Comentários sobre a origem de alguns institutos no direito privado romano

Resumo: A presente pesquisa busca investigar os institutos dos contratos, do casamento e da união estável e o consentimento da mulher para a alienação de bens imóveis no Direito Romano. A bibliografia consultada foi escolhida de forma aleatória, mas buscou os ensinamentos de doutrinadores que trabalham na área. No tocante às obrigações decorrentes do contrato, ao se analisar o material,verificou-se não haver divergências entre os autores consultados de que o Direito Romano exigia, para os negócios jurídicos em geral, os mesmos requisitos, os quais, no plano da validade, desafiaram os períodos que sucederam ao Direito Romano e, no direito moderno, ainda se fazem presentes. Ao abordar as duas formas de união, o casamento e o concubinato na sociedade romana, verificou-se, com poucas divergências entre os autores consultados, que os negócios jurídicos eram sempre celebrados pelo chefe da família, pater familia, e, que, no casamento, a única situação na qual a esposa participava, e isso ocorreu somente à época de Justiniano, era em relação aos bens dotais, já que para esses serem alienados ou hipotecados, fazia-se necessário o seu consentimento. Quanto à concubina, como não era exigido o dote, é muito provável que também não fosse exigida sua anuência para nenhuma transação praticada pelo companheiro.

Palavras-chave: Direito Romano. Direito Privado. Institutos. Casamento. Concubinato.

Introdução[1]

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O Direito Romano mostra-se relevante ferramenta para sustentar a abordagem histórica dos contratos, do casamento e do concubinato. Além disso, “por seu conteúdo ético, lógico e prático, na solução dos problemas cotidianos” (AZEVEDO, 1999, p. 7), fornece valiosos subsídios para a compreensão e aplicação do direito atual.

A pesquisa se propõe a examinar os institutos dos contratos, do casamento e da união estável e o consentimento da mulher para a alienação de bens imóveis no Direito Romano. A bibliografia consultada foi escolhida de forma aleatória, mas buscou os ensinamentos de doutrinadores que trabalham na área.

A investigação faz parte da pesquisa bibliográfica intitulada “Casamento e união estável: anuência da mulher para a elaboração dos contratos imobiliários”, que está sendo desenvolvida junto à Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba.

Para alcançar o objetivo proposto buscou-se compreender a origem dos institutos dos contratos, do casamento, da união estável e a anuência da mulher, para alienação de bens imóveis, no Direito Romano. Ao final serão apresentados os resultados da pesquisa.

1. Direito Romano: breve resenha histórica dos contratos

O antigo Direito Romano não conheceu o termo obrigação (AZEVEDO, 2008, p. 10) nem contrato. Segundo Alves (2000b, p. 8), embora, no Direito Romano, haja controvérsias a respeito da evolução histórica do conceito de obligatio, é possível identificar que não havia um conceito comum utilizado nem no direito pré-clássico nem no clássico. O autor, ladeado por outros romanistas, anota que o conceito genérico de obligatio como “relação jurídica pela qual alguém deve realizar uma prestação, de conteúdo econômico, em favor de outrem”, apenas, foi concebido no período pós-clássico e justinianeu.

Nesse mesmo sentido, Cretella Júnior (2006, p. 181) concorda com o autor acima e reafirma que os romanos, nos primeiros séculos de Roma, período do Direito Romano Arcaico, não conhecem a noção genérica e abstrata de obrigação, porque eles:

“ […] positivos por excelência, raciocinam concretamente e só conhecem os coobrigados, pessoas ligadas por laços materiais, porque o devedor era amarrado ao credor. Em períodos posteriores, o vínculo material é transformado em vínculo jurídico, de que nos fala Justiniano em sua definição (vinculum juris)” (CRETELLA JÚNIOR, 2006, p. 181).

 Nesse Direito, as duas clássicas conceituações de obrigação são dos jurisconsultos de Justiniano nas Institutas e a de Paulo no Digesto:

“Obrigação é 'o vínculo jurídico por necessidade do qual nos adstringimos a solver alguma coisa, segundo os direitos de nossa cidade (Obligatio est juris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei, secundum nostrae civitatis iurs'. Institutas, livro III, título XIII, princípio). 'essência da obrigação não consiste em que se faça uma coisa corpórea ou uma servidão, mas em que se obrigue outrem a nos dar, fazer ou entregar alguma coisa (Obligationum substancia non in eo consistit, ut aliquod corpus nostrum aut servitutem nostram faciant, sed ut alium nobis obstringant ad dandum aliquid, vel faciendum vel praestandum' Digesto, livro 44, título 7, lei 3”) (AZEVEDO, 2008, p. 11).

Complementa o autor, orientando no sentido de que, atualmente, as "características conceituais da obrigação continuaram, praticamente, as mesmas, diferenciando-se a obrigação do Direito moderno pelo conteúdo econômico da prestação" (AZEVEDO, 2008, p. 12).

