Como distinguir o crime preterdoloso dos demais delitos?

Resumo: O trabalho exposto faz referência ao crime preterdoloso, um assunto amplamente discutido e que tem como base a análise subjetiva do delito. Não deve haver controvérsia com relação à presença da imputação objetiva e dos elementos do fato material, pois estes já devem estar implícitos para que se chegue a indagação da existência ou não da prática desta espécie de crime. A discussão vai além, abordando temas resididos nos elementos subjetivos e na questão da tipicidade. Os principais alvos de estudo aqui abordados são o dolo e a culpa, estabelecendo conceitos, parâmetros e limitações para que se possa, em fim, afirmar se houve ou não o preterdolo, daí a importância da produção deste artigo científico e dos elementos aqui descritos.
Sumário: Introdução; 1. Adequação típica; 2. Fato típico; 3. Teoria finalista da ação; 4. O crime doloso; 5. O crime culposo; 6. O crime preterdoloso; Conclusão; Referências.
Palavras-chaves: Tipificação; fato material; elementos subjetivos; tipo misto; dolo no antecedente; teoria do consentimento; culpa no conseqüente; desqualificação; previsibilidade; cuidado objetivo.

Introdução

Diante dos questionamentos feitos acerca do preterdolo em relação à doutrina, fez-se necessário o estudo e a exposição de tal tema, de maneira técnica, permitindo a compreensão. O objetivo é ampliar o conhecimento acerca do mesmo e estimular o debate, devido, sobretudo, a sua importância e, ao mesmo tempo, sua complexidade, tendo em vista a dimensão teórica que lhe é devida. É um tema bastante relevante e passível de discussão, pois envolve principalmente elementos subjetivos do crime, o que, de maneira alguma, é fácil de se

analisar. O presente trabalho busca desenvolver estes conceitos e atribuir ao preterdolo novo significado, enfatizando a questão da previsibilidade, elemento necessário para se chegar às devidas conclusões. Para fins didáticos, o artigo segue com uma divisão de temas essenciais, para facilitar o processo de análise e absorção do conteúdo de maneira prática, discutindo, necessariamente, o conceito de fato típico, a teoria finalista da ação, as espécies de dolo e culpa, a presença ou não do cuidado objetivo, a previsibilidade e a teoria do consentimento.

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1. Adequação típica

O Direito Penal é constituído pelo  conjunto  de  normas estabelecidas  pelo  Estado

com  a finalidade de combater o crime. Porém, muitas vezes essas normas não estão dispostas de maneira simples, dificultando a realização de uma adequação típica. Soler (1978, v.2, p.166) ensinava que este problema deve-se ao fato dos tipos não serem valores numéricos, nem puros conceitos lógicos, e, sim, normas que contém uma essência que forma um complexo sistema de relações entre uma figura e outra. Para resolver casos como esse é preciso que se faça uma análise intensa sobre o fato, indagando-se a que figura típica ele deveria ser enquadrado, dentre as muitas que a ele podem ser aplicadas. Jesus (2002, v.1, p.270) faz referência ao assunto afirmando que “na maioria das vezes o problema assume feição de uma operação complexa, seja porque a conduta pode ser analisada sob diferentes pontos de vista, seja porque várias leis podem ser aplicadas sobre ela”.

E é nesse contexto que está a problemática da análise do crime preterdoloso ou preterintencional, que é um tipo misto, em que há uma conduta que é dolosa, por dirigir-se a um fim típico, e que é culposa pela causação de outro resultado, mais grave, que não era objeto do crime fundamental, pela inobservância do cuidado objetivo.

