Comentários ao projeto de lei do executivo que visa atualizar a lei do estágio no Brasil


Enviado pelo Executivo, o Projeto de Lei (PL) nº 993 (na Câmara) e nº 44 (no Senado) ora em tramitação no Congresso Nacional busca atualizar a atual regulamentação do estágio (Lei 6.494, de 7/12/1977 e Decreto nº 87.497, de 18/12/1982), que já faz 30 anos de existência. Este artigo pretende apresentar os principais pontos que compõem o referido Projeto de Lei e tecer comentários preliminares.


I Síntese do PL:


1) A  quem se destina o estágio: aos estudantes de instituições de educação superior; educação profissional; ensino médio; educação especial; dos anos finais do ensino fundamental (na modalidade presencial de educação de jovens e adultos) e; estudantes estrangeiros regularmente matriculados em cursos superiores.


2) Termo de compromisso: trata-se de uma das obrigações das instituições de ensino, em relação ao estágio de seus educandos, celebrar termo de compromisso com o educando e com a parte concedente, indicando as condições de adequação do estágio à proposta pedagógica do curso, à etapa de formação escolar do educando e ao calendário escolar.


3) Cabe às instituições de ensino: celebrar termo de compromisso com o educando; avaliar as instalações do estágio e sua adequação à formação social, profissional e cultural do educando;  indicar professor orientador; exigir do educando a apresentação periódica de relatório de atividades; elaborar normas complementares e instrumentos de avaliação do estágio de seus educandos.


4) Cabe à parte concedente (empresa): celebrar termo de compromisso com a instituição de ensino e o educando; ofertar boas instalações para as atividades de aprendizagem; indicar funcionário do seu quadro de pessoal para orientar e supervisionar até 10 (dez) estagiários simultaneamente; contratar em favor do estagiário seguro contra acidentes; exigir do educando a apresentação periódica de relatório de atividades;


por ocasião do desligamento do estagiário, entregar termo de realização de estágio com indicação resumida das atividades desenvolvidas, dos períodos e da avaliação de desempenho; manter à disposição da fiscalização documentos que comprovem a relação de estágio; enviar à instituição de ensino, com periodicidade mínima de seis meses, relatório de atividades, com vista obrigatória ao estagiário.


5)  Cabe aos agentes de integração públicos ou privados (aqueles os quais as instituições de ensino e as partes concedentes de estágio podem, a seu critério, recorrer a seus serviços):  identificar oportunidades de estágio;  ajustar suas condições de realização; fazer o acompanhamento administrativo; encaminhar negociação de seguros contra acidentes pessoais – sendo vedada a cobrança de qualquer valor dos estudantes, a título de remuneração pelos serviços referidos nos incisos deste artigo; e sendo os agentes de integração serão responsabilizados civilmente se indicarem estagiários para a realização de atividades não compatíveis com a programação curricular estabelecida para cada curso, assim como estagiários matriculados em cursos ou instituições para as quais não previsão de estágio curricular.


6) Vínculo de emprego: O estágio não cria vínculo empregatício de qualquer natureza, desde que observados os seguintes requisitos: matrícula e freqüência regular do educando; .celebração de termo de compromisso entre o educando, a parte concedente do estágio e a instituição de ensino; compatibilidade entre as atividades desenvolvidas no estágio e aquelas previstas no termo de compromisso.


7) Benefícios: O estagiário poderá receber bolsa ou outra forma de contraprestação (…) sendo compulsória a sua concessão, bem como do auxílio-transporte, na hipótese de estágio não-obrigatório. A concessão de benefícios não caracteriza vínculo de emprego.


8) Seguro contra acidentes pessoais: As empresas devem contratar seguro contra acidentes pessoais em favor do estagiário.


9) Jornada de trabalho máxima:  A jornada do estagiário será de 4 h diárias (20 h semanais), no caso de estudantes de ensino médio, educação especial e dos anos finais de ensino fundamental (educação jovens e adultos); 6 h diárias (30 h semanais), no caso de estudantes de ensino superior e da educação profissional de nível médio.


10) Recesso: Sempre que o estágio tenha duração igual ou superior a um ano, o estagiário terá direito a recesso de 30 dias, a ser gozado preferencialmente durante o período de férias escolares. O recesso deverá ser remunerado, quando o estagiário receber bolsa. No caso de o estágio ter duração inferior a um ano, recesso será proporcional.


11) Contribuição para a previdência:  É facultado ao educando inscrever-se e contribuir como segurado facultativo do Regime Geral de Previdência Social.


12) Proporção máxima de estagiários (quotas):  O número máximo de estagiários em relação ao quadro de pessoal das entidades concedentes de estágio, deverá atender á seguinte proporção: de 1 (um) a 5 (cinco) empregados: 1 (um) estagiário; de 6 (seis) a 10 (dez) empregados: 2 (dois) estagiários; acima de 10 (dez) empregados: até 20% de estagiários.