Quanto às fontes das obrigações que “constitui o ato ou fato que lhe dá origem, tendo em vista as regras do direito” (MONTEIRO, 1983a, p. 32), os romanistas, igualmente, citam os textos dos jurisconsultos nas Institutas e no Digesto, para explicá-las:.                                                           

“[…] para entendermos bem as fontes das obrigações, que nos retroprojetamos no passado, até o tempo dos romanos, recebendo as lições de Gaio, que, em suas Institutas, no período do direito clássico, relacionou, em sua Summa divisio, duas fontes das obrigações: o contrato e o delito […] dois outros textos, surgidos após a época do direito clássico, atribuídos ao mesmo jurisconsulto Gaio, apresentam outras fontes de obrigações, além do contrato e do delito. Realmente, o primeiro desses dois textos, que apareceu no Digesto, acrescenta às referidas fontes outros casos de obrigações reconhecidos pela jurisprudência, que delas não surgiam, mas de outras figuras não perfeitamente identificadas […]. O segundo dos dois textos citados, aparece nas Institutas do Imperador Justiniano” (AZEVEDO, 2008, p. 22).

Azevedo (2008, p. 22) leciona que nas Institutas (3, 13, 2) de Justiniano, também atribuída a Gaio, as fontes das obrigações romanas são quatro: o contrato, o delito, o quase contrato e o quase delito e Cretella Júnior (2006, p. 182) acrescenta "as obrigações que derivam da lei".  Quanto a essas, as que decorrem da lei, e a declaração unilateral da vontade, outra possível forma de contrair obrigações (ALVES, 2000b, p. 241), há divergências entre os doutrinadores. Monteiro (1983a, p. 33) afirma: “Fonte ex lege, com caráter autônomo não existia entre os romanos, sem embargo de opinião em contrário de Ferrini”. Nesse diapasão Alves (2000b, p. 241) explica que as obrigações decorrentes da lei obrigationes ex legis constam em poucos textos romanos e que as mesmas não foram conhecidas dos jurisconsultos clássicos; quanto à declaração unilateral de vontade, assevera que as fontes são omissas a respeito.

Em razão do objetivo da presente pesquisa, de todas as fontes que dão origem às obrigações, estudar-se-á a derivada dos contratos, a qual, segundo Monteiro (1983a, p. 34), era e continua sendo a fonte mais rica e fecunda.

Em períodos distintos e com significados nem sempre correspondentes aos atuais, o Direito Romano – Antigo, Clássico e Pós-Clássico – conheceu os termos: obrigação, convenção, contrato, nexum, sponsio e pactos. Embora não seja pacífico entre os autores consultados, é provável que, no início, existisse a convenção para designar o acordo de vontade entre duas ou mais pessoas (ROLIM, 2003, p. 220); o contrato fosse uma das modalidades de convenção (MEIRA, 1971, p. 321) e o nexum, constituísse uma das espécies de contrato verbal (ALVES, 2000b, p. 117 e 136; MEIRA, 1971, p. 320). Ao lado desses, havia os pactos.  Nesse sentido, Monteiro (1983a, p. 34) leciona:

Conventio era a expressão genérica empregada pelos romanos e que compreendia simultaneamente não só os contratos propriamente ditos, isto é, as convenções reconhecidas pelo direito civil, providas de obrigatoriedade e de tutela judicial, como também os pactos, isto é, as convenções não sancionadas pelo direito civil, despidas de força obrigatória e de tutela processual.”

As convenções entre duas ou mais pessoas sempre existiram na história de alguns povos antigos, sendo na Época da Realeza – período do Direito Romano Arcaico – regulamentadas pelo jus civile ou direito quiritário. As convenções, no Direito Romano antigo, "eram celebradas de modo rígido, solene e formal, através das formas do nexum e do sponsio" (ROLIM, 2003, p. 220). 

O último, sponsio, se consolidava na frente da estátua de um de seus deuses e posteriormente foi substituída pelo stipulatio, outra forma de contrair obrigações no Direito Romano (ROLIM, 2003, p. 221).  A stipulatio era o contrato verbal, celebrado por meio de perguntas e respostas, sendo considerado o mais importante do Direito Romano. Essa forma de contrair obrigação, também "sofreu, ao longo da evolução do direito romano, profundas modificações, e sobre seu alcance há grande controvérsia entre os autores modernos" (ALVES, 2000b, p. 138-139).

Correia e Sciascia (1961, p. 226) comentam que o nexum, é uma das formas mais antigas de contrair obrigação e Meira (1971, p. 319) aponta que pesar de os romanistas divergirem quanto ao nexum ser ou não uma espécie de contrato, eles são conformes ao afirmarem ser o mesmo uma das espécies de convenção. Segundo o autor, "Para Giffard, o nexum não era pròpriamente um contrato mas 'uma convenção criadora de uma dívida e ato de alienação ou de vinculação da pessoa do devedor ao credor".

Segundo a leitura do material consultado, é possível inferir que o nexum era mais utilizado pela população mais pobre e que ele desapareceu com a promulgação da Lex Poetelia Papiria 326 a.C, a qual "determinou que o patrimônio, e não mais a vida do devedor, deveria responder pelo inadimplemento" da obrigação  (ROLIM, 2003, p. 221), isso porque:

“O nexum conferia poder ao credor de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação. Em caso de inadimplemento, de não cumprimento obrigacional, respondia esse devedor com seu próprio corpo, podendo ser reduzido à condição de escravo, o que se dava por meio da actio per manus iniectionem (ação pela qual o credor podia vender o devedor como escravo, além do rio Tibre)” (AZEVEDO, 2008, p. 10).

Para arrematar, sobre o nexum Alves (2000b, p. 117), também comenta que se trata de um negócio jurídico arcaico (espécie de empréstimo) e que os  “jurisconsultos romanos do século I a.C. já não tinham noção exata do nexum”.