Também nos sugere Jesus (2002, v.1, p.270) que o crime de preterdolo apresenta-se, na maioria das vezes, sobre a forma de adequação típica de subordinação mediata (ampliada ou por extensão) o fato de não se enquadrar imediatamente na norma penal incriminadora considerada, necessitando para isso do concurso de outra disposição. Ocorre que, as vezes, o tipo se aplica a um fato sem que este contenha todos os elementos daquele. Assim, na tentativa de homicídio por ex., o fato não se amolda de maneira imediata no art. 121, havendo necessidade de empregar-se a norma contida na parte geral que o descreve (art.14). Há, então, uma ampliação temporal da figura típica, uma vez que, com o concurso de outra disposição, o tipo não abrange somente o momento consumado do crime (morte da vítima), estendendo-se também ao instante anterior em que a conduta se dirigia à completa realização do modelo legal. Na participação existe ampliação espacial e pessoal do tipo, pois a figura típica, com o concurso de regra do art. 29, não abrange somente o comportamento que se amolda imediatamente em seu núcleo, estendendo-se também às condutas que, de qualquer modo, concorrem para a realização do crime.

Nos crimes preterdolosos ou preterintencionais, não é suficiente a existência de um nexo de causalidade objetiva entre a conduta antecedente (que constitui o primum delictum) e o resultado agravador. Assim a relação entre a conduta e o resultado, embora necessária, não é suficiente para o processo de adequação típica, uma vez que se exige a relação de causalidade subjetivo-normativa, ou seja, é necessário que haja um liame normativo entre o sujeito que pratica o primum delictum e o resultado qualificador. Este só é imputado ao sujeito quando previsível (culpa). Por isto que ele é chamado preterdoloso, porque vai além do dolo.

2. Fato típico

Para que haja crime é preciso, em primeiro lugar, uma conduta positiva ou negativa. Mas nem todo comportamento do homem constitui delito. Em face do princípio da reserva legal, somente os descritos pela lei penal podem assim ser considerados. Somente o fato típico, ou seja, o fato que se amolda ao conjunto de elementos descritivos do crime contido na lei, é penalmente relevante.

Entende-se por fato típico o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca um resultado (em regra), e é previsto em lei penal como infração. O fato típico é composto pelos seguintes elementos: conduta humana dolosa ou culposa; resultado; nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; enquadramento no fato material (conduta, resultado e nexo) a uma norma penal incriminadora. Não basta, porém, que o fato seja típico para que exista crime. É preciso que seja contrário ao direito, antijurídico (análise do crime sob o aspecto formal).

Para que se chegue a conclusão de que o crime é preterdoloso não deve haver controvérsia nos autos a respeito da presença dos elementos do fato material: conduta, resultado e nexo de causalidade. Os pontos a discutir residem no elemento subjetivo-normativo (dolo ou culpa) e na conseqüente tipicidade (crime doloso ou preterdoloso).

3. A teoria finalista da ação

A teoria finalista da ação foi adotada pelo nosso código na reforma de 1984, deslocando o dolo e a culpa do terreno da culpabilidade para o campo do tipo penal. Em face disso, considerando o crime como fato típico e antijurídico, o primeiro elemento daquele é a conduta dolosa ou culposa, dirigida a uma finalidade. Assim, para que um fato seja típico, é preciso que haja dolo ou culpa, sem o que não há crime.

Seguindo-se a teoria da ação finalista,  para casos de crimes  preterdolosos,  haverá

uma decisão desclassificatória, entendendo não haver dolo eventual no tocante ao resultado, mas a existência da culpa consciente, caracterizando o fato como delito preterdoloso ou preterintencional.

Mas o que difere o dolo eventual da culpa consciente?

4. O crime doloso

Dolo é a vontade de concretizar as características objetivas do tipo. Constitui elemento subjetivo implícito do tipo. Não é a simples representação do resultado o que constitui um acontecimento psicológico. Exige representação e vontade, sendo que esta pressupõe aquela, pois o querer não se movimenta sem a representação do que se deseja. Assim, não basta a representação do resultado, exigindo-se vontade de realizar a conduta e de obter o resultado (ou assumir o risco de produzi-lo).

