a dois anos de suspensão! O jogador cumpriu a sanção, ou seja, a lei criada pelo Estado soberano foi desconsiderada, mesmo sendo plenamente favorável e válida! Talvez os leitores perguntem por quê? Retorno a algum ponto do artigo: a expansão da sociedade global, a periferia da sociedade, regimes espontâneos, e a vetusta arquitetura do Estado e do Direito. Há muitas outras razões para considerar, mas o relevante é: César não consegue mais cuidar aquilo que Deus lhe deu, nem mesmo a nossa mente pode se contentar com resultados simples: ela necessita também de complexidade!
A formação dos regimes privados além dos Estados com critérios de justiça peculiares não são resultados de revolta à burocracia organizacional, de discordância em relação à justiça estatal ou de ingerência indevida na economia. É a evolução desses regimes, mas devemos tratar esse caso de evolução como fenômeno isolado, há que relevar, como já dito, a expansão do sistema social, adequação e ajuste das comunicações entre sistemas parciais, deslocamento de uma racionalidade formada na razão de que o ser humano conduziria o destino da história de acordo com sua vontade para a idéia de paradoxos, de uma sociedade que prescinde dos atos do ser humano para ser guiada.
IV. CONCLUSÃO
A modernidade ou a pós-modernidade não pode ser mais compreendida como resultado de mero desencadeamento de fatos ou como nexo lógico entre ação e resultado. A sociedade quanto mais complexa necessita tomar um maior número de decisões[106] que, por conseqüência, implicam risco e contingência, assim, de certo modo é impossível prever o que ocorrerá no futuro[107], o presente apenas nos dá certeza de que haverá um futuro, aí reside à essência da necessidade de decisões: garantir o futuro.
Há tempos raciocina-se um Estado, uma sociedade, um regime co condições de concretizar as intenções do ser humano previstas em um texto, em supostos valores e critérios. A modernidade prometeu além de avanços tecnológicos, melhora substancial na qualidade de vida – não foi esse o contágio do walfare state? -, concomitantemente com as promessas adveio o déficit[108], a tecnologia aconteceu, mas, a poluição, aumento da miséria, políticas de ajuste de horas de serviço para conter falências, ampliação da desigualdade, maior ocorrência de doenças contagiosas, violências não mais apenas nas grandes cidades.
A modernidade da sociedade moderna soçobrou com questões de cunho ontológico, deslocou o debate para a eficiência dos resultados científicos, o final do enredo: a morte da filosofia[109].
Promessas, decisões, complexidade, certezas, aglutina-se aos termos a crença de um resultado certo proveniente da globalização, principalmente em seus aspectos econômicos, o resultado da riqueza acessível a todos. As constituições do presente ou que alguns autores denominam de neoconstitucionalismo consagraram as promessas, assumiram, de certa maneira, o papel legitimador da coação e de regulador do destino.
Todavia, a constituição refletida por um povo não acompanha a realidade, não foi formulada com instrumentos que possibilitam assistir a realidade, nem mesmo planejou as regras do jogo com a realidade. A realidade também tem os seus compromissos.
No final, tudo se torna possível, tudo pé violável, as convenções, as certezas, as regras do jogo e da linguagem, é algo como strange loop[110], como um programa de computador que cria outro programa de computador sem a necessidade de inputs ou de outputs. Ordens de razão jurídico-econômico firmaram parte de sua existência em períodos que a sociedade realmente necessitou de maior repostas desses sistemas, mas a continuidade entre tempo e sociedade, com complexidade apresentando mais possibilidades e ao mesmo evento mais contingência, a transformação da sociedade na atualidade revelou um tormento: ouras níveis também podem solucionar questões econômicas e jurídicas.
Resta, a saber, se os sistemas convivem com o entrelaçamento hierárquico, se centro e periferia se entrelaçam como dois níveis invioláveis, ou mesmos os programas dos sistemas parciais. A única certeza é que sim, estamos perante da criação de novos níveis invioláveis: a função da periferia e das constituições transnacionais ou transcontitucionais. Em consonância do Douglas Hofstadter: “cada vez que você pensa ter encontrado o fim, há alguma nova variação sobre o tema ‘do salto para fora do sistema’ que requer uma certa criatividade para ser identificada” [111]
Informações Sobre o Autor
Octaviano Padovese de Arruda
Mestrando em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Professor da especialização em Direito Constitucional da PUC/COGEA. Advogado