Como o termo obrigação, Meira (1971, p. 320) mostra que a palavra contrato, também "não foi conhecida do antigo direito romano". O contrato, enquanto uma nova e mais restrita modalidade de convenção entre pessoas, surgiu no direito romano no século I d.C. (ROLIM, 2003, p. 220; ALVES, 2000b, p. 108; MEIRA, 1971, p. 320). 

Junto aos textos dos jurisconsultos, ao lado das convenções e dos contratos havia os pactos, distintos dos últimos, porque não eram obrigatórios. A distinção entre pactos e contratos desapareceu no direito contemporâneo (MONTEIRO, 1983b, p. 23 e 35), assim, como, também, no direito moderno a convenção e o contrato, enquanto acordo de vontade, se confundem (ALVES, 2000b, 108-109). Naquele direito a noção de contrato era mais restrita que no atual. Isso ocorre:

“a) primeiro, porque, durante toda a evolução do direito romano, só se enquadram entre os contratos os acordos de vontade que se destinam a criar relações jurídicas obrigacionais (e não, como no direito moderno, a criar, regular ou extinguir relações jurídicas em geral; e b) segundo, porque, em Roma, nem todo acordo de vontade lícito gera obrigações: contrato (contractus) e pacto (pactum, conuentio) eram acordos de vontade, mas, ao passo que aquele produzia obrigações, este, em regra, não” (ALVES, 2000b, p. 108-109).

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Ainda, no Direito Romano, o modo rígido e formal empregado nos contratos também o diferencia dos pactos, cuja validade não é a mesma dos contratos. Os pactos caracterizavam-se por “simples manifestações de vontade entre pessoas (nuda pacta), não podendo, portanto, serem reclamados em juízo pelas partes. 'Do simples pacto não nasce ação', ensinava Ulpiano (Ex nudo pacto non nascitur actio – Sentenças, 2,14)” (ROLIM, 2003, p. 241).

Nesse mesmo sentido, Cretella Júnior (2006, p. 187) ensina: no direito de Justiniano e seus comentadores, que "pela primeira vez a palavra contractus é empregada com o sentido de convenção destinada a criar obrigações (Teófilo, 3, 14, 2)”.

Comentando sobre o formalismo no Direito Romano, Cretella Júnior (2006, p. 189) aponta: “As formalidades que acompanham os pactos, no antigo direito, transformando as simples convenções em contratos são de três espécies: 1ª) bronze e balança (aes et libra); 2ª) palavras (verba); 3ª) letras (litterae)”. Sobre o caráter rigoroso e sacramental dos atos jurídicos no direito antigo ou pré-clássico, consigna-se:

“Esta é uma peculiaridade de todos os institutos primitivos, que não concebem atos jurídicos senão baseados em ritos solenes, capazes de atestar-lhes pùblicamente a realização. Pouco importa que as formas não correspondem à vontade dos contraentes; a intenção das partes está materializada nas palavras pronunciadas que são em todo caso decisivas. A Lei das XII Tábuas dispõe: uti lingua nuncupassit, ita ius esto” (CORREIA e SCIASCIA, 1961, p. 274).

Posteriormente, mas, ainda durante a vigência do Direito Romano, os contratos foram classificados como: obligationes, quae sunt ex contractu, aut consensu contrahuntur, aut re, aut verbis, aut litteris (Institutas, III, 89), ou seja, contratos consensuais, porque se originavam do mútuo consenso entre as partes (consensu); reais, quando tinham por pressuposto a entrega de uma coisa ou o adimplemento de outra prestação (re); verbais aqueles que se constituíam pelas palavras, ou seja, mediante o "emprego de expressões solenes que os contraentes deveriam pronunciar (verbis)" e literais quando eram convencionados por escrito (litteris). Essas categorizações não desapareceram e foram usadas pelo direito moderno (MONTEIRO, 1983a, p. 34). Portanto, quatro são as obrigações que nascem dos contratos (ALVES, 2000b, p. 116).

No Direito Romano, em meio a essas obrigações, que nascem dos contratos, apenas as decorrentes da compra e venda (emptio uenditio),[2] da locação (locatio conductio), do mandato (mandatum) e da sociedade (societas) (ALVES, 2000b, p. 116 e 153), são chamadas de consensuais, porque "se formam pelo mútuo consentimento ou pela vontade recíproca das partes"; esses contratos, no início, eram considerados "insólito e aberrante no sistema contratual romano" (CRETELLA JÚNIOR, 2006, p. 187).

Segundo o primeiro romanista, os contratos consensuais são mais recentes que os reais e os formais, "sua existência é atestada no tempo de Quinto Múcio Scévola, que viveu, aproximadamente, de 140 a 82 a.C." e representam, segundo Voci "o primeiro sinal de reação da vontade (uoluntas) contra o formalismo. Além de independerem da forma, são eles contratos sinalagmáticos[3] perfeitos ou imperfeitos, e sancionados, todos, por iudicia bonae fidei (ações de boa-fé)". Dentre eles, somente o mandato é sinalagmático imperfeito (ALVES, 2000b, p. 155). 

Alves (2000b, p. 109), novamente, comenta que do Direito Romano clássico ao justinianeu, "o sistema contratual romano sofreu alterações profundas, observando-se, nessa evolução, uma constante: o alargamento gradativo do círculo de acordos de vontade a que a ordem jurídica concede a eficácia de gerar obrigações”. Nesse mesmo sentido, Cretella Júnior (2006, p. 186) explica a evolução da figura contratual no Direito Romano, da seguinte forma: “Do formalismo para o não formalismo, do apego excessivo à forma para um abrandamento ininterrupto, em benefício do conteúdo, da intenção das partes – eis o sentido exato da evolução da figura contratual no direito romano”.