O dolo pode ser direto e indireto. No dolo direto o sujeito visa a certo e determinado resultado (Código Penal, art. 18, 1ª parte).  Ex.: o agente desfere golpes de faca na vítima com a intenção de matá-la. O dolo se projeta de forma direta no resultado morte. Há dolo indireto quando a vontade do sujeito não se dirige a certo e determinado resultado.

O dolo indireto apresenta duas formas: dolo alternativo e dolo eventual. Há dolo alternativo quando a vontade do sujeito se dirige a um ou outro resultado. Ex.: o sujeito desfere golpes de faca na vítima com intenção alternativa: ferir ou matar. Ocorre o dolo eventual, também chamado condicionado, quando o sujeito assume o risco de produzir o evento, prevê, admite e aceita o risco de produzi-lo (Código Penal, art. 18, I, parte final). Ele não o quer, pois se assim o fosse haveria dolo direto. Antevê o resultado e age, ou seja, a vontade não se dirige diretamente ao fim (agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele (vontade dirigida indiretamente ao evento). Percebe que é possível causá-lo e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e poder causar o resultado, este se lhe mostra indiferente.

Uma teoria  bastante  útil  para  identificar  o dolo eventual  é a teoria positiva  do consentimento, formulada por Costa Júnior (1991, v.1, p.83), que afirmava ocorrer tal tipo de dolo quando o agente diz a si mesmo: “seja assim, ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei”.

5. O crime culposo

A culpa do delito preterdoloso exige os mesmos elementos do crime culposo: especialmente    conduta     culposa,    descumprimento    do    cuidado     objetivo   necessário,

previsibilidade do resultado e ausência de previsão.

Para entender melhor este assunto faz-se necessária uma exposição técnica acerca dos temas mencionados:

A culpa consiste na prática não intencional do delito, deixando o agente de observar um dever de atenção e cuidado. Culpa é a conduta voluntária que produz um resultado antijurídico não querido, mas previsível (ou excepcionalmente previsto – culpa consciente), que podia, com a devida atenção ser evitado. A conduta torna-se típica a partir do instante em que não se manifesta o cuidado necessário por parte do agente, pois a todos no convívio social, é determinada a obrigação de realizar condutas de forma a não produzir danos a terceiros. É o denominado cuidado objetivo.

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Além da idéia do cuidado objetivo, surge no conceito de culpa, a questão da previsibilidade. Previsibilidade é a possibilidade de se prever o resultado. Em suma, é necessário que o sujeito não tenha previsto o resultado para que sua conduta seja considerada culposa, pois a previsão é elemento do dolo. Na culpa, o resultado é previsível, mas não é previsto pelo sujeito. Daí falar-se que culpa é a imprevisão do previsível. Porém, excepcionalmente, a previsão pode integrar a culpa. Essa exceção ocorre nos casos referentes à culpa consciente, em que o sujeito prevê o resultado, mas acredita que o mesmo não ocorrerá, por confiar demasiadamente na sua perícia ou nas circunstâncias. Há, pois, previsão no sentido de que o caso não ocorrerá.

Devem estar presentes na culpa consciente, dentre outros requisitos comuns: 1º) vontade dirigida a um comportamento que nada tem com a produção do resultado ocorrido. 2º) crença sincera de que o evento não ocorrerá em face da sua habilidade ou interferência de circunstância impeditiva, ou excesso de confiança. A culpa consciente contém um dado importante: a confiança de que o resultado não venha a produzir-se, que se assenta na crença em sua habilidade na realização da conduta ou na presença de uma circunstância impeditiva. 3º) erro de execução.