São feitas ainda estabelecidas as seguintes regras em relação às proporções máximas de estagiários: considera-se quadro de pessoal o conjunto de trabalhadores empregados existentes no estabelecimento do estágio; Na hipótese da parte concedente contar com várias filiais ou estabelecimentos, os quantitativos previstos nos incisos deste artigo serão aplicados a cada um deles; Quando o cálculo do percentual resultar em fração, poderá ser arredondado para o número inteiro imediatamente superior. Não se aplica a proporção máxima ao estágio de nível superior e de educação profissional; às pessoas com deficiência fica assegurado o percentual de 10% das vagas oferecidas pela parte concedente do estágio.


13) Aprendizagem:  O artigo 428 da CLT, que trata da aprendizagem,  passa a vigorar com a seguinte redação: § 1º A validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social, matrícula e freqüência do aprendiz à escola, caso não haja concluído o ensino médio, e inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob a orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica. § 7º Nas localidades em que não houver oferta de ensino médio suficiente para o cumprimento do disposto no § 1º deste artigo, a contratação de aprendiz poderá ocorrer sem a freqüência à escola, desde que ele já tenha concluído o ensino fundamental.”(NR).


14) Fiscalização:  A manutenção de estagiários em desconformidade com esta Lei caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária. § 1º Sempre que a fiscalização da Previdência Social constatar irregularidade na contratação e na manutenção de estagiário, deverá, sem prejuízo das providências pertinentes, comunicar a ocorrência à fiscalização do trabalho. § 2º A instituição privada ou pública que reincidir na irregularidade de que trata este artigo ficará impedida de receber estagiários por 2 (dois) anos, contados da data da decisão definitiva do processo administrativo correspondente.


II. Comentários: 


O Projeto de Lei nº 993 (na Câmara) e nº 44 (no Senado), de autoria do Executivo, procura reforçar o caráter educacional do estágio e estabelece alguns mecanismos de controle sobre essa atividade. Com isso, ele tenta evitar que o estágio sirva como subterfúgio para o rebaixamento das condições de trabalho no Brasil.


Destaca-se desde logo a preocupação do PL em enfatizar o caráter pedagógico do estágio. Assim, ao lado da obrigatoriedade de um acompanhamento sistemático do estágio pela entidade de ensino, o projeto prevê a possibilidade de suspensão dos processos de autorização, reconhecimento e credenciamento de instituições e cursos, ou de sua renovação, caso essa exigência seja descumprida.


Ponto que merece realce também é o da regulamentação da jornada do estagiário, com a determinação de parâmetros máximos. Trata-se de uma boa medida, tendo em vista que o tempo dedicado ao estágio deve possibilitar também a dedicação do jovem à escola, ao descanso e ao lazer. Assim, é meritória a fixação no PL da jornada de trabalho diária não superior a 6h diárias e 30 h semanais; e da redução pela metade da jornada para realização de avaliações escolares ou acadêmicas.


A garantia de um recesso de 30 dias (a ser gozado preferencialmente, segundo o projeto, durante o período de férias escolares) é outro avanço do PL. Pelo projeto, o recesso deverá ser remunerado, quando o estagiário  receber bolsa ou outra forma de  contraprestação; e será proporcional ao período estagiado no caso de o estágio ter duração inferior a um ano.  A inserção deste direito justifica-se quando se leva em conta que, embora o estágio deva ser visto como atividade eminentemente pedagógica, ele também é trabalho, o que remete à necessária contrapartida em descanso.


A limitação do número de estagiários por empresa, por meio de quotas percentuais de acordo com o número total de empregados da empresa, objetiva cercear a tentativa de substituição do “trabalhador CLT” pelo “trabalhador estagiário”. É verdade que a fiscalização desta medida nem sempre é fácil, como mostra a experiência das quotas para os portadores de deficiência. Contudo, é uma tentativa válida, especialmente se, no PL, a participação dos sindicatos estivesse prevista.


Algumas entidades envolvidas com a questão do estágio – seja na intermediação (caso do Centro de Integração Empresa-Escola – CIEE), seja na contratação (como a Associação Brasileira de Recursos Humanos – ABRH) – têm feito críticas ao referido PL. Vejam-se algumas das considerações contrárias:


“Há uma lei de 1977 (nº 6.494) que normatiza a matéria e vem funcionando a contento nesses trinta anos de vigência. Pois não é que o desemprego crescente (…) inspirou setores do poder público a colocar em pauta a revogação dessa lei, sob o equivocado argumento de que o estágio tira emprego do trabalhador formal e precariza as regras da CLT. São tolices repetidas por quem sabe muito bem que isso não ocorre, até porque o estágio de jovens inexperientes nada tem a ver com CLT ou trabalho formal. O estágio, como ato pedagógico vai de vento em popa no Brasil, com estudantes de ensino médio, técnico e superior aprendendo mais e melhor com a prática adquirida nas empresas onde estagiam, e o que não é desprezível, ganhando, quando economicamente carentes, uma bolsa-auxílio para fazer frente a suas despesas pessoais”. (Paulo Nathanael Pereira de Souza, presidente do Conselho de Administração do CIEE, em artigo na Gazeta Mercantil, de 8/9/2007)


 “A instituição do pagamento de férias representa um aumento de custo e, para algumas empresas, essa mudança poderá limitar o número de contratações de estagiários (…). Duas outras alterações são ainda mais preocupantes para a entidade. A primeira refere-se à limitação do número de estagiários por empresa, com o estabelecimento de cotas percentuais por tamanho da empresa, o que pode diminuir significativamente o número de ofertas de estágio. A segunda é a instituição da jornada do estágio, limitada em um dos projetos a, no máximo, 6 horas. Essa é uma mudança desnecessária, pois o estudante deve ter liberdade de escolher a jornada apropriada de acordo com o seu caso, sua disponibilidade e necessidade. Além disso, a jornada deve estar relacionada com o tipo de trabalho e atividade da empresa”.  (Jornal de Recursos Humanos, da ABRH-SP, no Estado de S.Paulo, 29/7/2007).


Em que pese nosso respeito a visão dessas entidades, suas críticas não parecem se sustentar. Nestas três décadas de existência da lei, muita coisa mudou no país, tanto na área da educação quanto na do trabalho. A Lei do estágio carece, sim, de uma reavaliação, na medida em que são conhecidos e têm sido crescentes os problemas neste tipo de atividade.


A começar pelo fato de que raramente se verifica um acompanhamento pari passu da instituição de ensino em relação ao estágio realizado pelo aluno. Quando exigido, o termo de compromisso entre as três partes (empresa, estagiário e instituição de ensino), que hoje já é previsto em lei, não passa de uma peça formal.


Em muitas empresas, o estágio é tomado quase que exclusivamente como uma forma de realização de tarefas a baixo custo, mas “vendida” socialmente como uma “oportunidade” concedida ao estagiário.


Em um contexto de fortes esforços da empresas na redução de custos, tem crescido a contratação de trabalhadores como “estagiários”, mas que, dadas as características da atividade (tempo integral; ausência de qualquer preocupação pedagógica por parte da empresa; desvinculação das tarefas executadas do conteúdo educacional aprendido) trata-se de fato de um ato ilícito por parte da empresa. Estes trabalhadores deveriam ser empregados na forma da CLT, posto que, além da ausência do caráter educacional, verificam-se todos os requisitos de um vínculo de emprego: habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação.


A afirmação da ABRH de que a fixação de quotas juntamente com a concessão de direito ao recesso de 30 dias podem gerar redução de vagas de estágio parece um exagero. Os custos dos estagiários em geral costumam ser baixos, o que torna pouco provável grandes transferências nas formas de contratação. Em relação às quotas, cabe discutir se elas são do tamanho adequado ou não. Como norma geral de controle, ela é perfeitamente justificável de barreiras à precarização da mão-de-obra.


As medidas que alteram o artigo 428 da CLT (que trata do menor aprendiz) são também positivas, porque estendem o controle da matrícula e da freqüência não apenas para os jovens que não tenham completado o ensino fundamental, mas também para aqueles que estão cursando o ensino médio. A possibilidade de que “nas localidades em que não houver oferta de ensino médio suficiente para o cumprimento do disposto no § 1º deste artigo, a contratação de aprendiz poderá ocorrer sem a freqüência à escola, desde que ele já tenha concluído o ensino fundamental” parece atender às necessidades sobretudo das áreas rurais.


Por fim, os critérios de fiscalização previstos no PL apontam para a possibilidade de um maior controle sobre o real cumprimento das normas exigidas para o estágio no Brasil.



Informações Sobre os Autores

Maria da Consolação Vegi da Conceição

Professora de Direito da Fundação Santo André e advogada trabalhista do Sindicato dos Bancários do ABC. Mestranda em Direitos Difusos e Coletivos da UNIMES.

Jefferson José da Conceição

É desde janeiro de 2009 o Secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo de São Bernardo do Campo. É Prof. Dr. da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Foi economista do DIEESE nas Subseções do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (1987-2003) e da CUT (2003-2008). Autor do livro “Quando o apito da fábrica silencia”. Santo André: ABCDMaior, 2008; e um dos autores do livro “O abc da crise”. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.

Fausto Augusto Junior

Sociólogo e Mestrando em Educação na USP. É técnico do DIEESE

Patrícia Toledo Pelatieri

Economista. É técnica do DIEESE


logo Âmbito Jurídico