Com fundamento no material bibliográfico levantado, é possível afirmar: as modernas legislações foram influenciadas pelo direito romano, sendo o direito das obrigações o que "de maneira mais completa" se destacou (CRETELLA JUNIOR, 2006, p. 189), além de ser considerado "sem dúvida a parte mais importante do direito romano, sobretudo por sobreviver substancialmente no direito moderno, mais que qualquer outra", consolidando-se "ao longo dos séculos, num mais perfeito corpo doutrinal" (CORREIA e SCIASCIA, 1961, p. 227).

Quanto às obrigações decorrentes dos contratos, observa-se, ressalvadas as mudanças ocorridas no tempo e no espaço, que sua origem, sua classificação e algumas de suas modalidades, previstas pelo Direito Romano “com fisionomia bem diversa da que o caracteriza, por exemplo, nos períodos clássicos e justinianeu” (CRETELLA JUNIOR, 2006, p. 186), se fazem presentes em nossa legislação, como a compra e a venda, o mandato e a locação. Outras foram extintas, como o nexum; ou foram criadas, como os contratos eletrônicos, e outras, ainda, serão necessárias para a efetivação do direito enquanto ius est ars boni et aequi (direito é a arte do bom e do justo) (Digesto de Justiniano 1.1.), ainda, hoje reconhecido e que deve ser aplicado.

Ainda, quanto às obrigações decorrentes do contrato, não há divergências entre os autores consultados de que o Direito Romano exigia os mesmos requisitos para os negócios jurídicos em geral: "capacidade e legitimação das partes, manifestação de vontade isenta de vícios (que, nos contratos, se traduz no acordo de vontade dos contraentes – conuentio) e objeto lícito, possível, determinado e determinável" (ALVES, 2000b, p. 111; CRETTELA JÚNIOR, 2006, p. 195; ROLIM, 2003, p. 224). Esses requisitos, no plano da validade (AZEVEDO, 2002b, p. 77), sobreviveram ao tempo e, no direito moderno, ainda se fazem presentes.

Dos três elementos, abordar-se-á o consentimento, mais especificamente o consentimento da esposa (outorga uxória) e da companheira para a validade dos contratos imobiliários.

1.2. O consentimento da mulher no Direito Romano

1.2.1. A outorga uxória: casamento

Como vimos no Direito Romano, entre os elementos de validade dos contratos, estava o consentimento ou a manifestação da vontade isenta de vício. Sem nos atermos a um estudo profundo sobre todos os atos que um dos cônjuges pode ou não praticar sem autorização do outro, para não nos distanciarmos do objetivo da presente pesquisa, buscar-se-á, ainda, no Direito Romano, de forma sucinta, investigar duas formas de constituição de família, sendo uma o casamento e a outra o concubinato; verificar alguns dos efeitos das relações patrimoniais entre o casal e averiguar sobre o consentimento da mulher para os negócios jurídicos realizados pelo chefe da família pater familia ou não.

Segundo Coulanges (2005, p. 46), a institucionalização da antiga família teve como principal elemento constitutivo a preservação da religião doméstica e do culto aos antepassados. Ainda o mesmo autor ensina: “A primeira instituição estabelecida pela religião doméstica, foi de fato, o casamento”.

Inicialmente, é preciso enfatizar, como orienta Azevedo (2002a, p. 38): "O fundamento da família e da sociedade romana foi o casamento (iustae nuptiae), embora tenham os romanos admitido efeitos jurídicos de caráter pessoal e patrimonial, semelhantes aos do matrimônio, também ao concubinato”.

A evolução jurídica da família ganha destaque a partir de Roma, devido ao fato de o Direito Romano ter-lhe dado “estrutura inconfundível, tornando-a unidade jurídica, religiosa e econômica, fundada na autoridade de um chefe” – o pater familias. (GOMES, 1995, p. 36). Azevedo (2002a, p. 43), acompanhado por outros romanistas, assevera que a forma de organização da família romana era monogâmica.

Em suas pesquisas, Alves (2000b, p. 245-246) levanta cinco grupos de pessoas vinculadas pelo parentesco ou pelo casamento, no Direito Romano: a gens, a familia comuni iure, o conjunto de cognados em sentido restrito, a família proprio iure e a família natural e afirma serem mais estudados os que formam "a familia proprio iure e a família natural. Da gens, da familia comuni iure e do conjunto de cognados em sentido estrito, ele se ocupa incidentalmente”. A familia proprio iure, denominação dada à família na qual as pessoas estavam sob a potestas do pater familia, “foi o organismo básico da estrutura familiar romana, e que, por isso, embora em decomposição, não desapareceu enquanto perdurou o sistema jurídico romano” (ALVES, 2000b, p. 248).

O Direito Romano admitiu, num primeiro momento, três modalidades de parentesco: a agnação (agnatio), a cognação (cognatio) e, ao lado desses a afinidade (adfinitas) (GOMES, 1995, p. 37; ALVES, 2000a, p. 110). Esse romanista, ao estudar a família proprio iuri, no direito romano pré-clássico, clássico e justinianeu, observou que houve uma evolução “pelo gradativo enfraquecimento da potestas do pater familias e pela progressiva substituição do parentesco agnatício pelo cognatício – a tendência para se chegar à família moderna” (ALVES, 2000b, p. 248).