6. O crime preterdoloso

Diante do exposto, conclui-se que, para que haja crime preterdoloso devem-se observar os elementos subjetivos presentes no momento da conduta, definindo-se se houve a ocorrência de previsão sobre o resultado e se o agente assumiu ou não o risco de produzi-lo. Essas características irão delimitar a possibilidade de existência do dolo eventual ou da culpa consciente no que se refere ao resultado da conduta. A culpa consciente difere do dolo eventual na medida em que neste o agente tolera a produção do resultado, sendo-lhe o evento indiferente (tanto faz que ocorra ou não). Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer o resultado, nem o risco lhe é tolerante ou indiferente. O evento lhe é representado (previsto), mas confia em sua não-produção e, apesar de sabê-la possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não acontece por erro de cálculo ou erro de execução.

Os crimes preterdolosos e os demais qualificados pelo resultado são regulados pelo art. 19: “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responderá o agente que houver causado ao menos culposamente”. A expressão “ao menos culposamente” indica a existência de casos em que o resultado qualificador admite dolo, como em algumas hipóteses de lesão corporal grave e gravíssima (art. 129, § 2º, III). Quando isso ocorre, não se pode falar em crime preterdoloso, mas simplesmente em delito qualificado pelo resultado.

 É importante fazer uma distinção entre preterdolo e culpa imprópria, para que estes não se confundam. Na culpa imprópria há culpa no antecedente e dolo no conseqüente, ao contrário do que ocorre no preterdolo. Ela está disposta no Código Penal, art. 20, § 1º, 2ª parte, e 23, parágrafo único. A culpa imprópria é, na realidade, culpa por equiparação: o C.P. equipara para fins de pena o delito doloso ao culposo. É o caso do erro de tipo inescusável (evitável, vencível) nas discriminantes putativas, previstas no art. 20, § 1º, parte final (matar alguém, supondo erroneamente que estava sendo atacado – legítima defesa putativa).

Conclusão

Portanto, para que um delito seja considerado preterdoloso é preciso que o agente dirija sua conduta a uma intenção inicial (primum delictum), agindo dolosamente em relação a esta; e tenha como resultado algo mais grave que o pretendido pelo sujeito (resultado qualificador) atribuindo-se a este último a culpa consciente, pois o agente, tendo previsto o resultado no momento de sua conduta, acreditava sinceramente poder impedi-lo, ocorrendo aqui excesso de confiança e erro de execução. É a chamada “preterintencionalidade substitutiva”. O agente quer um minus e seu comportamento causa um majus, de maneira que se conjugam o dolo na conduta antecedente e a culpa no resultado (conseqüente). Daí falar-se que o crime preterdoloso é um misto de dolo e culpa: dolo no antecedente e culpa no conseqüente.

É importante ampliar-se o estudo acerca desse tema, pois, como já fora mencionado, envolve espécies bastante subjetivas do crime, as quais não são fáceis de se analisar. A desclassificação da tipicidade (de dolo eventual para preterdolo) terá grande repercussão no que diz respeito às penas aplicadas, que possuem diferença de tempo relativamente significante. Se há possibilidade do delito ser tipificado no plano do preterdolo, é relevante que haja um grande esforço, por parte da defesa, para que se faça sobressair esta tese, pois estaríamos diante de uma das circunstâncias mais relevantes aos seres humanos, contemplada até mesmo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e em nossa Constituição Federal: a liberdade, fundamento que dá ânimo à vida e à perspectiva de um futuro próspero ao réu, que ao ser privado da liberdade, depois de julgado, o seja por tempo justo e próprio do crime cometido, e não por um demasiadamente prolongado, por imprudência ou imperícia da defesa ou incompreensão dos julgadores.

Referências Bibliográficas:
BRASIL. Código Penal. 4ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 4ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2002.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1991.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte Geral. 25ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
NÚÑEZ, Juan Antônio Martos. La Preterintencionalidad. Revista de Direito Penal y Criminologia. Madri: Universidad Nacional de Educacion, 1993.
SOLER. Derecho Penal Argentino. Buenos Aires: TEA, 1978.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Taísa Caroline dos Santos Machado

 

Acadêmica na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG-GO) e componente do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP).

 


 

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