“Como reunião de pessoas, a família romana foi eminentemente patriarcal nos tempos da Realeza e do Império, com todos os seus membros sujeitos ao poder do pater familias, que era, sempre, o ascendente masculino mais antigo e que, enquanto vivesse, tinha sobre os demais o poder de vida e de morte (jus vitae necisque). […] Esse rigorismo do patriarcado romano só começou a ser amenizado no período do Principado, influenciado pelas novas idéias trazidas pela filosofia grega e, principalmente, pelo cristianismo. No Dominato os poderes do pater familias foram sendo absolvidos pelo Estado, que passou a ditar normas de convivência e relacionamento no seio familiar” (ROLIM, 2003, p. 154-155).

Se houve um enfraquecimento da patria potestas (pátrio poder) conceituado como o conjunto de poderes que o pater familias tem sobre a pessoa e os bens de seus filii familias (ALVES, 2000b, p. 266) e quanto ao parentesco agnatício em relação ao cognatício, o mesmo não se observou no que diz respeito às relações matrimoniais entre o marido e a mulher.

Segundo as regras aplicadas no Direito Romano, a mulher entra para a família do marido por meio do casamento a conventio cum manu e sine manu. "O casamento cum manu e o casamento sine manu, constituem, ambos, as justae nuptiae, casamentos legítimos que, conforme as regras do jus civile, só se verificam entre os romanos, não se aplicando, nem aos latinos, nem aos peregrinos" (CRETELLA JÚNIOR, 2006, p. 83). Alves (2000b, p. 290) escudado em vários romanistas, aponta:

“Segundo tudo indica, porém, não havia no direito romano, propriamente, duas espécies de casamento. O conceito de casamento era um só. O que ocorria era a possibilidade de ele ser acompanhado de um ato solene – a conuentio in manum – pelo qual o marido (ou seu pater familias) adquiria a manus sobre a mulher. Quando isso se verificava, dava-se o que, tradicionalmente, se denomina casamento cum manu; em caso contrário – isto é, quando o matrimônio não era seguido da conuentio in manum –, tinha-se o que tradicionalmente se chama casamento sine manu.”

No casamento cum manu o homem sui iuris (não está sobre a patria potestas de seu pai) ou se alieni iuris (está sobre a patria potestas do pai) seu pater familias adquire a manus (poder marital) sobre a mulher, nesse caso a mulher se desvincula da família de origem e ingressa, na de seu marido, como filha (ALVES, 2000b, p. 289). Nesse casamento, a mulher conserva o status familias anterior ao casamento se fosse alieni juris, mas perde se fosse sui juris porque se torna alieni juris.

Escudado em outros romanistas, Alves (2000b, p. 302) mostra: “no direito romano, até o período pós-clássico, não eram requeridas quaisquer formalidades para que os nubentes manifestassem seu consentimento inicial”. Segundo Gaio (Institutas I, 110 a 113) o casamento cum manu realizava-se de três modos: farreum, coemptio e usus; nos dois primeiros o casamento era precedido de determinadas formalidades e no último bastava a coabitação do homem e da mulher durante um ano (AZEVEDO, 2002a, p. 46 e 49).

“A confarreatio, que era o procedimento matrimonial reservado ao patriciado, consistia na oferta a Júpiter Farreus de um pão de farinha de trigo (panis farreus), em ritual religioso, perante 10 testemunhas, acompanhado de palavras solenes do sacerdote de Júpiter (flamen Dialis). A coemptio ‘é o casamento privativo dos plebeus, em que a manus se concretiza pela venda simbólica da mulher ao marido’ por meio de ‘cerimônia que se assemelha pela forma, não pelas palavras, à mancipatio (modo solene de transferir a propriedade’ […] O usus era o modo de aquisição da manus pela convivência de um homem com uma mulher, durante um ano ininterruptamente […]” (AZEVEDO, 2002, p. 46 e 49).

Quanto aos efeitos patrimoniais da manus, Azevedo (2002a, p. 46) ensina que ela “ocasionava a passagem de todos os bens, presentes e futuros, da mulher ao patrimônio do marido, tornando-se juridicamente, filha deste e irmã de seus filhos, agnada de todos os agnados do marido e herdeira deste”.

Ainda em relação aos bens, Alves (2000b, p. 304) anota que se a mulher é sui iuris, os seus bens "passam a integrar o patrimônio da família do marido", ao contrário, se ela é alieni iuris, não possui bens, portanto não há o que transmitir, mas nesse caso o pai da esposa pode dar o dote.

O casamento sine manu era destituído de qualquer formalidade e "existiu em fins da época republicana e começo da imperial” (AZEVEDO, 2002a, p. 47) o homem “não adquire a manus sobre a mulher, que, em virtude disso conserva, além de seus bens, o status familie anterior ao casamento” (ALVES, 2000b, p. 290).

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Segundo Rolim (2003, p. 162), no casamento sine manu não havia subordinação como no casamento cum manu, mas havia direitos e deveres recíprocos. Ainda, o autor assevera: “O casamento sine manu era geralmente celebrado com separação de bens […] No século III depois de Cristo o casamento sine manu substituiu definitivamente o casamento cum manu”. Azevedo (2002a, p. 48) ensina que essa forma de casamento “em fins do século III d.C., era utilizado, normalmente, como modo usual de enlace no período do Baixo Império”.

Quanto às relações patrimoniais no casamento sine manu, verificou-se que há total independência econômica entre os cônjuges e os patrimônios do homem e da mulher são distintos, além disso, “os romanos jamais conheceram o sistema de autoridade marital para que a mulher pudesse praticar atos de conteúdo econômico” (ALVES, 2000b, p. 304). Nesse sentido, Beviláqua (1979, p. 604) ensina: "Pelo direito romano, a mulher podia alienar e adquirir bens, estar em juízo como autora ou ré, sem outorga marital".

Apesar disso, é orientação dos romanistas que nesse direito, a mulher era absolutamente incapaz, porque “se alieni iuris, ficava sob o poder do pai, ou do marido; se sui iuris, sob a tutela perpétua, instituição criada para remediar a infirmeza do seu caráter, propter sexus infirmitatem, e suprir sua inexperiência nos negócios; et propter forensium rerum ignorantiam” (PONTES DE MIRANDA, 1983, p. 118). Provavelmente, essas declarações têm como referência as afirmações de Gaio (I, 144), o qual sustentou que ela era debilitada fisicamente em razão do sexo (infirmitas sexus), faltava-lhe raciocínio lógico (infirmitas consilii), além de sua inconstância de caráter (levitas animi).

No Direito Romano antigo as relações entre os cônjuges eram regulamentadas pela moral; somente aos poucos "a lei, os costumes e o pretor vão atribuindo ao casamento efeitos pessoais entre os cônjuges" e estabelecendo o regime de dote no qual, conforme a capacidade ou não dos cônjuges, a mulher, seu pater familias ou um terceiro transfere ao marido ou a seu pater familias, se ele não fosse pater, o dote para auxiliar no sustento dos encargos decorrentes do matrimônio. Outros bens da mulher que não integram o dote continuam a pertence-lhe, mas, em geral, "são administrados pelo marido (ou, se alieni iuris, pelo seu pater familias), que age, com relação a eles, como mandatário da mulher, devendo restituir-lhos quando da dissolução do casamento" (ALVES, 2000b, p. 303-305).

O mesmo romanista continua explicando que, embora a propriedade do dote sempre tenha cabido ao marido, a administração desses bens nem sempre se fez da mesma forma nos diferentes períodos que marcaram a história do Direito Romano, senão vejamos: no direito pré-clássico o esposo tinha total liberdade para sozinho administrá-lo e aliená-lo (no início dessa época nem a dissolução do casamento lhe retirava esse direito); no direito clássico, apesar de o marido continuar a ser considerado proprietário do dote, havia algumas restrições à livre administração e à alienação desses bens pelo marido, por exemplo, a "Lex Iulia de adulteriis (18 a.C.) proibiu-lhe alienar os imóveis dotais localizados na Itália, a menos que houvesse o consentimento da mulher"; no direito justinianeu  aumentam-se as restrições: “o esposo não pode hipotecar os imóveis dotais ainda que obtenha o consentimento da mulher; estende a proibição da alienação de imóveis dotais aos situados na província (salientando, porém, que elas seriam válidas se a mulher as autorizasse)”, além disso, o marido é responsável, em alguns casos, pela deterioração dos bens dotais (ALVES, 2000b, p. 307-309).

Nesse sentido, Rolim (2003, p. 165), comentando sobre as alterações introduzidas por Justiniano, nos primeiros séculos da Era Cristã, quanto às relações patrimoniais, diz que esse Imperador "determinou que os pais deveriam constituir um dote em favor das filhas" e que esses bens dotais, administrados pelo marido, não podiam ser alienados, sem o consentimento de ambos. Explica o autor:

“Esses bens, após o casamento, passavam a ser administrados pelo marido em benefício do casal e não podiam ser alienados sem o consentimento de ambos. Em caso de separação ou divórcio, esses bens dotais seriam devolvidos à mulher ou a seus herdeiros. O mesmo ocorria com as doações propter nuptias, ou seja, aquelas que haviam sido feitas pelo marido à esposa após o casamento” (ROLIM, 2003, p.165).

Por ser o matrimônio romano um res fact, ou um “ato consensual contínuo de convivência” (MARKY, 2008, p. 160), ele se constituía por dois elementos de fato fundamentais para a sua existência jurídica: affectio maritalis e honor matrimonni. A primeira, “é o elemento subjetivo consistente na intenção contínua de ser marido e mulher; o honor matrimonii é o elemento objetivo concretizado em uma série de fatos exteriores inequívocos (coabitação, constituição do dote, posição social etc.), pelos quais se exterioriza essa intenção” (CORREIA e SCIASCIA, 1961, p. 124).

Azevedo (2002a, p. 38-39) acrescenta que o elemento subjetivo é de ordem imaterial ou espiritual, representado pela afeição marital e o objetivo de ordem material, resultante da convivência do marido e da mulher, capaz de gerar obrigações entre os cônjuges. Mostra Bonfante (1946, § 58, p. 182): esses dois requisitos do matrimônio são, portanto a convivência e a intenção, e Biondi (1957, p. 320) afirma que  um é a expressão do outro e nega serem eles elementos distintos.

Para ser justo ou legítimo o casamento civil romano, ensina Azevedo (2002a, p. 44), de acordo com Ulpiano, que deveriam estar presentes “três requisitos: o consentimento recíproco dos esposos, ou de seus patres, se sujeitos ao poder destes; a puberdade e a nubilidade dos nubentes; e o ius conubbi destes, que consistia na posse do status civitatis e do status libertatis, simultaneamente”. Observa-se que nessa época o casamento civil, embora precedido ou não de formalidades, dava-se pelos rituais e não por meio de documentos escritos.

Sobre esses elementos presentes no Corpus Iuris Ciuilis, Azevedo (2002a, p. 38-39) comenta o fato de eles aparecerem nos “dois conceitos de matrimônio, que se mostram no Digesto, o de Modestino, e, nas Institutas do Imperador Justiniano, provavelmente, o de Florentino ou de Ulpiano”.[4] Embora existam suspeitas de interpolações, a grande maioria dos autores concorda que “as duas definições focalizam apenas a essência do casamento sob o aspecto social, não lhe determinando, portanto, a natureza jurídica” (ALVES, 2000b, p. 283). 

1.2.2. A concubina e a ausência de consentimento

No Direito Romano, segundo Azevedo (2002a, p. 151), ao lado do casamento cum ou sine manu existiam três formas para o cidadão romano constituir sua família legítima: “a dos peregrinos, que passavam a conviver sine connubio, a dos escravos e, finalmente, a dos concubinos, que se uniam, livremente, sem o chamado consensus nuptialis”. O mesmo autor acrescenta que, em Roma, o concubinato se caracterizava “pela convivência estável de homem e de mulher, livres e solteiros, como se fossem casados, mas sem a affectio maritalis e a honor matrimonii. Não era proibido, nem considerado atentatório à moral”.

Portanto, em relação às formas de instituir a família, "ao lado das iustae nuptiae cum ou sine manu”, estava, entre outros o concubinato e, ao lado do concubinato estava o casamento de fato, cujo conceito “é um estágio paralelo ao do concubinato, pois, no primeiro, os conviventes sentem-se marido e mulher, porque são casados, embora não nos termos do casamento legislado (civil ou religioso com efeitos civis); no segundo, vivem como se casados fossem” (AZEVEDO, 2002a, p. 111 e 151).

O concubinato, que diverge da simples relação sexual pela estabilidade (BIONDI, 1957, p. 339), era uma instituição de fato meramente tolerada, mas absolutamente fora do direito no mundo pagão e não produzia efeitos em relação aos filhos, à sucessão e aos direitos civis (BONFANTE, 1946, § 63, p. 197).

Como instituto jurídico capaz de produzir efeitos na seara do direito, o concubinato, não existia até o direito clássico; no período do direito pós-clássico, ele é transformado em instituto jurídico, mas a condição da concubina e de seus filhos é inferior em relação à família legítima, e somente com o Imperador Justiniano o concubinato foi considerado “indene de dúvidas, como instituto jurídico". Ainda, para que a união concubinária fosse considerada legítima, ela deveria preencher "os mesmos requisitos que se exigiam às justas núpcias, aplicando, ainda, as disposições relativas aos impedimentos matrimoniais” (AZEVEDO, 2002a, p. 153-154; ALVES, 2000b, p. 321).

Sobre a natureza do concubinato, Cretella Junior (2006, p. 83) assevera, que no início, ele era "uma união de natureza inferior que não nivela, socialmente, a mulher ao marido e que não subordina os filhos à patria potestas do pai”. Mas essa situação se modificou:

“Na época do Imperador Augusto, ele foi regulamentado, indiretamente, por meio da Lex Iulia et Papia Poppaea de maritandis ordinibus e da Lex Iulia de Adulteriis, as quais visavam regulamentar o matrimônio. […] Mesmo atribuindo alguns requisitos para que houvesse concubinato, como: relação monogâmica entre o casal; idade conjugal; inexistência dos mesmos impedimentos previstos para o matrimônio relativos ao parentesco e à afinidade na linha reta, é consenso entre os romanistas pesquisados que esse instituto, por ser considerado imoral pelos imperadores cristãos, no Oriente 'foi abolido por Leão, o Filósofo (886-912 d.C.); no Ocidente, ele caiu em desuso no século XII d.C.'.” (AZEVEDO, 2002, p. 152-154; ALVES, 2000b, p. 320-322; BONFANTE, 1946, § 63, p. 198 e RAMOS, 1969, p. 198 apud RIVA, 2013, p. 28 e 32)

Quanto às relações patrimoniais entre os concubinos, não se encontrou junto aos autores consultados qualquer menção. Crispino (2005, p. 48) anota: “A discussão acerca do regime patrimonial entre os concubinos é matéria muito pouco tratada nos autores de direito romano. Esse último entendimento revela que não existia regime patrimonial entre os concubinos”.

O mesmo autor, em sua tese de doutoramento sobre o tema ora investigado, infere que embora se identificassem alguns negócios realizados entre concubinos, não se encontrou um sistema jurídico para regulamentar as relações patrimoniais, nem se pode afirmar a existência de um regime patrimonial entre eles; no entanto, assevera que os estudiosos da época se preocupavam "em traçar o embrião do que hoje se tem como proteção às relações realizadas pelos companheiros, bem como àquelas praticas entre um deles e terceiros".  Referente às relações jurídicas com terceiros, conclui "que o concubino agia como único proprietário do bem objeto do negócio, não havendo exemplos de negócios relativos a bens pertencentes ao casal que vivia em concubinato" (CRISPINO, 2005, p. 51-52).

Considerações finais      

Após a análise dos dados, no que concerne às obrigações decorrentes do contrato, verificou-se não haver divergências entre os autores consultados de que o Direito Romano exigia os mesmos requisitos para os negócios jurídicos em geral: capacidade e legitimação das partes, acordo de vontade isenta de vícios e objeto lícito, possível, determinado e determinável. Esses requisitos, no plano da validade, desafiaram os períodos que sucederam ao Direito Romano e, no direito moderno, ainda se fazem presentes.

Ao abordar as duas formas de união – o casamento e o concubinato – na sociedade romana, verificou-se, com poucas divergências entre os autores consultados, que os negócios jurídicos eram sempre celebrados pelo chefe da família, pater familia, e, que, no casamento, a única situação na qual a esposa participava, e isso ocorreu somente à época de Justiniano, era em relação aos bens dotais, já que para esses serem alienados ou hipotecados, fazia-se necessário o seu consentimento. Quanto à concubina, como não era exigido o dote, é muito provável que também não fosse exigida sua anuência para nenhuma transação praticada pelo companheiro.

Chama à atenção o fato de que, nos períodos mais marcantes da história do Direito Romano e nos subsequentes a ele, tanto o casamento quanto o concubinato eram uniões de fato, embora, como examinado, no casamento, no último período do citado Direito, já havia, em relação aos bens dotais no matrimônio, previsão legal da necessidade da outorga uxória para a realização de alguns negócios jurídicos.

Quanto ao concubinato, ainda em relação à realização dos negócios jurídicos, nos quais se inclui o contrato, de acordo com o levantamento dos dados, no Direito Romano encontram-se as raízes que sustentaram a necessidade do consentimento da mulher para a realização dos negócios imobiliários entre os conviventes e terceiros.

Do exposto, é possível informar: na seara jurídica, embora o acordo de vontade entre as partes que origina a obrigação contratual seja muito antigo, como ocorre com a classificação dos contratos, as exigências para sua validade sofreram e continuarão sofrendo modificações em decorrência das transformações históricas e das exigências da sociedade.

 

Referências
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ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 2000b. v. II.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito romano. Qualimetria, São Paulo, v. 11, n. 93, maio 1999.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo código civil, Lei n. 10.406, de 10-01-2002. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002a.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
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BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 4. tir. Edição histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979.
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BIONDI, Biondo. Il diritto romano. Bolonha: Licinio Cappeli, 1957. p. 320.
CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 4. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1961. v. I.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito romano moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
CRISPINO, Nicolau Eládio Bassalo. A união estável e a situação jurídica dos negócios entre companheiros e terceiros. 2005. Tese (Doutorado em Direito) – FDUSP – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
GOMES, Orlando. Direito de família. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed. 12. tiragem. São Paulo: Saraiva, 2008.
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MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações 1ª parte. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1983a.
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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. Tono VIII.
ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de direito romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2010. v. 5.
 
Notas:
[1] Os dados da presente pesquisa foram, parcialmente, publicados na seguinte obra: RIVA, Léia Comar. Casamento, união estável e o consentimento da mulher para a realização dos negócios jurídico-imobiliários. In: ARAÚJO, Doracina Aparecida de Castro; PAES, Ademilson Batista; RIVA, Léia Comar (Org.).  Direitos e educação: pesquisas, prescrições e prática.  São Carlos: Pedro & João Editores & Compacta Gráfica e Editora, 2013. p. 30-49.

[2] "Chama-se COMPRA e VENDA (emptio venditio) o contrato bilateral, consensual pelo qual o vendedor se obriga a entregar uma coisa ao comprador mediante um preço em dinheiro, que este se obriga a pagar (Gai. 3, 139-141) […] A venda se aperfeiçoa simplesmente pelo consentimento" (CorreIa e Sciascia,1961, p. 226).

[3] "O contrato é sempre um negócio jurídico bi ou plurilateral com relação à sua formação, pois sempre necessitará de duas ou mais vontades para se aperfeiçoar. […] Entretanto, formado o contrato, este poderá ser classificado como bi ou unilateral, dependendo do número de prestações existentes para as partes. Unilaterais: só há prestação para uma das partes (mútuo, comodato, doação simples); bilaterais ou sinalagmáticos: há prestação e contraprestação. Ambos os contraentes têm o dever de prestar (compra e venda, locação, empreitada). É decorrência da bilateralidade que não pode um dos contraentes, antes de cumprir a sua parte, exigir o cumprimento da do outro (exceptio non adimpleti contractus, CC, art. 476). Os contratos bilaterais podem ser cumulativos ou aleatórios" (SIMÃO, 2010, p. 4-5).

[4] Azevedo (2002a, p. 39) comenta que: no conceito de Modestino: “percebem-se com nitidez esses elementos, quando assenta que ‘as núpcias são a união do marido e da mulher e o consórcio para toda a vida, a comunicação do direito divino e do humano’ (Nuptiae sunt coniunctio maris et feminae, et consortium omnis vitae, divini et humani iuris communicatio)”. Nas Institutas, “as núpcias, ou matrimônio, são a união do varão e da mulher, implicando uma comunhão indivisível de vida’ (Nuptiae autem sive matrimonium est viri et mulieris coniunctio, individuam vitae consuetudinem continens)”.


Informações Sobre o Autor

Leia Comar Riva

Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (FD-USP). Professora Efetiva de Direito Civil do Curso de Direito e de Especialização em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba-MS. Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa GREDIFAMS. Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro-associado da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).


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